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DE OPTIMO GENERE ORATORUM

MARCO TÚLIO CÍCERO

A
obra em questão foi escrita em 46 a.C., depois de Brutus e de
Orator. Quando Cícero concluiu seu Orator, Bruto, um de seus
mais caros amigos, considerou-o inacabado e falho, o que não
só frustrou o grande orador, mas o motivou a escrever um opúsculo definitivo
tratando da rixa dos neoáticos.
Cícero foi influenciado pelas escolas asiática e rodiana, mas era parti-
dário da estética oratória ática. Entretanto, entre seus coevos, havia defecções e
radicalizações dessa doutrina: Bruto era partidário de seguir à risca a concisão e
a ligeireza discursivas aos moldes exatos de Demóstenes, de quem tinha um
busto em sua casa e idolatrava como o maior orador de todos os tempos.
Cícero, contudo, objeta que esse tipo de leitura literal do estilo ático é
canhestro e condena a produção textual à aridez, já que, a seu ver, Demóstenes
era o supro modelo oratório e devia ser imitado, mas os neoáticos tomavam seus
preceitos muito à risca e estavam longe de tornar-se oradores perfeitos. Obvia-
mente, havia um quid pessoal da parte de Cícero ao tomar parte em tal conten-
da. Seu próprio estilo era eivado de lapidações estilísticas e prolixidade e o pre-
sente opúsculo pode ser entendido também como uma apologia de seus precei-
tos e uma autoconsagração como o Demóstenes latino e orador perfeito.
Ora, para fazer um texto com essa carga panfletária, Cícero concebeu
traduzir, para o latim, os textos de Ésquino e Demóstenes, pró e contra Ctesifão
respectivamente, acerca da egrégia polêmica da coroa, e anotar, a título de pre-
fácio, suas ideias acerca da polêmica: Qual é o suprassumo da oratória? O que é,
de fato, o verdadeiro estilo ático?
As traduções ciceronianas, lamentabilissimamente, se perderam no
tempo. Em absoluto. Mas seu rico prefácio chegou a nós. Nele, apreende-se não
apenas o que o grande romano ponderou acerca da estilística retórica, mas tam-
bém suas ideias acerca da arte tradutória. Suas sentenças acerca do seu proce-
dimento tradutório tornaram-se emblemáticas. Vejam-se sobre este particular os
parágrafos 13-15, 18 e 23. Mas, de nobis satis. Vejamos Cícero discursar em
vernáculo.

Brunno Vinicius Gonçalves Vieira & Pedro Colombaroli Zoppi


brunnovgvieira@gmail.com / zolpenstein@hotmail.com
Universidade Estadual de São Paulo (Araraquara)

Scientia Traductionis, n.10, 2011


5 DE OPTIMO GENERE ORATORUM

DE OPTIMO GENERE O MELHOR GÊNERO DE


1
ORATORUM ORADORES
(46 a.C.) (2011)

[I] [1] Oratorum genera esse I. [1] Diz-se que os gêneros


dicuntur tamquam poetarum; id dos oradores são como os dos
secus est, nam alterum est simplex, poetas. Trata-se de um equívoco, já
alterum multiplex. Poematis enim que a oratória é una; a poesia,
tragici, comici, epici, melicietiam múltipla. Há, de fato, um gênero
ac dithyrambici2, quom a Graecis próprio, que difere dos demais, de
est tractatum [a Latinis], suum poema trágico, cômico, lírico e
genus est, diuersum a reliquis. Ita- ainda de canto coral ditirâmbico,
que et in tragoedia comicum uitio- como praticado pelos gregos 3 .
sum est et in comoedia turpe Assim, tanto o cômico é impróprio
tragicum; et in ceteris suus est cui- em uma tragédia, como o trágico é
que certus sonus et quaedam algo torpe em uma comédia. Cada
intellegentibus nota uox. [2] Orato- gênero tem um determinado tom e
rum autem si quis ita numerat plura uma certa modulação de voz discer-
genera, ut alios grandis aut grauis nível entre os seus conhecedores.
aut copiosos, alios tenuis aut [2] Se alguém, no entanto, distribui
subtilis aut breuis, alios eis inte- os oradores em vários gêneros, de
riectos et tamquam medios putet, de forma que qualifique uns como
hominibus dicit aliquid, de re grandíloquos, sublimes ou prolixos;
parum. In re enim quid optimum sit outros como simples, sutis ou
quaeritur, in homine dicitur quod sucintos; e outros, ainda, situados
est. Itaque licet dicere et Ennium na interseção desses gêneros, tal
summum epicum poetam, si cui ita como são os intermediários: enun-
uidetur, et Pacuuium tragicum et cia algo sobre caracteres humanos,
Caecilium fortasse comicum. pouco sobre a arte oratória. Pois, no
que tange à arte, busca-se o que é
melhor; no que concerne ao ho-
mem, diz-se o que ele é. Nesse
sentido, pode-se declarar que Ênio
seja o príncipe dos poetas épicos, se
a alguém assim parece, Pacúvio dos
trágicos e Cecílio, talvez, dos
cômicos.
[3] Oratorem genere non [3] Não categorizo oradores
diuido; perfectum enim quaero. por gêneros, mas busco o orador
1
Texto latino conforme o estabelecido em: CICÉRON. L’orateur. Du meilleur genre
d’orateurs. Texte établi et traduit par Albert Yon. Paris: Les belles lettres, 1964.
2
Melici: era o termo mais geral para se indicar a poesia lírica. Liricus dizia respeito, especifi-
camente, à poesia a ser entoada na lira. O ditirambo é a forma final desse gênero para ser canta-
do e dançado.
3
Segue-se a sugestão de Yon quanto à supressão do termo Latinis, “praticado pelos Latinos”,
presente em muitos manuscritos, provável glosa já que “na época de Cícero não se tinha de fato
conhecimento de poesia lírica e coral que não fosse dos Gregos” (CICÉRON, 1964, p. 160).

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6 CÍCERO, BRUNNO VIEIRA, PEDRO ZOPPI

Vnum est autem genus perfecti, a perfeito. Há, portanto, um único


quo qui absunt non genere diffe- gênero de perfeição, os oradores
runt, ut Terentius ab Accio, sed in que dele se afastam, não diferem
eodem genere non sunt pares. Opti- quanto ao gênero – tal como
mus est enim orator, qui dicendo Terêncio distingue-se de Ácio 4 –,
animos audientium et docet et mas são díspares dentro de um
delectat et permouet. Docere debi- mesmo gênero. É o melhor orador
tum est, delectare honorarium, per- aquele que, ao discursar, instrui,
mouere necessarium. deleita e convence a sensível audi-
ência. Instruir é um dever. Deleitar,
uma cortesia. Convencer, uma
[4] Haec ut alius melius quam necessidade. [4] Deve-se admitir
alius, concedendum est; uerum id que um orador é melhor que outro
fit non genere, sed gradu. Optimum e, na verdade, isso acontece não
quidem unum est et proximum pelo gênero, mas pelo nível de
quod ei simillimum. Ex quo perspi- excelência. O melhor, de fato, é
cuum est, quod optimo dissimilli- singular e o que dele se aproximar,
mum sit, id esse deterrimum. mais se assemelha a ele. Donde se
infere ser o pior o que lhe é mais
dessemelhante.
[II] Nam quoniam eloquentia [II] Assim, uma vez que a
constat ex uerbis et ex sententiis, eloquência consiste em palavras e
perficiendum est ut pure et emen- ideias, devemos trabalhar para que,
date loquentes, quod est Latine, discursando clara e corretamente,
uerborum praeterea et propriorum isto é, em Latim culto, alcancemos,
et tralatorum elegantiam persequa- sobretudo, a elegância nas palavras
mur; in propriis, ut lautissima no sentido próprio e no figurado;
eligamus, in tralatis, ut similitu- entre os termos próprios escolha-
dinem secuti uerecunde utamur mos os mais distintos, entre os
alienis. figurados, seguindo a semelhança,
utilizemos com parcimônia os
termos impróprios.
[5] Sententiarum autem [5] Há tantos gêneros de
totidem genera sunt, quot dixi esse ideias quanto eu disse haver de
laudum. Sunt enim docendi acutae, qualidades5 . As ideias penetrantes
delectandi quasi argutae, commo- são próprias do instruir; aquelas,
uendi graues. Sed et uerborum est por assim dizer, perspicazes, do
structura quaedam duas res effici- deleitar; as sublimes, do convencer.
ens, numerum et leuitatem, et Mas, assim como a estrutura das
sententiae suam compositionem palavras é constituída de dois
habent, ad probandam rem elementos, o ritmo e a leveza6, as
accommodatum ordinem. Sed ideias têm uma composição própria,

4
Terêncio dedicou-se à comédia; Ácio, à tragédia.
5
Trata-se das instâncias do docere, delectare e permouere, há pouco citadas.
6
O ritmo está relacionado caráter acústico das palavras, em que pese a quantidade (longa ou
breve) dos fonemas vocálicos latinos. A leveza diz respeito à adequabilidade e precisão do sig-
nificado da palavra dentro de determinado discurso, outras acepções possíveis para leuitas seri-
am “polimento” (cf. trad. de Yon), “suavidade” (Menendez y Pelayo).

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7 DE OPTIMO GENERE ORATORUM

earum omnium rerum [ut aedifici- ou seja, uma ordem adequada para
orum] memoria est quasi funda- demonstrar uma causa. De tudo
mentum, lumen actio. [6] Ea igitur isso, porém, a memória é o alicerce,
omnia in quo summa erunt, erit como aquele dos edifícios, e a
perfectissimus orator; in quo media, performance, a luz. [6] Portanto, o
mediocris; in quo minima, deterri- orador que tiver excelência nesses
mus. Et appellabuntur omnes elementos, será o mais perfeito; o
oratores, ut pictores appellantur que ficar na média, será mediano; o
etiam mali, nec generibus inter que os atingir minimamente, será o
sese, sed facultatibus different. pior. Todos serão chamados de
Itaque nemo est orator, qui oradores – como também pintores
Demostheni se similem nolit esse. se chamam os maus pintores – e
at Menander Homeri noluit; genus não diferirão entre si quanto ao
enim erat aliud. Id non est in gênero, mas quanto à capacidade.
oratoribus, aut, etiam si est ut alius Ora, não há orador que não
grauitatem sequens subtilitatem queira se assemelhar a Demóstenes.
fugiat, contra alius acutiorem se Por outro lado, Menandro não quis
quam ornatiorem uelit, etiam si est ser igual a Homero, pois seguia um
in genere tolerabili, certe non est outro gênero7. O mesmo não sucede
optimus, si quidem, quod omnis entre os oradores. Ainda que haja
laudes habet, id est optimum. alguém que seguindo o sublime fuja
à sutileza ou, ao contrário, algum
outro que queira ser mais penetran-
te que mais elegante, mesmo
praticando um gênero que tolere
essas variações, certamente não é o
melhor orador, pois o melhor é o
que reúne em si todas as
qualidades.
[III] [7] Haec autem dixi [III][7] Discorri acerca de
breuius quidem quam res petebat, tudo isso, de fato, mais brevemente
sed ad id quod agimus non fuit que o assunto demandava, mas para
dicendum pluribus; unum enim o que estamos tratando aqui não foi
cum sit genus, id quale sit necessário ser dito mais. Se há um
quaerimus. Est autem tale quale único gênero, é ele que procuramos.
floruit Athenis. Ex quo Atticorum Pois bem, trata-se daquele que
oratorum ipsa uis ignota est, nota floresceu em Atenas8. Ignorou-se a
gloria. Nam alterum multi uiderunt, fonte da força expressiva dos ora-
uitiosi nihil apud eos esse, alterum dores áticos9, mas foi reconhecida
pauci, laudabilia esse multa. Est sua glória. 10 Por isso, muitos

7
Menandro escreveu comédias; Homero, poesia épica.
8
C. defende neste texto a supremacia do estilo ático ou aticismo. Esta obra surge em resposta a
uma polêmica contra os chamados neoáticos, jovens oradores liderados por Bruto e Calvo que
entendiam ser o aticismo um estilo conciso e direto.
9
Áticos, adjetivo pátrio, o mesmo que atenienses.
10
Yon esclarece essa frase à luz da contenda entre C. e os neoáticos: se agora se criticam os áti-
cos sem os conhecerem a fundo, quer dizer que sua própria existência já é objeto de glória, ou
seja, os modernos reafirmam os clássicos ao confrontá-los.

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8 CÍCERO, BRUNNO VIEIRA, PEDRO ZOPPI

enim uitiosum in sententia, si quid constataram não haver nada de


absurdum aut alienum aut non impróprio nas obras dos áticos,
acutum aut subinsulsum est; in outros poucos que há neles muito a
uerbis, si inquinatum, si abiectum, se louvar.
si non aptum, si durum, si longe Algo é impróprio no nível da
petitum. [8] Haec uitauerunt fere ideia, se for absurdo, disparatado,
omnes, qui aut Attici numerantur superficial ou insosso; no nível das
aut dicunt Attice. Sed quatenus palavras, se for impuro, baixo, ina-
ualuerunt, sani et sicci dumtaxat dequado, duro e preciosista. [8]
habeantur, sed ita ut palaestritae, Torpezas que todos os áticos e
spatiari in xysto ut liceat, non ab quem quer que discurse ao modo
Olympiis coronam petant. Qui cum ático sempre evitaram. Eles a tal
careant omni uitio, non sunt ponto se esmeraram que são consi-
contenti quasi bona ualetudine, sed derados saudáveis e enxutos, como
uiris, lacertos, sanguinem quaerunt, os esportistas, que podem se alon-
quandam etiam suauitatem coloris, gar em um ginásio coberto, sem
eos imitemur, si possumus; si aspirar à coroa dos jogos Olímpi-
minus, illos potius qui incorrupta cos. Esses tão logo se isentam de
sanitate sunt, quod est proprium tudo que é impróprio, não se
Atticorum, quam eos, quorum contentam com um preparo físico,
uitiosa abundantia est, quales Asia por assim dizer, bom, mas buscam
multos tulit. força, músculos e vigor, bem como
uma branda cor: devemos imitá-los,
se pudermos; ou, ao menos,
imitemos preferentemente aqueles
que têm uma saúde íntegra, o que é
natural dos áticos, ao invés
daqueles outros de corpulência
imprópria, os quais a Ásia muito
prodigamente sempre gerou. 11
[9] Quod cum faciemus — si [9] Quando praticarmos o
modo id ipsum assequemur; est estilo ático – se ao menos dele nos
enim permagnum, — imitemur, si acercamos, o que já é algo grandio-
potuerimus, Lysiam et eius quidem so –, imitemos, se formos capazes,
tenuitatem potissimum; est enim Lísias e, de preferência, sua
multis locis grandior, sed quia et simplicidade. Ele é grandíloquo em
priuatas ille plerasque et eas ipsas muitos segmentos, mas, por ele ter
aliis et paruarum rerum causulas escrito tanto pequenas causas de
scripsit, uidetur esse ieiunior, cum assuntos corriqueiros como muitas
se ipse consulto ad minutarum delas sobre assuntos particulares
causarum genera limauerit. em prol de terceiros, parece ser um
autor mais árido, ao passo que ele
mesmo teria propositalmente se
aperfeiçoado nesses gêneros de
11
C. é afeito a metáforas no campo da saúde e forma física para a descrição dos estilos orató-
rios, como comprova este passo do Orator, 25 em que ele define o asianismo: “Cária, Frígia e
Mísia (regiões da Ásia Menor), por que pouco instruídas e elegantes, adotaram um gênero de
dicção apropriado aos seus ouvidos, pesado (opimum) e como que engordurado (adipale)”.

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9 DE OPTIMO GENERE ORATORUM

causas sucintas por natureza.


[IV] Quod qui ita faciet, si [IV] Se algum praticante
cupiat uberior esse, non possit, desse gênero almejasse ser mais
habeatur sane orator, sed de mino- abundante, sem podê-lo, esse sim
ribus. Magno autem oratori etiam seria considerado um orador, mas
illo modo saepe dicendum est in tali dentre os menores, muito embora
genere causarum. [10] Ita fit ut também ao grande orador seja
Demosthenes certe possit summisse conveniente amiúde se expressar
dicere, elate Lysias fortasse non dessa maneira em se tratando de
possit. Sed si eodem modo putant causas desse gênero. [10] Acontece
exercitu in foro et in omnibus que Demóstenes poderia certamente
templis, quae circum forum sunt, discursar com simplicidade; a
collocato dici pro Milone 12 Lísias, talvez, fosse impossível
decuisse, ut si de re priuata ad fazê-lo com arrebatamento. Por
unum iudicem diceremus, uim outro lado, se, nesse mesmo gênero,
eloquentiae sua facultate, non rei julgam que foi conveniente termos
natura metiuntur. pronunciado o Pro Milone (“Dis-
curso em defesa de Milão”) com o
exército posicionado no foro e em
todos os templos que o circundam,
como se discursássemos sobre um
assunto particular diante de um
único juiz 13 , avalia-se a força da
eloqüência pela sua própria poten-
cialidade, não pela natureza do
assunto.
[11] Quare quoniam nonnul- [11] Por essa minha posição,
lorum sermo iam increbruit partim um boato se espalhou pela boca de
se ipsos Attice dicere, partim não pouca gente: uns dizendo que
neminem nostrum dicere, alteros só eles discursavam ao modo ático;
neglegamus; satis enim eis res ipsa outros que ninguém dos nossos
respondet, cum aut non adhibeantur assim discursaria. Desprezemos
ad causas aut adhibiti derideantur; aqueles primeiros, por si só os fatos
nam si rideretur, esset id ipsum lhes respondem a contento: não são
Atticorum. convidados para causas judiciais,
ou, quando são convidados, eles
mesmos são motivo de riso; ao
passo que se provocassem o riso,
sem ser objeto dele, isso sim seria
próprio dos áticos.
Sed qui dici a nobis Attico Diferentemente, aqueles que

12
Em 52 Milão, do partido aristocrático, dera ordens de matar Clódio, um tribuno, que seria um
concorrente seu para a eleição ao consulado. Diante da confusão que isso causou, Pompeu é
eleito como cônsul único e se empenha em cassar o réu que tinha em Cícero seu defensor (Pro
Milone). Pompeu, rodeando de tropas o tribunal, impediu que o processo prosseguisse nas nor-
mais condições de tranqüilidade e imparcialidade requeridas. Milão é condenado e exilado.
13 14
Note-se que C. contesta o argumento dos neo-áticos e define como modelo único e maior
Demóstenes.

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10 CÍCERO, BRUNNO VIEIRA, PEDRO ZOPPI

more nolunt, ipsi autem se non não querem ser categorizados por
oratores esse profitentur, si teretes nós como áticos, declarando que
auris habent intellegensque iudi- sequer são oradores, se possuem
cium, tamquam ad picturam pro- um ouvido sensível e um razoável
bandam adhibentur etiam inscii senso crítico, é como se convidás-
faciendi cum aliqua sollertia iudi- semos para avaliar uma pintura
candi; [12] sin autem intellegentiam pessoas, com algum discernimento,
ponunt in audiendi fastidio neque mas que não sabem fazê-la. [12] Se
eos quicquam excelsum magnifi- há aqueles que, contudo, predis-
cumque delectat, dicant se quiddam põem sua inteligência a desdenhar
subtile et politum uelle, grande do que ouvem, e nem mesmo algo
ornatumque contemnere; id uero excelente e magnífico os deleita,
desinant dicere, qui subtiliter que fiquem então dizendo que
dicant, eos solos Attice dicere, id querem algo sutil e refinado e que
est quasi sicce et integre. Et ample desdenham algo grandiloquente e
et ornate et copiose cum eadem elegante, todavia, que esses orado-
integritate Atticorum est. Quid? res de sutilezas deixem de dizer que
dubium est, utrum orationem apenas eles discursam ao modo
nostram tolerabilem tantum an ático, isto é, de modo enxuto e
etiam admirabilem esse cupiamus? íntegro.
Non enim iam quaerimus quid sit É natural dos áticos um dizer
Attice, sed quid sit optime dicere. majestoso, elegante e prolixo com
um comedimento que lhes é pró-
prio. Que mais direi? Há dúvida se
haveríamos de desejar um discurso
tão somente tolerável, ou antes um
discurso digno de admiração? Já
não procuramos o estilo dos áticos,
mas o melhor modo de discursar.
[13] Ex quo intellegitur, [13] Diante disso, conside-
quoniam Graecorum oratorum rando que os mais altanados dentre
praestantissimi sint ei, qui fuerint os oradores gregos são aqueles de
Athenis, eorum autem princeps Atenas, sendo Demóstenes, tranqui-
facile Demosthenes, hunc si qui lamente, o primeiro dentre eles, se
imitetur, eum et Attice dicturum et há alguém que o imite, discursará
optime, ut, quoniam Attici nobis ao modo ático e, portanto, da me-
propositi sunt ad imitandum, bene lhor maneira, tanto que, por terem
dicere id sit Attice dicere. sido os áticos apresentados a nós
como dignos de imitação, discursar
bem significa discursar ao modo
ático.14
[V] Sed cum in eo magnus [V] Entretanto uma vez que
error esset, quale esset id dicendi tenha ocorrido um tremendo
genus, putaui mihi suscipiendum equívoco sobre qual seja exatamen-
laborem utilem studiosis, mihi te este gênero de discurso, julguei

14
Note-se que C. contesta o argumento dos neo-áticos e define como modelo único e maior
Demóstenes.

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11 DE OPTIMO GENERE ORATORUM

quidem ipsi non necessarium. [14] que devia assumir um trabalho útil
Conuerti enim ex Atticis duorum aos estudiosos, visto que a mim isso
eloquentissimorum nobilissimas seria algo desnecessário. [14]
orationes inter seque contrarias, Traduzi, então, dos áticos dois
Aeschini et Demostheni; nec discursos notáveis e contrários
conuerti ut interpres, sed ut orator, entre si, um de Ésquino, outro de
sententiis isdem et earum formis Demóstenes, autores dos mais
tamquam figuris, uerbis ad nostram eloquentes15. E não os traduzi como
consuetudinem aptis. In quibus non um tradutor, mas como um orador,
uerbum pro uerbo necesse habui usando os mesmos argumentos,
reddere, sed genus omne uerborum tanto na sua forma quanto nas suas
uimque seruaui. Non enim ea me figuras de linguagem, em termos
annumerare lectori putaui oportere, adequados à nossa cultura. Para
sed tamquam appendere. [15] Hic tanto, não considerei necessário
labor meus hoc adsequitur, ut nostri verter palavra por palavra, mas
homines, quid ab illis exigant, qui mantive inteiro o gênero das
se Atticos uolunt, et ad quam eos palavras e sua força expressiva.
quasi formulam dicendi reuocent, Não julguei que fosse apropriado
intellegant. contabilizar as palavras para o
leitor, mas como que sopesá-las.
[15] Este meu trabalho intenta que
os nossos homens compreendam o
que devem exigir daqueles que se
querem áticos e a qual fórmula
discursiva, por assim dizer, devem
remetê-los.
Sed exorietur Thucydides; Mas alguém mencionará
eius enim quidam eloquentiam Tucídides, pois se admira a elo-
admirantur. Id quidem recte; sed qüência dele. Esse estilo é, de fato,
nihil ad eum oratorem, quem correto, porém de nada vale para o
quaerimus. Aliud est enim explicare orador que procuramos. Uma coisa
res gestas narrando, aliud argumen- é concatenar fatos históricos nar-
tando criminari crimenue dissolue- rando, outra é, argumentando, incri-
re; aliud narrantem tenere audito- minar ou defender alguém de um
rem, aliud concitare. “At loquitur acusação. Uma coisa é contar
pulchre.” [16] Num melius quam histórias diante da audiência, outra
Plato? Necesse est tamen oratori é arrebatá-la. ‘Mas ele fala de modo
quem quaerimus controuersias esplêndido’, dizem. [16] Acaso ele
explicare forensis dicendi genere é melhor que Platão? Necessita o
apto ad docendum, ad delectandum, orador que almejamos desenvolver
ad permouendum. controvérsias forenses num estilo
oratório digno de instruir, de
[VI] Quare si quis erit, qui se deleitar e de convencer. [VI] Por-
Thucydideo genere causas in foro que se houver alguém dizendo que

15
Contra Ctesifão é o discurso de Ésquino, Oração da Coroa, o de Demóstenes. Sobre essas
peças, C. as trata muito didaticamente no parágrafo 19, apresentado inclusive a contextualização
histórica e política em que se deu essa causa judicial.

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12 CÍCERO, BRUNNO VIEIRA, PEDRO ZOPPI

dicturum esse profiteatur, is abhor- professará as causas judiciais no


rebit etiam a suspicione eius quod foro ao modo de Tucídides, este
uersatur in re ciuili et forensi; sin nem sequer suspeita o que se passa
Thucydidem laudabit, adscribat na prática civil e judiciária. Mas, se
suae nostram sententiam. ele quiser reverenciar Tucídides em
um encômio, pode juntar aos seus
argumentos algum de nossa lavra.
[17] Quin ipsum Isocratem, [17] O próprio Isócrates, que
quem diuinus auctor Plato suum o supremo Platão, seu quase
fere aequalem admirabiliter in contemporâneo, fez ser louvado por
Phaedro laudari fecit ab Socrate, Sócrates em seu Phaedrus (“Fe-
quemque omnes docti summum dro”) e que todos os homens doutos
oratorem esse dixerunt, tamen hunc afirmaram ser um orador sublime,
in numerum non repono. Non enim eu, todavia, não o tenho neste
in acie versatur nec ferro, sed quasi grupo. De fato, seu discurso não é
rudibus eius eludit oratio. versado em lâminas ou em metá-
licos gládios, mas é como se
brandisse uma espada de pau.
A me autem, ut cum maximis Estou, então, induzindo um
minima conferam, gladiatorum par duelo de dois excelentíssimos
nobilissimum inducitur, Aeschines, gladiadores, de modo a contrapor o
tamquam Aeserninus, ut ait Luci- medíocre ao sublime: Ésquino,
lius, non spurcus homo, sed acer et como o gladiador Esernino – não
doctus aquele desprezível, segundo diz
Lucílio, mas alguém dotado de
argúcia e instrução,
cum Pacideiano hic componi- “ele se emparelha contra o
tur,—optimus longe post homines Pacideiano16, de longe o melhor dos
natos—. homens que já nasceram”.
Nihil enim illo oratore Nada, por conseguinte, julgo
arbitror cogitari posse divinius. que possa ser imaginado de mais
supremo que este segundo orador.
[18] Huic labori nostro duo [18] A esta nossa obra
genera reprehensionum opponuntur. opõem-se duas espécies de obje-
Vnum hoc: 'Verum melius Graeci.’ ções. Uma delas é: ‘Muito melhores
A quo quaeratur ecquid possint illi são os autores Gregos’. A partir do
melius Latine? Alterum: 'Quid istas que se questionaria: eles poderiam
potius legam quam Graecas?' Idem ser algo melhor discursando em
Andriam et Synephebos nec minus Latim? A outra: ‘Por que eu leria
[Terentium et Caecilium quam preferencialmente estes discursos
Menandrum legunt, nec] Andro- ao invés dos gregos?’ Esses mes-
macham aut Antiopam aut Epigo- mos são o público da Ândria e dos
nos Latinos recipiunt; [sed tamen Sinefebos, e não leem Terêncio e
Ennium et Pacuuium et Accium Cecílio menos que Menandro; nem
potius quam Euripidem et Sopho- são público de Andrômaca ou de
clem legunt]. Quod igitur est eorum Antíope ou dos Epígonos Latinos na

16
Pacideiano, i. é, Demóstenes. Vide nota anterior.

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13 DE OPTIMO GENERE ORATORUM

in orationibus e Graeco conuersis versão grega, mas leem Ênio, Pacú-


fastidium, nullum cum sit in vio e Ácio preferencialmente a
versibus? Eurípides e Sófocles. Que menos-
prezo, então, eles têm face aos
discursos oratórios traduzidos do
Grego, se nada consta em relação às
obras em versos?
[VII] [19] Sed aggrediamur [VII] [19] Mas já estaremos
iam quod suscepimus, si prius tratando da nossa proposta, se,
exposuerimus, quae causa in antes de tudo, expusermos qual a
iudicium deducta sit. Cum esset lex causa que foi trazida a julgamento
Athenis, “ne quis populi scitum por aqueles dois oradores. Havendo
faceret ut quisquam corona em Atenas esta lei : ‘é proibido
donaretur in magistratu prius quam fazer um decreto popular com o
rationes rettulisset; et altera lex, eos intuito de conceder a condecoração
qui a populo donarentur, in da coroa a algum magistrado em
contione donari debere; qui a atividade, antes de sua prestação de
senatu, in senatu”, Demosthenes contas’, e ainda uma segunda
curator muris reficiendis fuit ‘aqueles que forem condecorados
eosque refecit pecunia sua; de hoc pelo povo, devem receber a
igitur Ctesiphon scitum fecit nullis honraria numa assembleia; os que o
ab illo rationibus relatis, ut corona forem pelo senado, no Senado’,
aurea donaretur eaque donatio fieret Demóstenes foi encarregado da
in theatro populo conuocato, qui reforma dos muros e os reconstruiu
locus non est contionis legitimae, às suas próprias expensas. A esse
atque ita praedicaretur, eum donari respeito, portanto, não havendo
uirtutis ergo beneuolentiaeque contas a serem prestadas pelo
quam is erga populum atheniensem magistrado, Ctesifão emitiu o
haberet. seguinte decreto: ‘que fosse dada a
coroa de ouro a Demóstenes com a
presença do povo no teatro e, sendo
esse um lugar ilegítimo para uma
assembléia, que se proclamasse que
Demóstenes era condecorado por
causa de sua virtude e benevolência
prestadas em favor do povo
ateniense’.
[20] Hunc igitur Ctesiphon- [20] Ésquino, por sua vez,
tem in iudicium adduxit Aeschines levou Ctesifão a julgamento, pois
quod contra leges scripsisset, ut et ele teria legislado contra as leis
rationibus non relatis corona dona- diante do fato de a coroa ter sido
retur et ut in theatro, et quod de atribuída sem a prestação de contas,
uirtute eius et beneuolentia falsa e em um teatro, e ainda que ele
scripsisset, cum Demosthenes nec tivesse legislado sobre uma falsa
uir bonus esset nec bene meritus de virtude e benevolência, uma vez
ciuitate. Causa ipsa abhorret illa que Demóstenes nem era um bom
quidem a formula consuetudinis homem, nem um benemérito da
nostrae, sed est magna. Habet enim cidade.

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14 CÍCERO, BRUNNO VIEIRA, PEDRO ZOPPI

et legum interpretationem satis Uma causa assim se afasta do


acutam in utramque partem et meri- protocolo de nossa prática forense,
torum in rem publicam conten- mas é uma causa relevante. Há nela
tionem sane grauem. tanto um entendimento profundo
das leis de cada uma das partes
envolvidas, como também um
debate veramente sublime sobre as
condecorações numa república.
[21] Itaque causa fuit [21] Ésquino, tendo sido
Aeschini, cum ipse a Demosthene anteriormente acusado de pena
esset capitis accusatus, quod capital por Demóstenes por ter
legationem ementitus esset, ut forjado uma embaixada, apresenta
ulciscendi inimici causa nomine essa causa a fim de que, por
Ctesiphontis iudicium fieret de vingança, se fizesse uma acusação
factis famaque Demosthenis. Non em nome de Ctesifão sobre os
enim tam multa dixit de rationibus feitos e sobre a reputação de
non relatis, quam de eo quod ciuis Demóstenes, seu inimigo. Dessa
improbus ut optimus laudatus esset. forma, não muito se tratou da não
prestação de contas, mas sim sobre
o fato de um cidadão desonesto que
teria sido louvado como o melhor
dos homens.
[22] Hanc multam Aeschines [22] Ésquines reclamou em
a Ctesiphonte petiuit quadriennio juízo essa punição de Ctesifão,
ante Philippi Macedonis mortem; quatro anos antes da morte de
sed iudicium factum est aliquot Filipe da Macedônia, contudo o
annis post Alexandro iam Asiam pleito só foi executado alguns anos
tenente; ad quod iudicium concur- depois, quando Alexandre já tinha
sus dicitur e tota Graecia factus posse da Ásia. Diz-se que pessoas
esse. Quid enim tam aut uisendum de toda a Grécia compareceram ao
aut audiendum fuit quam summo- embate. O que houve de mais digno
rum oratorum in grauissima causa de ver ou de ouvir que esse
accurata et inimicitiis incensa processo esmerado e inflamado
contentio? pelas inimizades em uma causa
importantíssima?
[23] Quorum ego orationes si, [23] Se eu tiver expressado o
ut spero, ita expressero uirtutibus discurso deles, segundo desejo,
utens illorum omnibus, id est utilizando-me de suas qualidades
sententiis et earum figuris et rerum todas, –aquelas presentes nos
ordine, uerba persequens eatenus, argumentos, seja no tocante às
ut ea non abhorreant a more nostro figuras de linguagem, seja na sua
(quae si e Graecis omnia conuersa concatenação–, e perseguindo até
non erunt, tamen ut generis mesmo suas palavras, desde que
eiusdem sint, elaborauimus), erit elas não se distanciassem do nosso
regula, ad quam eorum dirigantur uso (se não traduzimos todos os
orationes qui Attice uolent dicere. termos do grego, estivemos, contu-
Sed de nobis satis. Aliquando enim do, trabalhando intensamente para
Aeschinem ipsum Latine dicentem que fosse mantido o mesmo gêne-

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15 DE OPTIMO GENERE ORATORUM

audiamus. ro), haverá aqui um modelo, para se


cotejarem os discursos daqueles
que quiserem se exprimir ao modo
ático. Mas basta de palavras nossas.
Ouçamos, finalmente, o próprio
Ésquino discursar em latim.

Trad. de Brunno Vinicius Gonçalves Vieira & Pedro Colombaroli Zoppi


brunnovgvieira@gmail.com / zolpenstein@hotmail.com
Universidade Estadual de São Paulo (Araraquara)

Fonte: Cicéron. L’orateur. Du meilleur genre d’orateurs.


Texte établi et traduit par Albert Yon. Paris: Les Belles Lettres, 1964.

Referências bibliográficas

CICÉRON. Cicéron y sés ennemis littéraires ou Le Brutus, L’orator et De Optimo


Genere Oratorum. Suivi du texte annoté du De Optimo Genere Orato-
rum. Paris: Klicksieck, 1886.
CICERÓN. Del óptimo género de los oradores. Introducción, traducción y notas
de Bulmaro Reys Coria. México: Universidad Nacional Autónoma del
México, 2008.
CICÉRON. Du meilleur genre d’eloquence. In: _______. Oeuvres Completes.
Trad. M. Nisard. Tome I. Paris: Firmin Didot Frères, 1875. p. 536-540.
CICÉRON. L’orateur. Du meilleur genre d’orateurs. Texte établi et traduit par
Albert Yon. Paris: Les belles lettres, 1964.

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