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Cada um tem que poder viver do seu trabalho, reza o princípio em vigor. Poder viver é, portanto,
algo que está condicionado pelo trabalho, e não há direito à vida onde esta condição não estiver
preenchida.
Johann Gottlieb Fichte
Fundamentos do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, 1797.
Quem ainda não desaprendeu de pensar reconhece sem dificuldade a inconsistência desta
posição. Porque a sociedade dominada pelo trabalho não vive uma crise transitória, antes
está chegada ao seu limite último. Na sequência da revolução microelectrónica, a produção
de riqueza desligou-se cada vez mais da utilização da força de trabalho humano – numa
escala até há poucas décadas apenas imaginável na ficção científica. Ninguém pode afirmar
com seriedade que este processo voltará a parar, e muito menos que possa ser invertido. A
venda dessa mercadoria que é a força de trabalho será no século XXI tão promissora como
foi no século XX a venda de diligências. Porém, nesta sociedade, quem não consegue
vender a sua força de trabalho torna-se «supérfluo» e é atirado para a lixeira social.
Quem não trabalha, não come! Este princípio cínico continua em vigor, hoje mais do que
nunca, precisamente porque está a tornar-se irremediavelmente obsoleto. Trata-se de um
absurdo: a sociedade, nunca como agora, que o trabalho se tornou supérfluo, se apresentou
tanto como uma sociedade organizada em torno do trabalho. Precisamente no momento em
que está a morrer, o trabalho revela-se uma potência totalitária que não tolera nenhum outro
deus junto de si. Dentro da vida psíquica, dentro dos poros do dia a dia, o trabalho determina
o pensamento e os comportamentos. E ninguém poupa despesas para prolongar
artificialmente a vida desse ídolo, o trabalho. O grito paranóico dos que clamam por
«emprego» justifica até que se aumente a destruição dos recursos naturais, com resultados
há muito conhecidos. Os últimos obstáculos à total comercialização de todas as relações
sociais podem ser postos de lado, sem qualquer crítica, na mira de meia dúzia de miseráveis
«postos de trabalho». E a ideia de que é melhor ter um trabalho «qualquer» do que não ter
nenhum trabalho tornou-se uma profissão de fé universalmente exigida.
Quanto mais se torna claro que a sociedade do trabalho chegou definitivamente ao fim, mais
violentamente se recalca este facto na consciência pública. Por diferentes que possam ser,
porventura, os métodos de tal recalca mento, têm um denominador comum: o facto,
mundialmente constatável, de o trabalho se revelar irracional enquanto fim em si mesmo, de
ser algo que se tornou a si próprio obsoleto, é transformado, com a obstinação típica de um
sistema delirante, em fracasso pessoal ou colectivo dos indivíduos, das empresas ou de
certas «localizações» geográficas. As limitações, que objectivamente são do próprio
trabalho, devem passar por problema subjectivo dos excluídos.
Enquanto para uns o desemprego se deve a reivindicações exageradas, à falta de
disponibilidade ou de flexibilidade, outros acusam os «seus» gestores e políticos de
incompetência, de corrupção, de ganância ou de traição a determinadas regiões. Mas, ao
fim e ao cabo, toda essa gente está de acordo com o ex-presidente da Alemanha, Roman
Herzog: seria preciso um «abanão» em todo o país, exactamente como se o problema fosse
idêntico à falta de motivação de uma equipa de futebol ou de uma seita política. Todos
devem, «de uma forma ou de outra», agarrar-se ao remo com força, mesmo que o remo
tenha desaparecido há muito, e todos devem, «de uma forma ou de outra», pôr mãos à obra,
mesmo que já não haja nada para fazer (ou só coisas sem sentido). O subtexto desta
mensagem triste é inequívoco: aquele que, apesar da sua aplicação, não obtiver as boas
graças do ídolo trabalho é responsável por essa situação, e não tem que haver problemas
de consciência em abatê-lo ao activo ou pô-lo na rua.
E esta mesma lei, que dita o sacrifício do homem, vigora à escala mundial. Uns após outros,
países inteiros vão sendo triturados pela engrenagem do totalitarismo económico,
comprovando sempre o mesmo: pecaram contra as chamadas leis do mercado. Quem não
se «adaptar» incondicionalmente e sem reservas ao curso cego da concorrência total será
punido pela lógica da rentabilidade. Os que hoje são promissores serão a sucata económica
de amanhã. Mas os psicóticos económicos dominantes nem por isso se deixam abalar
minimamente na sua bizarra explicação do mundo. Três quartos da população mundial
foram já declarados, em maior ou menor medida, lixo social. As «localizações» privilegiadas
desaparecem em catadupa. Depois do desastre dos «países em vias de desenvolvimento»,
do Sul, e depois dessa secção da sociedade mundial do trabalho que era o capitalismo de
Estado, no Leste, são os alunos exemplares da economia de mercado do Sudeste asiático
que desaparecem no inferno das falências. E também na Europa alastra há muito o pânico
social. Mas, na política e na gestão, os respectivos cavaleiros-da-triste-figura limitam-se a
prosseguir, cada vez com mais raiva, a sua cruzada em nome do ídolo trabalho.
Mas, mesmo obrigando a maior parte dos indivíduos a pagar o preço da auto-renúncia, o
admirável mundo novo da economia de mercado totalitária reserva-lhes um lugar de
homens-sombra numa economia-sombra. Só lhes resta servir humildemente os mais bem
pagos ganhadores da globalização, desempenhando o papel de mão-de-obra barata e de
escravos democráticos da «sociedade de prestação de serviços». Os novos «trabalhadores
pobres» estão autorizados a limpar os sapatos aos últimos homens de negócios da
moribunda sociedade de trabalho, a vender-lhes hambúrgueres contaminados ou a vigiar os
seus centros comerciais. Os que tiverem deixado o cérebro no vestiário podem ainda sonhar
com a possibilidade de se tornarem milionários na prestação de serviços.
Este mundo de terror já é uma realidade para milhões de seres humanos nos países anglo-
saxónicos, para já não falar no Terceiro Mundo e na Europa de Leste; quanto à Eurolândia,
mostra-se decidida a recuperar rapidamente o tempo perdido. A imprensa económica há
muito que deixou de fazer segredo da perspectiva que idealiza para o futuro do trabalho: as
crianças do terceiro mundo, que limpam os pára-brisas dos automóveis nos cruzamentos
poluídos, são o luminoso exemplo de «iniciativa empresarial» que deve orientar, tão
solicitamente quanto possível, os desempregados da nossa sociedade, supostamente
«carenciada de prestação de serviços». «O modelo do futuro é o indivíduo na qualidade de
empresário da sua força de trabalho e da sua protecção social», escreve a «Comissão para
as Questões do Futuro, dos Estados Livres da Baviera e da Saxónia». E prossegue: «A
procura de serviços indiferenciados, directamente prestados a um particular, é tanto maior
quanto menos custarem os serviços, ou seja, quanto menos ganharem os prestadores de
serviços.» Num mundo em que as pessoas ainda tivessem respeito por si próprias, uma tal
afirmação provocaria necessariamente uma onda de revolta social. Mas, num mundo de
animais de trabalho domesticados, suscita apenas um inócuo encolher de ombros.
O trabalho cívico deve ser recompensado, mas não simplesmente remunerado […]. Quem presta
trabalho cívico libertase também do estigma do desemprego e da assistência social.
Ulrich Beck, A Alma da Democracia, 1997.
Noutro tempo, trabalhava-se para ganhar dinheiro. Hoje, o Estado não poupa despesas para
que centenas de milhares de pessoas simulem um trabalho inexistente em estranhos
«ateliers» de formação ou em «empresas ocupacionais», preparando-se para um «posto de
trabalho» regular que nunca conseguirão. Inventam-se constantemente novas medidas,
cada vez mais estúpidas, apenas para garantir a aparência de que a vazia rotina social pode
permanecer em movimento até à eternidade. Quanto mais destituída de sentido é a
obrigatoriedade do trabalho, mais brutalmente haverá que martelar no cérebro das pessoas
o princípio de que não pode ganhar-se o pão de outra maneira.
A chamada política activa de trabalho, segundo o modelo do «New Labour», não poupa
sequer os doentes crónicos ou as mães solteiras com filhos pequenos. Quem recebe apoio
estatal só consegue libertar-se do estrangulamento da burocracia quando o seu nome
estiver no jardim das tabuletas. O único sentido de toda esta impertinência consiste em levar
o maior número possível de pessoas a não apresentar qualquer pretensão ao Estado e em
exibir perante os excluídos instrumentos de tortura suficientemente monstruosos para que
qualquer trabalho de miséria lhes pareça comparativamente mais aceitável.
Oficialmente, o Estado paternalista apenas brande o chicote por amor e com a intenção de
educar severamente aqueles seus filhos que são considerados «preguiçosos», para que
tenham um futuro melhor. Mas, na realidade, estas medidas «pedagógicas» têm como único
e exclusivo fim afastar os clientes da porta a pontapé. Que outro sentido poderia ter uma
medida como a de mandar desempregados para a colheita dos espargos? Nos campos,
esses desempregados servem para afastar os trabalhadores sazonais polacos, que aliás
aceitam salários de miséria apenas porque, de regresso ao seu país, o câmbio faz com que
tais salários se transformem numa quantia aceitável. Mas a medida posta em prática não
ajuda os trabalhadores forçados, nem lhes abre qualquer «perspectiva profissional». E, para
os produtores de espargos, os licenciados e operários especializados, contrafeitos, que lhes
cabem em sorte também não são mais do que um estorvo. Contudo, no momento em que,
à noite, após doze horas de costas curvadas sobre o solo pátrio, o desespero fizer com que
a disparatada ideia de abrir uma venda ambulante de cachorros pareça mais agradável,
então o «auxílio à flexibilização» terá produzido o seu desejado efeito neobritânico.
O novo fanatismo do trabalho, com o qual esta sociedade reage à morte do seu ídolo, é a
consequência lógica e o estádio final de uma longa história. Desde a época da Reforma,
todas as forças dirigentes da modernização ocidental pregaram a santidade do trabalho.
Sobretudo nos últimos cento e cinquenta anos, todas as teorias sociais e correntes políticas
foram dominadas pela ideia do trabalho. Socialistas e conservadores, democratas e
fascistas, combateram entre si de toda a maneira e feitio, mas apesar do ódio mortal que
votaram uns aos outros, sempre sacrificaram em comum ao ídolo do trabalho. «L’Oisif ira
loger ailleurs» («O ocioso irá viver para outro lado»), dizia o texto do hino da Internacional
dos trabalhadores – o eco macabro dessas palavras foi a divisa «Arbeit macht frei» («O
trabalho liberta»), exibida por cima do portão de Auschwitz. As democracias pluralistas do
pós-guerra fizeram todas as suas juras em nome da ditadura perpétua do trabalho. E até a
Constituição da muito católica Baviera aconselha os seus cidadãos na mais pura tradição
luterana: «O trabalho é a fonte do bem-estar do Povo e goza de especial protecção por parte
do Estado.» No final do século XX todas as contradições ideológicas se esbateram. Apenas
ficou o dogma comum e impiedoso segundo o qual o trabalho é o destino natural do Homem.
Quem hoje em dia perguntar a si próprio qual o conteúdo, o sentido que continuar a funcionar
a qualquer preço, e ponto final. Quanto à descoberta do sentido, para isso existem os
departamentos de publicidade, exércitos inteiros de animadores e de psicólogas de
empresa, os consultores de imagem e as «dealers» da droga. Quando se papagueia
interminavelmente o lema da motivação e da criatividade, é certo e sabido que de uma e da
outra já nada sobra…, a não ser enquanto auto-engano. É por isso que hoje as capacidades
de auto-sugestão, de autopromoção e de simulação de competências se contam entre as
virtudes mais importantes dos gestores e das trabalhadoras especializadas, das estrelas
dos media e dos contabilistas, das professoras e dos arrumadores de automóveis.
Também a afirmação de que o trabalho seria uma necessidade eterna, imposta ao homem
pela natureza, foi completamente posta a ridículo pela crise da sociedade do trabalho. Há
séculos que vem sendo pregado o princípio da inevitável adoração do ídolo trabalho, quanto
mais não fosse porque as necessidades não poderiam ser satisfeitas por si mesmas, sem o
suor do labor humano. E a finalidade de toda a organização do trabalho seria, obviamente,
a satisfação dessas necessidades. Se isto fosse verdade, a crítica do trabalho seria tão
pertinente como a crítica da força da gravidade. Mas, nesse caso, como poderia uma «lei
natural», que o fosse realmente, entrar em crise ou inclusivamente desaparecer? Os porta-
vozes do campo de trabalho social, desde a senhora neoliberal que come caviar e é maníaca
pela eficiência, até ao sindicalista tipo barriga-de-cerveja, quando invocam o carácter
pseudo natural do trabalho, entram em crise de carência argumentativa. Ou, como quererão
eles explicar-nos que hoje em dia três quartos da humanidade se estejam a afundar na
necessidade e na miséria, só porque o sistema da sociedade do trabalho já não pode utilizar
os seus préstimos?
Já não é a maldição do Antigo Testamento – «comerás o teu pão com o suor do teu rosto»
– que pesa sobre os excluídos, mas uma nova e implacável condenação: «tu não comerás,
porque o teu suor é supérfluo e invendável». E será isto uma lei natural? Não é senão um
princípio social irracional, que surge como coerção natural apenas porque, ao longo dos
séculos, destruiu ou submeteu a si todas as outras formas de relação social, impondo-se de
modo absoluto. É a «lei natural» de uma sociedade que se considera profundamente
«racional», mas que, na verdade, apenas segue a racionalidade finalista do seu ídolo, o
trabalho, dispondo-se mesmo a sacrificar-lhe, a ele e à respectiva «objectividade coerciva»,
os últimos resquícios da sua humanidade.
Não há, em rigor, qualquer identidade entre o trabalho e o facto de os homens transformarem
a natureza e se relacionarem uns com os outros em determinadas actividades. Enquanto
existirem seres humanos, eles hão-de construir casas, fabricar roupas, produzir alimentos e
muitas outras coisas, hão-de educar os filhos, escrever livros, discutir assuntos, construir
jardins, compor música e tanto mais. Esta é uma verdade banal e evidente. O que não é
evidente é que a actividade humana em si, o puro «dispêndio de força de trabalho», sem
que se leve em consideração o respectivo conteúdo e independentemente das
necessidades e da vontade dos envolvidos, se torne num princípio abstracto que domina as
relações sociais.
Na esfera do trabalho não conta aquilo que se faz, mas sim que o fazer, enquanto tal, seja
feito, pois o trabalho é um fim em si mesmo justamente na medida em que traz consigo a
valorização do capital-dinheiro – a infinita multiplicação do dinheiro por intermédio do
dinheiro. O trabalho é a forma de actividade própria desta absurda finalidade autotélica. É
por isso, e não por quaisquer razões objectivas, que os produtos são todos eles produzidos
como mercadorias. Só sob a forma de mercadoria representam a abstracção dinheiro, cujo
conteúdo é a abstracção trabalho. Nisto consiste o mecanismo da engrenagem social
autonomizada em que se mantém aprisionada a humanidade moderna.
A esquerda política sempre adorou o trabalho com particular fervor. Não só elevou o trabalho
ao estatuto de essência do Homem, como produziu a mistificação de transformá-lo num
princípio pretensamente oposto ao capital. Na sua perspectiva, o escândalo não é o
trabalho, mas sim a exploração do trabalho pelo capital. Por isso, o programa de todos os
«partidos dos trabalhadores» sempre foi somente «libertar o trabalho», mas não libertar do
trabalho. Ora, o antagonismo social entre capital e trabalho é uma mera contradição de
interesses distintos no interior da finalidade autotélica do capitalismo (embora o poder de
cada uma das partes seja muito diferente). A luta de classes era a forma de expressão
desses interesses antagónicos no terreno social comum do sistema de produção de
mercadorias. Fazia parte da dinâmica interna da valorização do capital. Quer a luta fosse
por salários, por direitos, por condições de trabalho, ou por postos de trabalho, o seu
pressuposto cego continuava sempre a ser a engrenagem dominante com os seus princípios
irracionais.
O conteúdo qualitativo da produção conta tão pouco do ponto de vista do trabalho como do
ponto de vista do capital. Apenas interessa a possibilidade de vender de forma optimizada
a força de trabalho. Não se trata de determinar colectivamente o sentido e a finalidade da
actividade própria. Se algum dia existiu a esperança de poder realizar-se uma tal
autodeterminação do processo produtivo dentro das formas do sistema de produção de
mercadorias, a verdade é que as «forças do trabalho» há muito puseram de lado essa ilusão.
Hoje interessa apenas o «posto de trabalho», o «emprego» – e a própria literalidade destes
conceitos demonstra o carácter autotélico de todo o empreendimento e a privação de
responsabilidade que caracteriza os envolvidos.
Em última análise, o que se produz, para que fins e com que consequências, é assunto
absolutamente indiferente tanto para o vendedor da mercadoria, que é a força de trabalho,
como para o respectivo comprador. Os trabalhadores das centrais nucleares e das fábricas
de produtos químicos protestam veementemente quando se pretende desactivar as suas
bombas-relógio. E os «empregados» da Volkswagen, da Ford ou da Toyota, são os mais
fanáticos defensores do programa suicida da indústria automóvel. Não apenas porque têm
obrigatoriamente de se vender para «poderem» viver, mas porque na realidade se
identificam com esta existência tacanha. Para os sociólogos, os sindicalistas, os padres e
outros teólogos profissionais da «questão social», esta é a prova do valor ético-moral do
trabalho. O trabalho forma a personalidade, dizem eles. Com razão. Forma de facto a
personalidade dos zombies da produção de mercadorias, que já não conseguem conceber
uma vida fora da sua amada engrenagem, à qual se vão ajustando dia após dia.
Porém, da mesma forma que a classe operária – enquanto classe trabalhadora – nunca foi
um antagonista em contradição com o capital e nunca foi o agente do processo de
emancipação do homem, também os capitalistas e gestores não governam a sociedade em
obediência a uma maldade decorrente da vontade subjectiva de exploração. Em toda a
história, nunca houve uma casta dominante que levasse uma vida tão pouco livre, tão
deplorável, como os acossados executivos da Microsoft, da Daimler-Chrysler ou da Sony.
Qualquer senhor feudal sentiria o mais profundo desprezo por tal gente. Porque, podendo
ele entregar-se ao ócio e delapidar a sua riqueza em quantas orgias lhe apetecesse, as
elites da sociedade do trabalho não têm o direito de desfrutar de nenhuma pausa. Mesmo
quando estão fora da engrenagem, não sabem fazer outra coisa que não seja infantilizarem-
se. O ócio, os prazeres do conhecimento ou dos sentidos, são-lhes tão estranhos como ao
material humano de que são feitos. São eles próprios meros servos do ídolo trabalho,
simples elites funcionais da finalidade autotélica irracional da sociedade.
O ídolo dominante sabe impor a sua vontade sem sujeito pela «coerção tácita» da
concorrência, à qual também os poderosos têm de curvar-se, exactamente quando gerem
centenas de fábricas e transferem milhões, de lugar em lugar, à volta do globo. Se assim
não fizerem, serão postos de lado com a mesma frieza com que o é a «força de trabalho»
supérflua. Ora, é precisamente esta sua inimputabilidade que torna os funcionários do
capital tão desmesuradamente perigosos, e não a sua vontade subjectiva de exploração.
Não estão autorizados – menos ainda do que a qualquer outro indivíduo – a interrogarem-
se sobre o sentido e sobre as consequências da sua infatigável actividade, e não podem
dar-se ao luxo de ter sentimentos ou atenções. É por isso que se consideram realistas
quando devastam o mundo, desfiguram as cidades e levam as populações à miséria no
meio da maior riqueza.
Nesse domínio, definido como «feminino», cabem as muitas e repetitivas actividades da vida
do dia-a-dia, que quando muito só excepcionalmente podem ser transformadas em dinheiro:
desde limpar a casa até cozinhar, passando pela educação dos filhos e pelo cuidado dos
idosos, até ao «trabalho do amor» da típica dona de casa ideal, que retempera o seu marido
trabalhador, quando chega esgotado a casa, e lhe «recarrega as energias» afectivas. A
esfera da intimidade, enquanto reverso do trabalho, é portanto declarada pela ideologia
burguesa da família como esfera da «vida própria» – embora, na realidade, seja a maior
parte das vezes apenas um inferno na intimidade. De facto, não se trata da esfera de uma
vida melhor e verdadeira, mas de uma forma igualmente limitada e reduzida da existência,
que simplesmente se apresenta afectada pelo sinal contrário. Esta esfera é ela própria um
produto do trabalho, dele separada, é certo, mas na realidade só existente na relação com
ele. A sociedade do trabalho nunca teria podido funcionar sem esse espaço social
segregado, que é o das formas de actividade «femininas». Ele é o pressuposto tácito de
uma tal sociedade e, simultaneamente, o seu resultado específico.
O mesmo é válido também para os estereótipos sexuais, que foram sendo generalizados no
decurso do desenvolvimento do sistema de produção de mercadorias. Não é um simples
acaso o facto de a imagem da mulher como um ser submetido aos impulsos da natureza, à
irracionalidade e às emoções, se ter tornado um preconceito generalizado precisamente em
conjunto com a imagem do homem de trabalho, criador de cultura, racional e com domínio
sobre si. E também não é um acaso que a autodomesticação do homem branco para as
exigências do trabalho e da respectiva administração estatal dos indivíduos tenha coincidido
com séculos de feroz «caça às bruxas». E também a apropriação do mundo pelas ciências
naturais, cujo início ocorre em simultâneo com esses factos, foi, na sua raiz, contaminada
pela finalidade autotélica da sociedade do trabalho e pela sua atribuição de papéis sociais
em função do sexo. Assim, o homem branco, para poder funcionar sem atritos, expulsou de
si todos os sentimentos e necessidades emocionais, que, no reino do trabalho, só
representam factores de perturbação.
E não serão decerto as reivindicações conformes ao sistema, a luta por quotas destinadas
às mulheres ou por igualdade de oportunidades, a mudarem seja o que for. A deplorável
visão burguesa de uma «conciliação do trabalho com a família» deixa intocada a separação
das esferas do sistema de produção de mercadorias e, com ela, a estrutura de
«dissociação» sexual. Para a maioria das mulheres, tal perspectiva é simplesmente invivível
e, para uma minoria de mulheres «mais bem pagas», transforma-se num posicionamento
pérfido, fazendo delas vencedoras no âmbito do apartheid social, exactamente na medida
em que podem delegar a casa e o cuidado dos filhos em empregadas mal pagas (e
«naturalmente» do sexo feminino).
Ou seja, também na sua origem etimológica «trabalho» não é sinónimo de uma actividade
humana autodeterminada, antes designa um destino social infeliz. É a actividade daqueles
que perderam a liberdade. Assim, a extensão do trabalho a todos os membros da sociedade
não é mais do que a generalização da dependência servil, e a moderna adoração do trabalho
é a mera exaltação para-religiosa deste estado.
Esta relação só pôde ser recalcada com êxito e a respectiva exigência social interiorizada,
porque a generalização do trabalho foi acompanhada pela «objectivação» do moderno
sistema de produção de mercadorias: a maior parte dos indivíduos não está debaixo do
chicote de um senhor, individualizado como pessoa. A dependência social tornou-se uma
conexão abstracta interna do sistema – e por isso mesmo tornou-se total. Ela pode ser
detectada em toda a parte, mas por isso mesmo é praticamente inapreensível. Quando
todos se tornam escravos, todos se tornam simultaneamente senhores – traficantes de
escravos e fiscais, mas traficando-se a si próprios e fiscalizando-se a si mesmos. Todos
obedecem ao ídolo invisível do sistema, o «Grande Irmão» da valorização do capital, que
os mandou para o «tripalium».
No fundo, sente-se agora […] que um tal trabalho é a melhor polícia, que retém cada indivíduo pelo
freio e que sabe impedir com firmeza o desenvolvimento da razão, do desejo e do prazer da
independência. Pois faz despender enorme quantidade de energia nervosa, e subtrai essa energia
à reflexão, à meditação, ao sonho, à inquietação, ao amor e ao ódio.
Friedrich Nietzsche
«Os Apologistas do Trabalho» (em Aurora), 1881.
Não foi por vontade própria que a maioria dos homens passou a produzir para mercados
anónimos e portanto para uma economia monetária generalizada, mas sim porque, com o
absolutismo, a fome de dinheiro monetarizou os impostos e aumentou-os de maneira
exorbitante. Os indivíduos tinham que «ganhar dinheiro», não para si, mas para o Estado
militarizado do início da modernidade: para as novas armas de fogo, para a logística e a
burocracia estatais. Foi assim, e não de outra forma, que veio ao mundo a absurda finalidade
autotélica da valorização do capital, e, com ela, a do trabalho.
Mas esta transformação gradual dos seus súbditos em material do ídolo fazedor de dinheiro
também não podia só por si satisfazer durante muito tempo os monstruosos Estados
absolutistas. Estenderam, pois, as suas pretensões a outros continentes. A colonização
interna da Europa efectuou-se a par da colonização externa, primeiro nas Américas e em
algumas regiões de África. Aí, os feitores do trabalho perderam definitivamente os
escrúpulos. Em campanhas militares de roubo, destruição e extermínio sem precedentes
atiraram-se aos mundos recentemente «descobertos» – onde as vítimas nem sequer eram
consideradas seres humanos. O canibalismo das potências europeias da sociedade de
trabalho nascente definia as culturas estrangeiras subjugadas como «selvagens» e…
canibais.
Esta elucubração grotesca lança uma luz reveladora sobre o Iluminismo. O ethos repressivo
do trabalho da modernidade, que, na sua versão protestante original, se baseava na
misericórdia divina e, a partir do Iluminismo, na lei natural, adoptou a máscara de «missão
civilizadora». Cultura, neste sentido, é submissão voluntária ao trabalho; e trabalho é
masculino, branco e «ocidental». O contrário, o não-humano, a natureza disforme e sem
cultura, é feminino, de cor e «exótico», ou seja, tem que ser submetido à coerção. Numa
palavra, o «universalismo» da sociedade do trabalho é inteiramente racista, logo desde as
suas raízes. A abstracção universal do trabalho só pode autodefinirse pela delimitação face
a tudo aquilo que nele não se integra.
Em última análise, o herdeiro do absolutismo não foi a burguesia moderna, oriunda dos
pacíficos negociantes das antigas rotas comerciais. Foram antes os condottieri dos bandos
de mercenários da modernidade nascente, os directores das casas de trabalho e das casas
de correcção, os arrendatários da colecta fiscal, os feitores de escravos, os agiotas e outros
carrascos similares que formaram o solo social materno do «mundo empresarial» moderno.
As revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX nada tinham a ver com a emancipação
social. Limitaram-se a reorganizar as relações de poder no interior do sistema de coerção
existente, libertando as instituições da sociedade de trabalho dos interesses dinásticos
obsoletos e impulsionando a respectiva coisificação e despessoalização. Foi a gloriosa
Revolução Francesa que, com um pathos muito especial, proclamou o dever do trabalho, e
que, numa «lei para a abolição da mendicidade», introduziu novas casas de trabalho.
Ora, isto era exactamente o contrário do que pretendiam os movimentos sociais rebeldes
que eclodiram à margem das revoluções burguesas, sem nelas se dissolverem. Já muito
antes tinha havido formas completamente autónomas de resistência ou de objecção, que
costumam deixar a historiografia oficial da sociedade do trabalho e da modernização sem
saber o que fazer delas. Os produtores das antigas sociedades agrárias, que nunca se
resignaram a aceitar inteiramente as relações de dominação feudal, estavam ainda menos
dispostos a aceitar serem convertidos em «classe trabalhadora» de um sistema que lhes
era exterior. Desde as guerras dos camponeses, nos séculos XV e XVI, até aos
levantamentos britânicos, denunciados como sendo movimentos de «destruidores de
máquinas», e à revolta dos tecelões na Silésia, em 1844, estende-se toda uma cadeia
ininterrupta de lutas encarniçadas de resistência contra o trabalho. A implantação da
sociedade do trabalho significou, ao longo de vários séculos, a guerra civil, umas vezes mais
aberta, outras vezes latente.
As antigas sociedades agrárias eram tudo menos paradisíacas. Mas, ainda assim, para a
maioria, a coerção monstruosa da emergente sociedade do trabalho representou
exclusivamente um agravamento da sua situação, um «tempo do desespero». Na realidade,
apesar de todas as restrições, os indivíduos tinham ainda algo a perder. Aquilo que na falsa
consciência do mundo moderno surge como as trevas e os flagelos de uma Idade Média
ficcionada foi, na verdade, o horror da história desse mesmo mundo moderno. Nas culturas
pré-capitalistas e não-capitalistas, dentro e fora da Europa, o tempo dedicado diária e
anualmente à actividade de produção era muito mais reduzido do que ainda hoje é para o
moderno «empregado» de uma fábrica ou de um escritório. E a produção dessas sociedades
estava longe de ser tão intensificada como na sociedade do trabalho, uma vez que toda a
actividade era atravessada por uma cultura de ócio e de relativa «lentidão». Com excepção
das catástrofes naturais, as necessidades básicas materiais estavam muito mais
amplamente asseguradas para a maioria da população do que em longos períodos da
história da modernização – e melhor também do que no horror dos bairros de lata gerados
nos nossos dias pelo mundo da crise. Para além do mais, nessas sociedades o poder não
se entranhava até aos poros como na sociedade do trabalho totalmente burocratizada.
Daí que a resistência contra o trabalho só militarmente pudesse ser quebrada. Ainda hoje
os ideólogos da sociedade do trabalho continuam a fugir hipocritamente deste facto: a
cultura dos produtores pré-modernos não se «desenvolveu» para outras formas; ela foi
simplesmente afogada no seu próprio sangue. Nos nossos dias, os esclarecidos democratas
da sociedade do trabalho preferem responsabilizar por todas essas monstruosidades as
«circunstâncias pré-democráticas» de um passado com o qual eles já nada teriam a ver.
Não querem admitir que a história terrorista do início da modernidade revela também,
involuntariamente, a essência da actual sociedade do trabalho. A administração burocrática
do trabalho e a integração estatal dos seres humanos nas democracias industriais nunca
puderam negar as suas origens absolutistas e coloniais. Aliás, sob a forma da coisificação
orientada para a coesão do sistema despessoalizado, a administração repressiva dos seres
humanos em nome do ídolo trabalho continuou sempre a crescer e invadiu todos os
domínios da vida.
O movimento operário clássico, que só entrou em ascensão muito depois do declínio das
antigas revoltas sociais, já não lutava contra as exigências do trabalho; pelo contrário,
desenvolveu precisamente uma hiperidentificação com aquilo que lhe parecia ser inevitável.
Interessava-se apenas por «direitos» e correcções no seio da própria sociedade do trabalho,
cujas coerções já tinha amplamente interiorizado. Em vez de criticar radicalmente a
transformação da energia humana em dinheiro enquanto finalidade autotélica irracional,
assumiu ele mesmo «o ponto de vista do trabalho» e interpretou a valorização do capital
como um facto positivo em si mesmo e, portanto, neutro.
Pelo menos desde o Nazismo, todos os partidos são simultaneamente partidos dos
trabalhadores e partidos do capital. Nas sociedades «em vias de desenvolvimento», do
Leste e do Sul, o movimento operário transformou-se em partido do terrorismo de Estado ao
serviço da recuperação do atraso na modernização; no Ocidente, transformou-se num
conjunto de diferentes «partidos populares», com programas e figuras de representação
mediática intermutáveis. A luta de classes está no fim, porque a sociedade do trabalho está
no fim. As classes sociais revelam-se categorias sociais funcionais do sistema fetichista
colectivo; agonizam à medida que tal sistema vai agonizando. Se os Social-Democratas, os
Verdes e os ex-Comunistas se destacam na administração da crise, desenvolvendo
programas de repressão particularmente abjectos, com isso apenas revelam que são os
legítimos herdeiros de um movimento operário que nunca teve outro objectivo senão o
trabalho a qualquer preço.
O próprio capital é a contradição em processo, […] pois esforçase por reduzir o tempo de trabalho
a um mínimo, enquanto, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da
riqueza. […] Assim, por um lado, chama a terreiro todos os poderes da ciência e da natureza, bem
como os da combinação e do intercâmbio sociais, para fazer com que a criação de riqueza seja
(relativamente) independente do tempo de trabalho nela aplicado. Por outro lado, pretende medir
pelo tempo de trabalho estas gigantescas forças sociais assim criadas, e contêlas dentro dos limites
requeridos para que o valor criado se mantenha como valor.
Karl Marx
Esboço da Crítica da Economia Política, 1857/1858.
Após a Segunda Guerra Mundial, durante um brevíssimo período histórico, poderia parecer
que, com a indústria fordista, a sociedade do trabalho se havia consolidado num sistema de
«perpétua prosperidade», no qual, à custa do Estado social e do consumo generalizado,
pudesse apaziguar-se duradouramente a insuportabilidade da coerção própria da finalidade
autotélica. Independentemente de esta imagem ser uma fantasia típica dos hilotas da
periferia democrática, reportando-se apenas a uma pequena minoria da população mundial,
tal ideia não podia deixar de revelar também a sua inconsistência nos países desenvolvidos.
Com a terceira revolução industrial, a da microelectrónica, a sociedade do trabalho atingiu
o seu limite histórico absoluto.
Era logicamente previsível que este limite tinha de ser atingido mais cedo ou mais tarde, já
que o sistema centrado na produção de mercadorias padece desde a sua origem de uma
insanável contradição interna. Por um lado, ele vive de sugar energia humana em grandes
quantidades, através do dispêndio de força de trabalho inerente ao seu mecanismo…
Quanto mais energia, melhor. Por outro lado, contudo, a lei da concorrência da economia
empresarial obriga a um permanente aumento da produtividade, num processo em que a
força de trabalho humana vai sendo substituída por capital fixo cientificizado.
Esta contradição interna tinha sido já a causa mais profunda de todas as crises anteriores,
nomeadamente da devastadora crise económica mundial de 192933. Porém, essas crises
puderam sempre ser ultrapassadas através de um mecanismo de compensação: em cada
novo patamar de produtividade, após um determinado período de incubação, por intermédio
da extensão do mercado a novas camadas de consumidores, o sistema acabava por
absorver mais trabalho do que aquele que havia sido eliminado pelo processo de
racionalização. Diminuía o dispêndio de força de trabalho por produto, mas em termos
absolutos eram produzidos mais produtos, de tal forma que a diminuição acabava por ser
compensada, inclusivamente com ganho. Enquanto a inovação ao nível dos produtos
superou a inovação ao nível dos processos, a contradição interna do sistema pôde traduzir-
se num movimento de expansão.
Desta forma, apesar da racionalização introduzida pela produção em cadeia com a segunda
revolução industrial, a do «fordismo», foi possível continuar a satisfazer a um nível bastante
elevado o apetite insaciável que o ídolo trabalho tem de energia humana. Ao mesmo tempo,
o automóvel é um exemplo central do carácter destrutivo do modo de produção e de
consumo da sociedade de trabalho altamente desenvolvida. No interesse da produção em
massa de automóveis e da generalizada circulação individual, a paisagem é asfaltada e
destruída, o ambiente é envenenado, e aceita-se resignadamente que nas estradas de todo
o mundo, ano após ano, decorra uma terceira guerra mundial não declarada, com milhões
de mortos e estropiados.
Ora, sucede que, na terceira revolução industrial – a da microelectrónica -, este mecanismo
de compensação por expansão soçobra. É verdade que com a microelectrónica também
são embaratecidos muitos produtos e criados outros novos (sobretudo no campo dos
media). Mas, pela primeira vez, a inovação nos processos ultrapassa a inovação nos
produtos. Pela primeira vez, há mais trabalho eliminado pela racionalização do que aquele
que pode ser reabsorvido pela expansão dos mercados. No desenvolvimento lógico da
racionalização, a robótica electrónica substitui a energia humana e as novas tecnologias das
comunicações tornam o trabalho humano supérfluo. Desaparecem por inteiro sectores ou
níveis anteriormente existentes na construção, na produção, no marketing, no
armazenamento, na venda e mesmo na gestão. Pela primeira vez, o ídolo trabalho submete-
se involuntariamente a um regime de racionamento duradouro. E com isso cava a sua
própria sepultura.
Mas como o Estado não é uma unidade autónoma de valorização do capital, e portanto não
pode transformar trabalho em dinheiro, tem de ir buscar dinheiro ao processo de
capitalização realmente existente para financiar as suas tarefas. Esgotado o processo de
ampliação do capital, esgotam-se também as finanças do Estado. Aquele que parecia ser o
soberano da sociedade revela-se afinal totalmente dependente da cega e fetichizada
economia da sociedade do trabalho. Pode legislar como bem entender, mas, quando as
forças produtivas crescem para além do sistema de trabalho, o direito estatal positivo fica
no vazio, uma vez que só pode referir-se a sujeitos do trabalho.
Na medida em que tal não diga directamente respeito aos sectores relevantes para a
economia, já não interessa saber se os comboios andam ou se as cartas chegam ao destino.
A educação passa a ser um privilégio dos vencedores da globalização. A cultura intelectual,
artística e teórica é entregue ao critério do mercado e agoniza. O sistema de saúde deixa
de ser financiável e degenera num sistema de classes. Primeiro lenta e disfarçadamente,
depois de modo aberto, passa a valer a lei da eutanásia social: quem é pobre e «supérfluo»
deve morrer mais cedo.
Mas a acumulação do capital já não pode continuar a ser simulada através do endividamento
do Estado. E é por isso que, desde os anos oitenta, a criação complementar de capital fictício
se transfere para os mercados bolsistas. Neles, há muito que não se trata de obter
dividendos, ou seja, a distribuição de lucros da produção real, mas apenas de obter ganhos
de cotação pelo aumento especulativo do valor dos títulos de propriedade até números de
grandeza astronómica. A relação entre a economia real e o movimento especulativo dos
mercados financeiros foi virada de pernas para o ar. Já não é o aumento especulativo das
cotações a antecipar a expansão da economia real, mas pelo contrário é a criação fictícia
de valor, sempre em alta, que simula uma acumulação real que simplesmente deixou de
existir.
O ídolo do trabalho está clinicamente morto, mas recebe respiração artificial através da
expansão aparentemente autonomizada dos mercados financeiros. As empresas industriais
obtêm ganhos que já não resultam da produção e da venda de bens reais, que há muito se
tornaram empreendimentos votados ao insucesso, mas sim da especulação em acções e
divisas levada a cabo pelos seus «habilidosos» departamentos financeiros. Os orçamentos
públicos apresentam receitas que não resultam de impostos ou de empréstimos, mas da
participação zelosa da administração financeira no jogo de azar dos mercados. E os
orçamentos privados, que viram as receitas reais provenientes dos salários e honorários
reduzir-se drasticamente, só conseguem manter um nível elevado de consumo à custa de
ganhos na bolsa. Surge assim uma nova forma de procura artificial que, por sua vez, arrasta
consigo uma produção real e receitas fiscais reais «sem chão debaixo dos pés».
Desta maneira, a crise económica mundial vai sendo adiada pelo processo especulativo;
mas, como o aumento fictício do valor dos títulos de propriedade só pode ser a antecipação
da futura utilização real de trabalho (numa escala astronómica) – que nunca virá a acontecer
-, então o embuste objectivado terá forçosamente de se desmascarar após um certo tempo
de incubação. O colapso dos «emerging markets» na Ásia, na América Latina e no Leste da
Europa foi só um aperitivo. Será apenas uma questão de tempo, e entrarão igualmente em
colapso os mercados financeiros dos centros capitalistas nos Estados Unidos, na União
Europeia e no Japão.
Este contexto é percebido de uma forma totalmente distorcida pela consciência fetichizada
da sociedade do trabalho e em particular pelos tradicionais «críticos do capitalismo», à
esquerda e à direita. Fixados no fantasma do trabalho, nobilitado enquanto condição supra-
histórica e positiva da existência social, confundem sistematicamente causa e efeito. O
adiamento temporário da crise através da expansão especulativa dos mercados financeiros
aparece, assim, de forma invertida, como suposta causa da crise. A «maldade dos
especuladores» – na expressão vulgarmente usada, mais ou menos mesclada de pânico –
levá-los-ia a arruinar completamente a bela sociedade do trabalho, gastando de forma
extravagante o «bom dinheiro», que existe «de sobra», em vez de o investirem de forma
respeitável e sólida em maravilhosos «postos de trabalho» para que uma humanidade de
hilotas imbecilizados pelo ídolo pudesse continuar a ter o seu «pleno emprego».
Não entra nestas cabeças este facto simples: não foi de forma nenhuma a especulação que
fez parar os investimentos reais, porque estes já tinham deixado de ser rentáveis em
consequência da terceira revolução industrial. O disparo especulativo só pode ser um
sintoma disso mesmo. O próprio dinheiro, que aparentemente circula em quantidades
infinitas, já não é «bom», mesmo em sentido capitalista, mas apenas simples «ar quente»
com que foi sendo empolada a bolha especulativa. Qualquer tentativa de drenar um pouco
esta bolha, recorrendo a projectos tributários mais ou menos imaginativos («Taxa Tobin»,
etc.) para reconduzir novamente o capital-dinheiro às rodas alegadamente «correctas» e
reais da engrenagem da sociedade do trabalho, só pode acabar por levar ao seu mais rápido
rebentamento.
Em vez de se compreender que todos nos tornaremos inexoravelmente não rentáveis e que,
por isso, é o próprio critério da rentabilidade que é preciso atacar, como princípio obsoleto
que é, e, juntamente com ele, o respectivo fundamento na sociedade do trabalho…, em vez
disso, demonizam-se os «especuladores». Esta imagem barata do inimigo é cultivada em
uníssono por radicais de direita e independentes de esquerda, por honestos funcionários
sindicais e keynesianos nostálgicos, por teólogos sociais e apresentadores de «talk shows»,
ou seja, por todos os apóstolos do «trabalho honrado». Poucos estão conscientes de que
daí até à reactivação da loucura anti-semita vai apenas um pequeno passo. O apelo ao
capital «criativo» e de sangue nacional contra o capital-dinheiro, «judeu», internacional e
«usurário», arrisca-se a ser a última palavra da «esquerda dos postos de trabalho»
intelectualmente desorientada. Que era a última palavra da «direita dos postos de trabalho»,
desde sempre racista, anti-semita e antiamericana, isso já se sabia.
Atém te com firmeza ao conhecimento que vai sendo comprovado no trabalho, pois a própria
natureza o confirma e lhe dá o seu consentimento. No fundo, não tens outro conhecimento além
daquele que adquiriste pelo trabalho; tudo o mais são apenas hipóteses do saber.
Thomas Carlyle
Trabalhar e não Desesperar, 1843.
Após séculos de domesticação, o homem moderno já nem consegue imaginar uma vida
para além do trabalho. Enquanto princípio imperial, o trabalho não só domina a esfera da
economia, em sentido estrito, como impregna toda a existência social até aos poros do dia-
a-dia e da existência privada. O «tempo livre» – que é literalmente um conceito prisional –
há muito que serve para «renovar o stock» de mercadorias, garantindo assim a necessária
venda das mesmas.
Se o rei Midas ainda achava que era uma maldição o facto de transformar em ouro tudo
aquilo em que tocava, o seu moderno companheiro de sofrimento já ultrapassou esse
estádio. O homem da sociedade do trabalho já não consegue sequer perceber que, graças
à equiparação de todas as coisas pelo padrão do trabalho, todo o fazer perde o seu sentido
especial e torna-se indiferente. Pelo contrário, o que acontece é que ele só confere sentido,
justificação e significado social a uma actividade qualquer precisamente através dessa
equiparação à indiferença do mundo das mercadorias. Por exemplo, com um sentimento
como o luto, o sujeito do trabalho não sabe que fazer; todavia, a transformação do luto em
«trabalho do luto» transforma esse corpo estranho emocional num valor conhecido,
mediante o qual pode estabelecer trocas com os seus semelhantes. O próprio sonhar torna-
se «trabalho do sonho», o conflito com uma pessoa amada passa a «trabalho da relação»,
e a convivência com as crianças transforma-se em «trabalho educativo»; todas essas
actividades são assim privadas de realidade e tornadas indiferentes. Sempre que o homem
moderno insiste em fazer algo com «seriedade», tem na ponta da língua a palavra
«trabalho».
Esta falta de precisão conceptual prepara o terreno para uma certa crítica, bastante corrente,
mas muito pouco fiável, da sociedade do trabalho, crítica que opera precisamente ao
contrário, isto é, a partir de uma interpretação positiva do sentido do imperialismo do
trabalho. Acusa-se a sociedade do trabalho precisamente de, com as suas formas de
actividade, não conseguir ainda um domínio suficiente sobre a vida, porque concebe o
trabalho de maneira alegadamente demasiado «restritiva», excomungando moralmente do
respectivo âmbito o «trabalho individual» ou a «auto-ajuda» (trabalho doméstico, ajuda de
vizinhança, etc.), para apenas aceitar como «verdadeiro» trabalho aquele que é remunerado
segundo os critérios do mercado. Assim, uma reavaliação e uma ampliação do conceito de
trabalho deveriam eliminar essa rigidez unilateral e a estratificação hierarquizada dela
decorrente.
Esta forma de pensar não visa, portanto, a emancipação das coerções dominantes, mas
apenas uma correcção semântica. A crise iniludível da sociedade do trabalho deveria ser
solucionada pela consciência social através da elevação «efectiva» à nobreza do trabalho
das formas de actividade até hoje consideradas inferiores e marginais à esfera da produção
capitalista. Só que a inferioridade destas actividades não é apenas o resultado de uma
determinada visão ideológica, antes pertence à estrutura fundamental do sistema de
produção de mercadorias e não pode ser superada por simpáticas redefinições morais.
Uma ampliação moralizante da esfera do trabalho, em lugar da sua crítica radical, não
apenas encobre a realidade do imperialismo social da economia produtora de mercadorias,
como se adapta da melhor maneira às estratégias autoritárias da administração da crise por
parte do Estado. A exigência, vinda dos anos setenta, de reconhecimento social do «trabalho
doméstico» e das actividades do «terceiro sector» enquanto trabalho plenamente válido,
começou por especular com a ideia das prestações financeiras estatais. Mas o Estado, na
sua crise, vira o feitiço contra o feiticeiro e mobiliza o impulso moral desta reivindicação no
sentido do famoso «princípio de subsidiariedade», exactamente contra as expectativas
materiais da dita reivindicação.
Por muito que a crise fundamental do trabalho seja recalcada e transformada em assunto
tabu, a verdade é que ela marca com o seu cunho todos os conflitos sociais da actualidade.
A passagem de uma sociedade de integração de massas para uma ordem de selecção e
apartheid não conduziu a uma nova ronda da antiga luta de classes entre o capital e o
trabalho, mas sim a uma crise das categorias da própria luta de interesses imanente ao
sistema. Já na época da prosperidade, após a Segunda Guerra Mundial, a antiga ênfase da
luta de classes tinha empalidecido. Não porque o sujeito, «em si mesmo» revolucionário,
tivesse sido «integrado» através de processos de manipulação e corrupção num discutível
bem-estar, mas, pelo contrário, porque no desenvolvimento fordista se revelou a identidade
lógica entre o capital e o trabalho, enquanto categorias sociais funcionais de uma mesma
forma social fetichista. O desejo – imanente ao sistema – de vender nas melhores condições
possíveis a mercadoria força de trabalho deixou de ter qualquer elemento que apontasse no
sentido da transcendência do sistema.
Se, ainda nos anos setenta, se tratava de conquistar uma participação de camadas mais
vastas da população nos frutos envenenados da sociedade do trabalho, até esse impulso
se dissolveu nas novas condições de crise da terceira revolução industrial. Só enquanto a
sociedade de trabalho estava ainda em expansão foi possível conduzir em larga escala a
luta de interesses das suas categorias sociais funcionais. Contudo, exactamente na medida
em que desaparece a base comum, os interesses imanentes ao sistema deixam de poder
agregar-se no plano social geral. Desencadeia-se uma des-solidarização generalizada. Os
trabalhadores assalariados desertam dos sindicatos, os gestores deixam as associações
empresariais. Cada um por si, e o deus sistema capitalista contra todos: a tão invocada
individualização não é senão mais um sintoma da crise da sociedade do trabalho.
Tanto quanto ainda subsistam interesses que possam ser agregados, são-no apenas ao
nível microeconómico. Porque, na mesma medida em que passa a ser um privilégio poder
deixar que a vida seja triturada ao sabor da economia empresarial, com o correlativo
desprezo pela emancipação social, também a tarefa de representar os interesses da
mercadoria força de trabalho degenera numa brutal política de lobbies dizendo respeito a
segmentos sociais cada vez mais reduzidos. Agora, quem aceita a lógica do trabalho tem
de aceitar também a lógica do apartheid. Hoje, trata-se unicamente de garantir à clientela
própria, estritamente delimitada, que pode continuar a vender a sua pele à custa de todos
os demais. Há muito que as assembleias de trabalhadores e as comissões de empresa
deixaram de considerar que os seus verdadeiros adversários estão na administração das
unidades empresariais; passaram a vê-los nos assalariados das empresas concorrentes e
nas «localizações» estratégicas alternativas, quer seja na cidade vizinha ou no Extremo
Oriente. E quando se coloca a questão de saber quem será liquidado no próximo avanço da
racionalização empresarial, até a secção do lado e o colega mais próximo passam a ser
inimigos.
A des-solidarização radical está longe de dizer respeito apenas aos conflitos empresariais e
sindicais. O princípio do «salve-se quem puder» domina todos os conflitos de interesses
precisamente porque, na crise da sociedade do trabalho, todas as categorias funcionais
persistem, mais fanaticamente ainda, na sua lógica própria, segundo o princípio de que todo
e qualquer bem-estar humano só pode ser mero produto residual da rentabilidade e da
valorização do capital. Todos os lobbies conhecem as regras do jogo e agem de acordo com
elas. Cada moeda obtida pela clientela alheia é uma moeda perdida para a clientela própria.
Cada rotura na outra ponta da rede social aumenta deste lado as possibilidades de obter
mais um adiamento da ida para a forca. O reformado torna-se adversário natural de todos
os contribuintes; o doente, inimigo de todos os beneficiários da segurança social; o
imigrante, objecto de ódio de todos os nacionais enfurecidos.
Até hoje a esquerda sempre tentou esquivar-se a esta rotura categorial com a sociedade do
trabalho. Desvaloriza o carácter coercivo do sistema, encarando-o como mera ideologia, do
mesmo modo que desvaloriza a lógica da crise, entendendo-a como mero projecto político
dos «dominantes». Em vez da rotura categorial, entra em cena a nostalgia social-democrata
e keynesiana. Não se aspira a uma nova universalidade concreta das formações sociais,
que se situe para lá do trabalho abstracto e da forma do dinheiro; pelo contrário, a esquerda
tenta atabalhoadamente manter a antiga universalidade abstracta dos interesses imanentes
ao sistema. Tais tentativas, porém, continuam a ser elas mesmas abstractas, e não
conseguem já integrar-se em nenhum movimento social de massas porque iludem as
condições reais da crise.
Mas mesmo esta perspectiva triste, tacanha, é totalmente ilusória. Os analfabetos teóricos,
que são os respectivos protagonistas de esquerda, esqueceram-se de que o consumo
capitalista de mercadorias nunca serve simplesmente para a satisfação de necessidades, e
que, pelo contrário, só existe em função do movimento de valorização do capital. Quando já
não se consegue vender a força de trabalho, mesmo as necessidades mais elementares
passam a ser consideradas pretensões luxuosas e desavergonhadas, que devem ser
reduzidas ao mínimo. O programa do rendimento mínimo serve de veículo precisamente
para isso, designadamente enquanto instrumento estatal de redução de custos e enquanto
versão miserável das prestações sociais que vem substituir-se aos sistemas de segurança
social em colapso. Foi neste sentido que o mestre do neoliberalismo, Milton Friedman,
desenvolveu originalmente o conceito de rendimento mínimo, antes de a esquerda, à falta
de outras armas, o ir descobrir como suposta tábua de salvação. E, com este conteúdo, o
rendimento mínimo será uma realidade… Ou não será coisa nenhuma.
A rotura com as categorias do trabalho não se depara com um campo social definido,
objectivamente determinado, ao contrário do que acontece com a luta de interesses limitada
e imanente ao sistema. Trata-se de uma rotura com a normatividade falsamente objectiva
de uma «segunda natureza», e portanto a sua efectivação não poderá ser vista uma vez
mais como algo de quase automático, antes terá que ser uma consciência negadora –
objecção e rebelião, não respaldada em qualquer «lei da história». O ponto de partida desta
rotura não pode ser um novo princípio universal e abstracto, mas apenas a repulsa que cada
um sente perante a sua existência enquanto sujeito do trabalho e da concorrência, e a
recusa categórica de ter que continuar a funcionar assim, em circunstâncias cada vez mais
miseráveis.
Apesar da sua dominação absoluta, o trabalho nunca conseguiu apagar totalmente a revolta
contra as suas coerções. A par de todos os fundamentalismos regressivos e de todos os
desvarios da concorrência no plano da selecção social, existe também um potencial de
protesto e resistência. O mal-estar existe em larga escala dentro do capitalismo, mas é
reprimido para o subsolo socio-psíquico. E não é chamado à superfície. Por isso é
necessário um novo espaço intelectual livre para que o impensável possa tornar-se
pensável. É preciso quebrar o monopólio que o campo do trabalho mantém sobre
interpretação do mundo. Neste processo, à crítica teórica do trabalho cabe o papel de
catalisador. Ela tem o dever de atacar frontalmente os interditos dominantes que impedem
o exercício do pensamento, e tem a obrigação de expressar, aberta e claramente, aquilo
que ninguém ousa saber, mas que é de facto sentido por muitos: a sociedade do trabalho
está definitivamente no fim. E não há a menor razão para lamentar-lhe a morte.
Trata-se portanto de esboçar em traços largos quais os objectivos possíveis para um mundo
situado para lá do trabalho. O programa contra o trabalho não se alimenta de um cânone de
princípios positivos, mas da força da negação. Se o sucesso da imposição do trabalho foi
conseguido a par de uma longa expropriação do homem das condições da sua própria vida,
então a negação da sociedade do trabalho só pode consistir em os homens se
reapropriarem do seu contexto social, a um nível histórico superior. Por isso, os adversários
do trabalho têm em vista a formação em todo o mundo de alianças de indivíduos livremente
associados capazes de arrancar a essa estrutura sem conteúdo, que é a máquina do
trabalho e da valorização do capital, os meios de produção e de existência, tomando-os nas
suas próprias mãos. Só na luta contra a monopolização de todos os recursos sociais e de
todos os potenciais de riqueza, que as forças alienadoras do mercado e do Estado levam a
cabo, será possível conquistar espaços sociais de emancipação.
Neste processo torna-se também necessário que a propriedade privada seja atacada de um
modo diferente e novo. Para a esquerda tradicional, a propriedade privada não era a forma
jurídica do sistema produtor de mercadorias, mas apenas um ominoso e subjectivo poder
de «disposição» que os capitalistas detêm sobre os recursos. Pôde assim surgir a ideia
absurda de querer ultrapassar a propriedade privada no terreno da produção de
mercadorias. Em regra, a propriedade estatal («nacionalização») aparecia então como o
oposto da propriedade privada.Mas o Estado não é senão a associação coerciva exterior ou
a universalidade abstracta dos produtores de mercadorias socialmente atomizados; em
consequência, a propriedade estatal mais não é do que uma forma derivada da propriedade
privada – pouco importa que se lhe acrescente ou não o adjectivo «socialista».
É exactamente por esta razão que cada vez mais os meios materiais correspondentes a
qualquer forma de propriedade vão sendo encerrados ou deixados de «pousio». Para que
assim continue a ser e para que os meios de produção apodreçam em vez de serem
utilizados para um outro fim, existe a vigilância zelosa dos funcionários estatais,
empresariais e jurídicos. A conquista dos meios de produção por associações livres contra
a administração coerciva estatal e jurídica só pode, portanto, significar que esses meios de
produção deixam de ser mobilizados sob a forma de produção de mercadorias para
mercados anónimos.
A crítica do trabalho é uma declaração de guerra contra a ordem dominante; não é uma
coexistência pacífica entre alguns nichos e as coerções da ordem dominante. O lema da
emancipação social só pode ser: tomemos aquilo de que necessitamos! Não nos arrastemos
mais de joelhos sob o jugo dos mercados de trabalho e da administração democrática da
crise! A condição necessária para a realização destes objectivos é o controlo exercido por
novas formas sociais de organização (associações livres, conselhos) sobre o conjunto das
condições sociais da reprodução. Este objectivo traça uma distinção fundamental entre os
adversários do trabalho e todos aqueles políticos e espíritos mesquinhos que sonham com
uma transformação por nichos ou com uma espécie de socialismo de hortinha.
Para fazer com que a humanidade interiorizasse a ditadura do trabalho e do egoísmo, foi
preciso começar por exterminar as instituições auto-organizativas e de cooperação
autodeterminada típicas das antigas sociedades agrárias. Talvez tenha sido realizado um
trabalho perfeito. Não somos exageradamente optimistas. Não podemos saber se será bem
sucedida a libertação desta forma de vida condicionada. Está em aberto a questão de saber
se a derrocada do sistema do trabalho conduzirá à superação da respectiva loucura ou ao
fim da civilização.
Não nos referimos apenas aos sectores de trabalho que são claramente perigosos para a
comunidade, como a indústria automóvel, a indústria de armamento e a indústria nuclear;
falamos também da produção das inúmeras próteses de sentido, dos ridículos objectos de
pseudodiversão destinados a simular um sentido substitutivo para a vida desperdiçada,
imposta aos homens da sociedade do trabalho. Terá também de desaparecer a monstruosa
quantidade de actividades que só existem porque há toda uma multidão de produtos que é
preciso fazer passar por esse autêntico buraco de agulha que é a forma do dinheiro e a
mediação do mercado. Ou achais que continuarão a ser necessários contabilistas e
orçamentistas, especialistas de marketing e vendedores, mediadores e publicitários, a partir
do momento em que as coisas forem sendo produzidas conforme as necessidades e quando
os indivíduos se limitarem a tomar para si aquilo de que precisam? E qual a utilidade dos
funcionários de finanças e dos polícias, dos assistentes sociais e dos administradores da
pobreza, quando já não houver propriedade privada para proteger, quando não houver
miséria social para administrar, nem for preciso domesticar os indivíduos para a alienação
das coerções do sistema?
Já estamos a ouvir o grito: Ai, tantos postos de trabalho! Mas, com certeza. Calculai
calmamente quanto tempo de vida a humanidade rouba diariamente a si mesma só para
acumular «trabalho morto», para administrar os indivíduos e deitar umas gotas de óleo na
engrenagem do sistema dominante. Quanto tempo poderíamos todos nós passar ao sol, em
vez de nos esfolarmos por coisas sobre cujo carácter grotesco, repressivo e destrutivo já se
encheram bibliotecas inteiras. Mas não tenhais medo. Não acabarão de modo algum todas
as actividades, quando a coerção do trabalho desaparecer. Serão, sim, as actividades a
mudar de carácter a partir do momento em que já não estiverem confinadas à esfera do
tempo abstracto, linear, e da respectiva finalidade autotélica e sem sentido, passando cada
actividade particular, pelo contrário, a poder seguir o seu próprio ritmo, individualmente
variável e integrado em contextos de vida pessoais; e nas formas maiores de organização
da produção serão os indivíduos a determinar eles próprios os ritmos, em vez de se
submeterem às determinações da ditadura da valorização do capital na lógica da economia
empresarial. Que razão há para que alguém se deixe acossar pelas exigências insolentes
de uma concorrência imposta? É tempo de redescobrir a lentidão.
Não dizemos que todas as actividades se tornarão um prazer. Umas mais, outras menos.
Naturalmente, há sempre algo que necessariamente tem de ser feito. Mas quem há-de
assustar-se com tal coisa, se a vida não for consumida nisso? E haverá sempre muito mais
coisas que podem ser feitas por livre escolha. Porque faz falta a actividade, tal como faz
falta o ócio. Ora, o trabalho nunca conseguiu suprir esta falta. Limitou-se a instrumentalizá-
la no seu interesse, a sugá-la vampirescamente.
Os inimigos do trabalho não são defensores fanáticos nem de um activismo cego, nem de
um igualmente cego quietismo. Ócio, actividades necessárias e actividades livremente
escolhidas devem ser harmonizados numa relação com sentido, orientada pelas
necessidades e pelos contextos da vida. Desde que subtraídas às coerções materiais do
trabalho, tipicamente capitalistas, as modernas forças produtivas podem ampliar
gigantescamente o tempo livre em benefício de todos. Para quê passar horas e horas, dia
após dia, nas fábricas e nos escritórios, se é possível pôr autómatos de todos os tipos a
realizar a maior parte dessas actividades? Para quê fazer suar centenas de corpos
humanos, quando são suficientes umas quantas ceifeiras mecânicas? Para quê gastar o
espírito numa tarefa rotineira que um computador facilmente pode realizar?
Em todo o caso, para estes fins só poderá aproveitar-se uma pequena parte da técnica, na
forma capitalista de que se reveste. A maior parte dos complexos tecnológicos tem de ser
totalmente transformada, uma vez que foram construídos de acordo com os estritos padrões
da rentabilidade abstracta. E, por essa mesma razão, há muitas outras possibilidades
técnicas que não chegaram sequer a ser desenvolvidas. Embora a energia solar possa ser
obtida em qualquer esquina, a sociedade do trabalho instalou por todo mundo centrais
eléctricas perigosas, localizadas em zonas densamente povoadas. E, embora há muito se
conheçam métodos limpos de produção agrícola, o calculismo abstracto do dinheiro verte
toneladas de veneno nas águas, destrói os solos e inquina os ares. Por razões estritamente
decorrentes da economia empresarial, os materiais de construção e os alimentos dão três
voltas ao mundo, embora na sua maior parte essas coisas pudessem ser facilmente
produzidas nas proximidades do local em que vão ser utilizadas, sem necessidade de
recorrer a transportes de longa distância. Uma parte substancial da técnica capitalista é tão
insensata e supérflua como o dispêndio de energia humana que implica.
Não vos dizemos nada de novo. E, no entanto, nunca retirareis as consequências daquilo
que tão bem sabeis. Porque, de facto, continuais a abster-vos de tomar qualquer decisão
consciente sobre quais os meios de produção, de transporte e de comunicações que faz
sentido utilizar e quais os que são prejudiciais ou simplesmente supérfluos. Quanto mais
freneticamente recitais o vosso mantra da liberdade democrática, tanto mais
obstinadamente recusais a mais elementar liberdade social de decisão, porque quereis
continuar a servir o cadáver dominante do trabalho e as suas pretensas «leis naturais».
A superação do trabalho é tudo menos uma utopia nebulosa. A sociedade mundial não pode
manter-se na forma actual por mais cinquenta ou cem anos. O facto de os adversários do
trabalho terem de se haver com um ídolo clinicamente morto não torna a sua missão
necessariamente mais fácil. Pois, quanto mais se agudiza a crise da sociedade do trabalho
e abortam todas as tentativas de recuperação, mais se aprofunda o fosso entre o isolamento
das mónadas sociais desamparadas e as exigências de um movimento de auto-apropriação
da sociedade no seu todo. O carácter cada vez mais selvático das relações sociais em
grande parte do mundo mostra que a velha consciência do trabalho e da competição
continua a descer a níveis cada vez mais baixos. Apesar de todos os impulsos decorrentes
do mal-estar que se vive no capitalismo, a des-civilização aos solavancos parece ser a forma
natural de andamento da crise.
Precisamente porque as perspectivas são tão negativas, seria fatal querer adiar a crítica
prática do trabalho, enquanto programa abrangente que diz respeito ao todo social, e
limitarmo-nos a construir uma precária economia de subsistência nas ruínas da sociedade
do trabalho. A crítica do trabalho só terá possibilidade de vingar se atacar de frente a
corrente da des-socialização, em vez de se deixar arrastar por ela. Os adquiridos
civilizacionais, se os há, não podem continuar a ser defendidos com a política democrática,
mas apenas contra ela.
Liberdade significa não deixar que se seja triturado pelo mercado e não deixar que se seja
administrado pelo Estado, e em vez disso organizar autonomamente todo o conjunto das
relações sociais, sem a intromissão de aparelhos alienados. Neste sentido, para os
adversários do trabalho, trata-se de encontrar novas formas de movimento social e de
estabelecer testas de ponte para uma reprodução da vida que se situe para lá da sociedade
do trabalho. Trata-se de combinar as formas de uma práxis de contra-sociedade com a
recusa ofensiva do trabalho.
Os poderes dominantes podem declarar-nos loucos, porque arriscamos a rotura com o seu
sistema coercivo irracional. Não temos nada a perder, a não ser a perspectiva da catástrofe
para onde esses poderes nos conduzem. Temos um mundo a ganhar, para lá das fronteiras
do trabalho.