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& tee EAE 1 Solid Melts into Air e198, N Bermay Traducso de An Capa de Arcingela Marques Depdsito legal n° 32954/39 Todos os direitos reservados or Edicéee 70, Lda ingua portuguesa ORTUGAL. EDICOES 70, LDA. — Av. EI Ye ~ 1000 LISBOA Telels. 7627 20/1627 92 / 76.28 54 ‘Telegramas: SETENTA Telex: 64489 TEXTOS P DISTRIBUICAO NO NORTE EDIGOES 70, LDA. —R. da Rese, “4400 VILA NOVA DE OAIA todo ou em parte, Inctuind Qualguer @ MARSHALL BERMAN E SOLIDO SE DISSOLVE NO AR A AVENTURA DA MODERNIDADE Tradugdo de ANA TELLO edicdes 70 142 + estéti de véus sentimentais, devolvidos & ens Vontade e energia individuais, forcados a explorar os outros Fetntas memes Para sobreviver; ¢ no entanto, apesar de tude, Teunidos pelas mesmas forgas que nos separam, vagamente cor, lentidades ¢ lagos comuns que podem ajudar-nos a manter-nes 2ntos, enquanto o intenso ar moderno sopra, fazendo-nos muder coustantemente de opiniao. ur BAUDELAIRE: O MODERNISMO. NAS RUAS Mas agora imagine uma eldade como Patis (..), imagine esta metrépole mundial (..) onde se nos depara a historia em cada esquina, Goethe a Fekermann, 3 de Maio de 1927 No ¢ apenas no uso de imagens vida comum, nio sé ‘as imagens da vida srdida de ma grande metrOple as na clevasto desas ingens «una at Intend —apresenando'e como ltée, no eatamo,fazendo que cla represent alguna coisa além de s propria — que Bandslaire exon vina Torna de * m= T. S. Eliot, «Baudelairen, 1930 Nas tttimas trés décadas, despendeu-se em todo o mundo uma imensa quantidade de energia na andlise ¢ esclarecimento dos sen- tidos da modernidade, Muito dessa energia fragmentou-se em cai nhos pervertidos que conduzem a derrota. A nossa visdo da vida moderna tende a dividir-se em dois niveis, o material € espiri- wal: algumas pessoas dedicam-se ao «modernismo», encarado como uma espécie de puro espirito, que se desenvolve em fungao de impe- rativos artisticos e intelectuais aut6nomos; outras situam-se na érbita da «modernizacdon, um complexo de estruturas e processos mate. riais — politicos, econémicos, sociais — que, em princi vez desencadeados, se desenvolvem por conta prépria, com u nenhuma interferéncia dos espiritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporanea, dificulta a nossa apreensdo de um dos factos mais marcantes da vida mocerna: a fuso das suas forgas materiais e espirituais, a interdependéncia énife 0 individuo e o ambiente moderno. Mas a primeira grande leva de escritores ¢ pensadores que se dedicaram & modernidade — Goethe, Hegel e Marx, Stendhal e Baudela - kens, Herzen e Dostoievski —~ tinham uma percepsao instintiva dessa interdependéncia; isso conferiu as suas visdes uma riqueza € profundidade que, lamentavelmente, faltam aos pensadores con- temporaneos que se interessam pela modernidade, Este capitulo é constituide em torno de Baudelaire, que fez mais do que ninguém, no século xix, para dotar os seus contem- Porfineos de uma consciéncia de si préprios como modernos. Moder- nidade, vida moderna, arte moderna — esses termos aparecem fre- quentemente na obra de Baudelaire; e dois dos seus grandes ensaios, © breve «Herofsmo da Vida Moderna» e o mais extenso «O Pintor da Vida Moderna» (1859-60, publicado em 1863), definiram a ordem do dia para um século inteiro de arte e pensamento. Em 1865, quando Baudelaire conhecia a pobreza ¢ a obscuridade, o jovem. 145 146 ine tentou reavivar o interesse por ele, sublinhando a jade como principal fonte da sua grande: lade de Baudelaire esté em pintar, com vigor e novidade, o homem moderno (...) como 0s refinamentos de uma eivilizagao excessiva 0 tornaram, 0 homem moderno com os seus sentidos agu- cos e vibrantes, o seu espitito dolorosamente subtil, 0 seu cérebro faturado de tabaco, o seu sangue a arder devido ao alcool. (...) Baudelaire pinta esse individuo sensivel como um tipo, um herdis! © poeta Theodore de Banville desenvolven esse tema dois anos ‘mais tarde, num tocante tributo diante do timulo de Baudelaire: Ble aceitou o homem moderno na sua pleni ‘quezas, as suas aspirapdes ¢ 0 seu desespero, Fol fri beleza a visdes que ndo possulam beleza, nl an imente pitoreseas, mas por trazer & luz @ porgao de alma humana ‘elas escondida; pOde revelar, assim, © corasao triste wégivo da cidade modema, Foi por isso que espantou, & espaniar, a mente do homem moderno, comovendo-o, outros artistas © deiaam indiferente®, A reputacdo de Baudelaire, ao longo dos cem anos apés a saa morte, evoluiu segundo as linhas sugeridas por Banville: quanto mais seriamente a cultura ocidental se preocupa com a questéo Ga modernidade, tanto mais apreciamos a originalidade ¢ a coragem de Baudelaire, como profeta e pioneiro. Se tivéssemos de apontar um primeiro modernista, Baudelaire seria, sem divida, o escothido. Contudo, uma das qualidades mais evidentes dos muitos eseri, {8 de Baudelaire sobre a vida e arte modernas consiste em assina- ir que o sentido da modernidade ¢ surpreendentemente vago, dificil Ce determinar. Tomemos, por exemplo, uma das suas afirmagSes mais famosas, de «O Pintor da Vida Moderna»: «Por ‘moderni- ‘ade’ entendo 0 efémero, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é eterna e imutaveb>. O pintor (ou romancista ou filosofo) da vida moderna € aquele que concentra a sua visio ¢ energia na «sua moda, na sua moral, nas suas emogdes», no «ins. tante que passa ¢ (em) todas as sugestdes de eternidade que ele contém. Esse conceito de modernidade é concebido para romper com as antiquadas fixagdes elassicas que dominam a cultura fran— ' Excraido de um artigo de Verlaine na revista L’Art ¢ citado e ire; Oeuvres Completes, org. Marcel Ruff (Editions da Seal "odes os textos em francés citados aqui sto da edigdo de tado por Es fm Boudelire (New Dizetion, 1958), 9. 530-1, a ce uma parstease nse L’Erandard, de & Set, 186} cesa. «Ficamos espantados com a tendéncia geral dos artistas para vestir todos os nossos assuntos com uma roupagem do passadon. A fé estéril de que vestes e gestos arcaicos produzirdo verdades eternas deixa a arte francesa imobilizada num «abismo de beleza abstracta ¢ indeterminada» e priva-a de «originalidaden, que so pode advir da «marca que 0 Tempo imprime a todas as geracdes»” Percebe-se aonde Baudelaire pretende chegar; mas esse critério pura. mente formal de modernidade — qualquer que seja a peculiari- dade de um dado periodo — de facto afasta-o do ponto que quer alcangar, Segundo esse critério, como diz Baudelaire, «todo o mestre antigo tem a sua propria modernidade», desde que capte a apa- réhcia eo sentimento da sua propria era. Porém, isso esvazia a ideia de modernidade de todo 0 seu peso especifico, do seu con- teiido histérico concreto. Isso faz de todos e quaisquer tempos «len Pos modernos»; dispersar a modernidade através da historia, iro- nicamente, leva-nos a perder de vista as qualidades especificas da nossa propria histéria moderna}, © primeiro imperativo categérico do modernismo de Baude- laire é orientar-nos para as forgas primarias da vida moderna; mas Baudelaire nao deixa claro em que consistem essas forcas, nem © que iria a ser a nossa posigdo perante elas. Contudo, s¢ percor- Hermos a sua obra, veremos que ela contém varias visdes distintas da modemnidade. Essas visdes parecem muitas vezes opor-se vio- Ientamente umas as outras, ¢ Baudelaire nen sempre parece estar ciente das tensdes entre elas. No entanto, apresenta-as sempre com verve ¢ brilho © quase sempre as desenvolve com uma grande ori- ginalidade © profundidade. Mais ainda: todas as visées modernas de Baudelaire e todas as suas contraditérias atitudes criticas em relacdo & modernidade adquiriram vida propria, tendo-se mantido depois da sua morte até ao nosso tempo. Este ensaio comegara com as interpretagdes mais simples e acriticas da modernidade aventadas por Baudelaire: as suas exal- + Namesma décads, Marc seclamava, em termos surpreendentemente seme. lantes aos de Baudelaire, contra as elissicas e antiga finagoes na poliiea de cesquerda: «A tradisio de todas no eérebro das geragbes revoluedo, na er tempo venerdvel ede uma liguagem emipres- rumaire of Louls Bonaparte, 1851-52) ‘Modern Life, and Other Essays, tad. e or€. por ragbes (Phaidon, 1965), p. 1-5, 124 > The Painter than Mayne, com grande nimero d Vota \asdes liricas da vida moderna, que criaram formas peculiarmente modernas de pastoral; as su dade, que geram as for fais twansformar-se-iam naquilo a que o século xx chama «dese. Dessas visOes limitadas, passaremos para uma Perspectiva de Baudelaire muito mais profunda e interessante Gnnmbore Provavelmente menos conhecida e menos influente ——. uma perspectiva dificilmente redutivel a uma formula definitiva cstética ou politica, que luta, corajosamente com as suas contra ses interiores ¢ que pode desvendar no s6 a modernidade de Bat. delaire mas também a nossa prépria modernidade 1. Modernismo Pastoral e Antipastoral Comecemos com as pastorais modernas de Baudel Imeira versdo surge no prefacio a0 «Salo de 1846) das mostras de arte nova, nesse ano. O preficio Burgueses», Os leitores contemporaneos, habituad: Baudelaire como thes diz respeito, ficam chocados®. Baudelaire nao s6 exalta al o burgueses, como os adula, pela sua inteligéncia, forga de vontate no comércio ¢ nas finaneas, Nao é intei- claro que pessoas essa classe abrange: «Vocés so 4 mato. igéncia; portanto, voces sdo 0 poder — 9 aue quer dizer a justica». Se a burguesia constitui « maioria, © que acomteceu a classe operdria, isto para jd ndo faler dae ity, de Pintus Hulten (Estocoimo, Modena i Despair: A Study int the Rise of the Cr ily of California, 1961) aos sulons encontramse em Art in Paris, 1845.62, volume q smpla The Painter of Modern Life trad. ¢ org. Jonathan Mayas (1 ‘To the Bourgcoisy, p. 41-3, Em algumas passagens, alters, mpre tendo em vista maior preciso; onde as alteragies ss © de forma poueo er Bourgeois, p. 90-124, Uma aborda nite, da burguesia e da modemidade em Art and Act (Harper & Row, 1976), de Peter Gay, especialinente 2. V. também Faces of Modernity, de Matei Calisnesct, p. 46-08 y potencialidades dos seus movimentos pol € preciso lembrar que estamos diante jo, quando os burgueses se empe- aiham em grandes empresas — «voces associaram.-se formaram com- Panhias, conseguiram empréstimos» —, isso nao acontece, como muitos podem pensar, para ganhar rios de dinheiro, mas por um Bropésito mais elevado: «para concretizar a ideia de futuro em todas as suas formas — politica, industrial, artistica». © motivo bur: gués fundamental, aqui, é 0 desejo de progresso humano infinito ndo S6 na economia, mas universalmente, no campo da politica £.da cultura. Baudelaire apela para o que considera a criatividade inata e a universalidade de visdo dos burgueses: uma ver que s&0 impelidos pelo desejo de progresso na indiistria e na politica, seria impréprio da sua dignidade parar e aceitar a estagnagao na arte Baudelaire apela ainda, como Mill faré uma geragdo depois (€0 proprio Marx, no Manifesto Comunista), para a crenca bur- guesa na livre troca, sugerindo que esse ideal seja estendido & esfera da cultura: assim como os monopélios so um obstdculo & vida € énvergia econdmica, «os aristocratas do pensamento, os monopo- listas das coisas do espirito» sufocarao a vida espiritual e privarao a burguesia das ricas fontes da arte e do pensamento modernos. / A f€ que Baudelaire deposita na burguesia esquece as sombrias 108 € econdmicos — eis or que Ihe chamo visao pastoral. Contudo, a ingenuidade do pre- facio «Aos Burgueses» deriva de uma elevada abertura e genero- sidde de espirito. Isso nao sobrevivera — nao poderia sobreviver — @ Junho de 1848, ou Dezembro de 1851; mas, num espirito amargo como o de Baudelaire, foi belo enquanto durou. De qual quer modo, essa visio pastoral proclama a natural afinidade entre '@ modernizagao material ¢ a modernizagao espiritual; sustenta que 68 grupos mais dinamicos ¢ inovadores na vida econémica ¢ poli tica serao os mais abertos a criatividade intelectual ¢ artistica — ‘ara concretizar a ideia de futuro em todas as suas formas»; essa ido encara as mudaneas econdmicas e culturais como progresso mano sem obstaculos’, > A confianga de Baudelaire na receptividade, por parte da burguesia, da noderna pode derivar de seu conheci 5. estudado brevemente neste livro 4gerado 0 conceito moderno de avant-garde nos historiadores dio especial importancia « De 'Orgentzation Sociale, de Saint-Simon, ©. Dialogue between an Artist, a Scientist and an Industrials, do seu disipulo Olinde Rodriguez, ambos publ. em 1825. V. «The Idea of 'Avant-Garde” in Att wbém Feces of Modernity, de Calinese, p is extensas do concelto de avantgarde, p. 9 149 150 © ensaio de Baudelaire «O Pintor da apresenta uma espécie muito diferente de pastoral: aqui a vida ‘moderna surge como um grande show de moda, um sistema de aparig6es deslumbrantes, brilhantes fachadas, espectaculares triun- fos de decorasao ¢ estilo. Os herdis de toda essa pompa sfo 0 pin. tor ¢ ilustrador Constantin Guys e a figura arquetipica do Dandy segundo Baudelaire, No mundo pintado por Guys, o espectador ‘maravilha-se com a (...) esfuziante harmonia da vida nas grandes fades, uma harmonia providencialmente preservada no meio do ito da liberdade humana». Os leitores familiarizados com Bau- © espantar-se-4o pelo facto de o ouvirem falar como o dr. Pangloss; perguntamo-nos qual é a piada, até concluir que, lamen. tevelmente, no ha piada nenhuma. «A espécie de assunto prefe: ido pelo nosso artista (...) € a pompa da vida (la pompe de la vie) tal como pode ser vista nas capitais do mundo civilizado; a Pompa da vida militar, da moda, da vida galante (la vie militaire, 4 vie élégante, la vie galante).» Se voltarmos aos habilidosos esbocos Go beautiful people ¢ do seu mundo, realizados por Guys, vere. ‘mos apenas uma variedade de fantasias aparatosas ocupadas por Huanequins sem vida e de rostos vazios. Mas se a sua arte se asse- ‘melha tanto aos amtincios de Bonwit ou Bloomingdale, a culpa nao € de Guys. O que é triste € que Baudelaire tenha escrito algumas paginas perfeitamente sintonizadas com isso: Moderna» (1859-60) Ele [o pintor da vida moderna} delicia-se com fi « orgulhotos coretis, a esplendorosa elegiineia dos ezx dos pedes, © sinuoso andar das mulheres, a beleza das erlangas, felizes por estacem vivas e bem-vestidas — numa com a vida universal. Se o estilo ou o corte de ume roupa a ‘mente modificado, se as ondas e caraedis foram suplantados por pou bas, s€ 05 lagos se alargaram e os carrapitos desccram um pouce a diressio & base do pescogo, se as cinturas se elevaram e 2 salus se fornaram mais rodadas, nfo tenha duvida de que o olhar aquilino de Guys o-detectaré® Caso isso seja, como Baudelaire pretende, a «vida univers: © que seré a morte universal? Aqueles que amam Baudelaire # The Painter of Modern Life, p. 11. Pode enco deste ensaio, mais favoravel do que © meu, em «Literary History and L 0 Blindness and Insight: Essays in the Rhetoric ford, 1971), especialmente nas p. 155-61, V. ta fodernité, de Henri Lefebvre, eap. 7, para uma perspes. tiva critica semelhante a aqui apresentada, lamentarao que, jé que estava a produzir material de propaganda, no tivesse sido pago por isso. (Ble teria feito bom uso do dinheiro, embora decerto se recusasse a fazer isso por dinheiro.) Entretanto, essa espécie de pastoral desempenha um papel importante nao sé na carteira de Baudelaire, mas também nos cem anos de cultura moderna entre 0 seu ¢ 0 nosso tempo. Existe um importante cor- bus de escritos modernos, com frequéncia produzidos por escrito- res sérios, que se assemelha demasiado a material de propaganda. Esses escritos véem toda a aventura espiritual da modernidade encar. nada na ditima moda, na ultima maquina, ou — o que & mais sinis- tro ainda — no iltimo modelo de regimento militar. ‘Um regimento passa, a caminho, ao que parece, dos contins da langando no ar das evenidas 05 seus toques de trombeta como tlada e comovedora esperaniga e, num instante, Monsieur G. ter visto, examinado e analisado o rumo ¢ 0s espectros exteriores desse compar hia. Equipagens luzidias, misica, olbares audaciosos, determinados, bigodes pesados e solenes — ele absorve tudo isso, em desorden \dos polices momentos o «pocman dal resultante estar fe composto. Veja como a sua alma se aviva com a wma dense ‘hando como um s8 animal, imagem orgulhose de ale aria € obedincia®. Esses so os soldados que mataram 25 mil parisienses em Junho de 1848 ¢ abriram caminho para Napoledo Ill, em Dezembro de 1851. Em ambas as ocasides, Baudelaire foi as ruas para lutar contra esses homens (e facilmente poderia ter sido morto por eles) cuja «alegria ¢ obediéncia animalescas tanto o atraem agora!®, A pas- sagem anterior devia alertar-nos para um facto da vida moderna ‘Ge 03 estudantes de arte e poesia costumam esquecer com facili- dade tremenda imporiancia de um desfile militar — importan- cla psicolégica ¢ politica — e 0 seu poder de cativar mesmo os jespiritos mais livres. As paradas militares, de Baudelaire a0 nosso tempo, desempenham um papel decisivo na visao pastoral da moder- nidade: equipagens reluzentes, colorido vistoso, formagoes dgeis, movimentos rapidos e graciosos, a modernidade sem lagrimas. ° Painter of Modern Life, p. 24 1 “A melhor descrigdo da acgdo politica de Baudelaire nesse periodo esté The Absolute Bourgeois: Ariss and Politics in France, 1848-51, de T. Clark (New York Grape Soc rd Klein, «Some Notes on Bai 151 132 Talvez 0 facto mais estranho da visio pastoral de Baudelaire ~ uma visio que tipifica 0 seu pervertido sentido da ironia, mas também a sua peculiar integridade — € que ela exclui o proprio Baudelaire. Todas as dissondncias sociais e espirituais da vida pari. siense foram banidas dessas ruas. O interior turbulento de Baude- laire, a sua angistia e anseios — toda a sua performance criativa a0 representar aquilo a que Banville chamow «o homem moderno fa sua plenitude, com as suas fraquezas, as suas aspiracdes € 0 Seu desespero» — estilo completamente fora deste mundo. Isso ‘permite-nos ver que, quando Baudelaire escolhe Constantin Guys, © ndo Courbet ou Daumier ou Manet (que ele conhecia e amava), como 0 arquetipico «pintor da vida moderna», trata-se no sé de uma falta de gosto, mas de uma profunda rejeicao e rebaixamento desi préprio. O seu encontro com Guys, patético, transmite algo crdadciro ¢ fundamental a respeito da modernidade: 0 seu poder de gerar formas de «show exterior», modelos brilhantes, especté- f culos sedutores, tao deslumbrantes que chegam a cegar os indi Guos mais perspicazes para o esplendor da sua propria vida inte- rior, mais sombria. AAs mais vivas imagens antipastorais da modernidade, criadas Por Baudelaire, pertencem ao fim dos anos 1850, o mesmo periodo de «O Pintor da Vida Moderna: se existe uma contradicao entre as duas visdes, Baudelaire nao tem, de modo algum, consciéncia disso. O tema antipastoral surge pela primeira vez no ensaio de 1855, Artesn!!. Aqui, Baudelaire serve-se de uma retérica reacciondria conhecida para langar o seu desdém nao s6 sobre a moderna ideia de progresso, mas também sobre o pensamento e a vida modernos como um todo: Existe ainda outro erro muito na moda, que eu anseio por evitar, como se fosse o proprio demdnio, Refiro-me a ideia de «progress Esse obscuro farol, invencio do filosofar actual, fgarantia da Natureza ou de Deus — esse sinal luminos tha 0 caos sobre todos os objectos da conhecimento: aispersa-se © © castigo (chatiment] desaparece. Quem quet que pre fenda ver a historia com clareza deve antes de mais nada desfaver se desse tue traigoeira. Essa ideia grotesca, que floresceu no sola da est pidez moderna, libertou o homem dos seus deveres, alivion a Artin Port, 121-9.8ste es position Univerelle aparece como parce inodtria de uma exten 1855}. Sobre a Ideia Moderna de Progresso Aplicada as Belas , » go kanti Aqui, a beleza aparece como algo estatico, imutavel, inteira- mente exterior ao individuo, que exige uma rigida obediéncia impée castigos aos seus recalcitrantes stibditos modernos, que extin. gue todas as formas de iluminismo e funciona como uma espécie de policia espiritual ao servigo de uma Igreja e um Estado contra. _-Tevolucionarios. Baudelaire recorre a esse expediente reacciondrio porque esta Preocupado com a crescente «confusdo entre ordem materi ordem espiritual», divulgada pela epopeia do progresso. Assim, fome-se qualquer bom francés, que IE 0 sew jernal, no seu café, erat lhe 0 que entende por progresso, € responderd que & 6 ide € a luz do 44s, milagres desconbecidos dos Roma ‘05, testemunho incontestavel da nossa superioridade sobre os anti £05. Tal 6 0 grau de es 1 Se instslou nesse cérebro infelil Baudelaire tem toda a razao em lutar contra a confusdo entre Progresso material e progresso espiritual — uma confusio que pet siste no nosso século e se torna especialmente exuberante em perfo- dos de 600m econdmico. Mas mostra-se to estiipido como aquele espantalho no café quando salta para o pdlo oposto e define a arte de tal modo que parece nao ter quaiquer relagdo com o mundo material: © pobre homem tomou-se tte craticas e induet ‘menos do mundo sobrenatural Esse dualismo apresenta alguma semelhanca com a dissocia- a entre ambito numénico ¢ o fenoménico, porém vai muito mais longe do que Kant, para quem as experiéncias e activi- Gades numénicas — arte, religio, ética — ainda actuam no mundo material do tempo e do espago. Nao é nada claro onde, ou sobre © qué, esse artista baudelaireano deverd actuar. Baudelaire vai mais longe: no apenas desliga o seu artista do mundo material do vapor, da clectricidade ¢ do gas, mas também de toda a historia da arte, passada ¢ futura. Com isso, diz ele, é errado pensar em antecesso. Tes do artista, ou em virtuais influéncias que tenha sofrido. «Todo © florescimento {em arte] € espontaneo, individual (...) O artista 1s 184 , fatce apenas de si préprio (.,.) $6 & garantia de si mesmo. Morre Ser deixar filhos, tendo sido o seu prOpiio tei, o seu proprio save. |’, dots, 0 scu proprio Deus»!2, Baudelaire mergulha numa transcen. dércia que deixa Kant muito para trés: esse artista torna-se um Ping-an-sich (objecto-em-si) ambulante. Assim, na viva e parado- xa. sensibilidade de Baudelaire, a imagem antipastoral do mundo mcslerno gera uma visio notavelmente pastoral do artista modern, Que flutua, intocado, livre, acima disso tudo, (© dualismo pela primeira vez esborado aqui — visio antipas- {oral do mundo moderno, visdo pastoral do artista modemo e da sua arte — amplia-se e aprofunda-se no famoso ensaio de 1859,” «© Piiblico Moderno e a Fotografiay'’. Baudelaire comega por Se queixar de que «o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre apti- dio, quando aplicada aos seus fins Boprios) oprime o gosto do Belov. Esta € a ret6rica do eq gue se opie as importancias exclusivas: a verdade é essencial, desde que no asfixie o desejo de beleza. Todavia, o sentido de equilfbrio nfo dura muito: «Onde indo se devia ver nada além de Beleza (no sentido de uma bela pink {ura), 0 piiblico procura apenas a Verdaden. Como a fotografia € capaz de reproduzir a realidade com mais preciso do que nunca para mostrar a «Verdaden —, esse novo meio é «inimigo mor. tal da arten, e, na medida em que o desenvolvimento da fotoura. fia € produto do progresso tecnolégico, «Poesia e progresso sao | coo dois homens ambiciosos que se odeiam. Quando os seus cami | thos se cruzam, um deles deve dar passagem a0 outro». Mas porqué esta inimizade mortal? Por que deveria a pre- se isa da realidade, ou «verdade», numa obra de arte minar ou destruir a sua beleza? A resposta imediata, na qual Baudelaire acre diva com tanta veeméncia (pelo menos nessa altura) que nem sequer ovsa expressi-la com clareza, é que a realidade moderna é intrin- camente repugnante, vazia nao 36 de beleza mas de qualquer pos. sibilidade de beleza. Um desprezo categérico, quase histérico, pelos homens modemos e pelas suas vidas anima declaragdes como estas «A multidao idélatra exigiu um ideal que fosse apropriado e digno Ga sua naturezan. A partir do momento em que a fotografia se dsenvolveu, «a nossa sociedade sérdida, narcisista, correu para admirar a sua imagem vulgar numa lamina de metal», O sétio estudo chtico sobre a representacdo da realidade, levado a cabo por Bau. | delaire, € comprometido por um desprezo acritico pelas pessoas wid. p. 125, 127. Salon af 1839, parte 1. Art in Pari, p. 149-35 ‘modernas reais & sua volta. Isso condu-lo novamente a uma con- cepedo pastoral da arte: «é intitil e aborrecido representar o que exist, porque nada do que existe me satisiaz. (,..) Aquilo que é Positivamente trivial, prefiro os monstros da minha fantasian. Ainda piotes que o fotégrafos, diz Baudelaire, sfo os pintores modernos influenciados pela fotografia: cada vez mais, 0 pintor moderno «tem tendéncia para pintar no 0 que sonha, mas o que ver. O que dé a isso um teor pastoral, e acritico, ¢ o dualismo radical, €a profunda falta de consciéncia de que pode haver relagdes ricas, cheias de influéncias miituas e fusdes, entre o que um artista (ou quem quer que seja) sonha e vé A atitude polémica de Baudelaire contra a fotografia exerceu le influéncia no sentido de definir uma forma peculiar de modernismo estético, que impregna o nosso século — por exem- plo, em Pound, Wyndham Lewis e nos seus varios seguidores —, no qual os homens e a vida moderna so incessantemente despre- zados, enquanto os artistas modernos ¢ as suas obras so exalta- dos com exagero, sem a menor suspeita de que esses artistas podem. ser mais humanos e estar mais profundamente envolvidos em Ia vie moderne do que poderiam pensar. Outros artistas do século Xx, como Kandinsky ¢ Mondrian, criaram obras maravilhosas a ndo condicionada, «pura». (O manifesto de 1912, de Kandinsky, «Sobre o Espiritual em Arter, esta repleto de ecos baudelaireanos.) Mas um artista que essa visio, infelizmente, exclui € 0 préprio Baudelaire. Pois 6 seu génio poético e a sua obra, mais que em qualquer outro poeta, antes ¢ depois dele, esto ligados a uma realidade material especi- fica: a vida quotidiana —e a vida nocturna —das ruas, dos cafés, das caves © mansardas de Paris. Até mesmo as suas visoes trans- cendentes se integram num tempo e num espaco concretos. Algo que distingue radicalmente Baudelaire dos seus precursores roman- ticos e dos seus sucessores simbolistas e contemporaneos reside no facto de o que ele sonha se inspirar no que vé. Baudelaire deve ter sabido isso, pelo menos inconscientemente; sempre que isola a arte moderna da vida moderna, procura passar uma rasteira a si préprio, para as reunit novamente, Assim, inter- Fompe o ensajo de 1855, sobre o «Progresso», para contar uma histéria que, segundo cle, «contém uma excelente ligdo de critica: {2 uma histéria a respeto de Balzac (quem nao ouviia com res qualquer anedota, por iais tivil que Cosse, sobre esse grande ‘que se surpreendeu um dia diante de wm belo quadro — uma wlica cena de Inverno, uma terivel nevasee, cabanas salpice 16 | depois de observar ‘modesto fio de fumo, sritou «Como Mas 0 que fazem nessa cabana? Em que iveram uma boa colheita? Sem divide tom 1ado € do préprio Baudelaire} Para Baudelaire, a ligdio, que iremos analisar nas partes sub- Sequentes deste ensaio, & que a vida moderna possui uma beleza peculiar ¢ auténtica, que, no entanto, é inseparavel da sua misé: © ansiedade intrinsecas, € insepardvel das contas que o homém. mmodero tem de pagar. Algumas paginas depois, no meio de uma implacavel aos idiotas modernos que se julgam capazes de ser verdadeiro. Nas linhas que se seguem, encontra-se uma breve ¢ brilhante meditacao sobre o verdadeiro terror criado pelo pro- aresso: de saber se, pelo continuo refinamento 80s prazeres que se Ihe oferecem, 0 pro set a mais cruel e engenhosa tortura; se, us autonesaglo, o progressa no acabaria Dor ser uma forma de suicidio permanentemente renov surado no ciseulo de Fogo © sscorpide que se fere com w sua propria cada — progresso, esse terno desiderato que € 0 seu proprio desespero eternal"! Aqui Baudelaire mostra-se intensamente pessoal, embora esteja serto de ser universal, Luta contra paradoxos que afectam e angus- ‘am todos os homens modernos, que envolvem a sua politica, as suas actividades econémicas, os seus mais {atimos desejos ¢ qual. auer espécie de arte que criem. Essa frase tem uma tensio e uma excitasdo cinéticas que reproduzem a condig&o moderna descrita; itor que chega ao final desta frase sente que de facto chegou um lugar. E 0 que acontece com o melhor escrito de Baude- ire sobre a vida moderna, bem menos conhecido do que as suas Pastorais. Estamos prontos agora para avangar no seu estudo. Ibid., p. 125, 127, 2. O Herotsmo da Vida Moderna No final da sua critica do Salao de 1845, Baudelaire queixa-se de que 0s novos pintores estdo desatentos ao presente: «no entanto, g heroismo da vida modetna rodeia-nos e pressiona-nos». E pros segue: Nao faltam assuntos, nem cores, para fazer epopeias. © verda- Aeito pintor que procuramos sera o que for capac de exirale da vida de hoje a sua natureza épica e de ros fazer sentir como somes gran. ddiosos © posticos com as nossas gravatas € as legitimo. No préximo ano, espera 5 nos concedam a extraordindria © pensamento nao esta desenvolvido de maneira adequada, nas ha dois aspectos que merecem ser salientados. Primeiro, a ironia baudelaireana a respeito das «gravatas»: muitos poderao pensar ue a justaposigao de heroismo e gravatas € uma piada; ¢ & mas a piada consiste precisamente em mostrar que os homens mod 10S so herdicos, nfo obstante a auséncia da parafernélia herdica itadicional; com efeito, sto ainda mais herdicos, sem a paraferna- lia que enche de orgulho os seus corpos e almas*. Segundo, ¢ ten- déncia moderna de fazer sempre tudo de novo: a vida moderna do ano que vem parecerd e serd diferente da deste ano; todavia, ambas fardo parte da mesma era moderna. O facto de nao se poder entrar duas vezes na mesma modernidade tornard a vida moderna especialmente fugaz e dificil de apreender. Baudelaire analisa ainda mais a fundo 0 herofsmo moden lum ano mais tarde, no breve ensaio com esse titulo'®, Aqui, é mais concreto: «O espectéculo da vida elegante (la vie éléganie) e os milhares de existéncias fluidas — criminosos e mulheres sustenta~ das pelos amantes — que se amontoam nos subterréneos de uma grande cidade; a Gazette des Tribunaux e 0 Moniteur provam que basta abrirmos 0s olhos para reconhecermos o nosso heroismo>. © mundo da moda ai esté, tal como estar no ensaio sobre Artin Paris, p. 31-2 * Vejam-se os comentarios de Baudelaire, no ens sobre o fato cinzento ou preto, que se estava a tornar 0 ‘expressa «nao s6 beleza politics, que € uma expresséo ‘mas também béleza podtica, expresso da alma publi ‘al confere «o necessirio yarbo & nossa idade sofrida, 6a perpétua lamentacio sabre os seus ombros negros e Tinos» (>. 118). ibid, p. 116-20 Constantin Guys; s6 que aparece sob uma forme nitidamente néo com os seus somibrios desejos ¢ actos, 08 seus crimes ¢ castigos; adquire, assim, uma oportunidade humans muito mais capaz de atrair a atengdo do que os pilidos esbosos de «O Pintor da Vida Moderna». ‘© ponto crucial do heroine odsrno, como Baudelaire o v8 aqui, € que surge em conflito, em situagses de conflito que dominam a vida quotidiana no mondo moderno, Baudelaire dé exemplos retirados da vida burguesa, bem como das altas ¢ baixas esferas: 0 politico herdico, o ministto de Soverno que fustiga, na Assembleia, os seus opositores com um discurso duro ¢ contundente, justificando a sua politica Justificando-se a si mesmo; o herdico homem de negécios, como © perfumista de Balzac, Birotteau, que luta contra o espestro da felencia, esforgando-se por reabilitar nao apenas o seu erédito mas 8 sua vida, toda a sua identidade pessoal; respeitaveis patifes, como Rastignac, capazes de tudo — dos actos mais despreziveis até aos mais nobres — para subir na vida; Vautrin, que frequenta tanto 4s alturas do poder bem como as profundezas do submundo e exibe jum desenvolta intimidade com os dois ambientes. «Tudo isso deina transparecer uma beleza nova e especial, que mio é nem a de Aquiles nem a de Agamenon.» De facto, diz Baudelaire — com uma ret. rica destinada a ofender a sensibilidade neoclissica de muitos dos seus leitores franceses —, «os herdis da Iifada sto como pigmeus, comparados com vocés, Vautrin e Rastignac, Birotteau (..) ¢ con. sigo, Honoré de Balzac, © mais herdico, o mais extraordindsio, © mais romantico eo mais pottico de todos os herdis produzides pela sua imaginagdon. No geral, a vida pariesiense contemporanea <«é rica em assuntos poéticos e maravilhosos. O maravithoso envolve. “Ros ¢ impregna-nos como uma atmosfera, mas no 0 vemosy. Ha varios pontos importantes a observar aqui. Primeiro, 0 amplo espectro da simpatia e generosidade de Baudelaire, muito diferente da imagem convencional de uma vanguarda snob que sé Sente desprezo pelas pessoas comuns e pelas suas ocupagdes. Deve. mos observar, nesse contexto, que Balzac, o tinico artista na gale- baudelaireana de herdis modernos, nao € daqueles que procu. ram manter-se distantes das pessoas comuns, mas, antes 0 que merguihou mais fundo na vida delas do que qualquer artista havia feito antes ¢ voltou com uma visto do heroismo anénimo dessa vida, Por fim, € essencial apontar o uso da fluidex (wexisténcias fluidas») © da natureza gasosa («o maravilhoso envolve-nos ¢ impregna-nos como uma atmosfera»), como simbolos das caracte, ristieas especificas da vida moderna, Fluidez e cardcter vaporoso tornar-se-tio atributos fundamentais na pintura, na arquitectura £ no design, na miisica e na literatura conscientemente modernis. fas, que surgirao no fim do século xix. Tais atributos serko ‘encon- trados, também, nos mais profundos moralistas e pensadores sociais dla geracao de Baudelaire, ¢ nos posteriores — Marx, Kierkegaard, Dostoievski, Nietzsche — para os quais o facto basico da vide moderna € que, como se 18 no Manifesto Comunista, «tudo 0 que 6 sdlido se dissolve no ar». A qualidade do ensaio «© Pintor da Vida Moderna» é prejus dicada pelo namoro pastoral de Baudelaire com a insipidez da vie élégante. No entanto, oferece algumas imagens brilhantes e sedu. toras, muito longe da pastoral, sobre o que a arte moderna di € aprender na vida moderna, Em primeiro lugar, diz el © artista moderno devia «assentar praca no coragao da multidao, no meio do fluxo e refluxo do movimento, no meio do fugaz ¢ do infinito», no meio da multiddo da grande metrdpole, «A sua paixo ¢ a sua profissio de f so tornar-se unha com carne com @ multiddo — épouser ta foule» (casat com a multidao). Baude- laire da especial énfase a essa imagem estranha e obsessiva, Esse «amante da vida universal» deve «penetrar na multidao como se ésta fosse um imenso reservatério de energia eléctrica. (...) Ou tal. ‘vez.0 devéssemos comparar com um caleidosedpio dotado de cons- ci€ncian. Ele deve «expressar ao mesmo tempo a atitude e os ges- fos dos seres vivos, quer sejam solenes quer grotescos, ¢ a sua luminosa explosdo no espago»'”. Energia elkctrica, caleidoscdpio, explosdo: a arte moderna deve recriar as prodigiosas transforma Ges da matéria e energia que a cigncia ¢ a tecnologia modernas — fisica, éptica, quimica, engenharia — haviam promovido A questéo nfo € que o artista deve utilizar essas inovagdes Fp tmbora, no ensaio sobre «Fotografian, Baudelaire diga que aprova isso, desde que as novas técnicas se mantenham no seu lugar Subalterno. O verdadeiro objectivo do artista moderno consist em reproduzir esses processos, pdr a sua prépria alma e sensibili dade nessas transformages, pare trazer & luz, na sua obra, essas forgas explosivas. Mas como? Nao creio que Baudelaire, ou qual quer outro no século xix, tenha tido uma ideia clara sobre como fazer isso. Essas imagens so comegarao a coneretizar-se no do século xx — na pintura cubista, na colagem e na montagem, no cinema, na corrente da consciéneia do romance moderno, no verso livre de Bliot, Pound e Apollinaire, no futurismo, no vorti« cismo, no construtivismo, no dadaismo, nos poemas que aceleram "Painters in Modern Life | 159 como sim- bolo fundamental da relacdo entre o artista e as pessoas & sua volta, Quer @ palavra seja tomada no seu sentido literal de casar, quer no sentido figurado de envolver sensualmente, trata-se de uma das ‘mais banais experigncias humanas, daquilo que faz o mundo git Um dos problemas fundamentais do modernismo do século xx é Que a nossa arte tende a perder contacto com a vida quotidiana das pessoas. Isto, € claro, nao é universalmente verdadeiro — o Ulisses de Joyce talvez seja a mais nobre excepsfo —, mas ¢ sufi- ntemente verdadeiro para ser notado por todos quantos se preo- cupam com a vida e a arte modernas. Para Baudelaire, porem, luma arte que no esteja dpousée com as vidas de homens ¢ mulhe. tes da multiddo ndo merecerd que se Ihe chame arte propriamente moderna. © mais rico e profundo pensamento de Baudelaire sobre a modernidade comeca a manifestar-se logo depois de «O Pintor da Vida Moderns inicio dos anos de 1860, ¢ prossegue até a0 momento em que, pouco antes da morte, em 1867, estava dema. siado doente para escrever. Esse trabalho constitul uma série de Poemas em prosa que cle tencionou publicar sob 0 titulo Spleen de Paris. Nao viveu para concluir a série ou para a publicar como um todo, mas completou cinquenta desses poemas, mais um pre- facio e um epilogo, que vieram & luz em 1868, logo apés a sua morte. Walter Benjamin, na sua série de brilhantes ensaios sobre Bau- delaire e Paris, foi o primeiro a aperceber-se da grande profundi- Gade ¢ riqueza desses poemas em prosa'8. Toda a minha reflexio se inscreve no camino aberto por Benjamin, embora tenha encon- trado elementos ¢ conjuntos diferentes dos apontados por ele, Os eseritos parisienses de Benjamin constituem uma actuagdo nota- velmente dramética, surpreendentemente semelhante 2 de Greta Garbo em Ninotchka, O seu coragao e a sua sensibilidade viraram- sno de maneira irresistivel para as luzes brilhantes da cidade, as belas mutheres, a moda, 0 luxo, 0 seu jogo de superficies deslum- FEsses ensos foram reunidas sob o titulo Charles Baudelaire: Lyric Poet ln the Era of High Capitalism, wad. Harty Zobn (Londres: New Left Books, 1973), & eicandalos0, mas nfo € possivel obter a obra nos EUA, pelo menos até 198) brantes € cenas esplendorosas; enquanto isso, a sua conseigncia Plarxista afastou-o dessas tentagdes, mostrow-lhe que todo esse Mundo luminoso é decadente, oco, viciado, espiritualmente vacio, opressivo em relacdo ao proletariado, condenado pela historia. Tecs Fepetidas consideragses ideoldgicas para nao ceder & tentagao pari siense — e para evitar que os seus leitores caiam em tentagao —-, mas nfo resiste a Jancar um thimo olhar & avenida ou as arcadas; quer ser salvo, mas ndo tem pressa. Essas contradigdes internas, fepresentadas pagina apds pagina, dio & obra de Benjamin uma luminosa energia e um encanto irresistivel. Ernst Lubitsch, cend- irafo e realizador de Ninotchka, tem o mesmo background jdaico, burgués ¢ berlinense de Benjamin ¢ também simpatizou com a esquerda; decerto teria apreciado 0 encanto e 0 drama da obra, ‘mas ter-lhe-ia, sem divida, dado um final mais feliz que o de Ben, Jamin. © meu trabalho nesse sentido é menos tocante como drama, mas talvez mais coerente como histéria. Onde Benjamin oscila entre & total imerso do Eu moderno (0 de Baudelaire, o seu proprio) a cidade moderna ¢ 0 total alheamento em rela¢do a ela, t saptar de novo as correntes mais constantes do fluxo metab € dialéctico, Nas duas secedes que se seguem, pretendo ler, com pormenor € cin profundidade, dois dos iltimos poemas em prosa de Baude- laire: «Os Olhos Pobres» (1864) e «A Perda do Halo» (1865) 9, Yeremos de imediato, através desses poemas, por que Baudelaire € universalmente aclamado como um dos grandes escritores urba. nos. Em Spleen de Paris, a cidade desempenha um papel decisive ho seu drama espiritual. Af, Baudelaire inscreve-se na grande tra. igo de escritores parisienses, que remonta a Villon, passa por Montesquieu e Diderot, Restif de la Bretonne ¢ Sebastien Mercier © chega ao século xix, com Balzac, Victor Hugo ¢ Eugene Sue. Porém, ao mesmo tempo, Baudelaire representa uma ruphura radical com essa tradicdo. Os seus melhores escritos parisienses perten- cem exactamente ao perfodo em que, sob a autoridade de Napo- ledo III e a direcrao de Haussmann, a cidade estava a ser remode- lada e reconstruida de uma forma sistemAtica. Enquanto trabalhava em Paris, a tarefa de modernizagao da cidade seguiu o seu curso, 4 seu lado, sobre a sua cabega c debaixo dos seus pés, Ele viu-se ‘© s6 como um espectador, mas como participante e protago- nista dessa tarefa em curso; os seus escritos parisienses expressam Paris Spl ‘Ros poems seg (tad. Louise Varése (New Directions, 1947, 1970). Porém, aS tradusBes 880° mi 161 162 © drama eo trauma dessa tarefa. Baudelaire mostra-nos algo que nenhum escritor pdde ver com tanta elareza: como a moderniza. so da cidade simultaneamente inspira e forca a modernizacao da alma dos seus cidadaos. E importante assinalar a forma como os poemas em prosa de Spleen de Paris apareceram pela primera vez: os folhetins que Baudelaire compds para a imprensa parisiense de grande circula- $0, didria ou semanal. O fothetim equivalia aproximadamente um Op-Ed" dos jornais de hoje. Normalmente aparecia na pri- meira pagina ou na pagina central do jornal, logo abaixo ou a0 lado do editorial, a fim de que fosse uma das primeiras coisas lidas, Em geral, era escrito por alguém de fora, num tom evocativo & reflexivo, para contrastar com a combatividade do editorial — embora o seu teor pudesse ser escolhido para reforgar (quase sem- pre de modo subliminar) os argumentos polémicos do director. No tempo de Baudelaire, o folhetim era um género urbano extrema- mente popular, oferecido por centenas de jornais europeus e norte- -americanos. Muitos dos grandes escritores do século xix usaram essa forma para se apresentar a um ptiblico de massas: Balzac, Gogol e Pos, na gerao anterior a de Baudelaire; Marx e Engels, Dickens, Whitman ¢ Dostoievski, na sua geracdo. E fundamental lembrar que 0s poemas de Spleen de Paris nio se apreseniam como versos, uma forma de arte estabelecida, mas como prosa, no for- mato de noticias”, No prefiicio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que la vie moderne exige uma nova linguagem: «uma prosa poética, musi- cal mus sem ritmo e sem rima, suficientemente flexivel ¢ suficien temente rude para se adaptar aos impulsos liricos da alma, as modu- lagdes do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciéncia lsoubressauts de conscience}», Sublinha que «esse ideal obsessive asceul, acima de tudo, da observagao das cidades enormes ¢ do cruzamento das suas intimeras ligagSes [du croisement de leurs innombrables rapports)». O que Baudelaire transmite através dessa Unguagem é, antes de mais, aquilo a que chamarei cenas moder nas primordiais: experigncias que derivam da vida quotidiana con. ereta da Paris de Bonaparte e de Haussmann, mas tm uma resso. * Op-Ed: Opticat Editor ‘que oeupa na pigina, (N. suMto @ que & dado destaque pela posigdo T) » € das suas relagdes com a grande lite de Benjamin, e Dostolevski anal Romantic Realism Press, 1965), de Donald Fanger. hancia ¢ uma profundidade miticas que as impelem para além do seu tempo e lugar, transformando-zs em arquétipos da vida moderna. 3. A Familia de Othos A nossa primeira cena primordial surge em «Os Olhos dos Pobres» (Spleen de Paris, n° 26). Esse poema assuite a forma de Gueixa do apaixonado: o narracior explica a mulher que ama por que se sente distante ¢ desiludido em relacao a ela. Lembra-lhe uma experigncia que ambos ha pouco partilharam. Na tarde de uum dia Jongo e bonito que passaram juntos, sentaram-se no ter- ago «em frente de um café novo, na esquina de uma nova ave- nida». A avenida estava «ainda cheia de entulho», mas o café «ja exibia orgulhosamente os seus infinitos esplendores», O mais alto desses esplendores era um facho de luz nova: «O café estava des- lumbrante. Até 0 gés queimava com o ardor de uma iniciag com toda a sua energia, iluminava a ofuscante brancura das pare- des, a vastidio dos espelhos, as cornijas e as molduras douradas». Era menos deslumbrante o interior decorado, iluminado pela luz 4o gas: uma ridicula profusdo de Hebes e Ganimedes, cdes de caca ¢ faledes; «ninfas e deusas transportando montes de frutas, patés € caga sobre us suas cabecas», uma mistura de «toda a histdri ¢ toda a mitologia, incitando 2 gulan. Noutras circunstancias, 0 Rarrador recuaria perante essa vulgaridade comercializada; porém, apaixonado, sorri afectuosamente ¢ desfruta do seu apelo vulgar Al nossa era chamaria a isso Acomodacao Enquanto se mantém sentados e felizes, olhos nos olhos, os amantes so surpreendidos pelos olhares de outras pessoas. Uma ‘familia de pobres, envergando andrajos — um pai de barba grisa- Jha, um filho jovem ¢ um bebé — para exactamente na sua frente ¢ observa, embevecida, o brithante mundo novo, lé dentro. «As {és faces eram extraordinariamente séras, e aqueles seis olhos con- templavam fixamente 0 novo café com a mesma admirasao, que diferia apenas em fungio da idade». Nenhuma palavra € profe- fida, mas 0 narrador tenta ler nos seus olhos. Os olnos do pai Parecem dizer: «Como isso € belo! Parece que todo 0 ouro do mundo se foi aninhar nessas paredes». Os olhos do filho parecem dizer: «Como isso € belo! Mas € um lugar que sé pode ser fre quentado por pessoas que no so como nds». Os olhos do bebé «cestavam demasiado fascinados para expressar qualquer coisa além de alegria, uma alegria estiipida e intensan. O fascinio dos pobres ~ 163 164 do tem qualquer hostilidade; a sua viséo do abismo entre os dois tundos é sofrida, nao militante; nao ressentida, mas sim resig. nada. Apesar disso, ou por causa disso, 0 narrador comega a sentir -se incomodado, «um pouco envergonhado dos nossos corpos € garrafas, grandes de mais para a nossa seden. Sente-se «tocado Bor essa familia de olhos» e sente alguma afinidade com eles Porém, no momento seguinte, quando «voltei o olhar para os § ca, para ler neles os meus pensamentos» (0 subli- nhado é de Baudelaire), ela diz: «Essas pessoas de olhos esbuga- Ihados séo insuportaveis! Nao poderia pedir ao gerente que as man- dasse embora? Eis por que, diz ele, hoje a odeia. EB acrescenta que, além de © ter entristecido, o incidente o encolerizou: vé agora «como ¢ dificil as pessoas compreenderem-se umas ds outras, como o pensamento € incomunicdvel» — assim termina 0 poema — «mesmo entre pes- soas que se amam». © que torna esse encontro particularmente moderno? O que © distingue de muitas outras cenas parisienses anteriores, que tam- bém fala de amor e Iuta de classes? A diferenca esté no espago urbano onde @ nossa cena se passa: «No fim da tarde tu quiseste sentar-te em frente do novo café, na esquina da nova avenida, ainda cheia de entulho, mas que ja exibia os seus inacabados esplendo- res». A diferenga, numa palavra, € 0 boulevard: a nova avenida parisiense foi a mais espectacular inovagao urbana do século xix, © ponte de partida decisivo para a modernizagao da cidade tradi. ional, No fim dos anos 1850 ¢ ao longo de toda a década seguinte, enquanto Baudelaire trabalhava em Spleen de Paris, Georges Eugine Haussmann, prefeito de Paris ¢ arredores, investido no cargo pot um mandato imperial de Napoleao II, estava a abrir uma vasta rede de alamedas no corago da velha cidade medieval". Napoledo nann formou-se a partir de dive Architecture, de Siegfied Giedion (1941: 5 ed, Harvar mann», de Robert Moses, Architectural Forum (Sul. 1942), by 37-661 Wi and the Rebuilding of Paris (1958; Princeton, 1972); A Ellstory of Modern Architecture, 6e Leonardo Benevolo (1960, 1966, trad, H. J. Landry, 2 v., MET. 1971), 1s p. 61-95; The Modern City: Planning in the Nineteenth century, de Fran. solse Choay (George Brazier, 1963), especialmente p. 15.26: Haussmann: Paris Transformed, de Howard Seaman (Bravlier, 1971); ¢ Laboring Classes and Don {erous Classes: Parts in the First Half of the Nineteenth Century, de Lous val cl. Frank Jellinek (Howard Fertig, 1973). Os projectos de Hi ‘mans sao habilmente inseridos no contexto das mudangas polico-socals europcies ¢ Haussmann conceberam as novas vias como artérias de um sis- tema circulatorio urbano. ‘Tais imagens, que hoje séo um lugar =gomum, eram altamente revoluciondrias para vida urbana do século xix. As novas avenidas permitiram que o tréfego fluisse elo centro da cidade e avancasse em linha recta, de um extremo 2 outro — um empreendimento quixotesco e virtualmente inima. sindvel, até entéo. Além disso, eliminariam as habitagdes miserd yeis e abririam «espacos livres» no meio de camadas de escuridao © apértado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expan. Silo do comércio local, a todos os niveis, ajudando, assim, a cus. tear as imensas demolig&es municipais, as indemnizagées e as novas construsdes. Pacificariam as massas, empregando dezenas de milha- res de trabalhadores —, as vezes, um quarto da mao-de-obra dis. Ponivel na cidade — em obras piiblicas a longo prazo, as quais, or sua vez, gerariam milhares de novos empregos no sector pri. vado. Por ultimo, criariam longos e largos corredores através dos uals as tropas de artilharia se poderiam movimentar eficazmente contra futuras barricadas e insurreigées populares. As avenidas representam apenas uma parte do amplo sistema ce planeamento urbano, que incluia mercados centrais, pontes, esg0- tos, fornecimento de agua, a Opera e outros monumentos cultu- ais, uma grande rede de parques. «Diga-se, em abono do barao Haussmann» — escreveu Robert Moses, 0 seu mais ilustre e famoso sucessor, em 1942 —, aque compreendeu o problema da moderni- zacao urbana em grande escala.» O emprecndimento deitou abaixo centenas de edificios, deslocout milhiares ¢ milhares de pessoas, des- truiu bairros inteiros que ai tinham existido durante séculos,, Mas abriu toda a cidade, pela primeira vez na histéria, totalidade dos seus habitantes. Por fim, apés séculos de vida num conglome- ‘ado de células isoladas, Paris tornava-se um espago fisico e humano unificado* longo prazo, por Anthony Vidler, em «The Scenes of the Street: Transfo tnd Reality, 1750-1871», in On Streets, org. Stanfore Hausmann contratou um fotdgrafa, Charles M ddozenas de lugares condenados & demol te/Alliance Frangaise, coatém um imo ensaio de Maria Mortis Hamburg. Rm Laboring Classes and Dangerous Classes, citada na nota 21, L lante relato dos esra- nas décadas anteriores 165 166 As avenidas de Napoleéo e Haussmann criaram novas bases scondmicas, sociais, estéticas — para reunir um enorme contin. geate de pessoas. Ao nivel da rua, estavam orladas de pequenas 10,28 de todos 0s tipos e, em cada esquina, restaurantes com terra- gos © cafés nas calcadas. Esses cafés, como aquele onde os aman- tes baudelaireanos e a familia andrajosa se defrontaram, passa. ram logo a ser vistos, em todo 0 mundo, como simbolos de la wie parisienne. Os passeios de Haussmann, como as proprias ave. nidas, eram extravagantemente amplos, juncados de bancos e luxu- riosamente arborizados ®. Foram instaladas ilhas para pedes a fim de tornar mais ficil a travessia, separar 0 tréfego local do tréfego de passagem e abrir vias alternativas para as caminhadas. Foram concebidas grandes majestosas perspectivas, com monumentos erigidos no extremo das avenidas, de modo que cada passeio con- Guzisse a um climax dramético. Todas essas caracteristicas ajuda- ram a transformar Paris num especticulo particularmente sedui- tor, uma festa para os olhos e para os sentidos, Cinco geragdes de pintores, escritores e fotdgrafos modernos (e, um pouco mais tarde, de cineastas), a comegar pelos impressionistas em 1860, nuttir- -se-lam da vida ¢ da energia que escoavam ao longo das avenidas, Por volta de 1880, os padres de Haussmann foram universalmente {0 projecto Haussmenn: explosio demogratica, que duplicou a populaga nauunto a construeio de mansdes de luxo eedifiios publicos eeducia de mancite dr Sstica & habitagao disponivel; Constante desemprego em massa, facto que, numa e& anterior ao auxilio governamental, conduzia directamente a motte por desnun ‘Wigdos teriveis epidemias de tifo e edleca, tier. Tudo isso mostra por que 05 pa ‘mente em tantas frentes no século x! os seus velhos bairros: podem ue lutaram Ho corajosa- ressténcia 2 destruigao bem ter desejado partir, como diz Baude- re outco contexto, para qualquer lugar longe do seu mundo, © breve ¢ pouco conhievido ensalo de Robert Moses, umbémn cltado 4 uma delcia para aqueles que saboreiam as ironi a de apresentar uma visio lieida e equilibra ‘mann. Moses autodesigna-se seu sucessor e, de forma impliita, si ainda mais autoridade do que a que fora concedida a Haussmann, para levar vance projectos ainda mais gigantescos, apés a guerra, O esetto termina com uma critica admiravelmente incsiva e contondente que prefigura, com uma espan ‘ova precisio ¢ fina acuidade, as criticas que serdo feitas ao préprio Moses na cad seguintc, © que por fim ajudardo a afastar da cena pilblica 0 maior disci pulo de Haussmann. % Os engenheiros de Haussmann inventaram uma méquina de Tevantar frvores que Ihes permitisse tansplantar, sem danos, Arvores consequentemente, possbiltou a ciasio de avenidas arborisads © outro, Giedion, Space, Time and Architecture, p. 151-9, aclamados como 0 verdadeiro modelo no urbanismo moderno. ‘Como tal, passou logo a ser reproduzido em cidades de creseim ‘emergente, em todas as partes do mundo, de Santiago a Saigi. © que fizeram as avenidas as pessoas que vieram a enché-las? Baudelaire mostra-nos alguns dos seus efeitos mais notaveis. Para 9s amantes, como os de «Os Olhos dos Pobres», as av ram uma nova cena primordial: um espaco ptivado, em ptiblico, onde podiam ter intimidade, sem estar fisicamente s6s, Ao pas. sear ao longo da avenida, imersos no seu imenso ¢ intermingvel fuko, podiam sentir o seu amor mais intenso do que nunca, como ponto de referéncia de um mundo em transformacao. Poderiam exibir o seu amor diante do intermindvel desfile de estranhos pela avenida — de facto, passada uma geracdo, Paris tornar-se-ia mun- dialmente famosa por essa espécie de exibicionismo amoroso —, retirando deles diferentes formas de alegria. Podiam tecer véus de fantasia a propésito da multidao de transeuntes: quem eram essas Pessoas, donde vinham ¢ para onde iam, o que queriam, o que amavam? Quanto mais observavam os outros e se deixavam obscr- var — quanto mais participavam da «familia de olhos» extensa € em constante crescimento —, mais rica se tornava a sua viseo de si préprios. Ness ambiente, as realidades urbanas podiam facilmente tornar-se magicas ¢ sonhadoras. A luzes ofuscantes da rua e do gafé apenas intensificavam a alegria: nas geragdes seguintes, advento da electricidade e do néon sé Faria aumentar essa intensi- dade. Até as mais extremas vulgaridades, como aquelas Café, com frutas ¢ parés na cabega se tornavam adordveis no seu romantico esplendor. Quem quer que ja tenha estado apaixonado numa grande cidade conhece bem a sensagao, celebrada em cente. ras de cangdes sentimentais. De facto, essa alegria privada brota directamente da modernizagtio do espago puiblico urbano. Baude- aire mostra-nos um ivado e piiblico, no instante exacto em que ele surge. Desse momento em diante a avenida serd to importante como a alcova na consecugao do amor moderno. Contudo, para Baudelaire, tal como mais tarde para Freud, as cenas primordiais no podem ser idilicas. Podem conter mate. slal idilico, mas no climax da cena interpde-se uma realidade repri- ida, tem lugar uma revelagio ou descoberta: «uma nova ave- nida, ainda cheia de entulho (..,) exibia os seus inacabados esplendores». Ao lado do brilho, o entulho: as ruinas de uma diizia de velhos bairros — os mais escuros, mais densos, mais deteriora- dos ¢ mais assustadores bairros da cidade, lar de dezenas de milhares de parisienses — amontoavam-se no chao. Para onde iria toda essa I 67 los gente? Os responsaveis pela demolicao e reconstrucio nao se preo- ‘pavam especialmente com isso. Estavam a abrir novas e amplas de desenvolvimento nas partes norte ¢ leste da cidade; entre ferto, Os pobres la se arranjariam come pudessem, como, alis, scmpre haviam feito. A familia andrajosa, do poema de Baude. sai de trés do entulho, para e coloca-se no centro da cena © problema nao € serem famintos ou necessitados. O problema std simplesmente em que se recusardo a ir embora, Tambémn que- rem um lugar na luz. Esta cena primordial revela algumas das mais profundas iro- nis ¢ contradicées da vida na cidade moderna. O empreendimento aue torna toda essa humanidade urbana uma grande ¢ extensa 0 trdfego de rue nio foi fenglo surgida nos Estados Unidos ilhoso das prineiras tentativasestatais de rep por volta de 1905, mar Jar racionalizar 0 caos do ca ‘de aprender nfo apenas a scompanhé-lo, mas a estar sempre um asso adiante. Precisa de ser um perito em matéria de soubres, ‘sauts © mouvements brusques, em saltos e guinadas sibitas, abruptas ¥ irregulares — e no s6 com as pernas e o corpo, mas também com a mente c a sensibilidade. Baudelaire mostra que a vida na cidade moderna obriga todos a realizar esses novos movimentos; mas mostra também que, ao fazé-lo, a cidade moderna cria novas formas de liberdade. Um /homem que se saiba movimentar no, ¢ através do tréfego pode / it a toda a parte, ao longo de qualquer dos infinitos corredores / urbanos para onde o préprio tréfego pode ir. Essa mobilidade abre lum enorme leque de experincias e actividades para as massas urbanas. Os moralistas ¢ pessoas cultas condenardo esas caminhadas urbanas como baixas, vulgares, sérdidas, carentes de valor social ou espiritual. Mas, quando deixa cair 0 halo e continua a andar, © poeta de Baudelaire faz uma grande descoberta. Descobre, para Seu espanto, que a aura de pureza e santidade artistica 6 apenas acidental ¢ nao essencial & arte e que a poesia pode florescer per feltamente, talvez melhor ainda, no outro lado da avenida, naque- les lugares interiores, «apoéticos», como o mauvais lieu onde esse ‘mesmo poema nasceu. Um dos paradoxos da modernidade, como Baudelaire a vé, € que os seus poetas se tornarao tanto mais pro. funda e autenticamente poéticos quanto mais se tornarem homens comuns. Se se langar no caos da vida quotidiana do mundo moderno — uma vida de que 0 novo tréfego € 0 simbolo primordial —. © Poeta pode apropriar-se dessa vida para a arte. Nesse mundo, © «mau poeta» é aquele que espera conservar intacta a sua pureza, mantendo-se longe das ruas, a salvo dos riscos do trdfego. Baude. laire deseja obras de arte que brotem do meio do tréfego, da sua energia andrquica, do incessante perigo e terror de estar ali, do precario orgulho e satisfagdo do homem que conseguiu sobreviver a tudo isso. Assim, «A Perda do Halo» acaba por set uma decla- Tago de algo que se ganhou, de re-orientaedo dos poderes do poeia Para uma nova espécie de arte. Os seus mouvements brusques, os Fepentinos saltos ¢ guinadas, cruciais para a sobrevivéncia quoti. diana nas ruas da cidade, acabam por ser igualmente fontes de oder criativo. No século seguinte, esses movimentos tornat-se-20 Restos paradigmaticos da arte e do pensamento modernistas” com 0 aparecimento (ou melhor, 2 designagio) dores do Brooklin, equipa de bascbol), As ironias proliferam nessa cena moderna primordial. Revelam- se nas nuances da linguagem de Baudelaire. Considere-se uma frase como la fange de macadam, «o lodagal de macadamen. La fange, em francés, € no s6 a palavra literal para lodo, lama, mas tam. bém a palavra figurada para desgraca, porcaria, vileza, corrup- $80, degradacao, tudo quanto é abomnindvel e repugnante, Numa etérica, oratoria e poética classicas, trata-se de uma forma wele- vata» de descrever algo «baixon, Como tal, envolve toda uma hie. Farquia cosmica, uma estrutura de normas e valores ndo apenas estéticos mas metafisicos, éticos, politicos. La fange pode repre. sentar 0 nadir de um universo moral cujo zénite é simbolizado pelo ‘halon. A ironia esta em que, enquanto cair na fange, o halo do posta no estd perdido por inteiro, pois, desde que a imagem man. tenha alguma forca e sentido — 0 que é nitidamente o caso, no poema de Baudelaire —, o velho cosmos hierirquico estara de alguma forma presente no mundo moderno. Todavia, esté pre. sente de um modo precario. O sentido do macadame é radical mente destrutivo, quer para o fodacal, quer para o halo: ele pavi- menta por igual o elevado e o baixo. Podemos analisar ainda mais a fundo o macadame: veremos que, de inicio, a palavra nao é francesa. De facto, a palavra deriva de John McAdam, de Glasgow, o inventor setecentista da moderna superficie de pavimentagao. Talvez seja a primeira palavra dessa lingua a que os franceses do século xx satiricamente chamarao Franglais: prepara o caminho para le parking, le shopping, le wee- Kend, le drugstore, le mobile-home, e muitas outras. Essa lingua. gem € assim vital ¢ atraente porque ¢ a linguagem internacional sla modernizasao, Os seus neologismos so poderosos veiculos de novas formas de vida e movimento. Tais palavras podem parecer issonantes ¢ excéntricas, contudo € to fitil resistir-Ihes como resis Ur ao proprio impulso da modernizagdo. E verdade que muitas hhagoes e classes dominantes se sentem — e com razio — ameaca. ‘las pela invasdo de novas palavras, e objectos, de outras terras* popular produzira a sua préy dduz 0 meio pelo qual os, versto irénica dessa f€ modernista. O nome tra- 8 necessérios & sobrevivéncia urbana — como aconteceu a sores do século xx (&. E, Cummings, Ma + No séeulo x0x, © prineipal tra lo xx ia i (Bxiste uma palavra soviética espléndida e parandica, que expressa esse medo: infiltrazya.) Porém, & preciso notar que aquilo que as hagdes em geral tém feito, desde os tempos de Baudelaire até hoje, 6, aps uma breve onda, ou demonstragao, de resisténcia, nao ape- nas aceitar 0 novo objecto, mas criar uma palavra propria para © designar, na esperanca de apagar a recordagio embaragosa do seu subdesenvolvimento. (Depois de, nos anos 60, se ter recusado a admitir fe parking meter na lingua francesa, a Academia Fran- cesa cunhou e apressou-se a divulgar le parcmettre, na década seguinte). Baudelaire sabia escrever no mais puro ¢ elegante francés clis- sico. Porém, aqui, em «A Perda do Halo», langa-se na nova lin ‘guagem emergente, para criar arte a partir das dissonancias e incon- gruéncias que dominam — ¢ paradoxalmente unem — todo o mundo moderno. «Em vez do antigo isolamento e auto-suficiéncia nacionais», diz 0 Manifesto, a sociedade burguesa moderna traz~ -nos «um intercmbio geral, a interdependéncia universal das nagdes. Nao apenas na producao material, mas também na inte- lectual. As criagdes das nagdes tornar-se-Jo» — repare-se nessa imagem, paradoxal no mundo burgués — um «bem comump, Marx prossegue: «A parcialidade e a estreiteza de vistas nacionais tornar: -se-o cada vez mais impossiveis, e das numerosas literaturas locais, e nacionais brotard uma literatura mundial». O lodagal de maca- dame acabara por ser um dos funcamentos a partir dos quais bro- tard a nova literatura mundial do século xx%6 ‘Mas ainda hd outras ironia nessa cena primordial. O halo que cai no lodacal de macadame é ameacado, mas ndo destruido; pelo cOiitrério, é arrastado ¢ incorporado no fluxo geral do tréfego. Um dos mais eficazes expedientes da economia de troca, explica Marx, é a interminavel metamorfose dos seus valores de mercado. Nessa economia, tudo o que der dinheiro sobreviverd, e nenhuma possibilidade humana poderd ser riscada, definitivamente, dos livros: cultura torna-se um enorme. entreposto comercial onde tudo é mantido em stock, na esperanga de que algum dia, em algum lugar, encontre comprador. Assim, 0 halo que 0 poeta moderno deixa cair (ow atira fora) como obsoleto talvez se metamorfoseie, em iteratura moderna, v. eT. S. rary Modernism, de Edmund Wi % Sobre a universalidade da linguagem ¢ ¢ Eliot a International Hero», de Delmore Schwar Howe. p. 277-85, Esse & também um dos temas ‘Axel’s Casile © The Finland Station 171 178 virtude da sua prépria obsolescéncia, num {cone, num objecto de veneracdo nostélgica por parte daqueles que, como os «maus poe. tas» Xe Z, estejam a tentar fugir da modernidade. Todavia o artista — ou 0 pensador, ou o politico — anti-moderno encontra-se nas mesmas ruas, no mesmo lodacal, que o artista moderno, Esse ambiente moderno serve de tnico meio de comunicag&o ao mesmo fempo fisica ¢ espiritual — fonte primaria de matéria e energia — para ambos A diferenga entre 0 modernista ¢ o antimodernista, naquilo que importa aqui, € que o modernista ge sente bem nesse cendrio enquanto o antimodernista percorre as ruas & procura de uma saida, No que diz respeito ao trafego, porém, ndo ha nenhuma diferenca entre eles: ambos sao obstdculos e riscos para os eavalos e veiculos Cujos caminhos atravessam ¢ cujo livre movimento impedem. Tam- bém, por mais fortemente que o antimodernista se possa agarrar A sua aura de pureza espiritual, esta condenado a perdé Provavelmente cedo do que tarde, pelas mesmas razdes que leva: tam 0 modernista a perdé-la: seré forgado a desistir do equilibrio, da medida ¢ da compostura ea aprender a graca dos movimentos bruscos, para sobreviver. Mais uma vez, no importa quao opos- tos 0 modernista ¢ 0 antimodernista julguem ser: no lodagal de macadame ¢ segundo o ponto de vista do trdfego intermindvel si0 um s6. Asironias geram mais ironias. O poeta de Baudelaire langa-se ‘hum confront com 0 «caos» do tréfego e esforca-se nao apenas Por sobreviver, mas por afirmar a sua prépria dignidade. Con. tudo, essa maneira de agir parece conduzir & derrota, pois acres- centa outra varidvel imprevisivel a uma totalidade ja instével, Os cavalos ¢ os cavaleiros, os veiculos ¢ os seus condutores tentam, 0 mesmo tempo, ultrapassar-se uns aos outros c evitar 0 choque Se, além disso, forem ainda obrigado’ a esquivar-se dos pedes que, @ qualquer momento, se podem precipitar na rua, os seus mi Mentos tornar-se-4o ainda mais incertos e, com isso, mais perigo- 08 do que antes. Logo, ao lutar contra o caos, o individuo limita- “se @ agravar esse mesmo caos. ‘Mas esta mesma formulacdo sugere um caminho que talved conduza para além da ironia baudelaireana e para fora do préprio caos. O que aconteceria se as multidées de homens ¢ mulheres, aterrorizados pelo tréfego moderno, aprendessem a enfrenté-lo wn das? Isso acontecerd exactamente seis anos apés «A Perda de Halo» (¢ trés anos apés a morte de Baudelaire), nos dias da Comuna em Paris, em 1871, ¢ novamente em Petersburgo, em 1905 ¢ em 1917, em Berlim, em 1918, em Barcelona, em 1936, em Budapeste, ent 1956, outra vez em Paris, em 1968, © em dezenas de cidades do mundo inteiro, do tempo de Baudelaire até hoje:.a avenida sera transformada de maneira abrupta em paleo de uma nova cena ~etiodema primordial. Esta nao seré a espécie de cena que Napo- Iefo ¢ Haussmann gostariam de ver, ¢, no entanto, sera uma das conas que a sua forma de urbanismo ajudou a A medida que relemos as velhias historias, memérias ¢ nove- las, contemplamos velhas fotografias ou noticidrios de cinema, ou avivamos as nossas préprias recordacdes fugazes de 1968, vemos classes e massas inteiras a ir para a rua, unidas. B possivel distin- guir duas fases nas suas actividades. Primeiro, as pessoas param € viram os veiculos, deixando os cavalos em liberdade: aqui, vi -se do trdfego, decompondo-o nos seu inertes elementos originais. seguida, juntam os destrogos resultantes, erguendo as barrica- tecombinam os elementos isolados, inanimados, et novas e vitais formas artisticas e politicas. Durante um momento iuminoso, as multiddes de solitarios, que fazem da cidade moderna o que cla é, reunem-se numa nova forma de encontro, e tornam-se povo. ‘As Tuas pertencem ao povo»: assumem o controlo da matéria elementar da cidade e tornam-na sua. Por um breve momento, © cadtico modernismo de bruscos movimentos solitérios cede o lugar a um ordenado modernismo de movimento de massas. O «heroismo da vida moderna, que Baudelaire ansiou ver, nasceré da cena pri- mordial na rua, Baudelaire no espera que esta nova vida, ou qual- quer outra, perdure. Mas renascera e continuart a renascer das contradigdes internas da rua. Essa possibilidade é um clardo vital de esperanga para o espirito do homem no lodagal de macadame, no caos, em fuga. 5. O Séeulo xx: O Halo e a Auto-estrada Por varios motivos, o modernismo das cenas modernas pri- mordiais de Baudelaire ¢ extraordinariamente fresco e contempo- Fneo. Por outros, a sua rua e 0 seu espitito parecem exoticamente arcaicos. Nao porque 0 nosso tempo tenha resolvido os conflitos que conferem vida e energia a Spleen de Paris — conflitos ideols- gicos ¢ de classe, conflitos emocionais entre pessoas {ntimas, con- flitos entre o individuo e as foras sociais, conflitos espirituais dentro do individuo —, mas, antes, porque o nosso tempo encontrou novos meios de mascarar e mistificar conflitos. Uma das grandes dife- Fengas entre os séculos 20x © xx € que 0 nosso criou toda uma 179 180 delaire © Marx’ se desfez. Em nenhuma parte esse desenvolvimento & mais claro do que no émbito do espago urbano. Se tivermos presentes os mais recen- tes complexos espaciais urbanos que pudermos imaginar — todos aqueles que foram criados, digamos, desde o fim da II Grande Guerra, incluindo 0s novos'bairros urbanos ¢ as novas cidades —, I admitir que os encontros primordiais de Baudelai possam ocorrer. Isso néio acontece por acaso: de facto, ao longo de quase todo 0 século, os espagos urbanos tém sido sistematica- mente concebidos e organizados de modo a assegurar que 0s con- frontos ¢ colisdes sejam evitados. O trago mais marcante do urba- nismo oitocentista foi a avenida, ima maneira de réuiir Toreas ifiateriais e humanas explosivas; a principal caracteristica do urba- nismo do século xx tem sido a auto-estrada, uma forma de man- ter separadas essas mesmas forcas. Depara-se-nos aqui uma estra- nha dialéctica, em que um tipo de modernismo ao mesmo tempo encontra energia e se esgota a si mesmo, ao tentar aniquilar o outro, tudo em nome do modernismo. (© que torna a arquitectura modernista do stoulo xx especial- ‘mente intrigante para nds é precisamente 0 ponto baudelaireano de que parte — um ponto que se empenha logo em apagar. Veja- mos Le Corbusier, talvez o maior arquitecto do século xx, com influente, em L’Urbanisme (traduzido para inglés com o sugestivo titulo de The City of Tomorrow, «A Cidade de ‘Amanha»), o seu grande manifesto modernista de 1924. O prefé- cio evoca uma experiéncia conereta a partir da qual, segundo diz, a sua visio se despertou", Nao o deverfamos tomar a letra, mas, antes, compreender a sua narrativa como uma parabola moder- nista, formalmente semelhante a de Baudelaire. A hist6ria comega numa avenida — concretamente os Champs Elysées —, num fim de tarde do Verao de S. Martinho de 1924. Fora dar um passcio a0 par-do-sol, viu-se expulso da rua pelo tréfego. Isso acontece meio século apés Baudelaire, ¢ 0 automével tinha feito a sua apa rico, em forga, nas avenidas: «foi como se o mundo tivesse subi tamente enlouquecidom, A cada momento, sentiu Le Corbusier, «a Tiiria do tréfego crescia, Cada dia a sua agitagao aumentava> (Aqui 0 quadro temporal ¢ a intensidade dramatica sfo de certo The City of Tomorrow, . 3-4. por vezes, ulizl tradugdes risme (10 ed., G. Grés, 1941) 1929; MIT, 1971), testo francés de L’Urba modo quebrados). Le Corbusier sentiu-se directamente ameagado ce vulnerdvel: «Sair de casa significava que, uma vez cruzada a soleira da porta, corriamos 0 perigo de ser mortos pelos carros que passa~ vam». Chocado e desorientado, ele compara a rua (¢ a cidade) de entao com a da sua juventude, antes da Grande Guerra: «Recuo vinte anos, até a minha juventude de estudante: entdo a estrada pertencia-nos; cantavamos, discutfamos, enquanto os cavalos e vel- Culos passavam suavemente». (O sublinhado é meu). Expressa um Jamento triste ¢ amargo tao velho como a prépria cultura, ¢ um dos temas eternos da poesia: Oi sont les neiges d’antan? (Onde esta as neves de outrora?). Porém, @ sua percepgao das texturas do espago urbano e do tempo histérico torna a sua nostalgica visdo fresca e nova. «Entdo a estrada pertencia-nos.» A relacao dos jovens estudantes com a rua representava a sua relagdo com o mundo: ‘o mundo estava — ou parecia estar — aberto a cles, era deles, para que ai se deslocassem 4 vontade, num ritmo que podia aco- Iher tanto as discusses como a cancdo; homens, animais ¢ vefcu- ios coexistiam pacificamente numa espécie de Eden urbano; as enor- files perspectivas de Haussmann dispersaram tudo isso, na direce40 do Arco do Triunfo. Agora o idilio terminou, as ruas pertencem 40 irdfezo e a visio precisa de desaparecer para salvar a vida "Como pode o espirito sobreviver a esse tipo de mudanga? Bau- delaire mostrou um caminho: transformar 08 mouvements brus- ques e 08 soubresauts da vida na cidade moderna nos gestos para- digméticos de uma nova arte capaz de reunir os homens modernos. No extremo limite da imaginagdo de Baudelaire, divisamos outro modernismo potencial: 0 protesto revolucionario que transforma a multidao de solitérios urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para vida humana. Le Corbusier apresentara uma terceira ‘eétratégia que conduziré a outro tipo de modernismo extremamente poderoso. Depois de abrir caminho através do tréfego, mal tendo conseguido sobreviver, dé um salto stibito ¢ ousado: identifica-se por inteiro com as forgas que o estavam a pre nar: Naquele 1° de Outubro de 1924, Irenaissance] de uso novo fendmeno ( ripidos, répidos! Sentimo-nos dominado: frit (.), a alegria do poder. O simples © {rarmos no meio do poder, da forya. Part dessa suciedade, que esté apenas a despertar. Confiamos dade: encontrar uma magnifica expresso do seu poder. Acre 182 Esse salto de £6 orwelliano é tao rapido e desconcertante (como © tafego) que Le Corbusier mal se dé conta de 0 ter dade. Nom momento, € 0 ioi86 conhecido homem na rua, baudelaireano. a fugir e lutar contra 0 tréfego; ‘no momento seguinte, o seu Ponto, de vista mudou de uma maneira to radical que agora vive, anda ¢ fala de dentro do trafego. Num momento, fala de sf proprio, da sua propria vida e experidncia — «Recto vinte anos (..): Entaor & estrada pertencia-nos»; no momento seguinte, a voz pessoal dea, parece, dissolvida na vaga do processo histdrieo mundial: o novo sujeito € o pronome impessoal francés on, insuflado de vida pelo ovo poder mundial. Agora, em ver de se sentir ameavado, sente -se imerso, erente, participante, Em vez dos mouvements bruscuice e soubresauts, que Baudelaire viu como a esséncia da vida troderne quotidiana, 0 homem moderno de Le Corbusier faré um movi- ‘mento giganteseo, que tomnara desnecessétios os movimentos seguim. tes, dard um grande salto que serd o ultimo. O homem na rua incorporar-se- no novo poder, tornando-se © homent no carro, A perspectiva do novo homem no carro geraré os paradigines do planeamento e design urbanos do século xx, O novo homem, iz Le Corbusier, precisa de «outro tipo de rua», que sera «uma méquina para o tréfegon, ou, para variar a metafora basica, eame fbrica para produzirtréfego». Uma rua verdadeiramente moderna precisa de ser «to bem equipada como uma fabrica»?*, Nessa rua, como na fabrica moderna, o modelo mais bem equipado ¢ o mais altamente automatizado: nada de pessoas, excepto as que conde, zem as méquinas; nada de pedes desprotegidos e desmiotosizados para retardar 0 fluxo, «Os eafés e locais de diversdo deinardo de ser Os fungos que sugam a Pavimentagao de Paris»?°. Na cidade do futuro, 0 macadame pertencera apenas ao trafego. A partir do momento magico de Le Corbusier nos Champs Elysées, nasce a visdo de um nove mundo: um mundo inteiramente integrado, com torres altissimas, circundadas de vastas extensoes de erva e espaco aberto — a torre no parque —, ligado por super, ~auto-estradas aéreas, servido por garagens ¢ shopping-centers sub- terraneos. Essa visdo tem um argumento politico muito claro, expresso nas palavras finais de Towards @ New Architecture: «Arquitectura ou Revolugdo. A Revolugao pode ser evitadan. Bbid., p. 123, 131. Towards a New Architecture (1923), trad. Frederik Etchells (1927; Prac set, 1959), p. 36.9. / GBes sociais e psi AAs implicacdes politicas nao foram inteiramente apreendidas na altura — n&o se sabe se o préprio Le Corbusier se apercedeu Por inteiro delas —, mas agora deveriamos compreend@-les. Tese, uma tese defendida pela populacdo urbana, a partir de 1789, a0 longo de todo o séeulo xix ¢ nas grandes insurreigdes revolucio. nérias do final da I Guerra: as ruas pertencem ao povo. Antitese, cis a grande contribuigdo de Le Corbusier: nada de ruas, nada de Povo. Nas ruas da cidade posterior a Haussmann, as contradi- cas fundamentais da vida moderna continuam actuantes, em permanente ameaca de erupedo. Contudo, se essas ‘uas pudcrem simplesmente ser riscadas do mapa — Le Corbusier disse-o, muito claramente, em 1929: «precisamos de matar a fualn% —, talver essas contradigées nunca venham a explodir, Assim, a arquitectura eo planeamento modernistas criaram uma yersio modernizada da pastoral: um mundo espacial ¢ socialmente Segmentado — pessoas aqui, trafego ali; trabalho aqui, moradias scold; ricos aqui, pobres ld adiante; no meio, barreiras de erva € betdo, para que os halos possam comegar a crescer outra vez sobre as cabegas das pessoas*. Essa espécie de modernismo deixou profundas marcas nas nos- sas vidas. O desenvolvimento das cidades nos ditimos quarenta anos, tanto nos paises capitalistas como nos socialistas forma sistematica, e em muitos casos conseguiu elimiinar, o «caos» da vida urbana do século xix, Nos novos ambientes urbanos de Lefrak City a Century City, do Peachtree Plaza, de Atlanta, to Renaissance Center, de Dettoit — a velha rua moderna, com # sua volatil mistura de pessoas e tréfego, lojas e residéncias, ricos ¢ pobres, foi climinada, cedendo o lugar a compartimentos sepas rados, com entradas e saidas estritamente controladas, actividades de carga ¢ descarga nos bastidores, de modo que os estacionamen- tos e garagens subterréneas representam a tinica mediagao possivel, po Citado em Marrix of Man: An Mustrated History of Urban Environ ‘ment, de Sybil Moholy-Nagy (Pracger, 1968), p. 274: * bg Corbusier nunca chegou a avangar muito nos seus infatighveis plans pera destruir Paris. Mas muitas das suas visdes mais grotescas coneretieasany oc ‘na era Pompidou, quando vias expressas elevadas dividiram a Rive Droite, os Brandes mercados de Les Halles foram demolides, dezenas de ruas prosperas foram sliminadas e bairros venerivels foram entre ‘moteursy ¢ desapareceram sem deixar vestigios. A Century of Change 1878-1978 (Yale, 1979); Jane Keane Europe: Pi The New Yorker, 19/6/1978; Richard Ce 183 184 Todos esses espagos ¢ todas as pessoas que os ocupam so bem mais organizados e esto mais protegidos do que qualquer espago ou pessoa na cidade de Baudelaire. Uma nova onda de modernizagio, baseada numa ideologia de modernismo em desen- volvimento, dispersou as forgas andrquicas e explosivas que a modernizaco urbana, outrora, havia reunido. Nova lorque é hoje um das poucas cidades americanas em que ainda poderiam ocor- ter as cenas primordiais de Baudelarie. E essas velhas cidades, ou segmentos de cidades, sofrem presses incomensuravelmente mais ameacadoras do que as apreendidas por Baudelaire, Sdo cidades econémica e politicamente condenadas como obsoletas, assed das por uma deterioragao crénica, minadas pelo nfo-investimento, desprovidas de oportunidades de crescimento, constantemente perder terreno em favor de areas consideradas mais «modernas nia do urbanismo modernista é que o seu triunfo aju- ir a verdadeira vida urbana um que dia sonhou libertar*. Em curiosa correspondéncia com esse empobrecimento da pai- sagem urbana, o século xx produziu também um desolador empo- brecimento do pensamento social. O pensamento sério sobre a vida dio pela cidade © a incansavel eperanea de que o design ¢ o planeamento modernos pudessem risc&- -la do mapa. Um dos primeiros clichés modernistas foi a comparagio entre a -metrépole © a carruagem ou (depois da I Grande Guerra) 0 eabtiole, Uma lorientagdo moderista em relacdo 4 cidade pode ser encontrada em Esparo, T Arquitectura, a obra monumental do diseipulo mais dotado de Le Corbusier, © liveo que, mais do que qualquer outro, foi usado por duas geragées como o c&none do modernismo. A edieao original do livro, feta em 1938-39, termina com a exaltagio da nova rede de auto-estradas urbanas, de Robert Moses, que Giedion v8 como o modelo ideal para o planeamento © & construe do futuro. ‘A auto-estrada demonstra que «4 ndo hd lugar para a rua urbana, com u fego intenso entre as fila de casas; néo se pode permit que persian. Essa Ideia vem directamente de L'Urbanisme; 0 que difere, e incomoda, ¢ 0 tom. © entu- jonirio de Le Corbusier foi substituido pela truculenta ¢ ame- sadora lmpaciéncia do comissérlo. «Nao se pode permit que persistan: a policia 1ndo faria melhor. © que se segue sinda é mais ameagador; a rede de auto-estradas mia, a cidade - Essa passazer, que tem o arre- ‘uma nota marginal de Mr. Kurtz, mostra como & eampanha con- por duas gerngGes 25, Foi apenas uma fase de wna guerera 1 duas antiteses estéreis, a que se pode tes, «modernolatrian ¢ udesespero cul- tural». Para os modernélatras, de Marinetti, Maiakovski e Le Cor. busier a Buckminster Fuller, Marshall McLuhan e Herman Kahn, {das as dissondncias sociais e pessoais da vida moderna podem ser resolvidas por meios tecnoldgicos e administrativos; os meios existem, sendo apenas necessério que aparegam lideres disp. ‘Wisé-los, Para os visionsirios do desespero cultural, de T. E. Hulme, Ezra Pound, Bliot e Ortega, a Ellul, Foucault, Arendt e Marcuse. toda a vida moderna parece oca, estéril, pobre, «unidimensi carente de possibilidades humanas: tudo 0 que se assemelhe a liber. dade ou beleza é apenas uma maneira de esconder uma escraviza- gfo € horror mais profundos. Convém notar, antes de mais nada, ue ambas as formas de pensamento atravessam as divisdes p cas em esquerda e direita; segundo, que muita gente aderiu.alter- nadamente a um e outro desses pdlos, em diferentes momentos das suas vidas, e que alguns tentaram até aderir a ambos, simulta. neamente, Podemos encontrar ambas as polaridades em Baude- laire, que, de facto (conforme sugeri antes), pode reivindicar ter sido o inventor de ambas. Mas podemos igualmente ver em Bau- delaite algo que falta & maioria dos seus sucessores: a vontade de combater até ao fim as complexidades e contradigdes da vida moderna, a fim de se encontrar e criar no meio da angiistia e da beleza do caos. E irénico que, tanto na teoria como na pritica, a mistificagao da vida moderna, bem como a destruic&o de algumas das suas mais atraentes possibilidades, tena sido levada a cabo em nome do pré- prio modernismo progressista. No entanto, apesar de tudo, o velho caos manteve — ou renovou talver.— a sua influéncia sobre mui- tos de nés. O urbanismo das duas dltimas décadas conceptualizou € consolidou essa influéncia, Jane Jacobs escreveu um livro profé- tivo sobre esse novo urbanismo: The Death and Life of Great Ame- rican Cities, publicado em 1961. © primeiro argumento, alids bri- Ihante, de Jacobs € que os espagos urbanos criados pelo cram fisicamente limpos e ordenados, mas social e espiritualmente mortos; 0 segundo, que foram tao-s6 os vestigios da congestao, do barulho e da dissondncia geral do século xix que mantiveram viva a vida urbana contempordnea; 0 terceiro, que o velho «caos» urbano constituia, na verdade, uma ordem humana maravilhosa- mente rica e complexa, de que os modernistas nao se deram conta apenas porque os seus paradigmas de ordem eram mecainicos, redu- 8 ¢ frivolos; por fim, que tudo o que passa por modernismo, chamar, como sugeri 185 em 1960, se podia tornar evanescente e obsoleto*. Nas duas ulti- mas décadas, essa perspectiva granjeou uma aceitagdo generalizada eentusidstica, levando milhares de americanos a lutar com firmeza ara salvar os seus bairros e cidades dos estragos da modernizago motorizada. Qualquer movimento para interromper a construcao de uma auto-estrada € uma tentativa de fazer que 0 velho Caos volte & vida. A despeito de esporddicos éxitos locais, ninguém demonstrou possuir poder suficiente para vencer o vasto poder acu- mulado do halo ¢ da auto-estrada. Mas t8m surgido pessoas em niimero suficiente, animadas de paixdo e dedicago suficientes para criar uma forte contracorrente, capaz de dar & vida da cidade uma nova tensio, excitada e comovida, enquanto durar. E existem indi- cios de que pode durar bem mais do que qualquer pessoa — mesmo dos que mais a amaram — teria imaginado. No meio do receio © das ansiedades da presente crise energética, a pastoral motori- | 7ada parece estar a desfazer-se, A medida que isso acontece, 0 caos das nossas cidades modernas do século xix parece cada dia mais | ordenado ¢ mais actualizado, Assim, 0 modernismo de Baudelaire, tal como o descrevi, talvez se revele ainda mais relevante no nosso | fempo do que foi no dele; os homens e mulheres urbanos de hoje talvez sejam aqueles com quem, segundo a sua prépria imagem, | ele foi desde sempre épousé. Tudo isso sugere que o modernismo contém as suas préprias contradiedes e dialécticas interiores; que determinadas formas,de Perturbador pensar que os homens que sf0 jovens hoje, que estBo ‘ser formados tendo em vista ap suas carreras, devamm ac {que deveriam ser modernos na maneira de pensir, concepe fego que sKo ndo apenas invidveis, mas ndo acrescentam nada de si Aquilo que se sabia quando os seus pals eram eriangas». (Death and Li || American Cities. Random House & Vintage, 1961. — O sublinhado é de Jacobs.) A petspectiva de Jacobs desenvolvida de forma interessante por Richard Sen. ‘nett, em The Users of Disorder. Personal Identity and City Life (Knopf, 1970), © por Robert Caro, em The Power Broker: Robert Moses and the York (Knopf, 1974). Existe alnda uma rica bibliografia europeia com acho. Veja-se, por exemplo, The City: New Town or Home Town, de Feli- w-Romteiss, de 1970, traduzido do alemao para inglés por Edith Kuest sobre cidades € crftica & espécte de moderaismo de Le Corbu- lo Internacional, no seu conjunto, comesa com Robert omplexity and Contradiction in Architecture, com introdugao de 1966). Na ditima década isso torn aceite, como gerou uma nova ortodoxia — a sua, Todo wente por Charles Jencks, em The Language of Post tecture (Rizzall, 1977), Pensamento € visto modernistas se podem congelar em ortodoxias ogmiéticas ¢ tornar-se arcaicas; que outras formas de modernismo podem ficar submersas durante gerages, sem nunca chegarem » -ser suplantadas; ¢ que as mais profundas feridas sociais e p: cas da modernidade podem ser indefinidamente fechadas, sem che. gar" cicatrizar de facto. O desejo contemporaneo de uma cidade Que seja abertamente turbulenta mas intensamente viva corresponde 80 desejo de voltar a expor feridas antigas, mas caracteristicamente modernas. E 0 desejo de conviver abertamente com o cardcter divi. dido ¢ irreconhecivel das nossas vidas e extrair energia das nossas lutas interiores, independentemente donde quer que isso nos con. duza no final. Se com um dos modernismos, aprendemos a cons. ttuir halos em torno dos nossos espacos e em torno de nds pr. Prios, podemos aprender com outro — um dos mais velhos mas também, como acabamos de ver, um dos mais novos — a perder 0s nossos halos ¢ a encontrar-nos, outra vez. 187

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