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Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — “Meu cancioneiro
É bem martelado.
4*5
Vai por cinquenta anos Longe dessa grita,
Que lhes dei a norma: Lá onde mais densa
Reduzi sem danos A noite infinita
A fôrmas a forma. Verte a sombra imensa;
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.”
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
— “Sei!” — “Não sabe!” — “Sabe!”
6*7
A SEREIA DE LENAU A DA M A B R A N C A
Ilusão! que sem cauda aqueles seres, E a Dama Branca sorriu também
Deixando o ermo monótono das águas, A cada júbilo interior.
Andam em terra suscitando mágoas, Sorria como querendo bem.
Misturadas às filhas das mulheres. E todavia não era amor.
8*9
Ao pobre amante que lhe queria, B A L A D A D E S A N TA M A R I A E G I P C Í A C A
Se lhe furtava sarcástica.
Com uns perjura, com outros fria,
Com outros má, Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.
— A Dama Branca que eu encontrei,
Há tantos anos, Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos. Santa Maria Egipcíaca chegou
À beira de um grande rio.
Essa constância de anos a fio, Era tão longe a outra margem!
Sutil, captara-me. E imaginai! E estava junto à ribanceira,
Por uma noite de muito frio, Num barco,
A Dama Branca levou meu pai. Um homem de olhar duro.
10 * 11
E fez um gesto. E a santa sorriu, OS SINOS
Na graça divina, ao gesto que ele fez.
Sino do Bonfim!...
Sino do Bonfim!...
12 * 13
* N O I T E M O R TA
14 * 15
BERIMBAU O CACTO
16 * 17
PNEUMOTÓRAX POÉTICA
18 * 19
Quero antes o lirismo dos loucos EVOCAÇÃO DO RECIFE
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare Recife
Não a Veneza americana
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
Coelho sai!
Não sai!
20 * 21
De repente Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
nos longes da noite E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em
um sino [jangadas de bananeiras
Novenas
Uma pessoa grande dizia: Cavalhadas
Fogo em Santo Antônio!
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos
Outra contrariava: São José!
[meus cabelos
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Capiberibe
Os homens punham o chapéu saíam fumando
— Capibaribe
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com
Rua da União...
[o xale vistoso de pano da Costa
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
E o vendedor de roletes de cana
Rua do Sol
O de amendoim
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
Me lembro de todos os pregões:
... onde se ia fumar escondido
Ovos frescos e baratos
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
Dez ovos por uma pataca
... onde se ia pescar escondido
Foi há muito tempo...
Capiberibe
— Capibaribe
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Banheiros de palha
Língua certa do povo
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Fiquei parado o coração batendo
Ao passo que nós
Ela se riu
O que fazemos
Foi o meu primeiro alumbramento
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
22 * 23
Recife... L E N DA B R A S I L E I R A
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse! A moita buliu. Bentinho Jararaca levou a arma à cara: o que
Tudo lá parecia impregnado de eternidade saiu do mato foi o Veado Branco! Bentinho ficou pregado no
chão. Quis puxar o gatilho e não pôde.
— Deus me perdoe!
Recife... Mas o Cussaruim veio vindo, veio vindo, parou junto do
Meu avô morto. caçador e começou a comer devagarinho o cano da espingarda.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô
Rio, 1925
24 * 25
ANDORINHA P RO F U N DA M E N T E
26 * 27
* N O T U R N O D A PA R A D A A M O R I M
28 * 29
N O T U R N O D A R U A D A L A PA IRENE NO CÉU
A janela estava aberta. Para o que não sei, mas o que entrava Irene preta
era o vento dos lupanares, de mistura com o eco que se partia nas Irene boa
curvas cicloidais, e fragmentos do hino da bandeira. Irene sempre de bom humor.
Não posso atinar no que eu fazia: se meditava, se morria de
espanto ou se vinha de muito longe. Imagino Irene entrando no céu:
Nesse momento (oh! por que precisamente nesse momento?...) — Licença, meu branco!
é que penetrou no quarto o bicho que voava, o articulado E São Pedro bonachão:
implacável, implacável! — Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Compreendi desde logo não haver possibilidade alguma de
evasão. Nascer de novo também não adiantava. — A bomba de flit!
pensei comigo, é um inseto!
Quando o jacto fumigatório partiu, nada mudou em mim;
os sinos da redenção continuaram em silêncio; nenhuma porta
se abriu nem fechou. Mas o monstruoso animal ficou maior.
Senti que ele não morreria nunca mais, nem sairia, conquanto não
houvesse no aposento nenhum busto de Palas, nem na minhalma,
o que é pior, a recordação persistente de alguma extinta Lenora.
30 * 31
NAMORADOS V O U - M E E M B O R A P R A PA S Á R G A D A
O rapaz chegou-se para junto da moça e disse: Vou-me embora pra Pasárgada
— Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara. Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
A moça olhou de lado e esperou. Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
— Você não sabe quando a gente é criança e de repente
[vê uma lagarta listada? Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
A moça se lembrava: Lá a existência é uma aventura
— A gente fica olhando... De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
A meninice brincou de novo nos olhos dela. Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
O rapaz prosseguiu com muita doçura: Da nora que nunca tive
32 * 33
Em Pasárgada tem tudo O Ú LT I M O P O E M A
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção Assim eu quereria o meu último poema
Tem telefone automático Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Tem alcaloide à vontade Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Tem prostitutas bonitas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
Para a gente namorar A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
34 * 35
E S T R E L A DA M A N H Ã Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Eu quero a estrela da manhã Pecai de todas as maneiras
Onde está a estrela da manhã? Com os gregos e com os troianos
Meus amigos meus inimigos Com o padre e com o sacristão
Procurem a estrela da manhã Com o leproso de Pouso Alto
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
36 * 37
MARINHEIRO TRISTE E eu que para casa
Vou como tu vais
Para o teu navio,
Marinheiro triste Feroz casco sujo
Que voltas para bordo Amarrado ao cais,
Que pensamentos são Também como tu
Esses que te ocupam? Marinheiro triste
Alguma mulher Vou lúcido e triste.
Amante de passagem
Que deixaste longe Amanhã terás
Num porto de escala? Depois que partires
Ou tua amargura O vento do largo
Tem outras raízes O horizonte imenso
Largas fraternais O sal do mar alto!
Mais nobres mais fundas? Mas eu, marinheiro?
Marinheiro triste
De um país distante — Antes melhor fora
Passaste por mim Que voltasse bêbedo!
Tão alheio a tudo
Que nem pressentiste
Marinheiro triste
A onda viril
De fraterno afeto
Em que te envolvi.
38 * 39
BOCA DE FORNO Ah tôtô meu pai
Quero me rasgar
Quero me perder!
Cara de cobra,
Cobra! Cara de cobra,
Olhos de louco, Cobra!
Louca! Olhos de louco,
Louca!
Testa insensata Cussaruim boneca
Nariz Capeto De maracatu!
Cós do Capeta
Donzela rouca
Porta-estandarte
Joia boneca
De maracatu!
No fundo do mar
Há tanto tesouro!
No fundo do céu
Há tanto suspiro!
No meu coração
Tanto desespero!
40 * 41
MOMENTO NUM CAFÉ R O N D Ó D O S C AVA L I N H O S
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minh’alma — anoitecendo!
42 * 43
A ESTRELA E O ANJO O MARTELO
Vésper caiu cheia de pudor na minha cama As rodas rangem na curva dos trilhos
Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Enquanto eu gritava o seu nome três vezes Os elementos mais cotidianos.
Dois grandes botões de rosa murcharam O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei.
Dentro da noite
E o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo No cerne duro da cidade
[insatisfeito de Deus. Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.
44 * 45
MAÇÃ ÁG UA - F O R T E
46 * 47
A M O R T E A B S O L U TA C A N Ç Ã O D A PA R A D A D O L U C A S
Morrer sem deixar porventura uma alma errante... Ah, se o trem parasse
A caminho do céu? Eu iria aos mangues
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? Dormir na escureza
Das águas defuntas.
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra Parada do Lucas
Em nenhum coração, em nenhum pensamento, — O trem não parou.
Em nenhuma epiderme.
Nada aconteceu
Morrer tão completamente Senão a lembrança
Que um dia ao lerem o teu nome num papel Do crime espantoso
Perguntem: “Quem foi?...” Que o tempo engoliu.
48 * 49
C A N Ç ÃO D O V E N TO E DA M I N H A V I DA Ú LT I M A C A N Ç Ã O D O B E C O
50 * 51
Todas são filhas de Deus! BELO BELO
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
Pobre, vim morar aqui. Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Lapa — Lapa do Desterro —,
Lapa que tanto pecais! Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
(Mas quando bate seis horas, E o risco brevíssimo — que foi? passou! — de tantas estrelas cadentes.
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava A aurora apaga-se,
A conceição de Maria, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
Que graças angelicais!)
O dia vem, e dia a dentro
Nossa Senhora do Carmo, Continuo a possuir o segredo grande da noite.
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres, Belo belo belo,
— Para mulheres tão tristes, Tenho tudo quanto quero.
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo Não quero o êxtase nem os tormentos.
De noite se agasalhar. Não quero o que a terra só dá com trabalho.
52 * 53
PISCINA EU VI UMA ROSA
54 * 55
Tão pura e modesta, T E M A E V O LTA S
Tão perto do chão,
Tão longe na glória
Da mística altura, Mas para quê
Dir-se-ia que ouvisse Tanto sofrimento,
Do arcanjo invisível Se nos céus há o lento
As palavras santas Deslizar da noite?
De outra Anunciação.
Mas para quê
Petrópolis, 1943. Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?
56 * 57
ESCUSA NO VOSSO E EM MEU CORAÇÃO
58 * 59
O L U TA D O R
Espanha da liberdade:
A Espanha de Franco, não!
Espanha republicana, Buscou no amor o bálsamo da vida,
Noiva da revolução! Não encontrou senão veneno e morte.
Espanha atual de Picasso, Levantou no deserto a roca-forte
De Casals, de Lorca, irmão Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!
Assassinado em Granada!
Espanha no coração Depois de muita pena e muita lida,
De Pablo Neruda, Espanha De espantoso caçar de toda sorte,
No vosso e em meu coração! Venceu o monstro de desmedido porte
— A ululante Quimera espavorida!
E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!
60 * 61
BELO BELO O RIO
62 * 63
U N I DA D E ARTE DE AMAR
Minh’alma estava naquele instante Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma,
Fora de mim longe muito longe A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação,
Chegaste Não noutra alma.
E desde logo foi verão Só em Deus — ou fora do mundo.
O verão com as suas palmas os seus mormaços os seus ventos
[de sôfrega mocidade As almas são incomunicáveis.
Debalde os teus afagos insinuavam quebranto e molície
O instinto de penetração já despertado Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Era como uma seta de fogo
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Foi então que minh’alma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade.
1948
64 * 65
BOI MORTO S AT É L I T E
66 * 67
OS NOMES NOTURNO DO MORRO DO ENCANTO
Petrópolis, 28.2.1953
68 * 69
L U A N O VA CO N S OA DA
70 * 71
posfácio
manuel bandeira, intérprete de si mesmo
A vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não. A melhor poesia brasileira sempre passou pela porta estreita das
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. antologias escolares. Durante os dois últimos séculos, as antolo-
gias oscilaram entre florilégio clássico e ruptura moderna, cânone
Vou-me embora pra Pasárgada!
de época e gosto pessoal, consolidação de um repertório de for-
Aqui eu não sou feliz.
Quero esquecer tudo: mas e reação aos procedimentos estéticos. A antologia poética é
– A dor de ser homem... um gênero antigo e arbitrário. A sua força está na coerência das
Este anseio infinito e vão escolhas e na capacidade de determinar o que é antológico: seja
De possuir o que me possui.
pelo poder de incluir, seja pelo rigor de excluir.
Quero descansar Manuel Bandeira foi um mestre na arte de organizar anto-
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei... logias. A sua reconhecida versatilidade no emprego das formas
Na vida inteira que podia ter sido e que não foi. poéticas também pode ser estendida às inúmeras antologias que
preparou. Antonio Candido, num artigo breve e muito esclarece-
Quero descansar.
Morrer. dor, afirma que Bandeira “tinha toda a razão de levar a sério as
Morrer de corpo e de alma. antologias, nas quais se tornou um perito”.1
Completamente. Tudo começou em 1937, quando foi encarregado pelo mi-
(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)
nistro da Educação, Gustavo Capanema, de elaborar uma
Quando a Indesejada das gentes chegar Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica, para as come-
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, morações do centenário do movimento romântico no Brasil.
A mesa posta, Bandeira parece ter adquirido gosto pela tarefa. Sucederam-se
Com cada coisa em seu lugar.
novos volumes: da fase parnasiana (1938), da simbolista (1965)
e dois dedicados à fase moderna (1966), um deles em parceria
Setembro, 1965 com Walmir Ayala.
74 * 75
A reflexão particularizada sobre diferentes épocas não o im- leitor de sua própria obra.2 Em outras palavras, a autoantologia
pediu de pensar o sistema literário segundo uma visada mais poética opera de modo similar a uma série de autorretratos pro-
abrangente, por exemplo, em Obras-primas da lírica brasileira duzidos por um pintor: ambas buscam fixar uma imagem que o
(1943). Mas foi com Apresentação da poesia brasileira (1946) que artista deseja projetar de si mesmo, visão retrospectiva do que
nos ofereceu uma visão histórica articulada, dissolvendo em julga ser o mais representativo e original em sua produção.
acertados e notáveis comentários a rígida classificação por pe- Desta perspectiva, “Antologia”, poema escrito por Manuel
ríodos. Por fim, aceitou o convite da Editora do Autor e orga- Bandeira em 1965, é uma declaração inequívoca de que o prin-
nizou Poesia do Brasil (1963), com a colaboração de José Guilher- cípio estrutural da organização de antologias havia impregnado
me Merquior na fase moderna. definitivamente a concepção poética do autor:
Dedicou-se com o mesmo afinco às antologias de autores:
Sonetos completos e poemas escolhidos de Antero de Quental (1942) e Tive a ideia de construir um poema só com versos ou pedaços de
Gonçalves Dias (1958). Não satisfeito, escapou da camisa-de-força versos meus mais conhecidos ou mais marcados da minha sensibili-
do gênero, introduzindo uma categoria inédita: Antologia dos poe- dade, e que ao mesmo tempo pudesse funcionar como poema para
tas brasileiros bissextos contemporâneos (1946), salvando do esqueci- uma pessoa que nada conhecesse de minha poesia.3
mento poemas como “A cachorra” de Prudente de Moraes, neto
e “O defunto” de Pedro Nava. Radicalizando nessa vertente, afirma: “Todo grande verso é um
Depois de contemplar antologias de época e de autores, poema completo dentro do poema”.4 Em cada linha de Manuel
Bandeira especializou-se na organização de antologias da pró- Bandeira entrevemos o desejo de só registrar aqueles momentos
pria obra. Estes 50 poemas escolhidos pelo autor (1955) foram pre- essenciais, desentranhando do passado o que consegue sobrevi-
cedidos por Poesias escolhidas (1937) e seguidos de outras seis ver à luz forte do presente: “Humildemente pensando na vida e
antologias, entre as quais merecem destaque Alumbramentos nas mulheres que amei”. Desse modo, o poeta configura uma
(1959), Antologia poética (1961) e Meus poemas preferidos (1966). Tal mitologia pessoal, halo de realidade cuja matéria se mistura à
hábito, raramente praticado entre nós, foi largamente culti- esfera lírica do verso que, por um momento, torna-se realmente
vado pelo poeta, numa espécie de reorganização constante da livre. O poema é uma antologia de evocações, bulas de remédio,
sua obra.
A experiência de organizar antologias certamente deu a Ban- 2 Desdobramos aqui ideias presentes em “De Lira dos cinquent’anos a Estrela
deira uma acuidade crítica para recortar, privilegiar, escolher o da tarde”, quarto capítulo do livro Manuel Bandeira, de Murilo Marcondes de
Moura. sp: Publifolha, 2001.
que há de mais representativo na produção lírica de uma época e
3 Carta a Odylo Costa Filho citada por Gilberto Mendonça Telles em “A
de um autor. Mas não seria descabido enxergar nessa prática um bandeira de Bandeira”, in Manuel Bandeira. Fortuna crítica. Sônia Brayner
procedimento crítico que permite ao autor passar à condição de (org.). rj: Civilização Brasileira, 1980.
4 “Poesia concreta”, in Flauta de papel. rj: José Aguilar, 1958. 2. vols.
76 * 77
alumbramentos, notícias de jornal, anúncios, sonhos, fragmen- com ela retribuir aos poetas de outras línguas a gentileza de me
tos de ars combinatoria etc. terem oferecido os seus livros”.6 Numa obra que não ultrapassa 350
Outra possibilidade é ler os 50 poemas escolhidos pelo autor como poemas, não há como negar que 50 poemas escolhidos pelo autor talvez
livro autônomo. Diante do rearranjo que a antologia impõe aos seja a seleção mais rigorosa já realizada por Bandeira. A subtração
poemas, é interessante observar que a inusitada proximidade de transforma-se em suma. E até mesmo os poemas ausentes passam
textos, anteriormente separados em livros e distanciados no tem- a ser tão significativos quanto àqueles que estão presentes.
po, permite que eles dialoguem entre si, configurando relações
inéditas. Para dar um exemplo, o emprego do verbo “levar” rea- *
grupa de forma reveladora a “Balada de Santa Maria Egipcíaca”,
“A sereia de Lenau” e “A Dama Branca”. Os três poemas estrutu- Uma particularidade desta reedição dos 50 poemas escolhidos pelo
ram-se para “levar para o outro lado”: “Não tenho dinheiro. O Se- autor é a oportunidade de ouvir 25 deles lidos pelo próprio poeta.
nhor te abençoe./ Leva-me ao outro lado”; “Nikolas Lenau, poeta Escutar a voz de Manuel Bandeira é uma das poucas coisas que a
da amargura!/ Uma te amou, chamava-se Sofia./ E te levou pela tecnologia não consegue transformar em espetáculo. Pelo contrá-
melancolia/ Ao oceano sem fundo da loucura.”; e “ Por uma noite rio, ela nos comove com a descoberta do sotaque pernambucano,
de muito frio/ A Dama Branca levou meu pai”. nos envolve na real valorização da oralidade pelos modernistas e
Também é relevante considerar o valor que Bandeira conferiu nos devolve à condição de ouvintes no silêncio do quarto. Na crô-
a cada livro no conjunto de sua produção. De A cinza das horas nica “Poesia em disco”, datada de 27 de novembro de 1955, Ban-
não figura nenhum poema; de Carnaval entraram apenas três, e deira registra:
de O ritmo dissoluto, não mais que quatro. Os livros mais represen-
tados são Libertinagem e Lira dos cinquent’anos, com dez ou mais Anteontem, na Livraria São José, Carlos Drummond de Andrade e
poemas cada um. O crítico português Adolfo Casais Monteiro, eu estivemos, durante mais de duas horas, autografando discos que
num dos raríssimos comentários sobre esta antologia, observou: Carlos Ribeiro e Irineu Garcia fizeram gravar e onde alguns de nos-
“Fosse como fosse, a verdade é que a surpreendente revelação que sos poemas estão ditos por nossas próprias vozes. A ideia de fixar
a sua poesia nos trouxe não está sem dúvida no ‘espírito’ de A em discos a voz dos poetas só teve, entre nós, o precedente da Con-
cinza das horas, mas no de Libertinagem”.5 tinental, que há alguns anos lançou no mercado poemas meus e de
Dito isso, o que o leitor tem nas mãos não é uma antologia Olegário Mariano. Mas, a iniciativa parou aí, não sei por que motivo.7
qualquer. Embora o próprio Bandeira justifique modestamente
que “o critério adotado foi colher entre os meus poemas mais bem Na mesma crônica, mais adiante, comenta:
realizados os mais acessíveis ao leitor estrangeiro, pois eu desejava
6 Prefácio à primeira edição da Antologia poética. rj: Editora do Autor, 1961.
5 In: Manuel Bandeira, de Adolfo Casais Monteiro. rj: mec, 1958. 7 “Poesia em disco”, in Flauta de papel. rj: José Aguilar, 1958. 2. vols.
78 * 79
A voz do poeta, seu jogo de inflexões, seu acento de emoção nes- Cada palavra é um corte fundo no passado do poeta, no passado da
ta ou naquela palavra podem esclarecer muita coisa que no poema cidade, no passado de todo homem, fazendo vir desses três passados
nos parece obscuro, hermético. De minha parte, posso dizer que só distintos, mas um só verdadeiro, um mundo de primeiras e grandes
compreendi em maior profundidade os poemas de Eliot e de Dylan experiências da vida. Não há uma palavra que seja um gasto de pa-
Thomas depois de ouvir recitados por eles próprios. lavra. Não há traço que seja de pitoresco artificial ou de coreografia.
O poema é compacto: tem alguma coisa de um bolo tradicional do
Dois anos depois, volta a comentar as gravações de poetas: Norte chamado “palácio encantado”, bolo muito rico, bolo de casa-
grande de engenho, com sete gostos por dentro, sete gostos profun-
Não importa que os nossos poetas se tenham mostrado fraquíssi- dos em cada fatia que se corte dele.
mos diseurs. Aliás era de se esperar. Eles nunca dizem os seus ver-
sos, de sorte que quando são postos diante de microfones ficam O saboroso sotaque de pernambucano dá sete vidas ao poema.
cheios de dedos, quero dizer de dentes, articulam mal, não conse- Segundo: a interpretação de Bandeira é tão surpreendente que
guem dar ao discurso poético as inflexões exatas. A esse aspecto não nos revela por inteiro a intrincada estrutura sonora de alguns
temos nenhum T. S. Eliot, nenhum Dylan Thomas, diseurs perfeitos, poemas. É o caso de “Berimbau”: mais do que expressar, nele a
que só com dizer seus poemas no-los explicam (só entendi bem o linguagem canta, encantatória. E o próprio poeta nos relembra
“Gerontion” depois de ouvi-lo dito pelo autor). do “quebranto cansado da melopeia inicial: ‘Nos iguapés dos
aguaçais dos igapós dos japurus’... A inflexão meio irônica, meio
O curioso é que após tantas observações favoráveis ao registro da alma penada na solidão da hileia...”9 O mesmo vale para “Boca do
voz dos próprios poetas, Bandeira nos sai com este comentário: forno”, cuja música de fundo ecoa o ritmo de um maracatu a que
“Pessoalmente, sinto-me horrorizado de minha própria voz gra- assistiu em 1929.
vada: acho-a dura, malacostrácea, antipática. Será possível que eu Terceiro: os poemas dialogados têm sua força realçada den-
fale assim? Então como é que não fogem de mim, me toleram?”.8 tro do conjunto da obra. A musicalidade da fala traduz uma di-
Para nós, seus ouvintes, a impressão é oposta. mensão humana na medida em que persegue a naturalidade do
Primeiro: a beleza cortante de sua voz ilumina aspectos centrais diálogo. São inúmeros os exemplos em que o intérprete se abre
da sua poética. Excessivamente corroído pela canonização, “Evo- para a voz do outro: “Noturno da Parada Amorim”, “Irene no
cação do Recife” reveste-se da fluência de uma conversa, readquire céu”, “Namorados”. Do registro culto de “Balada de Santa Maria
a força descritiva de uma crônica, rodopia na memória da cantiga. Egipcíaca”: “– Leva-me ao outro lado./ Não tenho dinheiro. O
Lembra um comentário de Gilberto Freyre: Senhor te abençoe.// [...] O homem duro escarneceu: – Não tens
dinheiro,/ Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me o teu corpo, e vou
8 “Discos”, in Flauta de papel. rj: José Aguilar, 1958. 2 vols. 9 “Elsie Houston” in: Flauta de papel. rj: Alvorada, 1957.
80 * 81
levar-te”; passando pelo registro irônico e rebaixado de “Pneu- nota do editor
motórax”: “– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado./ – Então, doutor, não é possível Para a fixação dos 50 poemas escolhidos pelo autor, foram utilizadas
tentar o pneumotórax?/ – Não. A única coisa a fazer é tocar um como texto-base as seguintes edições:
tango argentino”.
Quarto: a dicção áspera, bela, intratável de Bandeira, ao mes- A cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto. Edição crítica prepa-
mo tempo que represa o lirismo derramado, libera um acento rada por Júlio Castañon Guimarães e Rachel T. Valença. rj:
malicioso presente, por exemplo, em “Estrela da manhã”. Tudo Nova Fronteira, 1994.
isso diz muito da gama variada de registros que sua poesia al-
cança. Em alguns momentos sentimos que os poemas abrem Libertinagem, Estrela da Manhã. Edição crítica preparada por Giulia
um leque de sugestões, mesclando com mansas sutilezas de esti- Lanciani. Madri, Paris, Cidade do México, Buenos Aires, São
lo, um vaivém de sentidos que podem deslizar do erótico ao re- Paulo, Lima, Guatemala, San José, Santiago do Chile: Unesco,
ligioso, do folclórico ao infantil, do prosaísmo moderno a uma 1998. Coleção Archivos.
língua arcaizante.
O poeta tinha ouvido. E a desenvoltura na leitura dos poemas Estrela da vida inteira. rj: Livraria José Olympio, 1966.
beneficiou-se de uma, ainda que discreta, continuada educação
musical: sabia tocar violão e militou na crítica. Talvez seja o au-
tor mais musicado da literatura brasileira. Por tudo isso, pode-
mos dizer que, além de realizar uma criteriosa antologia de seus
poemas, Manuel Bandeira foi um dos melhores intérpretes de
si mesmo.
82 * 83
ap ê ndice
SOBRE A EDI Ç Ã O ORI G INAL
86 * 87
SOBRE AS G RA V A Ç Õ ES
88 * 89
BIBLIO G RA F IA
poesia
90 * 91
ÍNDICE
5 Os sapos 46 Maçã
8 A sereia de Lenau 47 Água-forte
9 A dama branca 48 A morte absoluta
11 Balada de Santa Maria Egipcíaca 49 Canção da Parada do Lucas
13 Os sinos 50 Canção do vento e da minha vida
15 Noite morta 51 Última canção do beco
16 Berimbau 53 Belo belo
17 O cacto 54 Piscina
18 Pneumotórax 55 Eu vi uma rosa
19 Poética 57 Tema e voltas
21 Evocação do Recife 58 Escusa
25 Lenda brasileira 59 No vosso e em meu coração
26 Andorinha 61 O lutador
27 Profundamente 62 Belo belo
29 Noturno da Parada Amorim 63 O rio
30 Noturno da rua da Lapa 64 Unidade
31 Irene no céu 65 Arte de amar
32 Namorados 66 Boi morto
33 Vou-me embora pra Pasárgada 67 Satélite
35 O último poema 68 Os nomes
36 Estrela da manhã 69 Noturno do Morro do Encanto
38 Marinheiro triste 70 Lua nova
40 Boca de forno 71 Consoada
42 Momento num café
43 Rondó dos cavalinhos 74 posfácio
44 A estrela e o anjo 87 apêndice
45 O martelo
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de Manuel Bandeira
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isbn 978-85-7503-434-7
1. Poesia brasileira i. Massi, Augusto. ii. Título.
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