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Acerca do trágico em Hegel

Jaqueline Cristina Rossi 1

Resumo: O objetivo é demonstrar que a Fenomenologia do espírito


posiciona o trágico no centro da dialética hegeliana. Para tanto, analisa-
remos o desenvolvimento desse conceito em Hegel. O caráter trágico
que pertence ao estágio de irrefletida Sittlichkeit é aquele que tem uma
identificação imediata não crítica com a lei. Isso porque na
cidade-estado grega, o homem não está pronto para a reconciliação com
o verdadeiramente universal. Inversamente, na mesma época, o povo
que alcança realmente a plena universalidade do espírito, os judeus, são
aqueles que têm maior grau de alienação do divino. Mas o universal
deve encontrar alguma expressão; e conseqüentemente os deuses são
particulares, o universal reaparece como uma necessidade do destino a
que mesmo os deuses estão sujeitos. E Hegel explicita a tensão interna e
o conflito da sociedade grega por meio da tragédia sofocleana.
Palavras-chave: trágico – dialética – espírito – Hegel – Antígona.

Introdução
O que Hegel recusa na Crítica da razão prática de Kant é a contra-
posição rígida entre lei e individualidade, universal e particular. Com
isso, pretende substituir o conceito abstrato de eticidade por um conce-
ito real, que apresente o universal e o particular em sua identidade,
sendo a abstração entre eles causada pela abstração do formalismo. O
embate que atravessa o campo da ética é, ao mesmo tempo, um con-
fronto de princípios entre a dialética hegeliana, que começa a tomar

1 Graduada em psicologia pela Universidade Federal de São Carlos e Mestre em Filosofia


por esta mesma Universidade. E-mail:
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consciência de si mesma, e o formalismo dualista da filosofia de seu não pertence à lei alheia, “o criminoso pensava haver com uma vida
tempo. Já em seu escrito de juventude dos anos 1798-1800, que se tor- alheia, mas a que destruiu foi a própria, pois a vida não se diferencia da
nou conhecido sob o título O espírito do cristianismo e seu destino, vida, já que ela descansa na divindade unida em si. O que ele destruíra
Hegel demonstra que tragicidade e dialética coincidem. Mas se essa fora somente o que a vida tinha de amistoso: transformara-o em ini-
identidade não é pensada apenas nas obras de maturidade, ela remonta migo” (Hegel 7, p. 263). No destino, a eticidade absoluta divide-se no
à origem dessas duas noções em Hegel. E então, o objetivo deste estudo interior de si mesma. Ela não se encontra diante de uma lei objetiva que
é apreender o desenvolvimento do conceito de trágico sobretudo nos teria violado, mas tem diante de si a lei que estabeleceu na própria ação.
Escritos de juventude e na Fenomenologia do espírito de Hegel. Nossa Desse modo, lhe é dada a possibilidade de se reconciliar com o destino,
principal hipótese é, precisamente, a de que este conceito constitui o restabelecendo assim a unidade, ao passo que, no caso da lei objetiva, a
centro da dialética hegeliana. contraposição absoluta sobrevive ao castigo. E então, o escrito de juven-
Em O espírito do cristianismo e seu destino, o confronto com o for- tude de Hegel não trata simplesmente do destino do cristianismo, mas
malismo kantiano ocorre, a princípio, no âmbito de um estudo teoló- também da gênese do destino em geral, que, para ele, coincide com a
gico-histórico: o confronto entre cristianismo e judaísmo. É que o jovem gênese da dialética e ocorre precisamente no espírito do cristianismo.
Hegel caracteriza o espírito do judaísmo quase do mesmo modo como, Na verdade, mesmo no âmbito cristão, o termo “destino” também se
posteriormente, caracterizará o formalismo de Kant. Esse espírito é defi- refere ao destino trágico, cuja concepção Hegel desenvolverá na
nido pela contraposição rígida entre humano e divino, particular e uni- Fenomenologia.
versal, vida e lei, sem que haja possibilidade de conciliação dos opostos. Decerto, uma das originalidades dessa obra é a de justificar o idea-
A relação se dá entre dominador e dominado. E a tal espírito rigorosa- lismo pela história, de nela ver o resultado de experiências anteriores da
mente dualista opõe-se o espírito do cristianismo. Ocorre que a figura formação da consciência humana; e o resultado nada é sem o seu
de Jesus lança uma ponte sobre o abismo entre homem e Deus, pois ele vir-a-ser. Assim, podemos afirmar que o pensamento hegeliano é um
encarna, como filho de Deus e filho do homem, a reconciliação, a uni- pensamento da história humana. Tal é a tese fundamental do seu idea-
dade dialética dos dois poderes. Da mesma forma, a ressurreição de lismo: “O espírito é a história” – idêntica àquela segundo a qual o “Abso-
Jesus faz dele a mediação entre a vida e a morte; ele substitui o manda- luto é sujeito”. De interesse especial aqui, é que – segundo Hyppolite
mento objetivo a que o homem estava sujeito pela disposição subjetiva, (Hyppolite 10), a visão que Hegel tem da história é uma visão trágica.
em que o próprio indivíduo se unifica com a universalidade. Entretanto, Porque, nesta, a astúcia da razão não se apresenta como apenas um
Hegel não vê a identidade como a harmonia assegurada; longe disso, meio de reunir o inconsciente ao consciente, porém como um conflito
considera como seu movimento constituinte o processo que receberá trágico entre o homem e seu destino, que é transposto e renovado per-
sua forma definitiva na dialética da Fenomenologia do espírito. petuamente. Tal é o conflito que Hegel procura pensar no âmago
O escrito de juventude denomina os estágios de autodivisão e conci- mesmo do Absoluto: “(...) a vida de Deus e o conhecimento divino bem
liação na passagem do ser-em-si Ansichsein para o ser-em-si-e-para-si que podem exprimir-se como um jogo de amor consigo mesmo; mas é
Anundfursichsein: “destino” e “amor”. Em oposição ao judaísmo que, uma idéia que baixa ao nível da edificação e até da insipidez quando lhe
segundo Hegel, não conhece o destino porque entre o homem e Deus falta o sério, a dor, a paciência e o trabalho do negativo” (Hegel 8, p. 35).
vigora apenas o liame da dominação, o espírito do cristianismo funda- Pois a consciência abstratamente individual só é consciência porque é
menta a possibilidade do destino. E este, ao contrário “da idéia do cas- oposta a si mesma; é, ao mesmo tempo, consciência universal. Contudo,
tigo que pressupõe um senhorio alheio à realidade” (Hegel 7, p. 263), a consciência universal não é somente abstratamente universal, só é
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consciência absoluta ao ser oposta a si mesma. Por isso Hegel sempre se O trágico em O espírito do cristianismo e seu destino
esforçou em pensar a unidade entre a consciência particular e a cons-
No escrito de juventude, O espírito do cristianismo e seu destino, a
ciência universal. Tal como fez Sófocles em Antígona, esforçou-se em
peculiaridade do destino que se manifesta a partir de um sujeito é ilus-
fazer reviver para si mesmo os personagens que encarnam um momento
trada com uma tragédia: Macbeth. Após o assassinato de Banquo, Mac-
da história humana.
beth não vê diante de si uma lei alheia a si, uma lei que existisse
O caminho da consciência, traçado por Hegel, na Fenomenologia,
independente dele, mas tem à sua frente, no espectro de Banquo, a pró-
não é sem oposições; conduz sem cessar a conseqüências negativas.
pria vida ferida, que não é nada de alheio, e sim
Aquilo que a consciência toma como a verdade se revela ilusão; donde é
preciso que abandone sua convicção primeira e passe a outra: “(...) esse
(...) foi criada somente uma lei, cuja dominação começa
caminho pode ser considerado o caminho da dúvida ou, com mais pro-
agora; esta lei é a unificação – por intermédio do conceito
priedade do desespero” (Hegel 8, p. 74). Desse modo, a contradição, no
de igualdade – da vida ferida, aparentemente alheia, e da
forte sentido que envolve conflito ontológico com sua negação, é fatal
própria vida, cuja autonomia se perdera. Só agora a vida
para as realidades parciais. Contudo, esta “negação” não é apenas um
ferida aparece como um poder inimigo, prejudicando-o do
erro intelectual, para nós que observamos, ela desvela-se essencial para
mesmo modo que ele a prejudicou. Assim o castigo quanto
o todo que está em conflito ontológico consigo mesmo; nós podemos
ao destino é a reação idêntica ao ato do criminoso, reação
ver que essa contradição é o que faz as coisas moverem-se e muda-
de um poder que ele mesmo armou, de um inimigo que ele
rem-se. Donde podemos afirmar que o trágico, em Hegel, caracteriza a
mesmo tornou hostil. (Hegel 7, p. 322)
posição do absoluto, já que é essencialmente vida, movimento e
mudança. Mas, ao mesmo tempo, este permanece em si mesmo, o
No entanto, como foi o próprio inimigo quem “estabeleceu a lei”, a
mesmo sujeito; ele reconcilia identidade e contradição mantendo-se a si
separação que ele provocou pode – em oposição ao que é separado
mesmo em um processo vital farto de conflito ontológico. Tal combina-
simplesmente na lei – “ser unificada”, e “Essa sensação da vida que se
ção de incessante mudança e imutabilidade é descrita por Hegel em
reencontra a si mesma é o amor, no qual o destino se reconcilia”
uma imagem surpreendente no prefácio da Fenomenologia: “O verda-
(Hegel 7, p. 324). Aliás, é assim que Hegel interpreta o destino de
deiro é assim delírio báquico, onde não há membro que não esteja
Maria Madalena (e atribui ao espírito do judaísmo a culpa por sua
ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se
transgressão): “(...) a época de seu povo era uma daquelas em que um
dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples”
belo coração não vive sem pecado, mas, tanto nessa época como em
(Hegel 8, p. 53). Aquilo que busca a consciência particular, oposta à
qualquer outra, um belo coração pode retornar a mais bela consciência
consciência universal, é encontrar-se a si mesma no Ser, definição da
por meio do amor” (Hegel 7, p. 335). Portanto, o processo trágico é,
Felicidade sem a platitude da dimensão oferecida pelo Iluminismo ou
para o jovem Hegel, a dialética da eticidade, que ele a princípio pro-
por Kant, embora, inicialmente, seja apenas uma aspiração da consciên-
cura mostrar como sendo o espírito do cristianismo, e mais tarde fun-
cia singular. Ora, apesar de não saber, a consciência singular também é
damenta como fundamento de uma nova doutrina ética. É a dialética
universal; logo, na busca de sua felicidade singular, deve experimentar
da eticidade que, no destino, divide-se no interior de si mesmo e que
um destino que revele o que ela é.
retorna a si mesmo no amor, enquanto o mundo da lei mantém inalte-
rada a divisão rígida que perpassa o pecado e o castigo. Veja-se como a
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concepção do trágico formular-se-á, posteriormente, nos Cursos de Aqui o trágico ainda é concebido como dialética da eticidade; mas
estética: algo de essencial se alterou. Como o pathos do herói trágico leva-o, ao
mesmo tempo, para a justiça e para a injustiça, ele torna-se culpado jus-
(...) o tema propriamente dito da tragédia originária é o tamente por sua eticidade; seu destino é visto em seu contexto metafí-
divino; mas não o divino do modo como constitui o conte- sico, cuja base é o surgimento do divino em sua realidade efetiva,
údo da consciência religiosa como tal, e sim tal como pene- submetida ao princípio da particularização. Já agora, o trágico não diz
tra no mundo, no agir individual, mas que nesta efetividade mais respeito à idéia do divino, a consciência religiosa o dispensa; e se a
não perde nem seu caráter substancial nem se vê dirigido ao autodivisão do elemento ético é de fato inevitável, embora determinada
que é oposto de si mesmo. Nesta forma, a substância espiri- em sua concretude pelas circunstâncias, é acidental quanto ao seu con-
tual do querer e do realizar é o ético. (...). No que diz respe- teúdo. Essa concepção, em oposição à formulada anteriormente nos
ito ao seu conteúdo e à sua aparição individual, as potências Escritos de juventude, parece não ser imediatamente proveniente de um
éticas, bem como os caracteres agentes, são diferenciados sistema filosófico, mas de acordo com seu posicionamento em uma esté-
por meio do princípio de particularização, ao qual está sub- tica, pretende abarcar toda a variedade das possibilidades trágicas. No
metido tudo o que se impele para a objetividade real. Mas se entanto, podemos entrever a partir das exposições subseqüentes da
estas forças particulares, tal como o exige a poesia dramá- Estética acerca do desenvolvimento histórico que Hegel só admite a
tica, são chamadas para a atividade fenomênica e se elas se contragosto esse alcance formal de sua concepção; no fundo, gostaria
efetivam como finalidade determinada de um pathos de se limitar a uma única forma de colisão trágica. O fator de acaso que
humano, que passa para a ação, então sua concordância se insinuou em sua concepção provém do trágico dos modernos, cujos
está suprimida [aufgehoben], e elas aparecem em fecha- heróis “estão desde o início em meio a uma amplitude de relações e con-
mento recíproco, umas contra as outras. O agir individual dições mais contingentes, no interior das quais é possível agir dessa ou
quer então, sob circunstâncias determinadas, executar uma daquela maneira...” (Hegel 6, p. 264). A conduta deles é determinada
finalidade ou o caráter, o qual, sob estes pressupostos, por- por seu próprio caráter, que não incorpora necessariamente, como no
que ele se isola unilateralmente em sua determinidade por si caso dos antigos, um pathos ético. Mas se Hegel, por esse motivo, faz
mesma abstrata, necessariamente instiga o pathos oposto restrições à tragédia moderna, também entre as tragédias antigas ele se
contra si e, com isso, suscita conflitos inevitáveis. O trágico decide por uma das colisões possíveis, a que se encontra em Sete contra
originário consiste no fato de que no interior de tal colisão Tebas, na Ifigênia em Áulida e na Oréstia de Ésquilo e na Electra, e, com
ambos os lados da oposição, tomados por si mesmos, pos- mais perfeição, na Antígona de Sófocles, considerada por ele “a obra de
suem legitimidade, ao passo que por outro lado, eles são arte mais excelente, a mais satisfatória” (Hegel 6, p. 257). A seu ver, estas
capazes de impor o Conteúdo positivo verdadeiro de sua são as mais puras potências de representação trágica, na medida em que
finalidade e caráter apenas como negação e violação da tratam da oposição a que se dá o Estado, a vida ética em sua universali-
outra potência igualmente legitimada e, por isso, em sua eti- dade espiritual, e a família como a eticidade natural: “a harmonia destas
cidade e por meio da mesma caem igualmente em culpa. esferas e o agir plenamente concordante, no interior de sua efetividade,
(Hegel 6, p. 236-237) constitui a realidade completa da existência ética” (Hegel 6, p. 253). Por-
tanto, trata-se da colisão entre amor e lei, tal como esses dois conteúdos
se chocam no caso de Antígona e Creonte.
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Assim, por trás da aparente indeterminação da definição tardia não serão nem mesmo mencionados. Ao iniciar o processo dialético do
encontra-se a mesma forma do trágico que Hegel analisou na Fenome- espírito, Hegel caracterizará o primeiro estágio do espírito como “verda-
nologia. Nesta, o conflito trágico dá-se justamente entre os mundos da deiro”, e o conceberá como eticidade.
lei e do amor. Desse modo, o espírito do judaísmo e da ética formalista,
anteriormente excluído do trágico, entra em cena como o herói trágico
O trágico na Fenomenologia do espírito
na figura de Creonte, com os mesmos direitos de Antígona, que personi-
fica o mundo do amor. Com isso, a dialética – que é ao mesmo tempo o Já no início do capítulo sobre o espírito, após indicar que somente o
trágico e sua superação – ultrapassará as fronteiras estabelecidas no espírito é a “existência”, o que significa dizer que a razão se tornou um
escrito de juventude, abarcando também a esfera da lei, de que se dife- mundo vivo, e que o indivíduo é um mundo, Hegel observa que os
renciava rigorosamente antes. Entretanto, tal união de mundos, que momentos anteriores, consciência de si e razão, eram apenas abstrações
antes eram nitidamente separados, já se preparava no escrito de juven- do espírito: “Todas as figuras da consciência até aqui [consideradas]; elas
tude, e a dialética impõe-se como que por um atalho, antes mesmo de consistem em que o espírito se analisa, distingue seus momentos singu-
Hegel chamá-la pelo nome. Isso resulta da circunstância notável de lares” (Hegel 8, p. 305). Também acrescenta que a ação de isolar tais
Hegel recorrer às mesmas tragédias para caracterizar tanto o espírito do momentos pressupõe o espírito e existe somente nele. Portanto, apenas
cristianismo quanto o do judaísmo. Poucas páginas antes de analisar a o espírito, de acordo com o sentido que confere a este termo, é um todo
cena do diálogo entre Macbeth e o espírito de Banquo, em que se assi- concreto, de modo a resultar num desenvolvimento original e numa his-
nala a dialética do destino subjetivo, encontra-se a frase que remete tória real. É por isso que as figuras do espírito diferem das precedentes:
Macbeth ao mundo da contraposição brusca em relação ao elemento “São figuras (...) que diferem das anteriores por serem os espíritos reais,
objetivo: efetividades propriamente ditas; e [serem] em vez de figuras apenas da
consciência, figuras de um mundo” (Hegel 8, p. 306). Assim, o espírito é
O destino do povo judeu é o destino de Macbeth, que ao o verdadeiro desenvolvimento da universalidade que a consciência de si
abandonar os mesmos vínculos da natureza, aliou-se com conseguiu conquistar como razão. Como espírito, a razão se tornou o
seres alheios, e que, ao pisotear e destruir, a serviço dos Nós, já não é a certeza subjetiva de se encontrar imediatamente no ser,
mesmos, todo o sagrado da natureza humana, foi abando- ou de pôr a si mesma pela negação desse ser, mas se sabe como esse
nado por seus deuses (dado que estes eram objetos, e ele mundo, o mundo da história humana, e, inversamente sabe esse mundo
servo), despedaçando-se em sua própria fé. (Hegel 7, p. como sendo o si. A evolução segundo a tomada de consciência é indi-
303) cada pelo próprio Hegel: “O espírito é a vida ética de um povo,
enquanto é a verdade imediata: o indivíduo que é um mundo. O espírito
Contra a intenção do escrito de juventude e já no espírito do Hegel deve avançar até à consciência do que ele é imediatamente; deve
tardio, a dupla interpretação e a dupla utilização da figura de Macbeth, suprassumir a bela vida ética, e atingir, através de uma série de figuras, o
que, desse modo, constitui um testemunho da dialética hegeliana, ante- saber de si mesmo” (Hegel 8, p. 306).
cipa a síntese que a Fenomenologia irá realizar na interpretação de Antí- Nesse estágio primeiro, o espírito é; ele é a substância dos indivíduos
gona. Certamente, não se deve esquecer que, nesta obra, a tragédia de e, ainda, a sua obra. A unidade do espírito manifesta-se primeiramente
Sófocles não será considerada enquanto tragédia, e que não será dada em um mundo onde todo comportamento ético é regulado pelo cos-
nenhuma definição de trágico, já que os termos “trágico” e “tragédia” tume. A multiplicidade da vida humana afigura-se de uma consciência
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de Si comum, a qual Hegel chama de “essência comum” (Gemeinwes- totalidade, o espírito verdadeiro como totalidade ou infinidade. Mas a
sen). Esta é uma espécie de unidade – ou comunidade – manifestada em ação “(...) que só perturba a quietude da substância...” (Hegel 8, p. 490)
um “povo”: “Como substância efetiva, o espírito é um povo, como cons- faz emergir o Si em sua potência negativa, tornando-se o seu destino. O
ciência efetiva é o cidadão do povo” (Hegel 8, p. 305). Em face disso, é destino será o desaparecimento da bela totalidade ética. “De fato, (...) a
que a consciência de um cidadão individual é identificada com a cons- substância ética, mediante esse movimento, veio-a-ser a consciên-
ciência do povo como um guia para a ação. O que distingue o “ético”, cia-de-si efetiva; ou seja, este Si se tornou algo em-si-e-para-si-essente.
neste contexto, é que este envolve sacrificar a particularidade da razão Mas nisso, precisamente, a eticidade foi por terra” (Hegel 8, p. 308).
individual para a generalidade da consciência universal. Aqui, “Ao sair A consciência do dever, portanto, que simplesmente reconhece o
em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento dever como dado, está destinada a produzir, na ação, um conflito entre
da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em o “divino” e o “humano”. Não é, contudo, um conflito a ser resolvido
jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá sobre este nível da consciência; simplesmente observamos o destino afi-
que buscar-se. Essa é a era da epopéia” (Lukács 11, p. 26). gurar da consciência trágica dos gregos. Nos Cursos de estética, Hegel
Na ação, o indivíduo promove sua “atualidade isolada” ao nível da afirma que os indivíduos em conflito trágico apresentam-se como totali-
“essência universal” dando a esta última uma “atualidade”. Assim, rea- dades, de modo que estão submetidos neles mesmos à violência daquilo
liza-se “(...) a unidade do Si e da substância...” (Hegel 8, p. 307). Se o que combatem e, assim, ofendem o que deveriam honrar. O protago-
individual age eticamente, ele realiza em sua ação o universal: “(...) pro- nista identifica-se com um lado do conflito, com a lei humana ou com a
duz a unidade de seu Si e da substância como obra sua e, portanto, divina, ao ponto de não ver a outra, de vê-la somente como uma reali-
como efetividade” (Hegel 8, p. 307). Neste sentido, o espírito do povo dade sem justificação. Isso em razão do primitivo estágio em que estão;
como um todo encontra expressão na “lei humana”, regulando a vida de o homem e a mulher não podem realizar seu tipo de consciência; eles
todos, sem exceções, como uma comunidade de preservação exclusiva- têm, com a lei, uma identidade não crítica imediata; conseqüentemente,
mente masculina – o “folclore masculino”. Contra esta há outra, uma “lei a lei é dupla aqui; podemos até dizer que há duas espécies de “caráter”;
divina”, que é igualmente universal, mas que regula outra forma de as duas leis tomam expressão em tipos diferentes de pessoas (o homem
comportamento e, assim, é orientada para uma “essência comum” dife- e a mulher), cada qual totalmente identificado com a sua parte, sem crí-
rente – “(...) uma comunidade ética natural – a família” (Hegel 8, p. 310), tica. Conseqüentemente, o desacordo entre ambos desencadeia a luta
cuja função ética é naturalmente destinada às mães, ao “folclore femi- entre Antígona e Creonte sobre o sepultamento de Polinices, cada um
nino”. Lê-se, em Antígona, que essas normas “(...) não é de hoje, não é deles certo de estar totalmente direito. O caráter trágico a que pertence
de ontem, / é desde os tempos mais remotos que elas vigem / sem que este estágio de irrefletida Sittlichkeit é tal que age sem ver a outra lei que
ninguém possa dizer quando surgiram” (Sófocles 13, p. 219). Embora a está ligada a ele, cuja violação jaz na realização da primeira.
família seja uma constituinte do todo mais amplo, ela tem seu próprio Tebas foi libertada do perigo que a ameaçava, exterminando-se no
espírito – o “Penates” do mito grego. Assim, há dois “espíritos” regu- fratricídio a descendência masculina da linhagem maldita. Mas Etéocles
lando o costume, ambos comuns a todo o povo, porém um em oposição tombou como defensor da pátria, Polinices como seu agressor. Por isso,
ao outro. Para Hegel, Antígona, de Sófocles, dramatiza a relação do seu cadáver permanece insepulto, presa dos cães e das aves. Essa ordem
homem e da mulher com a substância. do novo senhor da cidade, Creonte, é uma lei humana que quer reali-
De início, tais oposições são apenas distinções: a do indivíduo e do zar-se a si mesma, mas também um crime contra o mandamento divino
universal, a da família e do povo. Seu conjunto constitui a bela que ordena honrar os mortos, e que Odisseu defende em Ájax. Por isso,
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para Antígona não há hesitação: com a firme decisão de assegurar o permanece meramente pedra – não reveste a forma de
sepultamento do irmão, pisa a cena. Entretanto, ela vive sob o poder do forma apenas exterior; mas, transformada, torna-se expres-
Estado de Creonte. Como é filha do rei e noiva de Hêmon, deveria obe- são do espiritual, contrariamente à sua natureza. Inversa-
decer a ordem do príncipe. Mas também Creonte, que é pai e marido, mente, o artista carece, para as concepções do seu espírito,
deveria respeitar o caráter sagrado do sangue e não ordenar o que se da pedra, das cores, das formas sensíveis para expressar sua
opõe a esta piedade. Assim, está em ambos imanente aquilo contra o idéia. Sem esse elemento, ele não pode ser consciente da
que eles alternadamente se elevam, e, então, eles são atacados e arrui- sua idéia, nem dar forma objetiva para a contemplação de
nados naquilo que pertence ao círculo de sua própria existência. Antí- outrem; pois ela não pode apenas em pensamento tornar-se
gona sofre a morte, antes de conhecer as alegrias do matrimônio, mas um objeto para ele. (Hegel 9, p. 253)
também Creonte é punido pelo seu filho e por sua mulher, que se entre-
gam à morte; o primeiro, por causa de Antígona, a segunda por causa da Portanto, o espírito grego, porque nas reduzidas dimensões de uma
morte de Hêmon. cidade concreta, põe-se a si mesmo como “bela individualidade”, é uma
Nesse processo é revelada a evasão da substância: da absoluta ima- “obra de arte política”. O Estado é a obra dos cidadãos; em sua necessi-
nência à vida, em Homero, à essência abalada, porém, viva, em Ésquilo dade abstrata, ainda não se tornou o destino deles:
e Sófocles. No destino que dá forma e no herói que, criando-se, encon-
tra-se a si mesmo, a pura essência desperta para a vida; quando o Si Enquanto Costume e Vontade são as formas pelas quais o
negativo emergiu, tomou-se consciência de que a vida como ela é (por- Justo é realizado, estas formas são formas estáveis, e ainda
que todo dever-ser suprime a vida) perdera a essência. “O herói da tra- não admitira nela mesma o inimigo da imediatez – a refle-
gédia sucede ao homem vivo de Homero, e o explica e o transfigura xão e subjetividade da Vontade. Os interesses da comuni-
justamente pelo fato de tomar-lhe a tocha bruxuleante e inflamá-la com dade podem, portanto, continuar a ser deixados à cargo da
brilho renovado” (Lukács 11, p. 33). Pela primeira vez, mas também pela Vontade e resolução dos cidadãos – e isso deve ser a base da
última vez, depois que essa unidade foi rompida, não há mais uma tota- constituição grega; pois nenhum princípio ainda se manifes-
lidade espontânea do ser. A ordem ética era imediata, e justamente por tara que pudesse transgredir tal Escolha condicionada pelo
isso desfez-se. Claro que, no mundo grego, a substância está sempre Costume, e que pudesse impedir sua ação. A Constituição
presente, não importa em qual de seus estágios, seja épica, tragédia ou Democrática é aqui a única possível: os cidadãos são ainda
filosofia; o que muda é a relação com essa substância – da imanência à inconscientes de interesses particulares e portanto do ele-
vida até a transcendência, de Homero até Platão. De qualquer forma, mento corrupto: a Vontade objetiva não está, neste caso,
essa imediatez é um belo momento no vir-a-ser do espírito, e, também, desintegrada. Atena, a Deusa, é a própria Atena, isto é, o
por isso o espírito tentará reencontrá-la. Hegel e seus contemporâneos espírito real e concreto dos cidadãos. A Divindade cessa de
viram a Grécia como um mundo perfeito e fechado. Em A Filosofia da inspirar suas vidas e conduzi-las somente quando a Vontade
História, Hegel nos apresenta o espírito grego como “a bela individuali- se retirar nela mesma – no adytum da cognição e consciên-
dade” que transforma a natureza em sua própria expressão: cia – e estabelecer a infinita separação entre o Subjetivo e o
Objetivo. (Hegel, 9, p. 252)
O Espírito grego é o artista plástico que transforma a pedra
em trabalho de arte. Nesse processo formativo, a pedra não
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Hegel explica, a seguir, porque esse círculo em que viviam metafisi- caracterizam-se como “(...) os belos indivíduos eternos que, repousando
camente os gregos rompeu-se para nós; desde a introdução da “reflexão em seu próprio ser-aí, são imunes à caducidade e à violência alheia”
subjetiva”, pelos sofistas, os arquétipos perderam sua obviedade obje- (Hegel 8, p. 492). No entanto, são caracteres equívocos, não muito divi-
tiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito rumo à moralidade. nos: eles debatem-se uns com os outros – com muito desentendimento –
A totalidade do ser só é possível quando tudo é homogêneo; quando as mas não podem vencer nem perder. Pior ainda, todos eles estão, a des-
formas não são uma coerção, mas somente a conscientização, a vinda à peito de seus poderes super-humanos, capturados e sob o domínio do
tona de tudo quanto dormitava como vaga aspiração no interior daquilo destino, que os esvazia de sua divindade – ninguém pode escapar do
que se devia dar forma; quando o saber é virtude e a virtude felicidade; destino, nem os heróis, nem os deuses. Este destino de um indivíduo ou
quando a beleza põe em evidência o sentido do mundo: de um povo não é outra coisa para Hegel que a manifestação na reali-
dade efetiva, na história universal que se tornará, para ele, o Tribunal do
Podemos dizer que os gregos, em sua primeira e genuína mundo, daquilo que os indivíduos ou povos são como pathos. Pois “(...)
forma de Liberdade, não tinham consciência [moral]; o nada grande no Mundo realizou-se sem paixão” (Hegel 9, p. 23) – isto é,
hábito de viver em sua pátria sem outra [análise] ou reflexão, nenhuma operação humana é adequada à vida infinita, nela sempre há
era o princípio dominante entre eles. Para o grego, sua uma finitude que é sua marca.
pátria era uma necessidade de vida, sem a qual a existência Em Hegel, o destino é o que o homem é, é a sua própria vida, o seu
era impossível. (Hegel 9, p. 253) próprio pathos, que lhe aparece como algo que se tornou estranho.
“Pois o destino (...) é só a manifestação do que a individualidade é em si
Do ponto de vista estético hegeliano, a mais importante forma de como determinidade interior originária” (Hegel 8, p. 225). Tal unilatera-
expressão é a linguagem, e a mais significante forma de expressão artís- lidade do pathos constitui o fundamento das colisões trágicas. “Devido a
tica é a poesia. Na linguagem da poesia, “(...) o espírito desenvolve para sua efetividade, e em virtude do seu agir, a consciência ética deve reco-
2
si a universalidade mais abstrata em uma totalidade concreta das repre- nhecer seu oposto como efetividade sua; deve reconhecer sua culpa:
sentações, fins, ações, acontecimentos (...), ele abandona não só a interi- ‘Porque padecemos reconhecemos ter errado’” (Hegel 8, p. 325). Porque
oridade que meramente sente e elabora a mesma até um mundo de a punição que o homem recebe do destino é aquela da vida determi-
efetividade objetiva” (Hegel 6, p. 15). Não é à toa, então, que ao tratar da nada, que oferece o caminho para a reconciliação; o destino é justa-
religião como obra de arte espiritual na Fenomenologia, Hegel afirma mente o outro lado da sua ação; e ao reconhecer isso, ele pode restaurar
que a fim de expressar a sua união com o divino, em que alcança seu a unidade, cessa de agir do modo pelo qual divide, e, portanto, cessa de
máximo espiritual, o homem fará uso da linguagem da poesia. chamar a si um destino alienado. Ao fazer isso, restaura a unidade da
A primeira linguagem poética a dar forma a esta universalidade de vida, supera totalmente a divisão causada pela transgressão.
deuses na sua união com os homens é a épica; “(...) que contém o conte- Tudo o que vimos a respeito da substância ética do povo, na dialé-
údo universal, ao menos como totalidade do mundo, embora não como tica do Espírito, toma conteúdo na análise hegeliana da consciência reli-
universalidade do pensamento” (Hegel 8, p. 490). Ao mover-se da giosa grega, de tal modo que o prévio relacionamento abstrato entre os
inquestionável aceitação do costume imemorial, a consciência religiosa deuses e o homem, a família e o estado, o macho e a fêmea, é aí concre-
torna-se a consciência de uma cidade composta de distintas consciên- tizado. O deus grego é um perfeito casamento da forma divina e da
cias de si. Há muitos deuses funcionando como projeções substantiva-
das de todas as consciências de Si do povo. Nesse contexto, os deuses
2 Aqui Hegel cita Antígona de Sófocles.
134 Rossi, J. C. Cadernos de Ética e Filosofia Política 11, 2/2007, p. 119-143. Acerca do trágico em Hegel 135

humana, justamente como a cidade-estado grega casa o individual e o o mais eficiente foi um deus – Apolo,
político. Mas o preço é o mesmo em ambos os casos; o homem não está o deus de Pito –; ele mesmo me revelou
pronto para a reconciliação com o universal, então os deuses são huma- que se eu agisse assim não seria culpado;
nos ao preço de serem múltiplos e particulares, como as cidades são mas se deixasse de cumprir as suas ordens...
substâncias verdadeiras ao mesmo preço. Inversamente, na mesma – não posso revelar o nome do castigo:
época, a pessoa que alcança a plena universalidade do espírito, os o alcance de uma flecha seria menor
Judeus, são aqueles que sentem a maior alienação do divino. Mas o que os sofrimentos reservados para mim.
Espírito deve encontrar alguma expressão; e conseqüentemente os deu- (...)
ses são particulares, o universal reaparece como uma necessidade do Agora irei andando como um vagabundo,
destino, à qual mesmo os deuses estão sujeitos. banido desta terra, pelo mundo afora,
É precisamente essa experiência da necessidade que, na tragédia, deixando atrás de mim uma fama hedionda
acaba por identificar o protagonista a uma lei; ele avança para a destrui- por toda a vida e mesmo após a morte.
ção por causa de suas próprias contradições. A experiência da contradi- (Ésquilo 3, p. 139)
ção liberta o homem de sua inquestionável submissão à sua cidade
particular. Os indivíduos vêem a si mesmos como universais, mas, ao Macbeth sofreu o mesmo destino porque sua má intenção condu-
mesmo tempo, estão alienados de sua sociedade. Além disso, na tragé- ziu-o a interpretar as vozes das bruxas em seu próprio favor: “Maldita
dia, a confusa multiformidade de seres divinos diminui a um pequeno seja a língua que mo revelou! Acaba de abater em mim o que possuía de
número de poderes mais individualizados e reconhecidos como pesso- melhor! Que jamais se acredite nesses demônios enganadores que zom-
ais. O herói individual que age encontra-se em uma ambivalente situa- bam de nós com oráculos de duplo sentido, murmurando palavras pro-
ção. Porque os deuses falam em enigmas, o homem sabe e não sabe o metedoras aos nossos ouvidos e destruindo nossas esperanças!”
que está fazendo. Édipo e Orestes, nas Coéforas, foram levados à perdi- (Shakespeare 12, p. 189); enquanto Hamlet, o mais autenticamente
3
ção pelo oráculo enviado por Deus; aquele porque interpretou sincera- consciente de si dos heróis, reconhece que a voz do espectro do seu pai
mente as suas palavras: “Foi Apolo! Foi sim, meu amigo! / Foi Apolo o poderia ser a voz do demônio e nada faz:
autor de meus males, de meus males terríveis; foi ele! Mas fui eu quem
vazou os meus olhos” (Sófocles 13, p. 88); o outro porque confiou nele O espírito que vi bem poderia ser o demônio, pois o demô-
de modo infantil: nio tem o poder de assumir um aspecto agradável. Sim e,
talvez, quem sabe, valendo-se de minha fraqueza e de
(...) minha melancolia, já que ele exerce tamanho poder sobre
grito estridentemente a todos os amigos: semelhante estado de ânimo, engana-me para condenar-me
matei a minha mãe, e com muita razão. ao inferno? (Shakespeare 12, p. 250)
Ela matou o meu pai e personificava
a máxima impureza, execração dos deuses; Aristóteles, no capítulo XIII da Poética, lá onde desenvolve sua teo-
quanto aos estímulos que me deram audácia, ria da mudança no destino com núcleo do mito trágico e, ao mesmo
tempo, defende sua concepção dos caracteres “médios” como os mais
3 Embora o deus dos oráculos fosse Apolo, atribuía-se a Zeus, o deus maior da mitologia apropriados à tragédia, diz, que nesta,
grega, a inspiração, em última instância, entre os deuses e os mortais.
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Cai, (...), o personagem médio, e este é tal que não se des- aflora de seus lábios, e quando Atena, para fazê-lo avaliar a extensão da
taca nem por sua virtude nem por sua justiça e tampouco cai queda, lhe pergunta se conhece um herói maior que Ájax, ele responde
em infortúnio por sua maldade ou perversão, senão por profundamente comovido:
alguma falha; um desses [heróis que] se encontra no auge da
glória e em plena prosperidade, como Édipo e Tiestes. (Aris- Até onde posso saber, ninguém Atena.
tóteles 1, p. 61) Compadeço-me dele em seu grande infortúnio
embora seja o pior dos meus inimigos,
Mas, então, se semelhante “queda” no infortúnio, caso tenhamos que pois ele está atado a um destino horrível.
considerá-la trágica, não deve decorrer de um defeito moral, mas de Medito ao mesmo tempo sobre a minha sorte
uma “falha”, devemos interpretá-la como uma “falha” no sentido da e sobre a deste herói, pois vejo claramente
incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto e obter uma que somos sombras ou efêmeros fantasmas
orientação segura. Assim, o homem que não naufraga em uma falha vivendo a nossa vida como os deuses querem.
moral vai a pique, porque dentro dos limites da natureza humana, não (Sófocles 5, p. 82-83)
está à altura de determinadas tarefas e situações.
O conceito básico das tragédias de Ésquilo e de Sófocles é, aliás, esta Repare que a consciência da tensão que ameaça continuamente sua
“falha” aristotélica. Somente o voltar-se para Deus pode dar segurança existência não produz no homem, aqui representado por Odisseu, uma
ao homem, mas assim mesmo, sua vida nesta terra, devido à constitui- atitude de passiva resignação. A prepotência das forças que ele enfrenta
ção humana, está de antemão exposta ao engano, às aparências que lhe pode, a qualquer momento, arrebatar-lhe a vida, mas não pode con-
escondem a realidade, ao desvario que o atrai para a ruína. Ésquilo nos fundi-la depois que ele conquistou o saber quanto aos limites da sua
mostra o homem completamente inserido na ordem divina do mundo, existência e o converteu em posse completamente sua. Nessa atitude
que nele se cumpre por meio da expressão da ação e sofrimento, sofri- resoluta, que poderíamos chamar de verdadeiramente heróica, reside o
mento e compreensão. Em Ésquilo, é no próprio homem que essa segredo daquela serenidade de Édipo, que ele compartilha com outras
ordem não só está representada como também justificada. Já Sófocles vê personagens de Sófocles, tais como Ájax, Antígona e Electra. O destino o
o homem de outro modo: numa irremediável oposição com os poderes envolveu em suas redes; ele vê como as malhas vão se apertando de
que regem o mundo, que, também para ele, são divinos. Sua religiosi- modo cada vez mais inextrincável, porém ainda no último instante
dade não é menos profunda que a de Ésquilo, mas é de natureza inteira- poderia ter evitado a catástrofe, se houvesse deixado cair novamente
mente diversa. Encontra-se mais próxima da expressão délfica que, com sobre as coisas o véu que ele mesmo erguera. Pelo inexorável de sua
o “Conhece-te a ti mesmo”, dirige o homem aos limites de sua essência vontade, mesmo quando ela o conduz diretamente à morte, se converte
humana. Bem no início de Ájax, de Sófocles, encontra-se uma cena que no herói de uma tragédia que alcança seu ponto culminante na antítese
nos revela, como nenhuma outra, essa visão que do mundo tinha o dos versos a seguir; antes do momento da última revelação, o pastor se
poeta. A Odisseu, para quem foi adjudicada a armadura de Aquiles, a lastima: “Quanta tristeza é doloroso de falar! / Mais doloroso de escutar,
qual Ájax, o melhor dos heróis de Tróia, esperava receber, Atena oferece mas não te negues” (Sófocles 13, p. 81) – é a resposta de Édipo. E
o espetáculo do adversário caído: “Zombar de um inimigo é doce zom- quando, cego, se encontra na noite do infortúnio, seu desejo por certo é
baria” (Sófocles 5, p. 79) – diz ela a Odisseu. Mas, aqui, o homem se que Citéron houvesse ficado com o menino, mas o outro pensamento, o
revela maior que a deusa. Nenhuma palavra de triunfo ou de alegria de que a horrenda verdade teria permanecido para sempre sob o véu
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que durante tanto tempo a encobrira, é em seus lábios inconcebível. as divindades ancestrais como guardiãs das leis eternas da família. Vem
O que começa com uma completa confiança no governo divino do daí a síntese, a união realizada do político e do privado, do masculino e
cosmos torna-se uma confrontação trágica com poderes individualiza- do feminino.
dos, e termina com uma desconfiança no tipo de deuses que brinca com Com efeito, Hegel afirma na Estética que o desenlace trágico não
o destino do homem. A religião grega foi capturada em uma armadilha necessita, para o perdão de ambas as unilateralidades e de sua honra
de ambigüidades; seus deuses eram os atributos personificados da subs- igual, do declínio dos indivíduos participantes. As Eumênides, de
tância ética, mas eles não poderiam agradar a um sem ofender ao outro. Ésquilo, não terminam com a morte de Orestes ou com a destruição das
As vozes dos deuses estavam resolvidas a não serem aparências da ver- Eumênides – vingadoras do sangue materno e da piedade – diante de
dade, mas advertências de engano, e o espírito humano era amaldiço- Apolo, que, ao pretender sustentar a dignidade do chefe de família e do
ado se agia e se não agia. A única resolução da contradição, em que a rei, instigou Orestes a matar Clitmnestra, pois, Orestes é perdoado e
consciência encontrou a si mesma, foi o “esquecimento”, tanto o esque- ambos os deuses são honrados. Essa reconciliação, na qual um destino
cimento do mundo inferior, na morte, como o esquecimento do mundo particular se inscreve no destino em geral é a harmonia final da repre-
superior, na remissão, não da culpa, porque desde que tenha agido a sentação trágica que faz aparecer a realidade efetiva que se apresenta
consciência não pode negar sua culpa, “Inocente, portanto, é só o por meio do esquecimento: “(...) o repouso dentro de si mesmo, a uni-
não-agir – como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser de uma criança é dade imóvel do destino, o tranqüilo ser-aí, e por isso [é] a inatividade e a
inocente” (Hegel 8, p. 323). falta-de-vitalidade da família e do Governo; [é] a honra igual, e, por-
Para Hegel, é preciso que o espírito não esteja separado do mundo tanto, a inefetividade indiferente de Apolo e da Erínia, e o retorno de
sensível, substância absorvente de sua individualidade, poder absoluto seu entusiasmo e atividade ao Zeus simples” (Hegel 8, p. 498). Portanto,
se submetido à consciência subjetiva e anulador como tal; é preciso pois as Eumênides, de Ésquilo, exibem a resolução do problema da unidade
que exista sob a forma de um mundo ético. Desse modo, Hegel entende das duas essências (lei divina e lei humana) na Cidade. O confronto ter-
essa unidade moral e política como característica da cidade grega, mina com a reconciliação promovida por Palas Atena. A antiga ordem e
governada por leis. A pólis apresenta-se com uma ordem racional e a nova ordem são reconciliadas graças ao instrumento de justiça criado
humana: suas prescrições não são nem arbitrárias nem estranhas. A bela pelo Estado ateniense. Mas ao mesmo tempo, nessa conclusão decisiva,
totalidade que é a cidade grega é a harmoniosa união de dois termos diante da Atenas efetiva vemos o que valiam para os gregos os seus deu-
opostos: a substância ética e a sua subjetividade. De acordo com Bras ses. É Atena, a deusa, que, ante os votos iguais do Aerópago, acrescenta
(Bras 2), se no mundo ético as prescrições são realizadas espontanea- a pedra branca que liberta Orestes. A partir de então, as Eumênides
mente – como uma segunda natureza –, nas artes, elas são representa- serão honradas como poderes divinos, de modo que sua natureza selva-
das. Claro que elas não podem ter nem têm a forma de princípios gem seja apaziguada ao desfrutar, no altar erguido para elas lá embaixo
abstratos, senão seriam absurdas como entidade particular. Resulta que na cidade, da contemplação de Atena sentada no trono que se localiza
a figura artística associa nela o universal e o particular. A começar, é no alto da Acrópole. Por isso, Hegel analisa que diante dessa reconcilia-
estátua de um deus com forma humana, encarnação de um poder não ção objetiva, o nivelamento é de espécie subjetiva. Porque o indivíduo
natural; em seguida, ela se torna rapidamente um herói que, por meio somente desiste diante de uma potência mais elevada e seu conselho e
de sua ação contribui excepcionalmente – como Orestes, vingador de ordem, persistindo por si mesmo em seu pathos; contudo, a vontade
seu pai e fugente das Fúrias (Erínias) – para a instalação de uma nova rígida é quebrada por um Deus. O Aerópago fundado por Atena, como
ordem racional: Atena consagra o Aerópago como tribunal da Cidade e aquele da época em que foi representada a peça, no ano de 458, só tem
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em mãos a jurisdição nos assuntos de sangue. Mas é com temor que o essas obras, o que leva a uma dedução de uma mudança na concepção
poeta vê o espírito da evolução, e inspirando-se no seu pensamento de trágico. No escrito que precede a Fenomenologia, o trágico é o marco
ético, faz Atena dizer, no discurso de fundação: de um mundo da eticidade, que se divide no destino e encontra reconci-
liação no amor, enquanto o mundo oposto, baseado na contraposição
Nem opressão, nem anarquia: eis o lema rígida entre particular e universal, não possibilita de modo algum o trá-
que os cidadãos devem seguir e respeitar. gico. Na Fenomenologia, por sua vez, o conflito trágico se dá justamente
Não lhes convém tampouco expulsar da cidade entre o mundo da lei e o mundo do amor. E então, podemos afirmar que
todo o Temor: se nada tiver a temer, nos anos entre os Escritos de juventude e a Fenomenologia, a dialética
que homem cumprirá aqui os seus deveres? muda: de manifestação teológico-histórica (no espírito do cristianismo)
(Ésquilo 3, p.179) e torna-se lei do mundo e método de conhecimento. Elevada a um prin-
cípio universal, ela não tolera nenhum reino que lhe permaneça inaces-
Aqui, a colisão da intuição da reconciliação afirmativa e da vigência sível. Assim, o que se reconhece como conflito fundamental do trágico é
igual de ambas as potências foi completa. É o compasso trinário de justamente aquilo que precisa irromper entre a origem da dialética e a
Hegel, tese, antítese e síntese que se revela nessa concepção do aconte- região da qual ela se afastou ao surgir. Assim, a oposição entre judaísmo
cer trágico. A substância ética como individualidade imediata terá pere- e cristianismo é suprimida, na imagem hegeliana da Antiguidade. Nesta
cido, e a subjetividade infinita virá à luz do dia. sociedade, as mais totais aspirações morais e espirituais do cidadão
eram atendidas na vida comum da sociedade. Esta sociedade comum
era assim como uma substância comum; como parte dela, o indivíduo
Considerações finais
encontrava um significado e propósito para sua vida; destacado dela, ele
Vimos que a Fenomenologia posiciona o trágico (mesmo sem deno- definhava. Mas esta dependência da substância comum não fazia desta
miná-lo) no ponto central da filosofia hegeliana, interpretando-o como a algo completamente outro ao qual ele devia subordinar-se; a vida
dialética a que está submetida a eticidade, ou seja, o espírito em seu comum era o “fazer de cada um e de todos”, ela era o trabalho dos cida-
estágio de “espírito verdadeiro”. Mas, além disso, concluímos que o trá- dãos. Se a substância mantinha o indivíduo, a atividade deste mantinha a
gico, em Hegel, caracteriza a posição do absoluto, na medida em que substância. A tragédia grega marca o abalo desta substância; ao agir, o
este, ao mesmo tempo em que é repouso, é essencialmente conflito indivíduo ético conhece um destino. No ato de ir até o seu interior, o
ontológico, contradição e mudança, cujo cerne é a conseqüência nega- espírito mergulha na lembrança compreensiva da sua consciência-de-si.
tiva da realização de uma ação, uma “falha” no sentido aristotélico da Trata-se do aspecto fenomenológico da dialética do Ser, e esse aspecto é
incapacidade humana de reconhecer o correto e obter assim uma orien- a história. Quanto ao ritmo da história, ele mesmo é: ação ? tomada de
tação; só é absoluto ao opor-se a si mesmo, pois para ser universal, a consciência ? ação. Essa é uma interpretação a partir da qual o trágico –
consciência singular deve experimentar um destino que lhe revele o que como a ênfase de Hegel nos convida a fazê-lo – caracteriza a démarche
ela é; a formação (bildung) desvela a história de uma consciência em do auto-reconhecimento do Espírito: um ponto de chegada de retorno a
luta dramática para ser ela mesma. si. Com efeito, se nos orientamos pela Estética hegeliana, podemos veri-
Entretanto, é justamente na proximidade entre o escrito de juven- ficar que os três estágios de formação do espírito, na Fenomenologia, o
tude e a Fenomenologia (além da Estética, considerada como o seu eco espírito imediato, o espírito estranho a si mesmo e o espírito certo de si
mais formalizado) – que se torna perceptível a diferença essencial entre mesmo, são configurados dos três estágios da poesia dramática, cujo
142 Rossi, J. C. Cadernos de Ética e Filosofia Política 11, 2/2007, p. 119-143. Acerca do trágico em Hegel 143

desenvolvimento, conforme a Estética hegeliana, prossegue da tragédia 5. ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPIDES. Prometeu acorrentado; Ájax;
à comédia antiga e destas ao drama moderno. Afinal, em Hegel, o con- Alceste. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.
ceito de drama, e mais especificamente o desenlace trágico, implica
6. HEGEL, G. W. F. Cursos de estética, v. 4. Trad. Marco Aurélio Werle e
resolução, reconciliação, síntese, de modo a qualificar o movimento da
Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004.
consciência em sua totalidade: a tese inicial é também a síntese final.
7. HEGEL, G. W. F. Escritos de juventud. Trad. José Maria Ripalda e Zol-
tan Szankay. Madrid: Fondo de Cultura Económica de Espana,
2003.
About the tragic in Hegel 8. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. Pe-
trópolis: Vozes, 2002.
9. HEGEL, G. W. F. The Philosophy of History. Trad. J. Sibree. New York:
Abstract: The aim is to demonstrate the Phenomenology of Spirit positi- Dover Publications, 2004.
ons the tragic in the center of Hegelian dialetic. For this, we’ ll analyse 10. HYPPOLITE, J. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito. São
the develop of this though in Hegel. The tragic charater who belongs to Paulo: Discurso, 1999.
the stage of unreflectin Sittlichkeit is one who have an immediate uncriti- 11. LUKÁCS, G. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Ma-
cal identity with the law. This because in the Greek city-state the man is cedo. São Paulo: Ed. 34, 2000.
not ready for reconciliation with the truly universal. Conversely, in the 12. SHAKESPEARE, W. Tragédias: Romeu e Julieta; Macbeth; Hamlet,
same epoch, the people who really grasp the full universality of spirit, príncipe da Dinamarca; Otelo, o mouro de Veneza. Trad. F. Carlos
de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cul-
the Jews, are those who feel the greatest alienation from the divine. But
tural, 1978.
the universal must find some expression; and since the Gods are particu-
13. SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei; Édipo em Colono; Antígona.
lar, the universal re-appears as the necessity of fate that even the Gods Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
are subject. And Hegel explicits the inner tension and conflit of Greek
society in the medium of Sophoclean tragedy.
Key-words: tragic – dialetic – spirit – Hegel – Antigone.

Bibliografia
1. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Antonio López Eire. Madrid: Istmo,
2002.
2. BRAS, P. G. Hegel et l’ art. Paris: Presses Universitaires de France,
1994.
3. ÉSQUILO. Oréstia: Agamenon; Coéforas; Eumênides. Trad. Mário da
Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
4. ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPIDES. Os Persas; Electra; Hécuba. Trad.
Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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