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Neoatraso

bolsonarista repete
clima de 1964, diz
Roberto Schwarz
Em entrevista, crítico afirma que apelo à
modernização econômica combinou-se a pautas
arcaicas nos dois casos
Claudio Leal
[RESUMO] Nos 50 anos da escrita de seu célebre ensaio
“Cultura e Política, 1964-1969”, o crítico literário Roberto
Schwarz compara o golpe militar ao triunfo de Bolsonaro,
momentos em que o apelo à modernização da economia
combinou-se a pautas arcaicas.
Leitura a quente do início da ditadura militar, o ensaio “Cultura
e Política, 1964-1969 – Alguns Esquemas”, de Roberto Schwarz,
completa 50 anos como texto obrigatório nas reflexões sobre a
produção cultural e o autoritarismo no Brasil. À época de sua
publicação na revista francesa Les Temps Modernes, em julho
de 1970, o crítico literário vivia exilado em Paris.
Um ano depois do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), baixado em 13
de dezembro de 1968, o ensaio repassava as tentativas
fracassadas de modernização do país no governo João Goulart,
apresentava as forças sociais revolvidas pelo golpe de 1964 e
observava as feições e contradições políticas dos movimentos
culturais florescidos naquele período.
Escrito entre 1969 e 1970, sendo mais tarde incorporado ao
volume “O Pai de Família e Outros Estudos” (Companhia das
Letras), de 1978, o texto acendeu polêmica com os tropicalistas
e motivou debates culturais na imprensa e nas universidades.
Aos 81 anos, em entrevista por escrito, Roberto Schwarz analisa
a ascensão da extrema direita no Brasil e a permanência de
questões formuladas no final da década de 1960.
O crítico literário Roberto Schwarz

O crítico literário Roberto Schwarz, em sua casa em São Paulo Adriano


Vizoni/Folhapress

No ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, o senhor


avalia que “o golpe [de 1964] apresentou-se como uma
gigantesca volta do que a modernização havia
relegado”. Numa eleição democrática, o atual
presidente saiu vitorioso com um discurso de defesa
da ditadura militar e hostil às políticas sociais e
identitárias dos antecessores. Essa revanche histórica
da extrema direita evidencia falhas políticas do PSDB e
do PT, partidos centrais nas últimas duas
décadas? Há bastante em comum entre a vitória eleitoral de
Bolsonaro, em 2018, e o golpe de 1964. Nos dois casos, um
programa francamente pró-capital mobilizou, para viabilizar-se,
o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente com os
rumos liberais da civilização. Ao dar protagonismo político, a
título de compensação, aos sentimentos antimodernos de parte
da população, os mentores do capital fizeram um cálculo cínico
e arriscado, que não é novo.
O exemplo clássico foi a viravolta obscurantista na Alemanha
dos anos 1930. Aceitando e estimulando o nazismo, a grande
burguesia alemã deflagrou um processo incontrolável, ao fim do
qual já não se sabia quem devorava quem. Não custa rever, a
propósito, o filme “Os Deuses Malditos”, de Luchino Visconti.
Pode ser que Bolsonaro não chegue lá, mas não terá sido por
falta de vontade.
Em 1964 houve um golpe de força; em 2018, uma eleição. É
duro admitir que a defesa da ditadura e o ataque a políticas
sociais bem-sucedidas possam ganhar no voto —mas podem.
Onde foi que PSDB e PT erraram, a ponto de abrir caminho
para a extrema direita? Não faltam explicações, nas quais os
adversários se culpam mutuamente.

Já o bolsonarismo considera a ambos farinha do mesmo saco:


são exemplos temíveis de estatismo e marxismo cultural, ou
seja, de comunismo. Obviamente a acusação é paranoica, mas
ainda assim ela talvez ajude a entender alguma coisa. PSDB
(então MDB) e PT cresceram no movimento histórico da
redemocratização e tinham na reparação da “dívida social” da
ditadura o seu programa.

Caberia ao Estado incluir os excluídos, melhorar o salário


mínimo vergonhoso e providenciar os serviços sociais
indispensáveis, de modo a tornar decente e mais solidária a
sociedade. Do ponto de vista eleitoral eram bandeiras
imbatíveis, e estava na ordem das coisas que os dois partidos
dominassem durante décadas. E não obstante...
Deixando de lado os erros que certamente os partidos
cometeram, há uma hipótese mais pessimista para a virada à
direita. A sequência de superações que durante algum tempo
deu a sensação de que o país decolava rumo ao primeiro mundo
pode ter chegado a seu limite, respeitadas as balizas da ordem
atual. Esgotada a conjuntura internacional favorável, em
especial a bonança das “commodities”, o dinheiro necessário a
novos avanços desapareceu, interrompendo o processo de
integração nacional e seu clima de otimismo.
A inversão da maré, ajudada por técnicas recém-inventadas de
propaganda enganosa, transformou aprovação em rejeição num
passe de mágica, aliás assustador. Na falta de organização
política para aprofundar a democracia, ou melhor, a reflexão
social coletiva, é possível imaginar que os novos insatisfeitos, os
favorecidos pelas políticas esclarecidas anteriores, refaçam o
seu cálculo e coloquem as fichas na aposta anti-ilustrada.
Num quadro de crescimento frustrado, procuram garantir a
qualquer preço os ganhos já alcançados, e passam, quanto ao
futuro, para o “salve-se quem puder”. Com sorte, a opção é
reversível.
Em 1969/1970, seu ensaio observava “a combinação,
em momentos de crise, do moderno e do mais antigo”.
Há uma permanência disso no convívio entre as pautas
moralizantes e militaristas do grupo de Bolsonaro e o
apelo à modernização através de reformas liberais
apoiadas por empresários e pelo mercado
financeiro? As situações se repetem, mas não são iguais.
Nos anos 1960, no contexto da teoria da dependência, falava-se
muito em “reposição do atraso”, para designar uma constante
de nossa história.
Nos momentos de crise aguda de modernização, quando parecia
que o país, para adequar-se ao presente, iria superar a
desigualdade abissal em suas relações de classe, aparecia uma
solução modernista-passadista, que permitia ao capitalismo
atualizar-se e à sociedade continuar gozando da sua
desigualdade de sempre. Aí estava a nossa incapacidade (ou
inapetência) para a autorreforma, a chamada “reposição do
atraso”, ou “modernização conservadora”, muito bem captada
pelo tropicalismo na época.
Pois bem, parece claro que hoje vivemos um novo capítulo dessa
história, com o casamento de conveniência, além de esdrúxulo,
entre a nova reforma liberal da economia e as pautas
arcaizantes do bolsonarismo. Dito isso, os tempos são outros.
Mal ou bem, em 1964 esquerda e direita prometiam a superação
do subdesenvolvimento, horizonte com que hoje ninguém mais
sonha.
Também quanto ao refluxo do atraso estamos pior. Cinquenta
anos atrás, quem marchava com Deus, pela família e a
propriedade, eram os preteridos pela modernização,
representativos do Brasil antigo, que lutava para não
desaparecer, mesmo sendo vencedor. É como se a vitória da
direita, com seu baú de ideias obsoletas, não bastasse para
desmentir a tendência favorável da história. Apesar da derrota
do campo adiantado, continuava possível —assim parecia—
apostar no trabalho do tempo e na existência do progresso e do
futuro.
futuro.
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escandaloso, é de outro tipo e está longe de ser dessueto. A
deslaicização da política, a teologia da prosperidade, as armas
de fogo na vida civil, o ataque aos radares nas estradas, o ódio
aos trabalhadores organizados etc. não são velharias nem são de
outro tempo.
São antissociais, mas nasceram no terreno da sociedade
contemporânea, no vácuo deixado pela falência do Estado. É
bem possível que estejam em nosso futuro, caso em que os
ultrapassados seríamos nós, os esclarecidos. Sem esquecer que
os faróis da modernidade mundial perderam muito de sua luz.
Como o senhor avalia o retorno de casos de censura
estatal a peças, exposições, livros e filmes, sob
motivação religiosa ou mera retaliação política? Até
onde sei, no período Fernando Henrique, Lula e Dilma não se
ouvia falar de censura, pela primeira vez em nossa história. Sob
esse aspecto fazíamos parte do mundo civilizado.
Numa fração pequena, a cultura era governada segundo seus
próprios critérios, auxiliada pelo Estado, ao passo que na parte
dominante ela era comandada pelo mercado. Do ponto de vista
da própria cultura, a proporção entre estas faixas era
insatisfatória, mas, ainda assim, muito melhor que a
intervenção autoritária e religiosa que se prepara agora.
Constatada a desgraça, não custa notar que nossa liberdade
cultural sempre teve um caráter gritante de prerrogativa de
classe. Salvo os grandes momentos de exceção, o seu foco estava
mais na atualização com a moda dos países dominantes que no
ajuste de contas com os abismos de classe em que vivemos.
Para enxergar um lado produtivo no retrocesso presente,
digamos que o confronto forçado com as novas religiões, o novo
autoritarismo, a nova meia-cultura não deixa de ser ocasião
histórica para sair de nossa modernidade às vezes rasa e
alcançar uma atualidade substantiva. Seria o momento, por
exemplo, para que nosso agnosticismo saia do armário e
conquiste seu direito de cidade.
Segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola
de Economia de Paris, o Brasil é o país democrático
com a maior concentração de renda no 1% do topo da
pirâmide. Entretanto, fortaleceu-se eleitoralmente
uma maré conservadora em que o combate à
desigualdade social não está no centro da agenda
pública. Como explicar esse paradoxo? Vou responder
indiretamente, com a citação de um trecho de Luiz Felipe de
Alencastro, que dá dimensão histórica e social ao problema. “A
escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso
com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes
mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para
elas, onde a segurança está privatizada, a escola está
privatizada, a saúde” (1996). Para colocação mais ampla, leitura
obrigatória, veja-se outra passagem do mesmo Alencastro, em
“Encontros” (Azougue Editorial, pág. 37).

Claudio Leal, jornalista, é mestre em teoria e história do cinema pela USP.

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