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Universidade Federal do Ceará

Centro de Humanidades II

Departamento de História

Disciplina de Historiografia Brasileira

Docente: João Ernani Furtado Filho

Discente: Antonio Humberto Magalhães Brito Filho

Um olhar sobre as inquietações do Gilberto Freyre a partir da análise racial


e econômica do seu livro Ordem e Progresso.

Em um primeiro momento, vou tentar expor o que podemos denominar de


primeiras impressões sobre o autor, ou pelo menos, os aspectos que tendem a ser
lembrados de forma reminiscente em uma escala coletiva. Pensar, por exemplo, no
Gilberto Freyre como alguém que nasceu na casa grande, símbolo da sociedade patriarcal
e agrária, que o mesmo se dizia sentir falta. Um homem que viveu durante toda a sua vida
no século XX (1900-1987) e, apesar de polêmico, foi um grande escritor (denominação
de sua preferência). Marcado por um comportamento ambíguo, onde “a promotoria de
acusação do tribunal sócio-histórico” o ver como machista, o homem da democracia
racial, que dizia não haver racismo no Brasil e sim um preconceito, e até o apoiador da
ditadura civil-militar, que posteriormente tenta se desvincular ideologicamente, de fato.
O historiador passa a ser visto com um olhar preconceituoso, onde em muitas das vezes
as pessoas deixam escapar o outro lado da moeda, que chega a ser revolucionária na
escrita da história, colocando a cozinha, a comida e os costumes que as rodeiam como
fonte e objeto histórico, estudos esses que observamos no seu livro “Açúcar”, onde o
autor vai analisar os livros de receitas, os ingredientes e até o modo que se serviam os
quitutes. Antes de tudo, foi inovador por perceber uma sociologia da comida e as relações
sociais a partir dela, sobre influência de um movimento da antropologia que colocava o
conceito de cultura em detrimento do conceito de raça, trazendo a perspectiva
antropológica da cultura e da alteridade para a historiografia, antes mesmo da terceira
geração dos Annales, a nouvelle histoire. Em resumo, sua falta de modéstia tinha
cabimento, quando o mesmo se colocava entre os grande intelectuais interpretes do Brasil.

Após essa rápida apresentação, tratarei agora da proposta do presente trabalho,


que a partir dos capítulos “A república de 89 e o progresso da miscigenação do Brasil” e
“A república de 89 e a ordem econômica” do livro “Ordem e Progresso”, que fora a obra
predileta do autor, compreender as concepções metodológicas e sociais que o Gilberto
Freyre deixa em evidência em sua narrativa. O livro trata sobre os processos políticos e
sociais que se deram na virada do governo monárquico para o republicano, onde no
capítulo referente à miscigenação, o historiador dedica sua atenção para a construção de
uma imagem eugênica do novo regime. Ele se atém em dois movimentos: um processo
de ressignificação do caboclo, que vai fazer parte de um movimento romântico a gosto
do Floriano Peixoto, militar que assumiu a presidência da primeira república após a saída
de Deodoro da Fonseca, e um outro processo, que partia dos intelectuais republicanos,
diferentemente do Floriano, viam a necessidade de eugenizar os representantes desse
novo regime. Enquanto o primeiro movimento consistia-se em exaltar a imagem do
indígena, que tanto defendeu nossas terras dos invasores franceses e holandeses, o
segundo movimento tinha uma perspectiva oposta. Com base em teoria científicas, como
o darwinismo social, os intelectuais republicanos se preocuparam com a substituição de
uma elite monarquista para um republicana, onde as características físicas (o corpo, a cor
e o padrão de beleza) deveriam ser de acordo com o modelo europeu. A preocupação fora
tanta, que membros dessa elite, como o Barão do Rio Branco, na época ministro dos
negócios estrangeiros do Brasil, acreditava que cargos como o dele necessitavam de
homens com tais requisitos, pois só assim nos distinguiríamos dos nossos antigos
colonizadores e vizinhos sul-americanos. Logo, homens como Rui Barbosa, Santos
Dumont e Juliano Moreira, apesar de inteligentes e bem comportados, não possuíam
características suficientes para “europeu ver”. Este último, inclusive, ao longe de sua vida
vai defender a ideia que negros e mestiços teriam as mesma condições raciais que os
brancos, onde a distinção se dava pelo meio em que viviam e a educação recebida, e não
pela raça1.

Ainda sobre a questão da miscigenação, o autor vai utilizar-se de depoimentos de


vários amigos e conhecidos seus para problematizar a aceitação do negro naquele período,
como o depoimento de Adolfo Faustio Pôrto, morador da cidade de Olinda, que possuía
antipatia pelo negro por não gostar da cor preta:

[...] Devo estabelecer uma gradação, ao justificar meu ponto de vista


pessoal sôbre coloração pigmentária, o qual me parece fundado, ao
mesmo tempo, em motivos estéticos e fisiológicos. O branco, nessa
gradação, vem em primeiro lugar, seguindo-lhe o índio, o mulato e, por
fim, o negro. A côr preta nunca me agradou. Ela não é uma sintese,
como a branca. É a própria ausência de cor, na série prismática [...]
(FREYRE, 1974, p. 357).

O capítulo vai estender-se em vários depoimentos que vão expor as opiniões de


homens e mulher nascidos, em sua maioria, nas décadas de 80 e 90 do século XIX. Feito
um levantamento geral, observa-se que a maioria era favorável a abolição de 1888, mas
se dizia contrária as relações entre brancos e negros, ou mestiços.

Partindo dos depoimentos, podemos enxergar duas fortes característica do


trabalho freyriano: a vantagem que o historiador tira dos seus vínculos amistosos para a
produção das próprias fonte, com o apanhamento de depoimentos e o jogo de escalas, do
macro para o micro. O próprio Gilberto Freyre já dizia não precisar de óculos, pois
acreditava ter “um olho bom para perto e um outro para longe”. Podemos entender essa
análise metodológica como uma abordagem micro-histórica, responsável por reduzir a
escala de observação do historiador com o intuito de perceber aspectos que passam
desapercebidos em uma abordagem macro. Ainda sobre esse jogo de escala, na intenção
de observar “o homem no tempo” em uma perspectiva holística, Gilberto Freyre utiliza-
se da teoria da Gestalt (ideia que busca a compreensão da totalidade para a percepção das
partes). Aquela imagem preta e branca, que dependendo da perspectiva, pode parecer um
cálice, ou o encontro de duas faces, vai ser a analogia usada pelo autor para problematizar
a questão das contradições, do antagonismo entre o preto e o branco e evidenciar a
necessidade de entender um para compreender o outro, como fizera em alguns trabalho:
“Casa Grande e Senzala”, “Sobrados e Mucambos” e “Jazigos e Cova-rasas”. Além de

1
Ver sobre isso em DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite: debates intelectuais sobre a
mestiçagem e preconceito de cor na primeira república. Rio de Janeiro, 1903-1914, Programa de Pós-
Graduação em História da UFF, Niterói, 2007.
uma análise das contradições, percebemos as suas inquietações com a questão da moradia
e as distinções sociais, pois fica evidente no título da última obra, aquela que seria o
quarto volume da História da Sociedade Patriarcal do Brasil, a reflexão de não haver uma
condição de igualdade perante os indivíduos nem após a morte.

Sobre o segundo capítulo, “A república de 89 e a ordem econômica”, Gilberto


Freyre vai voltar seu olhar investigativo, fazendo uso de um paradigma inicidiário, termo
que Carlo Ginzburg para explicar o processo de investigação do micro-historiador2, na
tentativa de compreender o todo, ou uma parte dele, através de alguns indícios, que no
caso freyriano são os registros dos depoimentos, artifícios estes que vão estar presentes
em todo o livro. O autor inicia o capítulo chamando a atenção para a crise financeira, que
teria se agravado após a proclamação da república, tendo em vista uma desconfiança
internacional a esse novo regime, muito por significar um distanciamento em relação aos
antigos monarcas, homens de confiança estrangeira. Outro aspecto abordado é a questão
da mudança da força de trabalho, antes escrava e a partir da Lei Aurea torna-se livre. Essa
transição vai significar uma série de mudanças nas vidas dos senhores rurais e na
estabilidade econômica do país. O historiador pernambucano, a partir de indícios como a
crise gerada pela abolição, vai construir um discurso sobre as permanências do regime
imperial na primeira república. Ele explica como a república, dita antimonárquica na
superfície, é a continuação da monarquia em sua essência se pensarmos, por exemplo, a
presença de políticos remanescentes do governo anterior.

Reduzindo novamente a escala, agora para uma dimensão provincial, o historiador


vai fomentar uma reflexão acerca do crescimento econômico e consolidação de São Paulo
no âmbito nacional. Não foi por acaso que São Paulo teve tanto peso na proclamação da
república. Se seguirmos o raciocínio do Gilberto Freyre, veremos como os aristocratas
paulistas, em meio a várias transformações que se sucederam na área da produção, desde
a troca da monocultura açucareira para a cafeeira, como também o processo de
industrialização que ocorreu no segundo reinado e se expandiu na república, percebemos
o carácter empresarial do paulistano do século XIX. Tamanha foi a ascensão, que durante
o segundo reinado São Paulo foi a província com maior concentração de escravos no
Brasil, muito pela migração de escravos vindos do Norte e Nordeste. Sobre a vinda desses
escravos, o historiador utiliza-se da atribuição de José Maria dos Santos para ressaltar a

2
Ver sobre isso em BARROS, José D’Assunção. Sobre a feitura da micro-história. OPSIS. Goiânia, v. 7, n.
9, p. 167-185, jul-dez. 2007.
condição financeira que algumas províncias dessas regiões passaram, já que a exportação
de açúcar brasileiro vinha sofrendo um declínio, ao passo que os donos de escravos das
regiões citadas tiveram que vender uma parte dos seus cativos para as regiões do Sul. Fora
a aquisição por via comercial, o autor fala sobre escravos que iam para as fazendas
paulistas como fugidos e lá eram aceitos. Mas além da migração de escravos, as regiões
do Norte e Nordeste também sofreram com a saída de uma elite intelectual: bacharéis em
direito, medicina, engenharia e militares, que deixaram as fazendas de seus pais, para se
tornarem genros dos senhores do café.

Adentrando nesse aspecto do trabalho e como ocorre essa transição do trabalho


cativo para o livre, Gilberto Freyre observa os motivos que propiciaram uma condição
razoavelmente tranquila dessa mudança em São Paulo, comparado aos casos do Rio
Grande do Sul, Santa Cataria e Paraná. Ele informa que segundo o engenheiro Bueno de
Andrade, no ano de 1887, um terço das fazendas paulistas já admitiam um regime de
mão-de-obra retribuída, dando a entender que São Paulo já estava preparado para esse
novo regime de trabalho, inclusive para a contratação de imigrantes europeus,
investimento bastante apreciado pelos paulistas. Mas também não deixa de evidenciar, a
partir do depoimento dado pelo Cássio Barros, as contradições que permeiam esse
discurso de transição amena:

[...] Feita como foi, a Lei de 13 de Maio constituiu um assalto a


propriedade privada e, revelando a imprevidência dos nossos homens
do govêrno que não prepararam o País materialmente para suportar
golpe tão profundo na organização do trabalho agrícola, deve ter sido
uma das causas preponderante da grande crise econômica e financeira
por que passou o Brasil nos primeiros tempos do novo regime.
(FREYRE, 1974, p.405).

Em meio a essa condição de perda da propriedade privada, condição a qual os


escravos se encaixavam até a abolição, depoimentos como o da Dona Antônia Lins Vieira
contam como alguns senhores rurais passam a atribuir a crise da força de trabalho aos
novos agentes políticos, inicialmente de responsabilidade monárquica, a culpa é
transferida para homens que representavam o governo republicano, como o Rui Barbosa
e o Benjamin Constant, construindo um imaginário sobre eles de “homens perigosos e
inimigos da ordem nacional”.

Além da produção cafeeira, Gilberto Freyre se atenta para a produção da


borracha, que rivalizava com o café no aspecto mercadológico durante o final do século
XIX. Dentro dessa problematização, é colocado o processo de migração como um dos
principais fatores dessa produção, onde o aventureiro adentrava as matas da Amazônia
em busca de melhores condições de vida, como expõem o estudo feito por Euclides da
Cunha em seu livro “À margem da História”3. Mas diferente da obra euclidiana, que mais
os caminhos e dificuldades encontradas pelo seringueiros, Gilberto Freyre se atém as
relações de trabalho e cotidiano da cidade de Manaus, com base em depoimentos como o
do Artur Coelho, que ao chegar na cidade se deslumbra com a estrutura urbana, por
exemplo, a presença de bondes elétricos, até então só encontrados nas cidades do Rio de
Janeiro e São Paulo. Essa estrutura, explica Gilberto, ser reflexo da lucrativa produção de
borracha que estimulava o crescimento econômico da localidade. Para mais que a
estrutura física, a modernidade também entrara na cidade através dos costumes vindos do
estrangeiros, principalmente da França, com suas vestimentas, alimentos e até a presença
de suas damas para entreterem os homens do norte. Continuando a trajetória do Artur
Coelho, o mesmo relata sobre suas percepções a respeito dessas deslumbrantes inovações
tecnológicas, acreditando ser a invenção uma revelação, enquanto as máquinas seriam
responsáveis pela missão redentora: tornando o homem capaz de produzir muito e pouco
se enforcar para isso. Dentro dessa questão, cabe colocar em destaque uma das pertinentes
inquietações do Gilberto Freyre, em pensar a questão da automação dentro dessa mesma
perspectiva, acreditando que as máquinas deixariam os homens com mais tempo livre
para se dedicarem ao lazer, aproveitando bem o tempo. Para o autor, o tempo era usado
de duas formas: uma boa, que seria o lazer, e uma ruim, no caso o ócio, onde ele vai
incluir atividades como a embriaguez e a luxúria. Logo, essa visão de um futuro próspero
nos faz pensar a sua relação com o tempo e como ele enxerga as questões das
temporalidades. Primeiramente, ressaltar o carácter positivo do seu horizonte de
expectativa, ao pensar que no futuro, muito com base em sua experiência de vida e do seu
meio social, o homem teria mais tempo livre para exercer atividades que o enriquecessem
intelectualmente com a implantação de uma força de trabalho tecnológica, sendo que hoje
em dia, sabemos das desvantagens que são atribuídas a essa automação do trabalho, como
os casos de desempregos. Um outro ponto é a forma que o historiador enxerga a questão
das temporalidades. Ele acreditava em um tempo tríbio, diferente do modelo horizontal
newtoniano, Gilberto via de forma vertical, ao passo que todos vivêssemos em uma
realidade tríbia: vivendo o presente, evocando o passado e planejando o futuro.

3
Ver sobre em CUNHA, Euclides da. À margem da História. São Paulo, Cultrix; Brasília, INL, 1975. 228 p.
Por fim, tratarei aqui os aspecto cultural que o Gilberto Freyre analisa no final do
segundo capítulo da obra analisada. Abordando uma discussão sobre a preferência do
brasileiro em hospedar-se nas pensões, em vez de hotéis, que inclusive era escassos nessa
parte do trópico, o autor vai provocar uma discussão sobre os costumes aqui vividos pelos
brasileiros durante esse período que o livro recorta. Desde o olhar preconceituoso do
estrangeiro em abismar-se da ausências de hotéis, que vai desencadear vários
posicionamentos a respeito do assunto, onde uns chegam a apelar para a modernização e
outros à tradição, até o consumo do sorvete e refresco nas regiões mais tropicais do país.
Sobre essa problematização em cima do alimentos refrescantes, lembrarmos dos seu
estudo em torno do alimento e suas relações com o meio social, como é o caso do livro
“Açúcar”, já citado no presente trabalho. Pensar também no poder investigativo e o
arcabouço de conhecimentos que este intelectual possuía.

Gilberto Freyre foi um homem intenso, ambíguo, contraditório, como um ser


humano costuma ser durante sua missão. Seguindo o caminho das Artes, da Antropologia,
da Sociologia, da História, dos prazeres e das dores, vemos nele uma grandeza, que por
vezes se apequena. Revolucionário no campo da escrita, mas conservador quando emitia
algumas opiniões sobre o viver em sociedade. Mas de conservado e progressista todos
temos um pouco... A proposta deste trabalho é dar o devido valor ao legado intelectual
deixado por ele, pois suas impressões mais precipitadas já nos ecoam. Acredito que a
síntese para entender o trabalho freyriano é a própria ideia da Gestalt: é preciso ver as
faces, que o critica com os olhares, e o cálice, que brinda a sua obra.
FONTE:

- FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso: processo de desintegração da sociedade patriarcal e


semipatriarcal no Brasil sobre o regime de trabalho livre. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1974. 814 p. (2º volume).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

- BARROS, José D’Assunção. Sobre a feitura da micro-história. OPSIS. Goiânia, v. 7, n. 9, p.


167-185, jul-dez. 2007.

- CUNHA, Euclides da. À margem da História. São Paulo, Cultrix; Brasília, INL, 1975.
228 p.

- DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite: debates intelectuais sobre a mestiçagem
e preconceito de cor na primeira república. Rio de Janeiro, 1903-1914, Programa de Pós-
Graduação em História da UFF, Niterói, 2007.

- FREYRE, Gilberto. Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: Universidade de
Brasília, 1968.

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