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JOSE ROBERTO DO AMARAL LAPA* AMERICA LATINA: O MODO DE PRODUCAO DO CONHECIMENTO HISTORICO (4) (instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas — UNICAMP) “O capitalismo € um modo de produgio material inte- lectual. Seja para constituir-se e generalizar-se, seja para reproduzir-se e recriar-se continuamente, as relagdes capita- listas engendram idéias, nogdes, valores e doutrinas.” Octavio lanni, Imperialismo e Cultura, 1974 Até 1974 pode-se reconhecer que o trabalho dos historiadores perten- centes aos quadros da Universidade latino-americana desenvolvia-se insulado em termos do nosso subcontinente. As reuniGes que lograram ser feitas e que por um momento quebravam esse isolamento eram contudo limitadas ou por serem a-sistemdticas, ié., motivadas por eventos histéricos nacionais, ou por fazerem parte, como um setor especifico, de reunides maiores e com temd- tios préprios, como é o caso, por exemplo, dos Congressos Internacionais de Americanistas que, a partir de um certo momento (1970), passararh a admitir 0 convivio dos historiadores em sessdes destinadas a esse fim, mas restritas 4 historia econdmica. Vencendo varias e substantivas dificuldades que normalmente assaltam os estudos histdricos, bem como e sobretudo a convocagao de uma reuniao desse nivel, em 1974 um grupo de historiadores pertencentes 4 Universidade Nacional Auténoma do México (Colégio de Historia e Centro de Investigacoes Hist6ricas) realizou naquele pais, de 15 a 19 de julho de 1974 0 J Encuentro de Historiadores Latinoamericanos que marcou 0 inicio de um movimento,’ ao que tudo indica agora institucionalizado e irreversivel. A filosofia que motivou os mexicanos a aceitarem exemplarmente o desafio de uma reunido daquele porte, bem como a consciéncia das limitagdes que pesam sobre o processo de producdo do conhecimento histdrico latino- -americano, ficou bem expressa na primeira circular enviada aos colegas desta parte do continente, que em certa altura afirmava, entre outras considerag6es: “Este encuentro, cuyo temario se envia adjunto, al plantear los problemas tedricos y metodolégicos de la historia, se propone analizar criticamente la historiografia latinoamericana de los cuatros dltimos decenios, con el fin de reforzar y estimular la investigacién historica y contribuir a una definicién de la funcién social del historiador en nuestro continente. Asimismo, esta reunion tendré como finalidad promover el acercamiento y la comunicacién entre instituciones e historiadores latinoamericanos, cuyo asilamiento tiene consecuencias negativas para el desarrollo de la ciencia histérica en nuestros paises, El intercambio de experiencias a nivel regional y continental permitird una mejor comprensién de los problemas que plantean la investigacién, la docencia y la difusién del conocimiento histérico y, al mismo tiempo, la busqueda de soluciones comunes.”” 165 Confirmando a vitalidade do movimento iniciado no México, realizou-se de 20 a 26 de marco o I Encuentro de Historiadores Latinoamericanos, promovido desta feita pela Universidade Central da Venezuela (Escola de Historia da Faculdade de Humanidades e Educagdo), do qual participaram 210 historiadores, total que se distribui em 44 convidados especiais, 10 dele- gados latino-americanos, 87 delegados venezuelanos e 69 observadores. Participaram também das sessdes de estudos 100 estudantes venezuelanos, Os seguintes paises se fizeram representar, indo o nimero dos seus delegados entre parénteses: Argentina (5), Bolivia (2), Brasil (3), Colombia (2), Costa Rica (1), Cuba (2), Curagau (2), Chile (4), Equador (1), El Salvador (1), Guadalupe (1), Guatemala (1), Haiti (2), Martinica (1), México (12), Nicaragua (1), Panamé (1), Peru (2), Porto Rico (2), Republica Dominicana (3), Trinidad y Tobago (1), Uruguai (2) e Venezuela (100). Um total de 63 comunicag6es foram enviadas ao Encontro, Por indicagdo do Comité Executivo Provisério, constituido durante o I Encontro, a Asociacion de Historiadores Latinoamericanos, também funda- da no México, passou a compreender o Caribe, ficando sua sigla ADHILAC. Esta extensdo teve como resultado imediato o comparecimento 4 reunido da Venezuela de representantes de outros paises dessa drea, que ainda nao haviam participado do Encontro. As diferentes dificuldades que se abatem sobre a ADHILAC refletem a situagdo geral do modo de produgao do conhecimento histérico na América Latina, Entre esses obstdculos, que ndo séo poucos nem pequenos, estd a insta- bilidade politica, gerando um quadro mobil de historiadores, que exilados ou se exilando dos seus paises de origem, trabalham em Universidades latino- -americanas, norte-americanas ou européias, 0 que leva sempre os organiza- dores dos Encontros a tomarem em consideragdo essa populagdéo de professores universitdrios de Histéria, ao ponto de em Caracas ter sido eleito como representante dos historiadores exilados 0 Prof. Carlos Rama, uruguaio que leciona na Universidade de Barcelona. Os pafses que mais oferecem esse tipo de problema sio a Argentina, Uruguai, Chile e Haiti. Enquanto aguardamos ainda a publicagao dos Anais do I Encontro do México e ja se prepara a edigdo do volume correspondente ao JJ Encontro, quando entao sera possivel uma avaliagao critica dos trabalhos apresentados, bem como se terd uma viséo de conjunto, pode-se entretanto, desde agora, apontar o que vem caracterizando a producao universitéria do conhecimento histérico na América Latina, desde que se reconhe¢a como representativa a populagao de historiadores que participou dessas reunies. Entretanto, neste registro vamos limitar-nos apenas ao volume de comunicagées apresentadas em Caracas. O temério do // Encontro compreendeu quatro temas, verificando-se, como na reunido.do México, alids, que tem sido suficientemente aberto ¢ flexivel para abrigar praticamente todas as vertentes, tendéncias e posturas dos estudos histéricos latino-americanos, 0 que até agora parece ter consti- 166 tufdo uma oportunidade para maior participacdo e conseqiientemente maior repercuss4o. Entretanto, é possivel prever que algumas especificidades sejam futuramente propostas ao nivel do temdériv, objetivando responder mais direta e prontamente aos interesses conjunturais que marcam a produgdo do conhecimento hist6rico nesta parte do continente. Essa concentragao de esforgos poderd ocorrer sem prejuizo da manutengao dos temas de interesse para uma maior comunidade de historiadores. Por sua vez, como também costuma acontecer nos congressos cienti- ficos brasileiros, nota-se, através das comunicagdes apresentadas para cada tema proposto, que na verdade nem sempre respondem a problematizagéo implicita na proposta feita pelos responsdveis pelo Encontro, 0 que no geral é de lastimar-se, pelo menos no caso desta segunda reunido, pois cada tema havia sido detalhado, objetivando com isso apontar questdes fundamentais para o conhecimento histérico latino-americano. O I tema compreendia os Problemas Histricos-Contempordneos da América Latina, tendo se desdobrado em trés sessdes, nas quais foram apresentadas oito comunicacGes, que no conjunto nao superaram uma proble- méatica nacional, com excegéo de uma comunicagado que estudou a Depen- dencia e integracion en Centroamérica. Entretanto, trabalhos como o do peruano Heraclio Bonilla (E/ problema nacional y colonial del Peru en el contexto de la Guerra del Pacifico), por exemplo, demonstraram o nivel que esses estudos podem atingir. Tendo em conta a representatividade, em termos latino-americanos, da provincia de historiadores reunidos em Caracas, vamos registrar alguns elementos que podem permitir eventualmente consideragdes sobre as tendén- cias dos estudos histricos nesta parte do continente, sem que contudo essas linhas vocacionais possam definir 0 mesmo perfil em termos nacionais. Mas, ao nivel continental, repetimos acreditar que possam refletir uma certa incli- nagdo dos estudos historicos, embora reconhecendo que 0 critério pouco escapa do nivel meramente quantitativo. Dessa maneira, tomando em consideragdo 0 tema I, que propds uma problematica referente 4 América Latina Contemporinea, verificamos que se adotarmos um largo critério de periodizagao é justamente essa contempo- taneidade da América Latina, que, a grosso modo, pode corresponder aqui ao século XX, aquela que maior ntimaro de estudos atraiu: 19, vindo a seguir o século XIX com 15 estudos e a América Colonial com 4, sendo 4 também 0 namero de trabalhos que cobriram toda a historia latino-americana, 6 que estudaram os séculos XIX e XX e 5 destinados 4 Colonia e ao perfodo pés- -independéncia. ahay Registre-se que essa verificagéo pode. ser confirmada em termos do Brasil, pelo menos no que diz respeito’ a postergacdo do perfodo colonial na ordem de preferéncia temdtica. Entretanto, em nosso caso, possivelmente dada a singularidade do regime politico imperial como moldura das mudangas estruturais que ocorrem no século XIX, é sintomatico que a maior instituigao brasileira de pesquisas, para onde se dirigem investigadores de todo o pats, 167 venha registrando nos tiltimos sete anos evidente concentragao de projetos de investigacdo para aquele perfodo, conforme se pode verificar pelos dados abaixo: PESQUISADORES BRASILEIROS — 1970-1976 Assunto ‘Numero de pesquisas Percentagem Perfodo Colonial 400 17,94% Perfodo Imperial 1.132 50,76% Perfodo Republicano 698 31,30% Totais 2.230 100,00% (FONTE: Mensirio do Arquivo Nacional n9 2, Ano VII, fevereiro de 1977, pag. 55. Rio de Janeiro.) O tema LU — Historiografia, Metodologia, Ensino e Investigacdéo da Historia foi o que recebeu maior nimero de comunicagGes: 23, 0 que levou Os seus responsdveis a aumentarem o ntimero de sessdes que estava previsto. Nesse sentido, foram objeto de debate os resultados de experiéncias em curso no ensino da Historia em paises como 0 México e a Republica Dominicana, sendo de registrar-se as diferentes avaliagdes do que no momento se promove na Venezuela, que elevaram as comunicagdes sobre a instrugdo ao total de seis. Particularmente, no que diz respeito ao ensino da Histéria e as pesquisas de Historia local e regional, é que se notou uma nova geragao de historia- dores que vém participando dos trabalhos com crescente interesse. Os seus ensaios, muitas vezes na hinterlindia dos paises, demonstram o alcance que a Universidade pode ter com a interiorizagao do ensino superior e portanto a desmetropolizagéo do conhecimento historico. Alias, as experiéncias brasi- leiras particularmente no Estado de Sdo Paulo, merecem registro pelo que significaram até ontem e pela deplordvel crise que em parte estdo hoje sofrendo. Os trabalhos apresentados pelo historiador haitiano, hoje radicado no México, Benoit Joachim (Puebla en el Mexico de los siglos XIX e XX) e pelos venezuclanos German Cardozo Galué e Rutilio Orteza Gonzales (Ante- -proyecto para la creacién del Centro de Estudios Historicos de la Facultad de Humanidades y Educacion de la Universidad del Zulia), para citar apenas dois exemplos, estdo situados naquela linha a que nos referimos. A participagao dessa nova geracdo de historiadores demonstra ainda a inquietagao que leva a propostas ousadas, como aquelas insertas na comuni- cagdo do venezuelano Agustin Blanco Mufioz, e.g:, ao discorrer sobre Marxismo e Historiografia en la Venezuela actual. Nas sessées desse tema nao faltaram também dendncias contra o gene- ralizado desaprego com que os aparelhos e agéncias do Estado na América Latina tratam as fontes histéricas e 0 trabalho do historiador. 168 Problemas de Hist6ria Social e Econémica constituiu o terceiro tema da reuniao, no qual foram apresentadas 16 comunicagdes. Alguns desses trabalhos eram assinados por historiadores j4 conhecidos da comunidade latino-americana, como os argentinos Tulio Halperin Dong (La cuantificacion historica: trayectoria e problemas) e Héctor Pérez Brignoli (Crisis agrarias y econémicas de exportacion en América Latina -. Siglos XIX y XX), 0 vene- zuelano Eduardo Arcila Farias (Ideas econdmicas en Hispanoamerica: pertodo de gestacion y afirmacion de la Republica), 0 colombiano Jaime Jaramillo Uribe (Las sociedades democraticas de artesanos y la coyuntura politica y social colombiana de 1848) ¢ o brasileiro Ciro Flamarion Cardoso (La brecha campesina en el sistema esclavista), este possivelmente o unico da nova geracao de historiadores de nosso pais cuja obra é conhecida e estudada na América Latina, uma vez que nesse terreno as tradugées que facilitaram a divulgacdo de autores brasileiros permanecem ainda as dos antigos trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e alguma coisa menor de José Hondrio Rodrigues. Essas obras, embora tenham grande significagdo no pensamento histérico brasileiro, ndo esgotam, como representagao, 0 comple- xo e matizado estdgio atual em que nos encontramos nessa area do conheci- mento. Nesse sentido, os nossos economistas, socidlogos e cientistas politicos tém conseguido muito maior alcance. Finalmente, o tema IV — Problemas de Histéria das Idéias -- com 16 comunicagdes, deu oportunidade também a que historiadores, cujas obras ultrapassaram os limites do seu pais, apresentassem resultados de suas pesquisas e especulagéo mais recentes, como é o caso do cubano Manuel Moreno Fraginals (La brecha informativa: informacién y desinformacion como herramientas de dominio neo-colonial en el siglo XIX), do costarri- quenho David Luna de Sola (Algunos aspectos ideologicos de la indepen- dencia latinoamericana), do panamenho Ricaurte Soler (La idea nacional hispanoamericana del liberalismo. Justo Arosemena), do venezuelano German Carrera Damas (Sobre algunos de los factores estructurales de continuidade y de cambio en el nivel tebrico-ideolégico de las sociedades implantadas latinoamericanas), do uruguaio Carlos Rama (Visién critica del estado actual del latinoamericanismo europeo), para citarmos os mais conhecidos. No conjunto, a reunido de Caracas apresentou um nivel médio-bom de comunicag6es, cabendo destaque a algumas pela profundidade das obser- vagGes criticas que propdem, pelo aparato bibliografico, pelo alcance atingido pela historia comparada, como ainda pelo revisionismo que implicam ao nivel tedrico e empirico. Entretanto, nada a registrar que pudesse demonstrar excepcional inovagdo tedrica e/ou metodolégica, o que portanto permanece como um desafio 4 imaginagao histérica latino-americana. Os diversos géneros da Histéria estiveram convenientemente represen- tados, confirmando tendéncias mais ou menos generalizadas na historiografia contemporanea, como se pode observar: 169 1, Histéria Econémica 14 comunicagdes 2. Histéria Politica 10 comunicages 3. Histéria das Idéias 8 comunicagGes 4, Historiografia 6 comunicagoes 5. Metodologia e/ou Teoria da Historia 5 comunicagGes 6. Historia Social». 4 comunicagGes 7. Historia Demografica-=" 1 comunicagao © lugar ocupado pela Historia Econémica, procurando acompanhar atentamente as aceleradas transformagGes que sofre seu objeto de estudo, a América Latina, confirma o interesse que vem despertando na comunidade de historiadores. Entretanto, pelo, teor das comunicagdes verifica-se a condigao incipiente em que ainda-se’ coloca frente as enormes tarefas que a esperam nesta parte do continente. No que diz respeito ao espago fisico -- geografico/politico que definiu 0 objeto de estudo da maioria dos trabalhos, nota-se a seguinte distribuigao, que de certa maneira também contribui para precisar algumas tendéncias do conhecimento histérico latino-americano. Ha maciga presenga de estudos que se limitaram a uma problematica nacional: 29 comunicagoes. Por outro lado, as identificagdes zonais, demonstrando em certos casos aguda consciéncia dos problemas que definem uma realidade politico-geogréfica, nao ficaram ausentes, com 0 comparecimento de 6 estudos nesse sentido, a0 mesmo tempo que a realidade da América Latina como um todo atingia 0 aprecidvel mamero de 13 comunicagdes. O menor numero de trabalhos foi destinado 4 historia local ou regional, dentro de um pais, que recebeu 3 comunicagdes. Como convém a uma reunido dessa natureza, nado faltaram recomen- dagSes, apresentadas na sessdo de encerramento, voltadas para uma maior Operacionalidade do trabalho do historiador, da preservacdo das memérias nacionais, ou entdo reclamando suportes institucionais para determinadas iniciativas ou denunciando pressdes de diferente ordem que se fazem sentir contra 0 pensamento e o trabalho intelectual. Afinal, 0 conhecimento histérico em nosso continente procura tesponder as imposigoes do sistema capitalista como uma mercadoria produ- zida sob dois estimulos: 0 de uma certa consciéncia nacional e latino-ameri- cana € © que vem com os ventos .imperialistas que sopram de mais de uma ditegdo. Uma das inquietantes solércias desse processo é que muitas vezes ambos os estimulos se confundem. Como uma tltima observagao deste relatério sobre o sauddvel convivio dos historiadores latino-americanos resta dizer que ¢ animador o fato de que alguns temas que tém recebido moderno tratamento analitico nas ciéncias sociais -- dependéncia, modo de produgao colonial, historiografia, as ideo- Jogias dominantes e dominadas, 0 regime de trabalho escravo, o trabalho livre € a imigracao estrangeira, as rafzes indigenas e a formagao nacional, a pratica politica e os sistemas de poder ~ tém sensibilizado a comunidade. Entretanto, 170 por outro lado, temas como a diviséo internacional do trabalho e o movi- mento operdrio, a emergéncia do sistema capitalista e a revolugdo burguesa, os movimentos do capital e a formacaéo de uma economia de mercado, a atuagdo dos grupos mercantis e o giro comercial, as estruturas sociais e os circuitos de cultura, o estilo. de vida, os movimentos da populacdo, histéria das mentalidades e formas de pensamento e outros varios ainda nao foram contemplados com o interesse que vém recebendo na Sociologia, Antropo- logia e Ciéncia Politica aqui na América Latina. 171

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