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Kaipora Conta “O Homem Pássaro”.

À Tetê Espíndola.

Rasgando a cena, um típico Ser Humano rasga a cena. Traja roupas de trabalhos de
cidade, que o sufoca. Debate-se desesperadamente contra sua vestimenta que o
enforca, livrando-se duramente delas. Livre de panos, procura misturar-se a natureza
arrancando as raízes do chão e cobrindo-se de terra. Acalma-se durante o processo,
tornando-se pouco a pouco parte do ambiente. Após a transformação, caminha para
sua mala de trabalho e a abre, tirando uma saia, flores, galhos, folhas e outros órgãos
verdes. Constrói-se a partir disso, aos olhos do público, em Kaipora. Durante esse
processo, seu corpo adquire cada vez mais a figura do Ser Bicho. Cantos de pássaros
lhe saltam da garganta, completando o nascimento da Kaipora.

KAIPORA

“No céu da minha garganta eu tenho a cantar


Pássaros que quando cantam, não posso conter.
Solto o que se levanta do meu ser
E vou ao sol no vôo
Enquanto sôo”

“Para entrar em estado de Árvore é preciso


Partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de Agosto.”
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca.
Sofremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

Volta a saltitar como pássaro pelo espaço, fazendo ruídos. O movimento de cena
encera com um silvo estridente.

KAIPORA
Eu gosto das histórias de gente que é mais bicho do que gente. Os bichos-gentes nascem
com os ouvidos atentos aos gritos das matas. Ignoram buzinas e ouvem em meio à selva
de pedras, os pios dos pássaros.
Essa é a história de um homem que virou passarinho.

Volta-se ao fundo da cena, o corpo gradualmente se modificando mais uma vez. De


costas para o publico, saca da mala um punhal. Ainda de costa, fura seus olhos,
estancando-os com uma venda de linho. Durante a cena, declama a história do Homem
Pássaro.

KAIPORA
(com a voz grave)
Cansado do fardo de ser homem
nasceram-me, a duras penas,
um par de asas.
Não demorou para que eu estivesse
dentro de uma gaiola,
os olhos furados
para cantar a dor.
Não experimentei nem sequer a liberdade do vôo.

Mesmo pássaro, canto a dor da violência dos homens.

Ao longo da poesia, torna-se o hibrido passarinho homem. De olhos furados,


lembrando o sabor do vôo que nunca mais será capaz de experimentar, lamenta.

O HOMEM PÁSSARO

Tudo em vorta é só beleza


Céu de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto
Cego do Zóio
Não vendo a luz, ai, canta de dor.

Tarveis por ignorança


Ou mardade das pio
Furaro os zóio
Do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mio.

Assum Preto véve sorto


Mas num pode avuá
Mir veis a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá;

Assum Preto, o meu cantá


É tão triste como o seu
Também robaro o meu amor, ai
Que era a luz, ai, dos zóio meu.

Fim da cena. Aguarda um tempo em silêncio. Se não houver aplausos, levanta-se ator,
despojando-se de qualquer personagem e agradece o público. Sai de cena.

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