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Colecao Coordenadores: Daniela Monteiro Gabbay e Bruno Takahashi SE ey roy alae Justiga Federal: Levan clr) inovagdes nos mecanismos consensuais de solucao de conflitos Autores: Ana Claudia Ferreira Pastore Herbert Cornelio Pieter de Bruyn J. André Luiz Naves Silva Ferraz Humberto Dalla Bernardina de Pinko Antonio Rodrigues de Freitas Jr. Juliana Bonacorsi de Palma Bruno Takahashi Luciane Moessa de Souza Carlos Alberto de Salles Marcella A, da Nova Brandéo Daldice Maria Santana de Almeida Marco Aurélio Serau Junior Daniela Monteiro Gabbay Maria Cecilia de Araujo Asperti Dartanhan Vercingetérix de Araijo e Rocha Nathalia Mazzonetto Dayse Starling Lima Castro Paulo Afonso Brum Vaz Diego Faleck Paulo Eduardo Alves da Silva Edson Luiz Sampel Paulo Marcos Rodrigues de Almeida Fernanda Souza Hutzler Priscila Faricelli de Mendonca Geisa de Assis Rodrigues Reynaldo Soares da Fonseca Helena Dias Ledo Costa Valeria Ferioli Lagrasta Luchiari a_~ a Gazeta Juritica Capitulo RESOLUCAO DE CONFLITOS| ENVOLVENDO O PODER PUBLICO: CAMINHOS PARA UMA CONSENSUALIDADE RESPONSAVEL E EFICAZ Luciane Moessa de Souza Resumo: © presente artigo busca apontar caminhos para uma utilizag’io responsivel ¢ eficaz dos métodos consensuais de resolugao de conflitos que envolvem 0 Poder Puiblico. Assim, inicia apresentando os fundamentos, em nivel constitucional ¢ infraconstitucional, para a adogao de métodos consensuais de resolugio de conflitos na esfera publica, A seguir, examina as peculiaridades da resolugdo consensual de conflitos quando 0 Poder Pablico esta envolvido, por conta dos principios constitucionais ineidentes. Dedica-se também a refutar, demonstrando seus equivocos, 0s argumentos contrarios & utilizagao da consensualidade na esfera publica. Desereve ainda quais sio as medidas necessirias para a viabilizago da resolugo consensual de conflitos indi coletivos envolvendo o Poder Publico. Por fim, faz uma andlise critica do projeto de lei sobre mediagao em curso no Senado Federal no que diz tespeito a resoluga0 de conflitos que envolvem o Poder Paiblico. Sumério: Introdugao. 1. Fundamentos para a adogdo de métodos consensuais de resolugio de conflitos na esfera publica. 1.1. Fundamentos constitucionais. 1.2, Fundamentos infraconstitucionais, 2. Os principios constitucionais que regem a atuagio do Poder Piiblico ¢ suas consequéncias na resolugao consensual de conflitos, 3. Os (falsos) argumentos contrarios & consensualidade na esfera piiblica. 4. As medidas necessérias para a viabilizagdo da resolueao consensual de conflitos individuais envolvendo o Poder Publico. 5. As medidas necessarias 190 Luciane Moessa de Souza para a viabilizagiio da resolugdo consensual de conflitos coletivos envolvend g a Poder Piiblico. 6. O projeto de lei sobre mediagao em curso no Senado Federal — : conflitos que envolvem 0 Poder Piiblico. Conclusdes. Introdugao: Muito se tem defendido a ampliagdo da utilizagao dos meigs consensuais de resolugao de conflitos em nosso pais, seja na esfra privada, onde ela nasce, seja na esfera piiblica, onde se tem presenciado um forte movimento, por exemplo, no seio da Justia Federal, pela celebragao de acordos para encerrar litigios em juizo, sejam eles obtidos pela negociagao direta, pela mediagao ou pela conciliagao. Se este movimento, por um lado, enfatiza a redugdo de tempo e custos para a resolugao do conflito, também pode e deve apontar as vantagens qualitativas que a solugdo consensual apresenta para as partes, as quais nao teriam como ser alcangadas mediante a prolagdo pura e simples de uma decisdo judicial ou administrativa unilateral, Nao obstante, segundo dados do Conselho Nacional de Justiga (CNJ), 0 Poder Publico seja parte em mais da metade dos processos judiciais em curso em nosso pais, ' pouco ainda se produziu, seja em nivel normativo (vide a Resolugio 125, de 2010, do proprio CNB), seja em nivel doutrinario, seja em nivel jurisprudencial, sobre as peculiaridades da resolugao consensual de conflitos na esfera publica. E esta necessidade é evidente por. conta do regime juridico diferenciado da Administragao Pitblica em face dos particulares, 0 qual Ihe coloca limites muito claros e relevantes no momento de negociar para resolver conflitos. Por tal razio, este trabalho, para além de defender, como tantos vém defendendo, a possibilidade de resolugdo consensual de conflitos na esfera piiblica, bem assim de refutar os argumentos daqueles que a ela se opdem, se propde a sintetizar quais so as peculiaridades que a presenga de um ou mais entes pablicos em pelo menos um dos polos do conflito traz Parte deste artigo esta sendo publicada também na obra “TransformagGes e tendéncias do Direito Administrativo”, coordenada pelo Professor Thiago Marrara, pela Editora Almedina. 1 Vale registrar também que 0 niimero de processos judiciais em curso no Brasil ultrapassa os 90 milhoes. 191 esolugao de contfitos envolvendo 0 poder piiblico: caminhos para uma yara a sua resolugao — ¢ qual a metodologia adequada para dar conta de fais liaridades. Ao final, abordarei também 0 projeto de lei sobre mediagao Be curso no Senado Federal na parte em que ele dispde sobre os conflitos gue envolVer o Poder Puiblico, formulando propostas de aprimoramento. 4, Fundamentos para a adocado de métodos consensuais de resolucdo de conflitos na esfera publica 4.1 Fundamentos constitucionais Os trés grandes fundamentos juridico-constitucionais para a adogao de métodos consensuais na resolugao de conflitos em que se ve envolvido 9 Poder Piiblico, seja na esfera administrativa, seja na esfera judicial, sio: 4) 0 principio do acesso a justiga (art. 5°., XXXV, da Const. Federal), que exige a disponibilizagio de métodos adequados (sob os aspectos temporal, econdmico ¢ de resultados) de resolucao de conilitos, ndo se subsumindo ‘a uma simples garantia de acesso formal ao sistema judicial — prinefpio do qual decorre o também positivado principio da razoabilidade na duragao do proceso administrativo ¢ judicial (art, 5°, LXXIV); b) o principio da eficiéncia (art. 37, capur), que demanda sejam os conflitos resolvidos da forma que apresente a melhor relagao entre custo e beneficio, ou seja, menores custos, menos tempo, menos desgaste para a relagdo entre as partes e melhores resultados para ambas; ¢) 0 principio democratico, fundamento de nossa ordem constitucional (art. 1°.), que decorre de o Estado nao ser um fim em si mesmo e reclama portanto que, quando 0 Poder Piiblico se veja envolvido em conflitos com particulares, ele se disponha, em primeiro lugar, adialogar com estes para encontrar uma solugéo adequada para o problema. Por tais razdes, entendo — e defendi tal posicionamento em minha Tese de Doutoramento” — que o Poder Publico deve necessariamente disponibilizar métodos de resolugao consensual de conflitos para as situagdes 2 A Tese em questao, defendida perante a UFSC, resultou na publicagio de duas obras de minha autoria pela Editora Forum em 2012: “Meios consensuais de resolugdo de conflitos envolvendo entes piblicos: negociagao, mediagio © conciliagao nas esferas administrativa e judicial” e “Mediagio de conflitos coletivos: a aplicagio dos meios consensuais & solugio de controvérsias que envolvem politicas piiblieas de coneretizagao de direitos fundamentais”. 192 Luciane Moessa de Souza em que estiver litigando com particulares —nao sendo, todavia, 0s particulares, por evidente, obrigados a tomar parte nestes processos consensuais, podendo optar, se assim entenderem mais apropriado, pelo processo contencioso tradicional. Da mesma forma, nos conflitos que envolvem entes publicos entre si, a solugao consensual deve ser buscada até que se tenha sucesso, por decorréncia légica do principio da eficiéncia. 1.2. Fundamentos infraconstitucionais A par dos fundamentos constitucionais, nosso ordenamento infraconstitucional conta, desde 1990, * com diversas previsdes de resolugio consensual de conflitos envolvendo o Poder Publico, a maioria inclusive versando sobre direitos indisponiveis. A primeira grande inovagao neste sentido foi feita pelo Codigo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 1990), ao alterar a Lei da Agao Civil Publica (Lei 7.347, de 1985) e acrescentar o pardgrafo 6°. ao seu artigo 5°, o qual prevé a celebragdio de “ajustes de conduta” em todos os temas que podem ser objeto da referida ago, vale dizer, meio ambiente, patrim6nio cultural, histérico e paisagistico, ordem econdmica, defesa do consumidor, entre outros. Muito embora haja quem afirme que nao existe auténtica negociagao na celebragao de termo de ajustamento de conduta, o ideal que ela exista, sim, até porque o mais comum € que diferentes direitos fundamentais colidam entre si nos conflitos de natureza coletiva, devendo-se buscar a solugdo que seja capaz de compatibiliza-los de forma étima. No mesmo ano de 1990, 0 Estatuto da Crianga e do Adolescente (Lei 8.069) também previu, em seu artigo 211, a possibilidade de celebragao de ajuste de conduta. Tal exemplo foi seguido pela legislagdo de defesa da concorréncia (Lei 8.884, de 1994), cujo artigo 53 admitiu a celebragao de compromisso de cessagiio de conduta para suspender processo administrativo sancionador. Este modelo segue sendo adotado pela nova lei que disciplina 0 assunto 3 Isto se nao se considerar o Cédigo Tributério Nacional, de 1966, que ja admitia a eaxting2o do crédito tributério por meio de transag&o ~ norma que, por seu turno, demanda detalhamento por lei especifica. Resolugiio de conflitos envolvendo o poder piblico: caminhos para uma... 193 (Lei 12.519, de 2011), cujos artigos 9°., V, e 85 continuam a dispor sobre 0 compromisso de cessagao de conduta lesiva a concorréncia, Em 1997, a Lei 6.385, de 1976, que disciplinou 0 mereado de capitais ¢ criou a Comissio de Valores Mobiliarios para regulé-lo, foi alterada pela Lei 9.457, que incluiu os pardgrafos 5°. a 12 em seu artigo 11, que trata do proceso administrativo sancionador. Os novos pardgrafos 5°. a 9. tratam da possibilidade de suspensio do processo punitivo mediante celebragao de termo de compromisso de ajustar a conduta as prescrigdes legais. Alguns destes pardgrafos tiveram sua redagao alterada pelo Decreto 3.995, de 31 de outubro, mas a tOnica foi mantida. Tais dispositivos foram regulamentados pelas Deliberagdes CVM 390, de 2001, ¢ 486, de 2005. Na pratica, somente aps a regulamentagaio, que criou o Comité de Termo de Compromisso, & que anorma passou a efetivamente ser levada a efeito, produzindo-se percentuais altissimos de cumprimento de acordos. Em matéria ambiental, a Lei 9.605/1998 (art. 79-A), 0 Decreto 99.274/1990 (art. 42) e o Decreto 6.514/2008 (arts, 139 a 148) também admitem a celebragaio de compromisso de ajuste de conduta, reforgando & detalhando o permissivo j4 contido na Lei da Ago Civil Pablica O Estatuto do Idoso (Lei 10.741, de 2003) também contém, em seu artigo 74, X, previsto de possibilidade de celebragao de ajuste de conduta. A Lei de Diretrizes e Bases da Educagdo Nacional, igualmente, admite procedimento destanatureza no exercicio das atividades de fiscalizagaio das instituigdes de ensino superior (Lei 9.394/1996, art. 46, § 1°.; Decreto 5.173/2006, arts, 47 a 50). No mesmo compasso, a Consolidagao das Leis do Trabalho foi alterada em 2001, com acréscimo do artigo 627-A e alteracdo do artigo 876, para se prever a possibilidade de celebracdo de termo de compromisso ou de ajuste de conduta em matéria de saiide e seguranca do trabalho. Tais regras foram regulamentadas pelo Decreto 4.552/2002 (art. 28) A legislagao de quase todas as agéncias reguladoras contém norma semelhante; a) ANEEL ~ artigo 3°., V, da Lei 9.427, de 1996, ¢ Resolugao ANEEL 333, de 2008; b) ANATEL ~ artigo 19, XVII, da Lei 9.472, de 1996; ©) ANP ~ artigo 20 da Lei 9.478, de 1997 e Portaria ANP 69/2011, art. 5 d) ANTT ~ Resolugdo 442/2004; e) ANTAQ — Resolucdo 987/2008; f) ANS —Lei 9.656, de 1998, art. 29, § 1°. e Lei 9.961, de 2000, art. 4°., XXXIX; 194 Luciane Moessa de Souza g) PREVIC — Lei 12.154, de 2009, art. 2°., VIII; Instrugdes PREVIC 3 e 7/20104 Vé-se, assim, que quase todas as normas referidas tratam de direitos indisponiveis — 0 que nao é grande novidade, ja que 0 Cédigo de Processo Civil (artigo 447, pardgrafo ‘inico), a Lei de Divércio e outros diplomas sempre admitiram a celebragao de acordos em conflitos na area de direito de familia, onde abundam os direitos indisponiveis (guarda e visita a filhos, por exemplo). Da mesma forma, a transacio ja € admitida em matéria de infragdes penais leves desde a Lei 9.099, de 1995, que criou os Juizados Especiais Criminais, tendo sido ampliada com a edigdo da Lei 10.259, que criou os Juizados Especiais Federais (a pena maxima para os crimes cuja persecugdlo pode ser “negociada”, que era de um ano, passou a dois anos) Nio se pode, portanto, de forma alguma confundir indisponibilidade com intransigibilidade, pois esta somente se afigura nas situagdes em que a lei expressamente veda a transag4o — como se vé do artigo 17, paragrafo 1°, da Lei 8.429, de 1992, que versa sobre improbidade administrativa. Constituem ainda fundamentos legais para a utilizagio de meios consensuais no curso do processo administrativo o principio da proporcionalidade, previsto no artigo 2°., VI, da Lei 9.784, de 1999, ¢ a previsto do artigo 2°., LV, da Lei 9.873, de 1999, no sentido de quea instauragao de alguma espécie de conciliagao interrompe o curso da prescrigdo para fins de processo administrativo na esfera federal. Ainda na esfera administrativa, vale registrar que a previsio constante na legislagao de diversas agéncias reguladoras, de realizagao de consultas € audiéncias publicas, para a elaboragao de seus atos normativos, e que é adotada mesmo por entes que nao dispdem de tal previsio legal (como o Banco Central do Brasil, cuja legislagdo basica é a Lei 4.595/1964), € um reforgo muito importante para a ideia de consensualidade na tomada 4 Uma observacao parte merece ser feita 20 cabo desta descrigio de tantas normas que admitem a resolugo consensual de conifitos em temas sensiveis: nem sempre a previstio normativa tem sido acompanhada da devida implementagiio de programas pelos entes piblicos competentes. A pesquisa de campo que realizei no Brasil revela que so 6timos programas, que ja produziram excelentes resultados, os do CADE, o da CVM eo da ANEEL. Muitas destas normas, infelizmente, ainda nao “sairam do papel”. Resolugdo de conflitos envolvendo © poder piiblico; eaminhos para uma. 195 de decisdes na Administracao Publica. Muito embora no direito brasileiro as manifestagdes apresentadas nao vinculem a Administragao, nos EUA, a partir desta previsdo, em muitos casos se adota 0 procedimento do “negotiated rulemaking”, buscando-se alcangar um consenso entre os setores regulados osusuarios dos servigos regulados, que é levado em conta pelo ente regulador competente ao elaborar a norma. * Ja na esfera judicial, temos, além da ja citada legislagio dos Juizados Especiais Federais, a lei que criou os Juizados Especiais da Fazenda Piblica, dispondo sobre 0 processamento especial dos litigios de pequena monta envolvendo os Estados, Distrito Federal e Municipios — Lei 12.153, de 2009. Note-se que esta lei necessita de complementacao por legislacio de cada Unidade da Federagao, nos termos de seu artigo 8°. E, na esfera federal, a legislagio basica sobre transagdes ¢ a Lei 9.469, de 1997, que admite transacao sem diferenciar ou restringir a matéria, para os litigios que envolvem a Unido ou outro ente federal. Esta norma est regulamentada por diversas Portarias da Advocacia-Geral da Unido e seus érgaos vinculados. Da mesma forma, vale mencionar que o Cédigo Tributario Nacional admite atransagao como forma de extingao do crédito tributario (artigo 156, IIL) 2. Os principios constitucionais que regem a atuaco do Poder Ptiblico e suas consequéncias na resolucao consensual de conflitos A defesa das possibilidades que a resolugio consensual de conflitos oferece nao implica, naturalmente, negar as cautelas adicionais que esta requer em face das especificidades atinentes ao regime juridico da Administragao Publica. Estas especificidades acarretam limitagdes ao poder/ dever de transigir e decorrem basicamente dos principios da legalidade (ou da juridicidade), da isonomia e da publicidade. O principio da legalidade € um dos primeiros argumentos apresentados por aqueles que se opdem a utilizagdo da consensualidade na Eu trato do assunto na obra “Meios consensuais...”, jd referida (no item “elaboragao negociada de regulamentos administrativos”), ¢ também Sérgio Varella Brun obra “Agéncias reguladoras: poder normativo, consulta piiblica, revisto jucl publicada pela Editora Revista dos Tribunais, explora bastante bem 0 tema. Luciane Moessa de Souza Resolugdo de conflitos envolvendo o poder piblico: caminhos para uma... 197 esfera publica. Pretende-se extrair do principio da legalidade a consequéneig de que 0 ordenamento juridico nao deixa nenhum espago para a negociagiig no momento de aplicagao da lei ao caso concreto. Ora, ndo € necessérig sequer ter conhecimentos juridicos especializados para se ter ouvido falar das miiltiplas interpretagdes possiveis acerca de cada norma. Também ¢ fato notério ¢ frequente (embora evidentemente indesejavel) a presenga de lacunas e contradigdes em nossa ordem juridica, nem todas soluciondveis — pelos critérios hierarquico, temporal e de especialidade. A isto pode se acrescentar o fenémeno ineliminavel da colisao entre direitos fundamentais, da qual decorre a potencial colisio entre politicas piblicas. Fornego exemplos: pense-se na presenga de recursos minerais estratégicos e valiosos em terras indigenas ou territérios quilombolas. Ora, a Constituigao Federal assegura, a um sé tempo, o reconhecimento de territorios a tais comunidades, € 0 interesse piblico na exploragao de nossos recursos minerais, Pense-se ainda na coincidéncia geografica parcial (¢ tais exemplos nao sao exercicios de imaginacao, mas sim extraidos de minha atuag%o como Conciliadora na Camara de Conciliagio e Arbitragem da Advocacia-Geral da Unido em 2010 e 2011) entre territérios de populagdes remanescentes de quilombos e os limites de unidades de conservagao, cuja protegao também é um mandamento constitucional. O potencial de conflitos é imenso —e 0 recurso a legalidade pura e simples nao fornece nenhuma solugdo. E preciso encontrar maneiras criativas de compatibilizar tais direitos fundamentais e as politicas piblicas que devem garanti-los. Para este fim, a verificago das normas juridicas aplicdveis ao caso é apenas o ponto de partida da negociagao, a moldura que the traga os limites. Por tal razio, todos os acordos envolvendo o Poder Publico devem ser devidamente fundamentados, j4 que os atos administrativos (e ai se inclui a autorizag’o de acordos, mesmo em juizo) se sujeitam a controle interno e externo de juridicidade, e tal fundamentagao deve ser fatica e juridica, de modo a deixar claro porque uma determinada solucdo é 0 caminho mais adequado para resolver 0 conflitos, sob o ponto de vista da legalidade, da economicidade e todos os demais parametros que devem reger a atuagao de entes piblicos. fal razao, antes de firmar um determinado acordo, € natural que 0 Poder publico busque averiguar e levar em conta se 0 conflito em questao é uma situagaio tinica ou um conflito repetitivo no qual milhares de pessoas também se enquadram. E deve levar isso em conta ndo apenas por saber que terd que firmar 0 mesmo acordo em situagdes semelhantes, mas também para yerificar se sera vidvel, técnica e financeiramente, 0 cumprimento de tais acordos. Por fim, a terceira peculiaridade da resolugdo consensual de conflitos na esfera publica se deve a incidéncia do prinefpio da publicidade. Quando se analisa, por exemplo, a doutrina, seja brasileira, seja alienigena, sobre mediagao de conflitos, muito se ouve falar sobre ser a confidencialidade essencial ao desenvolvimento da mediagao. Assim nao me parece, nem sequer na esfera privada. Na realidade, 0 que se busca com a confidencialidade é que as partes fiquem mais a vontade para negociar — ¢ a confidencialidade nio é 0 unico fator relevante para chegar a este resultado. Todavia, o que nos interessa aqui é a esfera publica. Nao se pode negar que, havendo um terceiro como facilitador da negociagao (no caso, o mediador), ¢ fundamental que as partes envolvidas no conflito nele confiem e ¢ também bastante salutar para 0 progresso da negociaciio que ele tenha sessGes separadas com cada uma das partes — de cuja existéncia todas elas devem ter conhecimento. Neste espaco (sessdes privadas), é eventualmente possivel que entes ptiblicos ou os particulares revelem ao mediador alguma informagao que nao desejem que chegue ao conhecimento da outra parte, normalmente por enfraquecer sua posi¢do na negociagaio. Admite-se, nestes casos, que o mediador mantenha sigilo sobre tais informagdes — desde que elas nao se enquadrem nas excecdes 4 confidencialidade da mediagéo que sao reconhecidas inclusive na esfera privada (intengao de praticar um crime, revelagao da violacao a direitos de Menores ou outras normas de ordem publica, ete.). Nao se pode admitir, contudo, a ideia de confidencialidade para as Sesses conjuntas de mediagao, muito menos para a documentagao produzida durante 0 procedimento de resolugao consensual do conflito, a menos que se trate de informacao acobertada por sigilo comercial, industrial, bancdrio, que coloque em jogo a intimidade ou a vida privada de particulares ou, ainda, que se trate de algum segredo de Estado. Vale dizer, quando se pensa em resolugao consensual de conflitos envolvendo 0 Poder Piiblico, a publicidade é a regra; a confidencialidade € a excecao e precisa ser juridicamente justificada, Uma segunda “limitacao” igualmente relevante é 0 principio da isonomia. O Poder Publico, quando firma um acordo, assim como se dé em qualquer outro ato administrativo, esta estabelecendo um precedente ~ ou seja, todo aquele que se veja em conflito com ente publico na mesma situago ou em outra muito similar tera pleno direito de invocar para si @ mesma solugdo, por decorréncia evidente do principio da isonomia. Por 198 Luciane Moessa de Souza Vale registrar que esta diferenciagio (n’io aplicacao dq confidencialidade) é tao relevante que, justamente por conta dela, defendg que nao existe, na esfera publica, como existe na esfera privada, a necessidade de separagao das figuras do terceiro que facilita 0 didlogo (0 mediadot) e do terceiro julgador (que decidir 0 conflito se 0 acordo nao for aleangado), Por tal razo, se forem devidamente capacitados, entendo que também og magistrados podem conduzir 0 processo de resolugao consensual de conflito que envolva entes piiblicos, sendo de certa maneira artificial aqui a distingag que se costuma fazer entre mediagao e conciliagao. ° 3. Os (falsos) argumentos contrarios 4 consensualidade na esfera publica Além do ja mencionado (e refutado) argumento atinente 4 incidéncia do principio da legalidade, aqueles que resistem a aplicagao da consensualidade para a resolugao de conflitos na esfera piiblica costumam invocar também outros argumentos: a) a desigualdade nas relagdes de poder; e b) a suposta indisponibilidade do interesse publico. Quanto desigualdade nas relagdes de poder, notadamente nos casos em que estd envolvido um ente publico federal ou estadual e um individuo (0 exemplo classico pode ser o segurado e o INSS), ela é de fato evidente ¢ nao pode ser ignorada quando se pensa em resolugao consensual de conflitos. Nao se trata porém de obstaculo incontornavel. De fato, a desigualdade torna inadequada a negociagao direta entre as partes, mas 6 —_Existem vérias diferengas apontadas pela doutrina brasileira entre os dois métodos, sendo uma das mais comuns a de que 0 mediador nao pode sugerir solugdes para o conflito, a0 passo que 0 conciliador pode, Esta distingao ja caiu claramente por terra nos EUA, eis que um estilo mais ativo de mediagao (conhecido como “mediagio’ avaliativa” ¢ que & muito utilizado) admite claramente que o mediador desempenbe tum papel de condutor do acordo, sendo que, na pritica, nem sequer se registra (aqui ‘ou nos EUA) no acordo de onde partiram as propostas de solugaio — pois isto & imelevante. A distingtio mais relevante ¢ a que diz respeito a abordagem, mais rasa ou mais aprofundada, do conflito e suas razdes. Enquanto na conciliago esta abordagem & mais superficial, na mediago deve ser mais profunda, valorizando-se seu papel pedagégico, pois esta deve ser usada quando as partes tém um relacionamento entre si que querem preservar (exemplo: sécios de uma empresa, Fisco ¢ contribuinte, indéstria ¢ 6rgao ambiental), ao passo que aquela (a conciliagiio) serve para os conflitos em que: niio ha relacionamento entre elas (exemplo: acidente de transito). Resolugio de conflitos envolvendo o poder pil caminhos para uma... 199 torna altamente recomendavel a utilizagao da mediagao, que é a negociagio facilitada por um terceiro. Um dos deveres elementares do mediador & buscar amenizar a eventual desigualdade entre os envolvidos no conflito, indicando ao lado mais fraco a necessidade de buscar um advogado ou outro perito técnico para aconselhi-lo, quando for 0 caso, buscando certificar-se de que ele compreendeu as questes técnicas ¢ juridicas que esto em jogo, buscando assegurar que informagdes essenciais para a resolugao do conflito sejam compartilhadas entre as partes. Também ¢ dever ético do mediador buscar garantir que os intetesses legitimos daqueles que ndo estio presentes fi mesa de negociagio (por impossibilidade) sejam respeitados (é 0 caso de filhos menores, por exemplo, na seara privada). O melhor argumento para se buscar uma decisdo a respeito da adequacao da mediagio de conflitos & resolugio de conflitos na seara publica consiste em realizar a sua comparagio com 0 processo adversarial tradicional, seja ela na esfera administrativa ou em juizo. Sera que 0 proceso contencioso, com seu formalismo e rigoroso sistema de preclusdes, oferece maiores condigdes de igualdade? Sera que o processo judicial, em que tantas ¢tantas vezes a questo de direito material é esquecida em prol de discussdes processuais, e em que é comum que 0 “vencedor” seja quem melhor manipula ‘o procedimento, por ter 0 melhor advogado, é um processo baseado em maior equilibrio de poder? E evidente que nao. As possibilidades de enfrentar 0 desequilibrio de poder, em realidade, so muito mais proficuas na mediagao. Quanto ao segundo argumento, 0 da indisponibilidade ¢ supremacia do interesse public, em primeiro lugar, ¢ preciso esclarecer de que interesse publico se esta tratando: o primario ou o secundario? Quando se trata do interesse publico secundario, aquele meramente patrimonial, como bem distinguiu o administrativista italiano Renato Alessi, cujas ligdes foram trazidas ao Brasil por Celso Antonio Bandeira de Mello, nao existe nem indisponibilidade nem supremacia Quando se trata de interesse piiblico primario, este sim indisponivel, pensar numa ideia de supremacia somente resolve 0 problema quando ele esta em confronto com interesses individuais nao consistentes em direitos fundamentais. Como ja demonstraram bastante bem Gustavo Binenbojm e Outros publicistas de escol, nao existe supremacia de interesses titularizados Pelo Estado e direitos titularizados por particulares quando ambos desfrutam jane Moessa de Souza 200 i de protegaéo constitucional. De outra parte, como demonstrei nog exemplos citados no item anterior, interesses puiblicos primérios, portant indisponiveis, frequentemente colidem entre si (como também acontece com direitos fundamentais), havendo uma necessidade inadidvel de harmonizagao entre eles, razio pela qual o nosso legislador ja reconhecey implicitamente intimeras vezes que indisponibilidade niio se confunde com intransigibilidade, ao admitir a utilizagdo da negociagio em um uma série de conflitos que envolvem direitos indisponiveis, de natureza publica e difusa inclusive, como visto no item 2.2. Enfrentados estes relevantes argumentos, passo a enfrentar a mais complexa questi, qual seja, de como se pode viabilizar a resolugao consensual de conflitos envolvendo o Poder Publico, primeiramente os individuais e, em seguida, os de dimensao coletiva. 4. As medidas necessdrias para a viabilizacdo da resolucao consensual de conflitos individuais envolvendo o Poder Publico A primeira etapa para se avaliar inclusive se € 0 caso de resolugio consensual de conflitos na seara publica reside na avaliagdio de risco juridico nas agdes judiciais e representacdes administrativas em face do Poder Publico. Vale dizer, é necessario um exame sério e abrangente da consisténcia dos argumentos faticos e juridicos invocados por cada cidadao, empresa ou entidade que esteja a questionar um ato do Poder Publico ou a pleitear algo em face deste. Algumas vezes, se poder concluir preliminarmente que nao é caso de contestar o pedido, porque assiste razo ao particular, no todo ou em parte. E sea ele assiste razao, a medida mais econémica (porque evita gastos maiores posteriores, inclusive com a utilizagdo da maquina administrativa ef ou jurisdicional) ¢ a tinica admissivel juridicamente para um ente piblico, vinculado que est ao principio da legalidade, é atender ao pleito. Nao hd, nestas hipdteses, espago para uma negociacdo propriamente dita, mas sim para o reconhecimento total ou parcial da procedéncia do pedido. Outras vezes, a conclusto que deflui desta andlise, ainda que preliminar, é de que o pleito do particular nao tem fundamento fatico e/ou juridico, de modo que tampouco resta outra alternativa sendo contesta-lo, protegendo assim tanto ao interesse piblico primario, de que as regras sejam Resolugdo de confiitos envolvendo © poder piblico: caminhos para uma... 201 cumpridas, quanto a0 secundario, de que o patriménio publico nao seja afetado por pleitos abusivos. Outras tantas vezes, porém, se verificara que existe algum grau de probabilidade de que o particular tenha razao, mas ainda nao existe certeza fatica (por ser eventualmente necessdria a instrugdo ou as provas nao serem contundentes) ou juridica, por serem admitidas diversas interpretagdes das normas juridicas aplicaveis e/ou porque a prépria jurisprudéncia esté dividida acerca do tema. E ai reside o espago para a utilizagdo da resolugao consensual de conflitos, Quando se verifica a incerteza, deve-se proceder a uma avaliagao de risco, de modo que se verifiquem quais so as chances de o particular ter éxito em seu pleito num processo adversarial, & luz das provas e do direito aplicdvel, Se estas chances forem significativas, valerd a pena buscar uma solugao consensual. Para viabilizar a adogdo deste caminho, entretanto, é desejavel que existam pardmetros prévios estabelecidos em normas legais ou administrativas, que estipulem critérios para a celebragao de acordos ou transagdes, bem como as autoridades encarregadas de realizar a analise de risco e, por fim, de autorizar os acordos em cada caso, Convém que tais decisdes sejam tomadas de forma colegiada, com a participagao de pessoas ligadas area juridica bem como a Area técnica afetada. De outra parte, em consonancia com o principio da isonomia, como ja dito, este colegiado deverd verificar a eventual ocorréncia de conflitos tepetitivos, de maneira a analisar de forma plena a viabilidade técnica e financeira de cumprir acordos com outros que se encontrem em situacdo semelhante (por conta do efeito precedente), inclusive, se for o caso, para propor regras para eventuais pagamentos parcelados. 5. As medidas necessarias para a viabilizagao da resolugao consensual de conflitos coletivos envolvendo o Poder Publico Como foi visto, normalmente, sera necessiria a utilizagdo de mediadores para viabilizar a negociagao entre particulares ¢ Poder Piiblico, dada a desigualdade de poder. Tal necessidade é ainda maior em conflitos multipartes, nos quais existem diversos entes pitblicos envolvidos, e grupos distintos também na sociedade civil, nem sempre organizados. A primeira om Luciane'Witsensa de Souza Resolugdo de conflitos envolvendo o poder pablico: eaminhos para uma... 203 representado. Da mesma forma, deve-se investigar como funciona e quanto tempo levara 0 processo de ratificag&o de eventual acordo no seio de cada ~ grgao piblico, empresa ou grupo de pessoas representado na mediagaio. necessidade que se coloca, assim, & a de que exista um quadro de mediadores previamente capacitados a que 0 Poder Pitblico possa recorrer. Também ¢ necessario definir de onde virao os recursos para pagar pelos servigos de / mediagao, quando os mediadores ja ndo sejam servidores remunerados pelos cofres publicos para tal fim, bem como para pagar por eventuais estudos técnicos. Com este quadro desenhado, devem os mediadores tragar um planejamento do processo, com cronograma de sessdes privadas e conjuntas de mediago, local e datas para sua realizagao, proposta de duragao e horario das sessdes, bem assim de protocolo de conduta das partes, ¢ até mesmo formas de dar publicidade ao processo, incluindo-se o relacionamento com a imprensa. Este planejamento podera eventualmente jé incluir formas de participagiio e interagAo com a sociedade em geral, mediante realizagao de audiéncias publicas, recebimento de sugestées, criticas e informages, etc. ‘Também poderd incluir a identificagao da necessidade de compartilhamento de informagGes entre os envolvidos, bem assim da realizacao de estudos técnicos conjuntos durante o procedimento de mediagao. Estes estudos devem envolver uma deliberagao conjunta das partes sobre a sua abrangéncia (aspectos faticos ¢ técnicos a serem investigados), sobre quem dispde de imparcialidade e competéncia para realizd-los, sobre a metodologia a ser adotada e sobre como seus resultados serao utilizados. Existente este quadro, a escolha do mediador (ou equipe de mediadores, como é mais comum em se tratando de conflitos coletivos) deve ficar preferencialmente ao encargo das partes envolvidas, Se se tratar de um conflito judicializado, admite-se que 0 juiz da causa faga a escolha, mas & evidente que mediadores poderao ser recusados por razdes de Suspei¢ao e ha que se sopesar se vale a pena o ganho de tempo decortente da escolha unilateral com a perda de autonomia e confianga das partes no(s) mediador(es) escolhido(s) sem a sua participagdo. Nos EUA, costuma-se permitir ds partes que fagam esta escolha, sempre havendo, contudo, uma proposta inicial de nomes constantes de um cadastro, de mediadores que se sabe serem previamente capacitados e experientes na materia. Escolhidos os mediadores, devem estes proceder ao diagnéstico do conflito, com a identificagao de todos os interessados e/ou afetados, bem assim de todos os atores necessarios para a resolugao efetiva do problema, Este conjunto de atores envolvera desde os érgaos do Poder Executive com competéncia para atuar na matéria, representantes do Legislativo, quando for 0 caso (por exemplo, nos conflitos acima referidos envolvendo limites de unidades de conservagao ou mineragio em terras indigenas, a participagio do Poder Legislativo é essencial para viabilizar 0 acordo), 0 Ministério Publico, a Defensoria Publica (quando houver pessoas hipossuficientes), 0(s) empreendedor(es), quando for 0 caso, a comunidade diretamente afetada, quando for possivel identificd-la, as entidades do terceiro setor que atuem na matéria naquela regifio, quando existentes. Este planejamento (¢ suas adaptagdes posteriores) deve ser submetido a todos os participantes da mediagao na primeira sessio conjunta de mediagao, realizando-se as alteragdes que se reputarem adequadas apés ouvidos todos os interessados, Aprovadasas regras do jogo, devem ter inicioas sessdes de mediagao privadas e conjuntas, assegurando-se sempre a maior transparéncia possivel, econstruindo-se gradualmente acordos parciais, notadamente quando houver questdes urgentes que nado possam aguardar o fim do processo. Naturalmente, quando nao houver consenso acerca de questées urgentes, o juiz competente € que devera decidir, prosseguindo-se a mediagao sobre os demais pontos, inclusive com a possibilidade de as partes chegarem a um consenso diverso Nesta fase, os mediadores deverdo buscar entender os antecedentes Sobre a questiio ja decidida, do conflito, conversar com as partes sobre o funcionamento do processo de resolugao consensual de conflitos, entender suas principais preocupagdes, expectativas e receios quanto ao mérito do conflito, bem assim verificar 7 quais so as informagdes ja disponiveis sobre o problema, quais os pontos de convergéncia ¢ de divergéncia. Também deverdo ajudar cada uma das partes a eleger seus representantes & mesa de negociacao, ja que estes deverio ser o elo permanente entre os demais participantes do processo e o grupo Ao final das negociagdes, quando as partes e os mediadores avaliarem que j4 foram exploradas as alternativas possiveis de consenso, ainda que ele nao tenha sido plenamente alcangado, deve-se proceder A tedagdo conjunta do acordo, sempre conduzida pelos mediadores. Este deve conter um relato de quem participou do processo, das informagdes levantadas e uma justificativa (jurfdica ¢ técnica) do consenso alcangado, 204 Luciane Moessa de Souza as quais servirdo como fundamentagao do acordo, bem como uma descrigaig resumida do processo, a fim de que o juiz competente para homologa-lo possa assegurar-se de que 0 “contraditério” foi observado ou, melhor dizendo, de que oportunidades idénticas foram dadas as partes para expressarem seus interesses legitimos e preocupagdes relevantes, sempre dando-se maior atengo aos grupos hipossuficientes. Além disso, deve conter, naturalmente: a descrig&o de cada uma das obrigagdes assumidas, quem devera cumpri-las, em que prazo, ¢ quem ficara responsavel pelo seu monitoramento; também convém que estejam previstas sangdes especificas para o descumprimento de cada uma das obrigagdes, de modo que seja mais econémico para 0 responsfvel pela obrigacao cumpri-la do que descumpri-la. Ainda que 0 conflito nao esteja judicializado, a homologagao judicial do acordo pode ser recomendavel para dar mais seguranga juridica a todas as partes envolvidas. Notadamente quando se trata de conflitos envolvendo o Poder Publico, em razo da alternancia periddica no comando dos poderes politicos, por decorréncia do sistema democratico (e subsequente alteragao na titularidade de cargos comissionados), ¢ fundamental garantir eficdcia executiva ao acordo celebrado, coroando assim todos os esforgos realizados para a obtengtio do consenso. 6. O projeto de lei sobre mediagao em curso no Senado Federal — conflitos que envolvem o Poder Publico Atualmente, tramitam no Senado Federal trés diferentes projetos de lei sobre mediagao,” que foram aglutinados para a apresentacao de um substitutivo recentemente aprovado na Comissao de Constituigao e Justiga (a aprovagao se deu em I de dezembro de 2013). Osubstitutivo elaborado pelo Senador Vital do Rego, aproveitando- se das previses dos PLs 405 e 434/2013, trata dos conflitos que envolvem 0 Poder Publico nos artigos 30 e 31, dispondo claramente ser possivel a mediagao. em tais conflitos — 0 que jé é um avango, dada a resisténcia que ainda existe sobre o tema entre alguns publicistas, devido a uma interpretagdio equivocada dos principios da indisponibilidade e da supremacia do interesse pitblico, 7 PLS 517/2011, PLS 405/2013 e PLS 434/2013 inhos para uma, 205 Resolucio de conflitos envolvendo o poder publica: cam como visto. Também dispde, em obediéncia ao principio constitucional da publicidade, que a confidencialidade nao se aplica & mediagao de conflitos enyolvendo o Poder Publico, salvo quando se tratar de hipdtese de segredo de justiga. Infelizmente, 0 projeto de lei em questi é ainda omisso no que tange as exigéncias dos principios da legalidade e da isonomia, sendo ainda insuficiente para viabilizar a ampla e responsavel celebraco de acordos nos conflitos envolvendo o Poder Piiblico, por nao exigir a elaboracaio dos atos regulamentares necessarios para tal fim, Faltou, assim, uma previstio de que 0 acordo (ou “termo final de mediagio”, como o denomina o projeto) deve necessariamente incluir a adequada fundamentacao (faitica e juridica) para os acordos celebrados. Este jtem é fundamental tanto para fins de homologagao (no caso dos conflitos judicializados, o juiz sempre ha de verificar se 0 acordo nao viola norma de ordem piiblica) quanto para fins de controle interno (exereido no ambito da propria Advocacia Piiblica) e externo (exercido pelo Tribunal de Contas) da atuagao da Administragao Pablica, inclusive para dar seguranga juridica as autoridades que firmam o acordo. O tema poderia ser objeto de um novo pardgrafo no artigo 30, com a seguinte redagao: Os termos finais de negociagao, mediaciio ¢ conciliacdo envolvendo © Poder Puiblico deverio conter fundamentagao fatica ¢ juridica dos acordos celebrados, identificando as normas aplicaveis a0 caso € 0s fatos relevantes que levaram a pactuagao de cada transagdo. Ademais, seria necessiria a incluso de regras que garantissem a aplicagao dos principios da legalidade e da isonomia, que poderiam tornar-se dois novos paragrafos no artigo 31, mencionando que, nestes conflitos: a) 0 ponto de partida da negociagdo serao os atos normativos aplicdveis ao caso [decorréncia do principio da legalidade], podendo eventualmente ser pactuada a criagdo, revogagio ou alteragdo de norma regulamentar, assegurada a participagio do ente competente; b) no caso de conflitos idénticos (judicializados ou nao), todos aqueles que estiverem envolvidos em conflitos com 0 Poder Puiblico terao direito a celebrar acordos idénticos aos ja celebrados [decorréncia do prinefpio e da isonomia]. 206 Luciane Moessa de Souza diblico: caminhos para uma, 207 Por fim, como ja dito, ¢ impossivel viabilizara celebragdo de acordog no Ambito piblico enquanto nao forem previstos procedimentos clarog (sobretudo quem autoriza, como sao identificados os casos semelhantes etc) e critérios para celebragdio de acordos. Estes procedimentos e critériog deverao ser estabelecidos por atos normativos editados pelos érgaos de Advocacia Pitblica competentes. Ademais, a lei ja pode prever desde logg 0s critérios gerais para a celebragao de acordos (atos normativos aplicéveig ao caso, fatos comprovados durante o procedimento, jurisprudéncia. administrativa e judicial sobre 0 tema, pareceres da propria Advocacia Publica, custos € durag%io da instrugao e do processo judicial, interesses legitimos dos envolvidos no conflito), que poderiam ser detalhados, para cada matéria, por esses atos normativos da Advocacia Ptiblica, de modo fornecerem parametros para os advogados piiblicos que atuarem em cada, conflito concreto. Poderia, assim, ser acrescentado um artigo com a seguinte redagdo: A intengao deste trabalho foi mostrar como, reconhecendo a peculiaridade dos conflitos envolvendo 0 Poder Pablico, ainda assim o nho da consensualidade se revela, em muitos casos — ¢ ai cu saliento a juagdo daqueles conflitos que envolvem politicas pitblicas ~ a solugao mais “adequada pata o problema, para nao dizer a nica possivel, notadamente em situagdes em que os impasses criados geram auténticas paralisagoes do parato estatal. Acomplexidade técnica e os desafios democraticos que se colocam “para os poderes politicos nem sempre tém sido adequadamente enfrentados adequadas a estes conflitos, seja por conta de seu déficit democratico, seja por conta de seu déficit téenico — problemas que também existem, ademais, Os drgios de Advocacia Piiblica de cada ente piiblico, da esfera dos poderes politicos. Administragao direta ou indireta, deverao estipular, mediante atos normativos préprios, procedimentos ¢ critérios para a celebraga de acordos envolvendo o ente ptiblico. A resolucdo consensual de conflitos propde dar conta destas limitagdes inegaveis que, na realidade, acometem nao os Poderes do Paragrafo primeiro. Estes critérios deverao incluir: a) atos normativos aplicaveis ao caso; b) fatos comprovados durante o procedimento de negociagao; c) jurisprudéncia administrativa e judicial sobre o tem s ropri liblica; _ 5 4) pareceres da propria Advocacia Publica; 4 na escalada do problema, N&o podem, contudo, ser manejados sem consideragao com os principios constitucionais mais caros ao funcionamento um Estado Democratico de Direito. e) custos e duragao da instrugao e do processo judicial; f) interesses legitimos dos envolvidos no conflito, positivados ot n&o em atos normativos. Espero, com estas reflexdes, ter trazido algumas luzes sobre como ¢consensualidade pode contribuir, de forma segura e democratica, para Aprimorar © sistema de prevengao e resolugao de conflitos em que se vé _envolvido 0 Poder Piiblico. Paragrafo segundo. Além de atos normativos gerais sobre a celebragdo de transacdes, poderao ser editados atos normativos especificos, para os casos de matérias em que seja adequado estipular uma faixa de negociacao possivel, estipulando parametros € procedimentos para autorizagio de acordos em determinad conflitos repetitivos.

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