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Luzia Cardozo rezava em frente a um oratório para tratar de duas crianças quando policiais

chegaram. Preso em seu terreiro, Sizenando José da Silva foi levado por agentes e obrigado a
encenar na delegacia o momento em que um espírito “baixa” à terra. Tito Augusto Dinis dos
Santos viu seu terreiro ser arrombado ao menos três vezes por policiais que o acusavam de
“feitiçaria”. Esses episódios têm algo em comum, ocorreram há um século, mas só terão um
desfecho nos próximos dias, quando seus objetos saqueados sairão de uma delegacia de
polícia para se tornar peças de um museu.

Ao longo de quase 400 anos, professar uma fé que não fosse a católica foi considerado crime
no Brasil. A abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, no ano seguinte,
prometiam inaugurar um tempo de novas liberdades, separando de vez a Igreja do Estado. O
direito à liberdade religiosa, garantido no texto constitucional de 1891, tirou da ilegalidade a
fé de judeus, muçulmanos, espíritas kardecistas e, especialmente, indígenas e ex-escravos
africanos, que até então cultuavam clandestinamente religiões proibidas.
Objetos de religiões afro-brasileiras apreendidos no Museu DOPS

LEO MARTINS - AGÊNCIA O GLOBO

Mas não foi o que aconteceu. O Código Penal, de 1890, permitiu que grande parte da
população negra seguisse na mira da polícia por outros 50 anos. Se no tempo da escravatura a
discriminação tinha como foco a cor da pele, com a nova norma criaram-se subterfúgios para
perseguir a fé que veio da África nos navios negreiros. Os artigos penais de número 157 e 158
puniam, respectivamente, “a prática do espiritismo, da magia e dos sortilégios” e o dito
“curandeirismo”. Integrantes da umbanda e do candomblé passaram a ser identificados como
praticantes de um suposto “baixo espiritismo”, em oposição aos espíritas kardecistas, tidos
como “alto espiritismo”. Assim, de 1890 a 1941, mães e pais de santos em todo o país foram
parar em delegacias acusados de ser “feiticeiros”, “bruxos” e praticantes de “magia negra”.

Nos últimos seis meses, ÉPOCA cruzou o resultado de duas pesquisas inéditas feitas pelos
historiadores Valquíria Velasco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
e Arthur Valle, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com o intuito de
mapear os locais onde ocorreram as batidas policiais na então capital federal do Brasil.
Ambos os estudos foram construídos a partir de notícias de jornais da época e processos
criminais guardados no Arquivo Nacional.

Apesar de expressivos, os números são apenas uma estimativa da violência praticada pela
polícia na época. “O que conseguimos resgatar nos arquivos e nos jornais é uma pequena
parcela dos casos”, explicou Velasco, ao dizer que o mapeamento ajuda a entender o que
aconteceu. “Sem dúvidas, o total é muito maior do que podemos imaginar”, completou.
RUA DA RELAÇÃO, 40 • CENTRO

Objetos de religiões afro-brasileiras apreendidos no Museu DOPS


LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO

A repressão estatal às religiões de matriz africana abarrotou as delegacias com objetos


sagrados. Velas, imagens de santos, garrafas com chás, espadas, anéis e animais empalhados
são alguns exemplos do que foi recolhido como "evidência de crime". Até hoje, quase 130
anos depois do início das apreensões, 524 objetos permanecem sob custódia na reserva
técnica da Polícia Civil, uma pequena construção nos fundos do estacionamento do antigo
Museu da Polícia, na Rua da Relação, 40, no Rio de Janeiro. O prédio do museu é o mesmo
que, a partir dos anos 1920, sediou o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) - Local
onde milhares de pessoas foram presas e torturadas durante a era Vargas e ao longo da
ditadura militar.

Nos próximos dias, as peças deixarão as instalações da Polícia Civil para ficar sob a guarda do
Museu da República, e o Brasil, enfim, poderá estudar e conhecer as vítimas dessa
perseguição. As histórias de Luzia Cardozo, Sizenando José da Silva e Tito Augusto Dinis
dos Santos, que ÉPOCA revela a partir de agora.
RUA ARAÚJO LEITÃO, 62 •ENGENHO NOVO

1934

LUZIA CARDOZO

Registros dos processos de Luzia Cardozo


O GLOBO
O dia em que a polícia bateu à porta do terreiro de Luzia Cardozo só não se perdeu de vez no
tempo porque o Arquivo Nacional mantém, até hoje, o processo criminal respondido por ela
quando foi acusada de praticar o “baixo espiritismo”. Nas páginas, amareladas e manuscritas
em letra cursiva, ficou registrada a ação violenta dos policiais.

Eram 15 horas do dia 8 de outubro de 1934 quando o investigador José Tuyuty


Batalha entrou na sala dos fundos da Rua Araújo Leitão, 62, no Engenho Novo, Zona Norte
do Rio. Ao entrar na sala, o policial deu de cara com uma mulher em frente ao que descreveu
como um “oratório”. Era Luzia Cardozo. O policial contou que se tratava de uma mulher de
29 anos, “de cor parda” e que “fingia-se concentrada enquanto dava consultas”.

Junto a ela, na mesma sala, estava outra mulher que procurava tratamento para dois de seus
filhos pequenos. As crianças estariam com sarampo. Natural do Rio de Janeiro, Cardozo foi
presa em flagrante por três policiais e levada à 1ª Delegacia Auxiliar. Com ela foram
apreendidas imagens de São Jorge e Santo Antônio, confeccionadas em madeira, e ainda uma
cabeça de barro, alocada dentro de um vaso com farofa e pés de galinha. No interrogatório a
que foi submetida, Cardozo disse que a cabeça seria do caboclo Lalu.

Os objetos foram encaminhados para a perícia, que os examinou e concluiu "positivamente"


que a mãe de santo exercia a prática de “baixo
espiritismo”. Ela ficou presa até pagar a fiança. Um
ano depois, foi absolvida da acusação. Para isso, a
defesa teve que esconder a fé dela. Argumentou que
a casa onde ela estava no momento do "flagrante"
era de uma madrinha que tinha morrido. Ela estaria
no local apenas "conversando com vizinhos". Não
se sabe o que aconteceu a Luzia Cardozo depois
disso. A casa onde ela mantinha o terreiro de
orações deu espaço a um pequeno prédio
residencial. Além da prisão arbitrária, foram
necessários 85 anos para que a cabeça do caboclo
que ela incorporava finalmente deixasse de ser
considerada evidência de crime. A peça é um dos
objetos que resistiu ao tempo para ganhar espaço
em uma prateleira no Museu da República.
"A MAIORIA DAS PESSOAS QUE FORAM PRESAS SÃO
NEGRAS, COMO QUE ASSOCIANDO A COR DA PELE À
CRIMINALIDADE."

ARTHUR VALLE - Historiador da Universidade Federal Rural do Rio de


Janeiro (UFRRJ)

“Nos registros de jornais (da época), não tanto nos processos, vamos ver que a maioria das
pessoas que foram presas são negras. Não são todos os casos, mas a maioria, e isso aparece
com um certo destaque, como que associando a cor da pele, o fenótipo, à criminalidade”,
contou Arthur Valle, que identificou a origem da peça. A identificação ocorreu porque o
processo de Luzia Cardozo inclui uma imagem da cabeça do caboclo Lalu.

RUA CARDOSO DE MELO, 62 • OSWALDO CRUZ

1941
SIZENANDO JOSÉ DA SILVA

A caçada a líderes religiosos de matriz africana


costumava ser apresentada como episódios em
que policiais “varejavam terreiros”. No dia 31
de março de 1941, o jornal "A
Noite" estampou na capa da edição as
manchetes “ofensiva contra os macumbeiros” e
“uma centena de prisões em 48 horas”. Um dos
alvos foi Sizenando José da Silva, de 60 anos,
preso na Rua Cardoso de Melo, 62, em
Oswaldo Cruz, também na Zona Norte do Rio.
Na ocasião, ele foi apresentado como alguém
que “trabalhava há 16 anos para a magia
negra”. Segundos os registros, só naquele dia
78 pessoas foram presas por praticar o “baixo
espiritismo”. Levadas à sede da chefia de
Polícia do Distrito Federal, algumas foram
obrigadas a encenar para a imprensa e para
policiais presentes os rituais sagrados que
faziam nos terreiros. Silva foi forçado a vestir
os trajes tradicionais e empunhar uma espada e
um escudo com um desenho de uma cruz.
Com uma expressão assustada, ele pôs a
mão sobre a cabeça de uma mulher que,
com ele, foi obrigada a demonstrar a
chegada de um espírito por meio da tirada
de um “ponto”, ritual típico da umbanda. A
mulher precisou traçar no chão um desenho
no qual a entidade deveria “baixar” e a
roda começou, forçosamente, a entoar um
canto sacro: "Congo, Rei Congo. Congo de
maleme, Rei Congo, mia pai chegou. Ele
veio de Aruanda". Eles prestaram
depoimentos e, posteriormente, foram
levados para a então colônia correcional de
Dois Rios. O escudo usado por Silva em
1941 é outro objeto que vai deixar a guarda
da Polícia Civil nos próximos dias. Foi a
historiadora Ana Carolina Antão que
notou a coincidência entre o objeto e a
batida policial na casa de Sizenando ao
fazer uma pesquisa para a Secretaria de
Direitos Humanos do Estado. Antão analisou, ainda, como a própria Polícia do Distrito
Federal, à época chefiada por Filinto Muller, simpático ao nazismo, usava expressões
supremacistas para se referir às prisões dos pais de santo. Na prisão, o jornal "Diário de
Notícias" anunciou uma “blitzkrieg contra a macumba”.

"A UTILIZAÇÃO DO TERMO 'BLITZKRIEG', ELOGIOSO


PARA A POLÍCIA, EVIDENCIA O CLIMA DE
PERSEGUIÇÃO".

ANA CAROLINA ANTÃO - Historiadora, Secretaria de Direitos Humanos


do Estado

“O blitzkrieg foi uma tática militar de assalto utilizada pela Alemanha Nazista na Segunda
Guerra Mundial. A utilização desse termo, elogioso para a polícia, para se referir à ação dos
agentes contra os religiosos, evidencia o clima de perseguição”, explicou Antão. “Os objetos
apreendidos são fruto dessas ações violentas”, completou.
RUA SENADOR POMPEU, 165 •CENTRO

1889 | 1894 | 1897


TITO AUGUSTO

Ruas do Centro onde existiram os primeiros terreiros de Umbanda


ALEXANDRE CASSIANO / AGÊNCIA O GLOBO

Esse ambiente de combate sistemático aos terreiros fez com que pais e mães de santo fossem
alvo de policiais mais de uma vez. Tito Augusto Dinis dos Santos é um desses casos. Ainda
que não tenha sido encontrado nenhum processo contra ele, a imprensa da época noticiou que
Santos foi preso ao menos três vezes por policiais sob suspeita de “feitiçaria”, em 1889, 1894
e 1897. Ao arrastá-lo para a delegacia, a polícia também carregava suas peças de culto, como
uma galinha preta empalhada e frascos de um pó branco.

O terreiro de Tito ficava na Rua Senador Pompeu, 165, no centro do Rio, endereço próximo a
locais históricos para a população negra no Brasil. Fica a poucas quadras do Cais do Valongo,
onde milhares de escravos entraram no Brasil durante a colônia. A poucos metros da Pedra do
Sal, conhecida por ser um espaço do samba e do candomblé, e de diversos outros endereços
que constituem a chamada "Pequena África".

Assim, durante muito tempo, os negros construíram sua vida ao redor dos locais onde foram
escravizados. Mesmo um século depois, as fachadas de prédios e cortiços do fim do século
XIX e do início do século XX ainda conservam as marcas da época. Nas ruas, ÉPOCA
também identificou como a influência daquele tempo resistiu. “Terreiro aqui não lembro, não,
mas na esquina funcionou muito tempo uma loja de macumba”, contou Milton Vieira, que
trabalha há mais de 20 anos em um mercado a poucos metros de onde um dia ficou o terreiro
de Santos.

Ruas do Centro onde existiram os primeiros terreiros de Umbanda


ALEXANDRE CASSIANO / AGÊNCIA O GLOBO

Com o aumento da repressão policial na região central, em meio ao processo de modernização


urbanística, os religiosos migraram da região central e passaram a refugiar os terreiros na
Zona Norte ou na Baixada Fluminense, regiões ainda em processo de expansão.

São esses os relatos que a ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, de 82 anos, sempre escutou.
Sentada no barracão do Ilê Axé Omolu e Oxum, que abriu há 46 anos no bairro de São
Mateus, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, ela ainda se emociona quando fala em
seu santo, Omolu. O orixá, conhecido como Rei da Terra, foi herança de sua avó materna. Foi
dela que Mãe Meninazinha ouviu, desde pequena, a história das invasões dos terreiros de
candomblé.
“A POLÍCIA ENTRAVA NOS
TERREIROS, QUEBRAVA,
DESTRUÍA, SEQUESTRAVA OS
ASSENTAMENTOS”.
MÃE MENINAZINHA DE OXUM
82 anos, ialorixá no barracão do Ilê Axé Omolu e Oxum

“A polícia entrava nos terreiros, quebrava, destruía, sequestrava os assentamentos. Até hoje
você encontra no Museu da Polícia (objetos) de Seu João Alagbá e de outras casas que
existiam, casas de candomblé, de umbanda”, contou ela. João Alagbá de Omolu foi um
babalorixá, cujo terreiro ficava na Gamboa, centro do Rio. A casa foi fundada no fim do
século XIX. A família de Mãe Meninazinha frequentava o terreiro nos anos 1920, assim que
veio de Salvador para o Rio de Janeiro. Mãe Meninazinha não chegou a frequentar o terreiro
de Alagbá, mas cresceu ouvindo as reclamações da avó sobre “suas coisas nas mãos da
polícia”.

Mãe Meninazinha
MÁRCIA FOLETTO / AGÊNCIA O GLOBO
Autor do recém-lançado “História dos candomblés do Rio de Janeiro” e outros cinco livros
sobre o tema, o historiador José Beniste relata que a memória da violência foi transmitida
geração a geração e muitos candomblecistas passaram a ter medo. Ele também é um ogã no
candomblé — auxilia nos rituais cantando e tocando os instrumentos, mas sem manifestar os
orixás.

"PRENDIAM, LEVAVAM O PRETO VELHO


INCORPORADO E A PESSOA FICAVA INCORPORADA
DENTRO DO XADREZ"

JOSÉ BENISTE - Historiador e autor do livro “História dos candomblés


do Rio de Janeiro”

“Prendiam, levavam o Preto Velho incorporado e a pessoa ficava incorporada dentro do


xadrez. Não desviravam. As pessoas iam presas assim mesmo. Até hoje, a religião não
consegue eleger pessoas provenientes dessa fase de vida. Elas se escondem, não querem
aparecer para evitar perseguições. No levantamento, dizem que são espíritas ou católicos.
Têm medo de revelar suas convicções religiosas”, apontou Beniste.

RUA DA RELAÇÃO, 40 • CENTRO

Fachada do antigo prédio do Dops


MARCELO CARNAVAL / AGÊNCIA O GLOBO
No início do século XX, a Polícia Civil do Distrito Federal, inspirada pelo positivismo do
filósofo Auguste Comte, queria dar ares científicos às investigações. O método deveria ser
levado a cabo mesmo quando o alvo fosse a fé alheia. Por isso, durante muitos anos, as peças
apreendidas nos terreiros foram estudadas como exemplos do início do trabalho pericial
na Escola de Polícia, criada em 1912. Posteriormente, essas peças foram incorporadas de
modo informal ao patrimônio do Museu da Polícia, que abrigava todo tipo de objeto
apreendido pelos agentes.

Em 1938, sem uma explicação clara, a Polícia Civil decidiu tombar os objetos. Eles se
tornariam o primeiro registro de tombamento do livro do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional — agora transformado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan).

Renato Machado, procurador da República no Rio, que investigou o caso no Ministério


Público Federal (MPF) do Rio, contou que, ao examinar os documentos históricos, verificou
que as operações policiais foram executadas de modo ilegal na época. “Os objetos foram
recolhidos de forma completamente irregular, mesmo à luz da legislação da época. Eles
(policiais) simplesmente invadiram os terreiros e apreenderam os objetos sem ter um processo
criminal. Muitas dessas pessoas não foram submetidas ao devido processo legal, não foram
julgadas por isso. E, para dar uma aparência de legalidade a essa propriedade ilícita, a polícia
entrou com um processo de tombamento”, explicou Machado.

Dois anos depois, em 1942, as peças foram reunidas na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e
Mistificações, nos fundos do terceiro andar do imponente prédio da chefia de Polícia, na Rua
da Relação. Dali em diante, os documentos oficiais do estado passaram a se referir ao
conjunto de peças como Museu de Magia Negra.+
TODAS AS BATIDAS

Selecione os pins no mapa para saber mais detalhes sobre cada batida policial que ocorreu
nos terreiros

DO "BAIXO ESPIRITISMO" AO LIBERTE O SAGRADO

Quase 30 anos depois, em 1972, a sede do museu foi transferida para a Rua Frei Caneca, onde
funcionou um complexo penitenciário do estado que terminou implodido em 2010. Nesse
período, foi montada uma exposição no local e alguns pesquisadores até iniciaram estudos
sobre os objetos. A partir das imagens feitas por Luiz Alphonsus, em 1979, ficou conhecida
uma estátua de Mefistófeles — que representaria Exu, o orixá mensageiro do povo iorubá.
Ao verificar as imagens de Alphonsus e jornais dos anos 1920, o pesquisador Arthur Valle
identificou que essa peça foi apreendida em 11 de junho de 1929. Não há, porém, referência
ao nome do dono original. Para Valle, as fotografias da apreensão e da exposição, indicam
que os policiais fizeram mudanças no objeto para “aumentar a dramaticidade da imagem” e
dar a ele uma impressão sombria. No entanto, em 1989, um incêndio nas instalações do
museu na Rua Frei Caneca destruiu parte do acervo. Entre as peças, a estátua de Mefistófeles.
No ano seguinte, o museu e a coleção retornaram à sede da Rua da Relação, e as peças que
sobreviveram ao fogo ficaram, em parte, expostas até 1999. No entanto, em 2010, o museu foi
fechado para reformas e jamais reabriu.

Estátua Mefistófeles
LUIZ ALPHONSUS (1979)

A falta de acesso às peças foi avolumando críticas de religiosos e integrantes do movimento


negro em relação à polícia. Segundo o historiador Arthur Valle, há pedidos de restituição das
peças desde os anos 1970. A própria Mãe Meninazinha de Oxum disse que já havia feito
campanhas pela retirada dos objetos da sede da polícia a partir dessa época. Ela é uma das
principais vozes da campanha Liberte o Nosso Sagrado, que também é formada por outras
lideranças religiosas, além de políticos e integrantes de movimentos sociais. Para ela, retirar
os objetos da antiga sede do Dops é uma missão de vida. “Tem de encontrar um lugar digno
para que as pessoas possam visitar e conhecer a história do sagrado”, desabafou.

Essa queixa antiga dos religiosos foi o que originou a pesquisa de Valquíria Velasco.
Praticante tanto da umbanda como do candomblé, ela disse que cresceu ouvindo “os mais
velhos” contarem as memórias do tempo em que a polícia prendia quem frequentava terreiro.
Há três anos, identificou uma reportagem, de 1994, quando o então candidato à Presidência da
República pelo PT, Luiz Inácio Lula da Silva, em visita ao terreiro de Mãe Nitinha no Rio,
afirmou que, se eleito, iria “libertar as peças do Museu de Magia Negra da Polícia”. “Isso me
instigou a pesquisar o que era esse museu”, contou Velasco. Mãe Nitinha de Oxum, porém,
não viveu para ver esse momento. Ela morreu em 2008.

Depois que o Museu da Polícia fechou em 2010, as peças então foram guardadas em caixas e
apenas uma pequena parte foi exposta na área da reserva técnica por algum tempo. A partir
desse período, a Polícia Civil recebeu sucessivas reclamações por manter os objetos como
“evidência de crime” e pelas condições como guardava o material. Sobretudo, o acesso das
peças aos religiosos se tornou uma contestação frequente.

"TODOS NÓS DA
CAMPANHA NOS
SENTIMOS COMO
FAMILIARES INDO
VISITAR SEUS
PARENTES PRESOS
NA CADEIA"

JORGE SANTANA
Historiador e assessor do deputado estadual Flávio Serafini

Jorge Santana, historiador e assessor do deputado estadual Flávio Serafini (PSOL-RJ),


acompanhou todo o processo e relembra de uma inspeção no museu em 2017 que, em suas
palavras, “ foi um desconforto muito grande”. Uma das lideranças religiosas pediu que o
policial não abrisse as caixas porque os objetos eram sagrados e não deveriam ser tocados por
ele. Segundo Santana, o policial respondeu que era “uma palhaçada”. “Todos nós da
campanha (Liberte o Sagrado) ficamos muito desconfortáveis, nos sentimos como familiares
indo visitar seus parentes presos na cadeia”, desabafou ele.
Além disso, diversas peças corriam o risco de deterioração pelo modo como estavam
armazenadas. A maioria possui quase 100 anos e foi feita a partir de materiais orgânicos, mas
estava guardada em caixas de papelão em uma sala exposta constantemente ao sol.

Objetos de religiões afro-brasileiras apreendidos no Museu DOPS


LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO
A situação foi denunciada por parlamentares do PSOL ao MPF, que abriu uma Ação Civil
Pública. O procurador Renato Machado relatou que durante muito tempo foi difícil obter o
mínimo de informações da Polícia Civil. Foi apenas com requisições coercitivas que o MPF
conseguiu dar andamento ao caso.

“Falavam coisas absurdas nas reuniões. O pessoal das religiões ficava revoltado, criou-se uma
polarização no momento inicial de negociação. Isso aumentou a resistência dos dois lados”,
relatou Machado. Em uma audiência pública, um policial comparou o pedido de transferência
dos objetos do Museu da Polícia para outra instituição com os saques que os nazistas fizeram
em museus durante a Segunda Guerra Mundial.

Todos os que acompanharam o desenrolar das negociações contam que a situação mudou com
a chegada da delegada Gisele Faro, em abril deste ano. Há 17 anos na corporação, ela carrega
na família tanto a história da polícia como as sequelas da escravidão. Sentada em uma cadeira
simples em sua sala, ela explicou que desconhecia a apreensão das peças e as batidas em
terreiros de umbanda e candomblé. Ao falar de como se sentiu ao descobrir o passado, ela se
emocionou.

"DIGO PARA MINHA FILHA QUE, SE NÃO


TIVESSE HAVIDO A
ALFORRIA, NÓS
TAMBÉM TERÍAMOS
SIDO ESCRAVOS"

GISELE FARO

Delegada da Polícia Civil


“O que mexeu comigo é que minha mãe é mulata, minha avó e meu avô materno eram negros.
Com essa história eu volto no tempo. Converso com minha filha e digo que, se não tivesse
havido a alforria, nós também teríamos sido escravos. Teríamos tido nossas coisas
apreendidas também. Para mim está sendo importante participar desse contexto. Eu sou uma
pessoa de muita fé, acredito que Deus me colocou aqui para fazer a coisa certa, para me
colocar no lugar do outro”, contou a delegada, que possui cabelos castanhos encaracolados,
lábios grossos, mas pele clara.

Faro disse que, ao ser transferida para dirigir o museu, ficou muito feliz. O pai foi inspetor e a
mãe escrevente e ela, ainda muito pequena, frequentava o prédio constantemente na infância.
Em suas memórias, é somente o lugar onde visitava os pais, e não o cárcere de presos
políticos. Mas ela não nega a história do local e se sensibiliza com o sofrimento dos religiosos
de matriz africana.

“Isso vinha de uma época anterior da polícia, de um processo. A responsabilidade que senti
que tinha quando vi o acervo era o de conduzir isso até o final da melhor forma possível.
Estamos devolvendo objetos que são caros às lideranças religiosas. Isso foi o passado da
polícia, somos diferentes hoje em dia. Quando deito a cabeça no travesseiro, sei que estou
fazendo a coisa certa”, completou.

CRÉDITOS

Reportagem: Juliana Dal Piva, Nicollas Witzel, Cíntia Cruz, Barbara Libório • Fotos: Leo
Martins, Márcia Foletto, Alexandre Cassiano, Gabriel Monteiro • Interface: Vinicius
Machado • Desenvolvimento: Carlos Sá, Gabriel Godoy

https://infograficos.epoca.globo.com/brasil/historia-terreiro-de-umbanda-e-candomble-no-
brasil.html

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