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Tatuagem, body piercing e a experiência da

dor: emoção, ritualização e medicalização1


Tattoo, Body Piercing and the Experience of Pain: emotion,
ritualization and medicalization

Vitor Sérgio Ferreira Resumo


Doutorado em Sociologia. Especialidade em Sociologia da Cultura,
Comunicação e Educação. Bolsista de Pós-Doutorado no Instituto Configurando uma experiência física que desafia
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), com bolsa tabus físicos e sociais, a marcação do corpo através
da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). da tatuagem e body piercing tem sido bastante ex-
Endereço: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
Avenida Professor Aníbal de Bettencourt, n.º 9, 1600-189, Lisboa,
plorada no espaço público mediatizado em função
Portugal. das questões da dor voluntária e dos riscos de saúde
E-mail: vitor.ferreira@ics.ul.pt, vitorsergioferreira@gmail.com individual e pública implicados. Ao pânico moral que
já envolvia estas práticas, associadas a comporta-
1 O artigo baseia-se em pesquisa financiada pela Fundação para a mentos tidos como socialmente desviantes, psico-pa-
Ciência e a Tecnologia (FCT), através de uma bolsa de doutoramen-
to; e pelo Instituto Português da Juventude (IPJ), através de um
tológicos ou criminosos, junta-se-lhes outra espécie
subsídio de apoio ao trabalho de campo no âmbito do programa de pânico social, o «pânico higienista», associado
de estudos do Observatório Permanente da Juventude. ao receio de contrair doenças infecto-contagiosas,
ou de reagir aos materiais ou tintas encarnados. No
sentido de ir além destes discursos, este artigo pre-
tende analisar: por um lado, como os consumidores
actuais de tatuagem e body piercing lidam com a
dor que lhe está associada, que emoções enquadram
essa sensação e que estratégias convocam no seu
controlo; por outro lado, como é que os produto-
res de tatuagem e body piercing, perante novas e
mais alargadas clientelas, lidam com exigência de
disciplinas sanitárias na sua prática profissional.
Em termos metodológicos, a informação empírica
apresentada no artigo foi obtida em situação de
entrevista em profundidade, de natureza biográfica,
semi-estruturada na sua preparação e semi-diretiva
na sua aplicação, a portadores de corpos multita-
tuados e multiperfurados, profissionais ou apenas
consumidores de tatuagem e body piercing. Quinze
entrevistados com diferentes perfis sociais foram
recrutados em estúdios de tatuagem e body piercing
de Lisboa e arredores, depois de intenso trabalho
etnográfico nesses mesmos espaços.
Palavras-chave: Tatuagem; Body piercing; Dor; So-
frimento; Ritualização; Medicalização.

7
Abstract Introdução
Being a physical experience that challenges sensi- Se as jóias e outros adereços corporais podem ser con-
tive and social taboos, body marking with tattoos sumidos no desconhecimento das condições em que
and body piercing has been fairly explored in the são fabricados, o consumo das marcas corporais como
public sphere regarding the issues of voluntary a tatuagem e o body piercing, por contraste, não pode
pain and the risks of individual and public health ser separado do processo de produção das mesmas.
that are involved. Associated with the moral panic A existência material destes artefactos, dada a sua
that is already linked to these practices, which are imprescindível fisicalidade, depende da co-presença
related to behaviours perceived as socially deviant, do consumidor enquanto suporte físico e do produtor
psychopathological or criminal, comes another type enquanto agente perfurador. Daí as marcas se dis-
of social panic, the «hygienist panic», connected tinguirem de outros adereços corporais não apenas
with a fear of contracting infectious and contagious devido à natureza permanente da sua encarnação,
diseases, or of having a bad reaction to the incorpo- mas também à sua natureza invasiva – característica
rated materials and inks. Attempting to go beyond que as singulariza relativamente à joalharia conven-
these discourses, this article aims to analyse: on cional, a qual, com a excepção dos brincos, se limita
one hand, how current consumers of tattoos and a assentar sobre a cútis. Tanto os piercings como as
body piercing deal with the pain associated with tatuagens têm, efectivamente, a particularidade de
these practices, what emotions frame that sensation constituir dispositivos-incisão2, ou seja, formas de
and what strategies are used in its control; on the ornamentação que não são apenas pousadas sobre o
other hand, how the producers of tattoos and body corpo mas literalmente encarnadas.
piercing, considering their new and extended clien- São, de facto, acessórios que penetram o corpo
tele, deal with the demands for sanitary disciplines em locais diversos, ultrapassando o limiar fisiológi-
regarding their professional practice. As for metho- co da epiderme – órgão fronteira entre o dentro e o
dological procedures, the empiric information pre- fora, entre o interior e o exterior –, superfície à qual
sented in the article was collected through in-depth habitualmente estavam reservados os investimentos
biographical interviews conducted with people who estéticos e estilísticos no corpo. Até aqui, na socie-
had extensively marked bodies, multi-tattooed and dade ocidental, a pele tem funcionado como limite,
multi-pierced, professionals or only consumers of como fronteira instituinte de um espaço sagrado e
tattoos and body piercing. Fifteen interviewees with interdito – o interior do corpo – cujo acesso, tradi-
different social profiles were recruited in tattoo and cionalmente, era apenas permitido a um conjunto
body piercing studios located in Lisbon and on its de peritos investido de autoridade medicamente
outskirts, after an intensive ethnographic fieldwork consagrada, em situações elas próprias também
in those spaces. legitimadas do um ponto de vista clínico.3 Todas as
Keywords: Tattoo; Body Piercing; Pain; Suffering; restantes operações seriam susceptíveis de incorrer
Ritualization; Medicalization. em actos inúteis, gratuitos, frívolos e, portanto, pro-
fanos aos olhos do saber sacrossanto da medicina.
Ainda hoje, cruzar a fronteira entre o exterior e
o interior do corpo é um acto particularmente pode-
roso, na medida em que, ao exigir uma determinada
forma de legitimidade social, ancorada na detenção
de determinadas competências especializadas, con-

2 Babo (2001) contrapõe os dispositivos-incisão, ou seja, que invadem o interior do corpo, aos dispositivos-extensão, ou seja, que ampliam
ou substituem os órgãos e funções do corpo, e aos dispositivos-representação, correspondendo estes últimos aos dispositivos que me-
deiam a relação entre o sujeito e a imagem que tem de seu corpo (como o espelho, por exemplo). Os primeiros são objectos que acabam
por fazer parte integrante do corpo, mais do que complementos ou próteses do mesmo.
3 Sobre a institucionalização do conhecimento anatómico e da prática de dissecação dos cadáveres enquanto disciplina médica ver, por
exemplo, Dale, 1997.

8
fere um elevado grau de poder (social ou simbólico) a Antes da realização das entrevistas, e no sentido
quem o pratica. Ao decorrer num cenário não clínico, de estrategicamente seleccionar o corpus de entre-
o processo de marcação corporal acaba por romper vistados, o trabalho de campo começou com o de-
controversamente o enclausuramento do corpo. E ambular (Pais, 2002, p. 55-59) do investigador pelos
dada a sua natureza consentida e deliberada, acres- espaços onde mais facilmente se poderiam encon-
ce o risco de ser socialmente percebido como um trar corpos extensivamente marcados: espaços reais
procedimento ofensivo do corpo, revelador de um como os estúdios onde são produzidos; espaços vir-
comportamento violento, auto-mutilatório e psiqui- tuais, como os sítios na Internet onde muitos desses
camente patológico, associado ao prazer na dor, à corpos são expostos. Durante essas deambulações,
injúria e auto-flagelação, à selvajaria ou barbárie no aproveitou-se a frequência dos estúdios para fazer
sentido civilizacional do termo, acto profanador do observação in loco de todo o processo de execução
templo corporal, até há relativamente pouco tempo das marcas, recorrendo-se quer métodos discretos
sagrado e impenetrável no contexto das sociedades ou técnicas de «escutar à porta», como lhes chamam
ocidentais (Ferreira, 2004) Glaser e Strauss (1967), quer a métodos mais inter-
Não é esta, no entanto, a leitura dos consumido- ventivos, através dos quais o investigador já acciona
res na apropriação que fazem das marcas, sejam elas mecanismos de solicitação de informação, como a
tatuagens ou piercings. Sendo uma prática invasiva, manutenção de algumas conversas mais informais
a dor e o risco não são dimensões despiciendas na e curtas com vários clientes, no sentido de avaliar as
sua valorização ou desvalorização simbólica e social. suas expectativas e motivações antes, no decorrer e
Qual é, então, o estatuto da dor na experiência con- após a experiência da marcação. Simultaneamente,
temporânea de marcar o corpo? Por outro lado, não foi-se lendo muita da inumerável literatura de tes-
sendo as marcas corporais efectuadas num contexto temunhos, conselhos e dúvidas que pauta o espaço
clínico, qual o significado estratégico da recriação virtual sobre a body modification scene.
de um cenário medicalizado dentro dos estúdios de O conhecimento decorrente deste tipo de estratégia
produção das marcas? de observação directa e, por vezes, participativa, não
inclui apenas as informações dadas pelos actores, soli-
citadas ou não pelo sociólogo, mas também o conjunto
Notas Metodológicas das práticas observáveis nos cenários vividos: o aca-
Para responder às questões de partida deste arti- nhamento em entrar nos estúdios sentido por muitos
go, utilizaremos dados colectados no trabalho de jovens ainda não iniciados, pelo constrangimento em
campo que resultou na tese de doutoramento do se aproximar de um mundo social que tinham como
autor (Ferreira, 2008a), sobre a prática de tatua- afastado do seu mundo de vida; o tipo de informação
gem e body piercing em larga extensão no corpo. pedida ao representante do estúdio considerando a
Os relatos apresentados neste artigo foram obtidos intervenção pretendida; o tipo de informação «obri-
em situação de entrevista individual em profundi- gatoriamente» concedida pelo representante mesmo
dade, de natureza biográfica, semi-estruturada na quando não questionada; as inúmeras situações de
sua preparação, e semi-diretiva na sua aplicação, negociação estética entre o trabalho pretendido e o
a portadores de corpos extensivamente marcados, trabalho possível e/ou aconselhável; as conversas ti-
multitatuados e multiperfurados, profissionais das antes e depois da intervenção efectivada, a própria
ou apenas consumidores de tatuagem e/ou body aplicação dos recursos, etc.
piercing. Quinze entrevistados foram recrutados O investigador partiu do lugar de outsider peran-
em estúdios de tatuagem e body piercing de Lisboa te os universos sociais onde ocorrem este tipo de mo-
e arredores (Portugal). dificações corporais.4 O conhecimento adquirido no

4 Ao contrário do que acontece com algumas das investigações que ultimamente têm sido publicadas sobre o tema, onde os investigadores
são eles próprios sujeitos largamente marcados, como os casos de Albuquerque de Braz, 2006; Atkinson, 2003; DeMello, 2000; Leitão,
2004; Maccormack, 2006; Mendoza, 2004; Sanders, 1989; Siorat, 2006; Steward, 1990. O que, aliás, vem na tradição dos «estudos sub-
culturais», onde frequentemente os investigadores em acção detêm alguma proximidade com o universo observado, partilhando alguns
dos elementos que identificam os estilos desses «grupos sociais».

9
decorrer de processos de pesquisa encabeçados por do fenómeno em observação. De fato, o efeito de
investigadores nestas condições será, com certeza, alterização sentido pelo investigador por parte dos
de natureza diferente do conhecimento produzido informantes, várias vezes se consumou na pergunta
por investigadores em condições diferenciadas.5 directa sobre se ele tinha alguma tatuagem ou algum
Não é, contudo, adquirido que a pertença e familia- piercing mais escondido, habitualmente sucedida de
ridade do investigador com o universo estudado seja uma proposta de marcação, por vezes com o alicia-
sinónimo de acesso privilegiado à informação e ao mento da gratuitidade. Também foi sentida muitas
entendimento da mesma, como alguns invocam. vezes entre os informantes a preocupação em dar
A postura do investigador implicado no univer- a entender aspectos da sua experiência em marcar
so social sob pesquisa requer maior reflexividade, o corpo que estão perfeitamente «naturalizados»,
cautela e atenção sobre os enunciados que produz bem como em desculpar e esclarecer o investigador
a respeito do fenómeno em causa,6 obrigando-o sobre algumas questões que só seriam plausíveis e
a descentrar-se de si próprio e a distanciar-se da legítimas por parte de um leigo.
centralidade da sua experiência vivida.7 Obriga-o
também a estar consciente dos efeitos que o seu A Marcação do Corpo entre a
próprio visual poderá produzir nos processos de
interacção e de identificação que decorrem no tra- Experiência Estética e a Aisthesis
balho de campo, colocando-o num estatuto ambíguo Onde tradicionalmente tem sido encontrado patolo-
entre o «nós» e os «outros», que o torna mais vulne- gia e desvio – considerando a gramática de leitura
rável a classificações judicativas e especulativas, e recepção historicamente institucionalizada sobre
a suspeitas e desconfianças, decorrentes do seu o corpo marcado—, o trabalho empírico realizado
prévio (e visível) compromisso com o fenómeno sobre a gramática de produção dos cultores mais
estudado – no caso deste trabalho, com as marcas radicais da marcação do corpo, descobriu uma ex-
que portaria no seu corpo, respectivos significa- periência, simultaneamente, estética e sensitiva.
dos, qualidade, correntes estéticas, envolvimentos A experiência, uma categoria nativa no mundo das
grupais, etc. modificações corporais8, configura a prova de um
Por outro lado, o facto de não haver qualquer real que se desconhece, o encontro com uma situação
tipo de proximidade social e simbólica, corporal- que é «entregue ao perigo da sua própria falta de
mente constatada, entre o investigador e objecto apoio e de segurança num objecto» (Miranda, 1994,
de observação, também não trás inevitavelmente p. 34). Uma situação arrojada, portanto, empreen-
prejuízos em termos hermenêuticos. Pelo contrá- dida como um desafio perante as normatividades e
rio, muitas vezes promoveu um efeito de pedagogia disciplinas que tradicionalmente limitam o espaço
ou até mesmo de catecismo do informante sobre o de possibilidades de intervenção no corpo, enfren-
investigador, não dando o primeiro por adquirido tando voluntariamente as sensações que a aplicação
o conhecimento deste último sobre a experiência de uma marca supostamente provoca,9 bem como

5 Alguns autores discutiram estas condições como um tipo de pesquisa diferenciado, designando-o como insider doctrine (Merton, 1972),
insider research (Roseneil, 1993; Hodkinson, 2005), native ethnography (Wolcott, 1999) ou experimental knowledge (Maxwell, 1996, p.
30-31).
6 Decorrente não de uma observação participante empreendida depois do trabalho de campo começar, mas de uma efectiva implicação
anterior no fenómeno social em análise.
7 Embora podendo trazê-la como recurso na própria pesquisa empírica (Hodkinson, 2005, p. 142-146), enquanto exercício de auto-reflexividade
analiticamente informada.
8 As “categorias nativas” – também chamadas conceitos de primeira ordem (Schutz, 1978) ou conceitos sensibilizantes (Blumer, 1969) – não
são mais do que as palavras que o sujeito social agencia na sua linguagem corrente e reconhece como pertinentes para dar conta das
suas experiências, para justificar as suas acções, para dar sentido às suas posições no mundo e perante o mundo, em cada uma das suas
esferas de existência. O exercício de conceitualização sobre as categorias nativas possibilita a introdução do investigador no universo
de percepção e interpretação dos observados, aumentando o potencial heurístico e de serendipidade da pesquisa.
9 A dor que se supõe advir e que se antecipa.

10
os riscos de natureza física10 e social11 que suposta- de uma experiência estética poderosa, na medida
mente comporta. em que mobiliza um artefacto cultural que excede
[o começo do piercing] Isso foi porque vi em ban- e desestabiliza os cânones actuais da produção do
das e gramei de ver e olha: “vou experimentar”. corpo, não só por ser um recurso historicamente
[Electricista na construção civil, 8º ano de esco- estigmatizado12, mas também por implicar uma
laridade, sexo masculino, 28 anos] encarnação duradoura e invasiva, a qual implica
um compromisso definitivo com um dado modelo
A minha [primeira tatuagem] foi feita por mim, de corporeidade.
foi só para experimentar.
[Profissional de body piercing, 9º ano de escola- Acho que as pessoas têm necessidade de chamar
ridade, sexo feminino, 34 anos] a atenção, de dizerem: «ai, eu também estou aqui!
Também sou um ser vivo! Eu também cá ando!»
É, portanto, um acto que induz uma metamorfose Acho que as pessoas têm uma necessidade enor-
de risco, na medida em que projecta uma dimensão me de se mostrarem e de chamarem a atenção a
sensória e estética inédita na existência, expecta- elas próprias.
tivada mas não totalmente controlada, sobretudo [Profissional de body piercing, 8º ano de escola-
quando o processo começa a radicalizar-se e a ridade, sexo masculino, 23 anos]
estender-se na epiderme. Remete para uma acção
que abre ao sujeito possibilidades de ruptura com o As características neobarrocas (Calabrese, 1999
ordinário, com o banal, com a estabilidade da rela- [1987]) encontradas em corpos submetidos a regimes
ção corporal que mantém consigo próprio e com o de marcação corporal13, configuram uma estética
mundo, possibilidades essas presumidas mas nunca da divergência, ou seja, uma forma estilística que
totalmente ponderadas. estabelece a ruptura com os modelos corporais do-
Ehrenberg (1991) argumenta que um dos pa- minantes e hegemonicamente aceites, que resiste às
drões culturais na modernidade contemporânea é normas e convenções que os poderes colonizadores
a procura social de visibilidade e intensidade. Num do corpo tentam fazer incorporar sob a aura da
mundo cada vez mais globalizado, homogeneizado «naturalidade», que se distancia da imagem institu-
e saturado de referências simbólicas, mas onde cionalizada que estes produzem e reproduzem, sob
imperam valores que vão no sentido de acentuar formas reactualizadas, sobre o «corpo jovem».
o valor individual da pessoa, muitas experiências Com a intenção de se demarcar dessa imagem
sociais necessitam ser compreendidas como estra- institucionalizada, alguns jovens vêm a marcar
tégias escapatórias a uma subsistência anódina e extensivamente o seu corpo, demarcando assim a
anónima, empreendidas no sentido da visibilização, sua presença no mundo, produzindo condições de
da demarcação, da procura de distinção e reconheci- visibilização da sua existência pessoal através da
mento social de uma existência individual. violação dos valores de discrição, respeitabilidade
A procura combinada de visibilidade e de intensi- e integridade que informam os padrões dominantes
dade surge com notoriedade na produção de regimes da «naturalidade» corporal da nossa época. Essa
de marcação corporal. Por um lado, as marcas colo- forma estilística, para os jovens que a ela aderem,
cam o corpo sob tensão e atenção dos outros. Trata-se corresponde assim a uma expressão iconográfica a

10 Dada a sua natureza invasiva, as marcas estão, efectivamente, envoltas num discurso higienista e medicalizado que enfatiza um con-
junto de riscos para a saúde associados ao processo de aplicação e manutenção. A grande maioria dos sítios virtuais sobre este tipo de
práticas, dedicam boa parte da sua atenção a este tema.
11 Referimo-nos aos efeitos de discriminação social decorrentes da condição estigmática que, potencialmente, continua a afectar os seus
portadores.
12 No sentido que Goffman dá ao conceito de estigma, ou seja, uma evidência ou característica corporal cuja leitura social induz um efeito
de descrédito sobre quem o porta (Goffman, 1988 [1963], p. 12).
13 Segundo Calabrese (1999 [1987]) a estética neobarroca é caracterizada pela tentação do limite e do excesso ornamental como estratégia
de originalidade, pelo culto do pormenor e do fractal como estratégia de singularização. As polaridades singular / regular, excepcional
/ normal, e original / mimético são categorias analisadas pelo autor para explicar a dicotomia formal que divide clássico / barroco.

11
ser exibida e apreciada em determinados contextos, progresso tem lutado constantemente. A acção da
dotada de uma lógica ostentatória e performativa classe médica tomou um protagonismo e uma am-
que solicita o olhar do outro. plitude sem par neste combate, oferecendo as suas
Normalmente as pessoas, quando fazem um pri- competências para o tratamento e eliminação desta
meiro piercing, fazem-no pela procura de algo di- sensação fisiológica, tornando-a menos tolerável e
ferente, porque é o primeiro. […] Aliás, eu penso que mais insuportável.
muitas das pessoas é isso que procuram, é a dife- Hoje, os analgésicos e a anestesia são dados ad-
quiridos, diluídos nos automatismos do quotidiano.
renciação de todos os outros. «Eu utilizo porque
A última das transgressões corporais continua a
quero ser diferente ou porque me quero associar
ser a da sujeição do corpo à dor voluntária, habi-
ou me quero identificar com aquela X pessoa que
tualmente entendida como acto de mutilação ou
também tem.» Normalmente as pessoas tendem a
sado-masoquista. É essa, muitas vezes, a leitura que
identificar-se com personagens, com ídolos, com
é feita do acto de marcar voluntariamente o corpo
imagens, que são aquelas que se diferenciam do
fora do seu espaço social de produção, reminiscên-
padrão, do estereótipo. E a busca ou a procura da
cias da imagem estereotípica que, sobre as marcas,
diferença muitas das vezes traduz-se no exagero.
foi sendo historicamente construída no mundo
[Profissional de body piercing, frequência uni-
ocidental. Trata-se de uma imagem estribada numa
versitária, sexo masculino, 25 anos]
percepção desviante, patológica e masoquista das
Mas o acto de marcar o corpo com tatuagens ou marcas corporais, fundada em categorias estigmáti-
piercings constitui uma experiência estética não cas que as conotam com delinquência, mortificação,
apenas no sentido do resultado corporal que produz, mutilação e loucura, e fundadora de uma estética
enquanto acto de estetização neobarroca do corpo, que muitas vezes provoca a suspeita, desconfiança
mas também no sentido em que implica uma per- e medo entre os sujeitos pouco familiarizados com
formance sensitiva do mesmo. Na sua raiz grega, o corpos marcados (Ferreira, 2003).
termo aisthesis remete para uma compreensão mais
lata do que é «sentir»: além da fruição do olhar, im-
plica a dimensão propriamente carnal das sensações
As Vivências da Experiência de
corporais, afecções, inclinações e capacidades sen- Marcar o Corpo
sitivas do corpo, traduzidas em estados emocionais Diz-nos Foucault que «uma experiência não é nem
vários. Ora, a marcação do corpo corresponde a uma “verdadeira” nem “falsa”: é sempre uma ficção, algo
experiência estética que se sente (na dor que impli- que se constrói» (1980, p. 27). Ao conceitualizar a
ca) e que faz sentir (emoções como repulsa, fascínio, experiência como ficção, Foucault não pretende
medo, desconfiança, curiosidade, etc.). afirmar a sua imaterialidade, mas a natureza simbó-
A sensação de dor que a invasividade implica14, lica da sua apropriação. Como ficcionam, então, os
confere um suplemento de realidade à acção de nossos protagonistas, a vivência da sua primeira ex-
marcar o corpo, uma forma de intensificar uma periência de marcação corporal? Como a interpretam
existência individual através da estimulação de uma e a narram? Em suma, como é fenomenologicamente
nova vivência do corpo vivo, numa cultura em que configurada a situação da marca inaugural?
a dor é, por defeito, uma realidade a ser suprimida, A situação de marcar o corpo, seja na sua versão
uma sensação a ser anestesiada, signo emocional de body piercing ou tatuagem, é um complexo evento
sofrimento e patologia, passível de ser medicalizado físico, psicológico e social. Sendo uma rotina produ-
e controlado. De facto, nas sociedades ocidentais tiva para o profissional que a executa, a feitura de
modernas a sensação de dor representa a forma mais uma marca é, porém, um momento de excepção para
aguda de sofrimento, contra a qual a ideologia do quem a recebe no corpo, sobretudo quando se trata

14 Entendemos a experiência da dor como sendo, simultaneamente, sensação e emoção, experiência física e emocional, não concebendo
qualquer espécie de precedência uma relativamente à outra. Ver Jackson, 1994.

12
da primeira vez. O indivíduo é colocado numa situ- permanentes (sobretudo a tatuagem), interrogam-se
ação que desconhece, num universo social também sobre o risco de um motivo ou local mal escolhido,
ele praticamente desconhecido, não dispondo de bem como a forma de lidar com os potenciais efeitos
grandes recursos que lhe permitam imaginar posi- da sua total entrega a um acto irreversível;
tivamente essa situação. Pelo contrário, os modelos 2. expectativas perante o processo de aceitação e
de referência que mais amplamente dispõe remetem adaptação fisiológica do organismo a um corpo
para uma percepção da marcação corporal enquan- estranho: para além de eventuais infecções ou di-
to acto «mutilatório» e sofrido, como infracção ficuldades de cicatrização, certos locais do corpo
voluntária, consentida e deliberada à «integridade exigem um pouco de perseverança no processo de
corporal», pelo sangramento e dor que causa. incorporação e aceitação corporal do objecto, sen-
Ora, numa sociedade há muito preocupada com do necessários vários dias para que o metal ou as
o objectivo de suprimir a dor, a decisão em marcar tintas se integrem harmoniosamente na imagem
deliberadamente o corpo começa por surpreender do corpo;
e ser socialmente rejeitada devido aos contornos
3. expectativas perante o profissionalismo, talento
«sacrificiais» (Gans, 2000) que configuram a repre-
e higiene do profissional, patentes no receio de uma
sentação social dominante sobre o corpo marcado.
marca mal executada ou de uma infecção por falta
Ainda que o actual processo de marcação corporal
de higiene;
não seja tão violento quanto o foi noutros tempos,
um dos argumentos avançados pelos profissionais 4. expectativas perante a intensidade da dor, eviden-
entrevistados é que, caso houvesse uma solução que tes na sua apreensão perante a perspectiva delibe-
irradiasse totalmente o risco de dor, a actual adesão rada de traumatizar e sacrificar a carne.
às marcas corporais seria bastante mais elevada. Há sempre aquele stresse no momento. Espe-
Se eles inventassem uma cena qualquer para as cialmente no primeiro, em que há sempre aquela
pessoas não terem dores, de certeza que ainda noção de que me vou alterar e, pronto… É um
mais gente fazia, porque há muita gente que buraco, é portanto mesmo uma transformação
não faz porque tem medo das dores. Aliás, a que é permanente. Há sempre uma alteração no
primeira pergunta da maior parte das pessoas organismo, que tem que aceitar uma coisa a mais,
é «dói muito?», mesmo em relação ao piercing um corpo estranho.
é «aí dói?» ou «há anestesia?». Sempre aquela [Estudante universitário, sexo masculino, 20
preocupação da dor. anos]
[Profissional de body piercing, estudante univer- Ia bastante [nervoso]. A primeira vez é sempre a
sitário, sexo feminino, 27 anos] primeira vez, nunca se sabe o que se vai encontrar,
Perante a inevitabilidade da penetração da derme não se conhece o tatuador, não se sabe ao certo
por objectos que lhe são estranhos, o momento de o trabalho. Embora tenhas visto em fotografia
passagem à acção é antecedido por uma variedade não sabes como é o trabalho, e pronto, não estás
de estados emocionais típicos, descritos como habituado. [...] [ia preocupado] Exactamente com
«nervosismo», «ansiedade», «angústia», «stress», como é que aquilo seria feito, com que higiene é
«receio», «preocupação», «apreensão», etc. Estes que seria feito, que tempo é que iria demorar, se
estados emocionais traduzem fisiologicamente iria doer muito ou não. Aquelas questõezinhas
várias expectativas depositadas pelos jovens na típicas da primeira vez que se vai lá.
experiência da marcação corporal, justificando a [Cozinheiro, frequência universitária, sexo mas-
excitação (Elias e Dunning, 1992 [1985]) que tendem culino, 28 anos]
a conferir à situação: De entre as várias expectativas, a antecipação da
1. expectativas perante a irreversibilidade da modi- dor que o processo de marcação corporal envolve –
ficação: conscientes de que são marcas definitivas e breve e intensa no caso do piercing, longa e constante

13
no caso da tatuagem15 – toma um lugar central na pelos sujeitos que a ela se expõem no tipo de situação
forma de ficcionar a experiência, tornando a intensi- equivalente. A exploração fetichista da sensação físi-
dade provável dessa sensação numa das dimensões ca subjacente ao acto de marcar o corpo empreendido
mais relevantes nas justificações da experiência em contextos sociais de orientação sadomasoquista,
inaugural. «É para saber como é...», ouve-se dizer encontra-se fora da matriz cultural da marcação
bastante a propósito da primeira marca. Ou «será corporal mobilizada em contextos comerciais quoti-
que dói ou não dói?», a questão mais vezes colocada dianos. Aliás, denota-se da parte dos seus praticantes
pelos seus potenciais praticantes, acabando por uma constante estratégia de demarcação, em alguns
atribuir à experiência de ser marcado um sentido casos até de reprovação e/ou patologização, relativa-
de prova sensorial e desafio social. mente à utilização sadomasoquista do processo de
Daí a inquietação individual que domina o marcação corporal, mobilizado com o fim de explorar
momento preliminar à experiência da marcação as sensações físicas que este proporciona.
corporal, decorrente de um estado de tensão emo-
Acho que as pessoas devem fazer as coisas,
cional quase paradoxal, traduzido numa espécie de
acima de tudo, para terem prazer nelas, e não
«angústia prazerosa»: por um lado, a «ansiedade»
para sentirem dor. […] Nesse caso, não vale a
do sujeito em, finalmente, vir a concretizar uma
pena fazer. Há coisas impressionantes! Eu vejo
acção que possibilita chegar a um corpo com o qual
coisas em revistas!... Eu, que trabalho neste ramo
sonha e se identifica; por outro lado, a «angústia»
e que percebo, de certa forma, a cultura e a men-
perante o desconhecimento vivencial da situação, o
talidade das pessoas que vêm fazer tatuagens
risco de não ultrapassar com dignidade e bravura a
e que vêm fazer piercings também, há coisas
dolorosidade que presume que lhe seja inerente e a
realmente que eu, mesmo assim, não consigo
potencial vergonha perante outrem (o profissional,
compreender! Porque acho que já ultrapassa um
figura que enverga o papel de iniciante, bem como
bocado o ser humano! Acho que já é uma coisa
os seus potenciais acompanhantes, testemunhas in
fora do normal!
vivo e potenciais relatoras da experiência).
[Profissional de body piercing, 8º ano de escola-
A situação de marcação corporal implica, portan-
ridade, sexo masculino, 23 anos]
to, uma prova que é simultaneamente física e moral.
Física porque implica inevitavelmente uma situação Chegados ao momento liminar, os segundos que
dolorosa, quer na ocasião, quer nos dias que se lhe se- implicam o processo de perfuração do piercing ou os
guem, decorrente do processo de cicatrização ou de primeiros minutos da feitura de uma tatuagem, são
outras eventuais complicações. Moral, porque quem difíceis pelo insólito da sensação de penetração que
se dispõe a passar por ela ambiciona demonstrar a si invade o corpo. Com o decorrer do processo, desig-
próprio e aos outros que está à altura de ultrapassar nadamente no caso da tatuagem, caracterizado pela
essa prova física, esse desafio que impõe para si sua demora, a familiaridade que se vai construindo
próprio, e mostrar-se digno do que imagina serem os com a sensação atenua o sofrimento. Depois de vivi-
bastidores do mundo da tatuagem e do piercing: um do na sua totalidade, habitualmente assoma alguma
universo de coragem e resistência, pela capacidade surpresa, por vezes até desilusão, considerando a
de protagonismo e de indiferença ao julgamento expectativa da dor implicada. Desfaz-se o mito e (re)
exterior que atribui aos seus actores. constrói-se uma outra atitude perante a dor, onde
No entanto, longe do valor iniciático que detinha esta, em confronto com as expectativas detidas,
entre os processos de marcação corporal ocorridos em tende a ser desdramatizada e a surgir minimizada
contextos sociais mais tradicionais (Clastres, 1978 na sua intensidade sensorial. O sofrimento esperado
[1974]), a dor, depois de ser experimentada, passa a desvanece-se e não passa a existir senão como mera
ser uma dimensão tendencialmente desvalorizada impressão epidérmica.

15 Um desenho de grande dimensão e elaboração pode demorar várias horas, por vezes várias sessões, a ser completo, desde a marcação
dos contornos, os enchimentos, os pormenores, os fundos, etc.

14
Uma pessoa tem uma noção um bocado errada. conteúdos simbólicos dispensados à situação em
Pensa que é uma dor tremenda, por causa das que a dor é infligida, sendo até passível de ser neu-
agulhas e não sei quê, mas, no entanto, é tudo tralizado não apenas onde a violência das sensações
fictício. Não tem nada a ver com dores, nem nada. permite o êxtase, mas também em contextos sociais
É uma coisa perfeitamente suportável. É um bo- onde a vontade de explorar as margens da condição
cado errado aquilo tudo que uma pessoa pensa corporal anima a acção individual.
à partida. […] É mais uma impressão. Ora, no que respeita aos entrevistados, não lhes
[Profissional de body piercing, 8º ano de escola- resta outra opção senão a de conciliar a sua vonta-
ridade, sexo masculino, 23 anos] de com a dor que a situação de marcação corporal
É este o quadro de emoções que traduzem cog- implica. A sensação de dor é por eles construída
nitivamente e dão significado sócio-simbólico à como dimensão integral da experiência, uma prer-
sensação física de dor que inevitavelmente está rogativa que inevitavelmente dela decorre, mas que
presente no acto de marcar o corpo. O quadro viven- é efémera, perecível, um mau momento ao qual se
cial traçado dá noção do construtivismo a que as pretende ser indiferente e que passe o mais rapi-
sensações físicas estão sujeitas, não funcionando damente possível. Desta forma, é desmistificado
como meras respostas fisiológicas a estímulos ner- o seu valor enquanto móbil de acção. Na marcação
vosos (Bendellow e Williams, 1995; Siorat, 2006). Os corporal, a dor não é um fim, um valor intrínseco de
próprios entrevistados são os primeiros a relativizar mortificação ou prazer que se busca, mas apenas
psicológica, antropológica e socialmente o fenóme- um meio para concretizar algo muito desejado, um
no doloroso, devolvendo-o às condições pessoais, desafio consciente e obrigatório que o jovem tem
situacionais e culturais em que decorre. que consentir para que se realize corporalmente o
De facto, a dor conhece modulações próprias a seu projecto identitário, para que se autentique ex-
condições e situações sociais particulares: «a anato- pressivamente a sua subjectividade. A experiência
mia e a fisiologia não são suficientes para explicar da dor é preferível à renúncia de um apontamento
estas variações sociais, culturais, pessoais e mesmo estético pessoalmente distintivo e singularizante,
contextuais. A relação íntima com a dor depende da bastante mais valorizado subjectivamente.
significação de que esta se reveste no momento em Eu encaro isto como uma coisa tão natural, estás
que ela toca o indivíduo» (Le Breton, 1995, p. 11). Daí a perceber, que não me tira nem sequer um boca-
que a dor subjacente ao processo de marcação corpo- dinho do sério. Sei que vai doer, a única coisa é
ral não resulte de uma equação directa em função do querer ver a coisa, evidentemente, acabada.
acto de marcar, o qual é susceptível de ser vivido de [Profissional de body piercing, estudante univer-
forma radicalmente diferente em contextos sociais sitário, sexo feminino, 27 anos]
diferentes, como prazer ou sofrimento. Sendo que
«o homem é menos afectado pela dor do que pelo Ao nível dos piercings nunca tive problemas ri-
sofrimento», que mais não será do que «uma inter- gorosamente nenhuns. Ao nível das tatuagens...
pretação da dor» (Le Breton, 2002, p. 97). eu não digo que não doa, porque é assim, dói. E
Nesta perspectiva, a dor não dá a entender a sua acabou. Dói e ponto final. É mesmo assim.
dolorosidade senão quando é acompanhada de um [Cozinheiro, frequência universitária, sexo mas-
julgamento negativo que a interprete como pena culino, 28 anos]
física, como sofrimento (Bobbé, 2005, p. 45). Ainda Por outro lado, sendo a marca corporal um acto
assim, o suplemento de sentido conferido à situação voluntário decorrente de uma opção pessoal, a
dolorosa constitui um vector simbólico susceptível crueldade tende a ser desconectada da experiência
de atenuar os efeitos que dela são esperados, ou até e o sofrimento tende a ser relativamente suportá-
mesmo de os neutralizar. Deste modo, ainda que vel para a maioria. Não se está, efectivamente, no
possa ser recebida como «sofrimento», este pode ser quadro tradicional da dor contingente e contrafeita,
vivido de forma mais ou menos intensa segundo os sintomática de uma patologia indesejada (como a

15
dor que decorre de uma infecção ou de uma doença, Perder o controlo sobre a dor, nesta situação particu-
por exemplo) ou de um acidente inesperado, situa- lar, seria equivalente a perder o controlo sobre si, na
ções em que essa mesma sensação viola e suscita medida em que o evento não é senão pretexto para o
no indivíduo a perca de confiança no seu corpo, exercício da sua vontade própria. Daí a experiência
momentaneamente eleito como inimigo implacável da marcação acabar por constituir uma prova cabal
a ser combatido. Está-se, pelo contrário, perante uma do estoicismo de quem se dispõe a enfrentá-la.
situação dolorosa que é mais ou menos antecipada Não é, portanto, uma situação dolorosa que
e preparada, da qual se tem consciência que poderá despersonalize, mas, ao invés, que é passível de ser
ser violenta e potencialmente sofrida. vivida como sensação existencial singular: trata-se
Trata-se, no entanto, de um sofrimento com- de uma situação dolorosa que dá «primazia ao ego»
sentido, na medida em que, por um lado, decorre de (Deleuze, 1991, p. 137), um processo que enfatiza o
um acto de vontade, desejado e deliberado, entendido self (a sua vontade, a sua experiência, o seu gosto
como totalmente autónomo e não constrangido, o pessoal). Por um lado, através da dor que ela con-
que permite ao sujeito construir antecipadamente tende, acaba por ser uma situação que confronta o
uma matriz emocional de preparação e controlo da sujeito com ele próprio, permitindo-lhe a exploração
dor, enquanto sensação conscientemente esperada. e o conhecimento de si e dos seus limites. Na medida
Por outro lado, é um gesto movido por motivações em que força o indivíduo à prova da sua transcen-
várias, de ordem estética e ética, que lhe concedem dência, a dor da marca projecta-o sobre ele próprio
um suplemento de sentido e de valor pessoal. Sem e propicia-lhe um momento de auto-reflexividade,
grande significado e valor próprio no processo, a dor revelando-lhe recursos íntimos que ele ignorava
advinda do acto de marcar acaba por ser sublimada acerca da sua própria existência e reforçando-lhe
pelo valor e sentidos investidos no resultado final. sentimentos de poder, valor pessoal e individua-
E uma dor que corresponde a uma causa com valor e lidade. Por outro, sendo a dor a menos partilhada
sentido é mais suportável que uma dor não prevista das várias experiências humanas, vivida de forma
e compreendida pelo sujeito. radicalmente individualizada, devolve cada um à sua
Quando nós queremos, não é sofrimento nenhum. própria particularidade e idiossincrasia corporal.
Mas é um bocado também. Daí as situações que a integram deliberadamente,
[Tatuador, 8º ano de escolaridade, sexo mascu- na medida em que promovem a descoberta da atitu-
lino, 24 anos] de do próprio perante essa sensação provável mas
não assegurada, tenderem a ser narradas como
É tipo «quem corre por gosto não se cansa.» A
instrumentos de auto-conhecimento, como formas
gente já sabe que dói.
de exploração dos limites do «eu».
[Electricista na construção civil, 8º ano de esco-
O facto da dor proveniente da marcação do corpo
laridade, sexo masculino, 28 anos]
vir associada a um processo com largas tradições
Estamos, portanto, longe da dor que, escapando históricas e antropológicas consente, inclusive, a
ao controlo do indivíduo, chama a atenção do sujei- recuperação de alguns significados originalmente
to para a vulnerabilidade corporal e consequente atribuídos ao acto de marcar quando integrado
fragilidade da condição humana perante o meio nos quadros rituais de comunidades pré-letradas,
envolvente. Ao ser consentida, opcional, previsível onde a prova de um certo grau de exposição à dor
e acautelada, não se traduz subjectivamente num testemunhava um acto de bravura, coragem, valen-
sentimento de impotência, na impressão de que o tia, determinação, força de carácter, atestando não
corpo está para além do indivíduo; reveste-se, pelo apenas a capacidade de resistência e de controlo do
contrário, de uma consciência de auto-realização, de iniciado sobre a sua própria conduta em confronto
poder e controlo sobre si próprio e sobre a sua acção com a situação, mas provando também, metafori-
individual, um gesto onde o sujeito pode descobrir camente, capacidade pessoal para enfrentar a ad-
algum sentido de emancipação e de protagonismo. versidade do mundo e as vicissitudes da existência

16
(Clastres, 1978 [1974]; Le Breton, 2002; Van Gennep, o recurso à aplicação de anestesia tornou-se habi-
1981 [1909]).16 tual por parte dos profissionais de body piercing,
Eu até costumo dizer que se não se sentisse no sentido de atenuar o efeito curto e intenso de
nada, nada, não tinha graça nenhuma. E eu não dolorosidade associado à situação de perfuração e
sou apologista de dores! Sinto as dores como a de, assim, captar os clientes eventualmente interes-
maior parte das pessoas normais, não é? Mas... sados no resultado do processo mas pouco tolerantes
eu sei lá... É engraçado aqueles valores antigos e às suas implicações mais penosas.
aquelas ideias que tu, para teres uma tatuagem, O uso da anestesia funciona, sobretudo, como
tens que ser valente, um duro e tal... […] Se não paliativo que visa diminuir a angústia do cliente e
doesse, tu, se calhar, não davas o significado que tornar a situação mais confortável para o profissio-
dás à tua tatuagem! nal, gerando efeitos eficazes para ambos os lados.
[Profissional de body piercing, 9º ano de escola- O efeito da anestesia nestas situações corresponde,
ridade, sexo feminino, 34 anos] em grande medida, a uma das formas de eficácia
simbólica (Lévi-Strauss, 1963 [1949], p. 186-205) de-
Embora já não dotada do valor iniciático que de-
nominada pela medicina como efeito placebo. A sua
teve no passado, a experiência da dor (prés)sentida
acção terapêutica, mais do que no plano orgânico,
no processo de marcação corporal é, ainda hoje,
potencia a atenuação dos efeitos ao criar a convicção
passível de ser interpretada à luz da sua memória
no sujeito de que a sua utilização decresce a intensi-
colectiva, enquanto prova de resistência que deixa o
iniciado menos vulnerável perante as adversidades dade do sofrimento. E ao diminuir a tensão do cliente
do mundo contemporâneo (Siorat 2006). Por outro perante a expectativa da dor, acaba realmente por
lado, o confronto do sujeito com o «sofrimento» reduzir a sua percepção da intensidade da dor. A
deliberado subjacente à dor do processo, funciona constatação da eficácia simbólica da anestesia indu-
também como valor acrescentado na memória viva zida pelo efeito placebo vem, desta forma, corroborar
do momento em que, finalmente, teve a audácia de o enraizamento da dor e do sofrimento na dimensão
decidir realizar sobre seu corpo uma acção que o simbólica e social do sujeito que a vive, mais do que
demarca quer de si próprio, quer dos outros, abrin- apenas na sua dimensão orgânica.
do um «antes» e um «depois» da experiência. Daí a A anestesia só tem uma vantagem, e a vantagem
situação da sua aplicação ser dotada de um valor é mais propriamente para o profissional do que
cerimonial mais nobre, pela bravura, coragem e para a pessoa a quem está ser feito o piercing.
endurance que exige. […] Por isso eu pergunto sempre às pessoas se
querem ou não querem anestesia. Se não querem,
O Controle do Sofrimento tudo bem, eu faço as coisas à mesma. Se querem,
melhor, porque também as deixa mais descansa-
Com-sentido: entre a anestesia das, porque pensam que aquilo realmente terá
e a ritualização algum efeito.
Não obstante desdramatizada a sua natural e ine- [Profissional de body piercing, frequência uni-
vitável presença no processo de marcação corporal, versitária, sexo masculino, 25 anos]
a dor é uma sensação fisiológica que não deixa de No caso específico da tatuagem, a dor decorrente
constituir um «incómodo» que se tende a preferir de um processo prolongado de marcação constitui
que seja evitado ou, pelo menos, controlado. Com uma manifestação física que se «aguenta», «su-
o crescimento e diversificação social da clientela, porta», «tolera» e «aceita» dentro de determinados

16 Segundo Denise Sant’Anna, «quando a anestesia foi descoberta, em 1846, a dor física ainda possuía vários sentidos. Podia exercer um
papel enobrecedor: resistir bravamente à dor durante uma extracção de um dente, por exemplo, contribuía para a boa formação do ca-
rácter, especialmente quando se tratava do sexo masculino. Muitas narrativas que expunham as penas sofridas em cirurgias e as dores
vividas em acidentes e doenças continham uma função pedagógica. Ensinavam a valorizar o ser humano, principalmente as virtudes
da coragem e da persistência» (2001, p. 38).

17
limites que se vão conhecendo e controlando com dia de ruptura com a banalidade do quotidiano. A
a acumulação de experiências. Há, efectivamente, dor, ainda que não protagonista, também contribui
um processo de ritualização da dor, decorrente da para a construção simbólica da excepcionalidade do
socialização facultada pela continuidade da expe- momento: apesar de, em grande medida, decorrer do
riência, processo que permite ao sujeito construir desconhecimento vivencial da situação de marcação,
uma relação de familiaridade com os eventos físicos, mesmo quando o jovem já tem alguma familiaridade
nas respectivas intensidades e emoções, implicados com a experiência, a situação continua a ser vivida
na situação de marcação corporal. Com o tempo, o com alguma tensão, na medida em que vai envolven-
sujeito marcado vai incorporando cumulativamente do novas partes do corpo que a devolvem, sempre,
um saber de vivência feito, construído no confronto às inevitáveis condições físicas da sua produção, o
com as várias experiências de que o seu corpo é pro- receio das mesmas é igualmente recorrente. Assim,
tagonista, confronto através do qual vai conhecendo para além de acentuar o valor do processo pelo senti-
os seus limites sensoriais, bem como algumas das do de intensidade e de excitação que concede fisiolo-
condições que atenuam (descontracção, concen- gicamente à forma de viver a experiência, depois de
tração ou entretenimento) ou maximizam (medo, vivida, a dor fundamenta também o valor atribuído
fadiga, pressão, etc.) a situação dolorosa. ao respectivo resultado, sublinhando o sentimento
O ritual é quase sempre o mesmo: «abanca aí, de ver superado, cumprido e concretizado o desafio
mete a cena e aguenta-te!», ‘tás a ver... […] Eu às que trás subjacente.
vezes até costumo dizer que uma tatuagem sem Fazer uma tatuagem ainda é fixe, ‘tás a ver?
dor não é uma tatuagem, ‘tás a ver... Cada vez é mais banal porque como um gajo já
[Electricista na construção civil, 8º ano de esco- vai há uns anos, cada vez se torna, assim, mais
laridade, sexo masculino, 28 anos] banal, mas é sempre um dia espectacular. É um
Desde que comecei a tatuar-me, comecei a ser dia que te acrescentam mais uma peça. E tu vais
mais receptivo à dor. Aguento a dor até um certo mesmo à maneira. Sais de lá mesmo com uma
ponto. Há dores que são muito fortes e se calhar a moral. Chegas ao pé do teu povo, o povo das
minha reacção até aí mudou. Talvez em vez de me tattoos: «oh, shh, já cá mora mais uma!» não sei
queixar tanto consigo aguentar mais calado. quê. Depois há sempre aquele pessoal... «Mostra
[Fiel de armazém, 8º ano de escolaridade, sexo lá!» É sempre fixe, é um dia à maneira. É um dia
masculino, 23 anos] que sabes que vai-te sempre correr bem. Nunca
vou bulir [trabalhar] em dia de tattoo. Nunca.
Aprende regras básicas de preparação da situ-
Não vou estragar um dia de tattoo com o ir bulir.
ação (como a alimentação que deverá fazer, por
Tenho sempre que ter as minhas ganzas. É tipo
exemplo), exercita técnicas de relaxamento especí-
um dia... É um dia de um balúrdio!
ficas para aplicar no momento da execução (controlo
[Electricista na construção civil, 8º ano de esco-
da respiração, por exemplo), fica ao corrente dos
laridade, sexo masculino, 28 anos]
cuidados a ter após as intervenções, vai ganhando
intimidade e confiança com o profissional que lhe Acresce ainda a satisfação estética demonstrada
inflige a dor… No fundo, vai assimilando as circuns- pelos jovens quando, após o processo, se confrontam
tâncias passíveis de acentuar ou diminuir a inten- com o novo acessório incorporado. Trata-se de um
sidade da sensação, vai dominando as técnicas que confronto identitariamente investido, na medida em
lhe permitem um maior domínio e controlo sobre que é uma experiência metamórfica que balança a
a sensorialidade inerente à situação, no sentido quietude em que se alicerça o sentimento de identi-
de modular o mais positivamente possível a sua dade pessoal e social. O sentimento de modificação
vivência emocional. e ampliação corporal que a experiência de marcação
Não obstante a familiaridade que a ritualização induz, promove, em simultâneo, a confirmação e o
da experiência concede, o dia de marcação corporal escape do self, a ruptura e afirmação na organiza-
é sempre vivido como um tempo de excepção, um ção subjectiva do «eu», permitindo o acesso a uma

18
identidade renovada ou restaurada. Nesse processo, É uma experiência que, depois de ultrapassada
ganha-se conhecimento sobre si próprio e os seus com sucesso, pode introduzir o sujeito num mun-
limites, bem como o reconhecimento (positivo ou do corporal e de vida que o deixa a reflectir sobre
negativo) dos outros. Daí a curiosidade demonstrada o seu desenvolvimento próximo. Muitos afirmam
pelos jovens em (re)ver-se defronte ao espelho ainda sair do estúdio a pensar sobre quais serão os
no estúdio, bem como em serem vistos depois de pas- contornos da próxima marca a fazer. É quando o
sarem as portas dessa zona segura. Modificando a sujeito passa da encarnação experimental para a
forma do seu corpo, alguns deles entendem mudar a encarnação projectual da marcação corporal. Ou,
sua existência, e por vezes conseguem-no, na medida como eles próprios expressam, quando passam
em que o seu olhar sobre si próprios e dos outros é «da experiência ao vício» (Ferreira, 2006).
radicalmente modificado.
A ruptura corporal e identitária exorta, muitas
vezes, a vontade de celebrar a excepcionalidade do Medicalização e Disciplinas nos
momento, prolongando-o pelo resto do dia. Tal pode Ofícios de Marcar o Corpo
passar, por exemplo, pela auto-absolvição de cons-
Vimos como o acto de marcar o corpo é valorizado,
trangimentos relacionados com o trabalho, trocados
do lado do consumo, na sua dimensão estética e
pela total dedicação aos prazeres do «eu», como no
sensitiva. Do lado da produção, o reconhecimento
caso abaixo exposto, que sempre que faz uma tatu-
social dos artífices do corpo enquanto artistas e
agem folga ao trabalho (mesmo que para tal tenha
profissionais no circuito da marcação corporal im-
que prescindir do rendimento da jornada) e dedica
plica, homologamente, a avaliação da qualidade da
o dia ao que mais gosta na vida: ouvir música, even-
performance da inscrição no corpo de outrem na sua
tualmente ir a um concerto, fumar as suas ganzas,
dupla dimensão de exercício estético e de conduta
ou simplesmente ficar a socializar com os amigos
de risco. Essas dimensões envolvem a posse de co-
interessados na «cena», nos círculos de admiração
nhecimentos específicos ou, na acepção de Giddens
da arte, entre os quais a nova tatuagem é apreciada
(1995 [1990]), de sistemas periciais associados quer
e reconhecida.
a cânones técnicos e artísticos (Ferreira, 2008b),
E no fim de tudo, a satisfação enorme, o sorriso quer a saberes e disciplinas de natureza clínica e
de orelha a orelha, que a pessoa faz quando a sanitária.
pessoa, pela primeira vez, se levanta, depois de De facto, a dimensão de exercício estético é par-
lhe dizerem que está terminado, vai ao espelho e ticularmente valorizada no caso da tatuagem, forma
pensa para si mesmo: «Eu consegui! Está feito: cultural sobre a qual decorre, a partir do circuito
gosto.» E depois aí começa-se logo a pensar onde é produzida e comercializada, um processo
onde é que virá a próxima, qual será a próxima, de dignificação e legitimação simbólica enquanto
como é que se vai conseguir fazer a próxima. É forma artística. Simultaneamente, pode-se ainda
engraçado. […] (com o tempo, a angústia e a an- observar hoje, sobre estas práticas, um processo
siedade continuam...) porque, lá está, a pessoa social que envolve a sua progressiva higienização
depois de já conhecer a dor, depois de saber que (Costa, 2004) e medicalização (Albuquerque de Braz,
a tolera e que a suporta, ainda há aquele factor 2006; Siorat, 2006), consequência da sua integração
de... Lá está: continua a ser dor! É propormo-nos nas indústrias de design corporal, consequente pro-
a aceitar, a tolerar algo que nos é incómodo. A dor fissionalização dos seus praticantes e alargamento
é sempre um incómodo. […] Continuo a sentir-me social das respectivas clientelas.
angustiado todos os dias que faço uma tatuagem. Tais processos traduzem-se quer na preocupação
E continuo a ficar super satisfeito sempre que dos produtores com a construção de uma imagem de
acabo uma tatuagem. assépsia sobre os estúdios, equipamentos e procedi-
[Profissional de body piercing, frequência uni- mentos, quer na utilização e prescrição de produtos
versitária, sexo masculino, 25 anos] medicinais utilizados durante e após a interven-

19
ção17, cuidados e práticas que conferem um valor sujo», a credibilizar a reputação do estúdio e dos res-
acrescido à legitimação social da sua actividade e pectivos profissionais, e a conceder um maior nível
respectivos resultados estéticos. Alguns recursos de confiança ontológica às novas clientelas levadas
utilizados no processo de perfuração (como, por pelo recente renascimento das marcas corporais. É
exemplo, seringas, agulhas, ou luvas descartáveis), nesta medida que muitas vezes se encontra o body
alguns elementos presentes no estúdio (a utilização piercer ou, por vezes, até o tatuador, dotado de toda
de batas brancas por parte dos profissionais ou uma parafernália paramédica, desde a maca ou a
de marquesas para deitar os clientes), bem como marquesa à bata branca, das luvas às máscaras cirúr-
ainda o discurso aftercare, invocam efectivamente gicas, evocando a respeitabilidade e a credibilidade
um cenário medicalizado. A construção deste faz social conferida às práticas invasivas efectuadas
parte de uma estratégia de encenação da redução pela medicina convencional.
do risco associado a estas práticas, estratégia essa Hoje, numa área onde a legislação que regula este
empreendida pelos seus profissionais como forma tipo de práticas é escassa18, é relativamente fácil um
de reacção ao alargamento da composição social das qualquer iniciado encomendar o material necessário
suas clientelas para além das tradicionais, já fami- para tatuar ou perfurar a pele, e instalar-se por conta
liarizadas com os tradicionais cenários neobarrocos própria. Situados num circuito altamente compe-
dos estúdios. titivo, muitos profissionais destacam a questão
Com efeito, sendo práticas corporalmente invasi- da desregulação da sua actividade, e insurgem-se
vas, a tatuagem e o body piercing não são inócuas de contra esse vazio legislativo em Portugal, onde
riscos se não forem praticadas mediante rigorosas qualquer um pode exercer práticas de marcação
regras de assepsia. Os profissionais da marcação corporal sem o mínimo de competências e condi-
corporal lidam frequentemente com sangue e outros ções sanitárias. Os ofícios da perfuração corporal
fluidos de desconhecidos, pelo que, sem meticulosas continuam a carregar com uma reputação negativa,
precauções de higiene e esterilização, determinadas e essa situação contribuiu para a reprodução social
doenças podem ser transmitidas de um cliente a ou- do estigma historicamente enraizado que persegue
tro ou ao próprio profissional por negligência deste os seus praticantes.
último (Greif e col., 1999; Millner e Eichold, 2001). É
Eu acho que em Portugal está tudo um bocado
nesta perspectiva que se denota no discurso social
errado porque não há legislação da parte da
produzido e reproduzido a propósito da tatuagem e
saúde que exija aos estúdios seja o que for, ‘tás
body piercing uma forte ênfase na sua dimensão de
conduta de risco e, consequentemente, na necessida- a ver? Isto é tudo uma balda, cada um faz aquilo
de de competências e disciplinas profissionais que que quer, se a gente quisesse não tínhamos sequer
acautelem a higiene e saúde pública nos estúdios uma desinfecção nenhuma aqui no estúdio, ou
onde são exercidas. quem diz aqui diz noutro lado. Não somos obri-
Neste contexto, o estúdio deve espelhar as regras gados a nada! Fazemos porque evidentemente
básicas de assepsia, o que faz com que, em muitos achamos que é necessário, mas há pessoas que
deles, os seus responsáveis tenham o cuidado de, não acham que seja necessário.
aos clássicos elementos de uma estética neobarroca [Profissional de body piercing, estudante univer-
habitualmente dominantes na sua decoração, juntar sitário, sexo feminino, 27 anos]
outros elementos que remetem para um cenário me- As condições sanitárias e de assepsia em que as
dicalizado e moderno: um cenário que transpareça actividades são exercidas constituem, assim, um
higiene, assepsia e vigilância clínicas, de forma a importante motivo de combate para inúmeros pro-
combater a imagem da actividade como «trabalho fissionais, preocupados com a má imagem veiculada

17 Como, por exemplo, medicamentos anestésicos, anti-inflamatórios e cicatrizantes, etc.


18 Foi recentemente apresentado à Assembleia da República um projecto-lei pelo grupo parlamentar do Partido Socialista neste sentido,
propondo-se colmatar «a total falta de regulamentação num sector onde as más práticas podem pôr em causa a saúde pública», conforme
justificou ao jornal diário O Público o deputado Renato Sampaio, autor do referido documento (O Publico, 15-3-2008).

20
por certos amadores, aparentemente mais ciosos dos balhos estética ou ideologicamente contra os seus
lucros que da integridade física dos seus clientes, a próprios valores; a recusa em continuar trabalhos co-
trabalhar em condições de higiene muito duvidosas, meçados por outros tatuadores (que preferem tapar
com equipamento suspeito, etc., situação que acaba e fazer um novo trabalho); ou ainda a recusa ou, pelo
por conotar negativamente a própria actividade. A menos, a chamada de atenção para os riscos sociais
reputação do estúdio e dos profissionais que nele que advêm de tatuar definitivamente zonas do corpo
trabalham também é construída a partir da mini- normalmente descobertas, como as mãos ou a face,
mização do risco implicado na prática profissional, o que pode ser interpretado como uma irresponsa-
e não é do interesse de nenhuma das partes, produ- bilidade do próprio tatuador, evitando assim uma
tores e consumidores, que haja razões para que se imagem pública negativa que pode comprometer a
estabeleça qualquer espécie de desconfiança. Daí a sua reputação enquanto profissional.
urgência destes artífices na institucionalização de
uma ética profissional, nomeadamente sob a forma
de legislação, reguladora de competências e disci-
Considerações Finais
plinas técnicas e sanitárias, sujeitas a vigilâncias Em virtude da invasividade que caracteriza inevi-
apertadas e sanções jurídicas. tavelmente as práticas de tatuagem e/ou de body
Ainda que não institucionalizado, existe um piercing, as dimensões da dor e do risco tomaram
conjunto de disciplinas implicitamente aceites destaque nos discursos quotidianos, políticos e
entre os profissionais mais reputados no circuito mediatizados sobre essas práticas. Configurando
da marcação corporal em Portugal, que vem a con- uma experiência física que desafia tabus sensitivos
substanciar-lhes, tacitamente, um código de ética (a consciência da dolorosidade) e sociais (a reminis-
profissional. Inclui, sobretudo, regras do foro higi- cência do estigma), a marcação do corpo tem sido
énico e sanitário, quer relativas aos equipamentos bastante explorada no espaço público em função
e procedimentos com que lidam quotidianamente das questões da dor voluntária e dos riscos de saúde
nos estúdios, quer relativas aos direitos e deveres individual e pública implicados: ao pânico moral que
que enformam a relação do profissional com o clien- já envolvia estas práticas, associadas a comporta-
te. A obrigação de passar ao cliente a informação mentos tidos como socialmente desviantes, psico-pa-
necessária acerca das precauções e procedimentos tológicos ou criminosos, junta-se-lhes outra espécie
a ter com a sua nova marca, nomeadamente nos de pânico social, o «pânico higienista», associado ao
primeiros tempos, em que o processo de cicatrização receio de contrair doenças infecto-contagiosas, ou
se desenrola, no sentido de prevenir eventuais focos de reagir aos materiais ou tintas encarnados.
de infecção e ter a melhor cicatrização possível, são No entanto, como este artigo logrou apresentar,
pontos de honra na sua prática profissional. nem a dor é uma dimensão hiper-valorizada no
Para além desta regra básica que concerne a processo de marcação do corpo, nem os seus profis-
pós-intervenção, o profissional tenta ele próprio sionais estão inconscientes das disciplinas que o
definir e gerir a situação de interacção à partida, de exercício de perfurar o corpo lhes exige na sociedade
forma a evitar eventuais problemas no desempenho contemporânea. Por um lado, os dados colectados
da sua actividade. Fá-lo mediante a clara imposição permitiram observar como o entendimento clínico
de algumas disciplinas sobre o comportamento do da dor enquanto reacção puramente física, que sus-
cliente, normalmente expostas nas salas de espera cita as mesmas sensações e os mesmos modos de
dos estúdios, como: a definição etária para ser in- defesa em proporção da intensidade da contusão, é
tervencionado sem a prévia autorização parental bastante limitado e limitador. Entender a dor como
(presencial ou por escrito); a recusa de intervir em um simples dado biológico, como mero resultado de
indivíduos que demonstrem estar sob o efeito de um mecanismo de excitação nervosa decorrente de
substâncias alcoólicas e/ou psicotrópicas; o direito uma mensagem neurológica conduzida ao cérebro
que se reservam de recusar fazer determinados tra- por um conjunto de fibras nervosas, é insuficiente,

21
na medida em que, num mesmo contexto espacio- Referências
temporal, e perante o mesmo tipo de práticas, os
corpos não vivem emocionalmente da mesma forma ALBUQUERQUE DE BRAZ, C. Além da pele: um
e não respondem da mesma maneira à intensidade olhar antropológico sobre a body modification
da sensação. em São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em
A abordagem estritamente fisiológica da dor Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências
esquece que essa sensação começa por ser um facto Humanas da Universidade Estatual de Campinas,
de existência, sujeita a condições sociais e antropo- Campinas, 2006.
lógicas, como tantas outras vivências corporais que ATKINSON, M. Tattooed: the sociogenesis of a
também não escapam à relação do indivíduo com o body art. Toronto: University of Toronto, 2003.
mundo e à sua experiência relacional e simbólica
BABO, M. A. Para uma semiótica do corpo. Revista
acumulada. É no contexto das condições estruturais
de Comunicação e Linguagens, Lisboa, n. 29, p.
e ideológicas de vida que os sujeitos constroem 255-269, 2001.
a subjectividade da sua dor, solicitando para tal
a memória da sua história pessoal, as vivências BENDELOW, G.; WILLIAMS, S. Pain and the mind-
acumuladas no seu contexto social e cultural mais body dualism: a sociological approach. Body &
próximo, mas também a natureza da situação em que Society, New Delhi, v. 1, n. 2, p. 83-103, 1995.
a dor é sentida. Donde, a dor ser também um facto de BLUMER, H. Symbolic interactionism: perspective
situação. Um mesmo indivíduo não tem uma relação and method. Englewood Cliffs: Prentice-Hall,
constante com a sua própria dor. As circunstâncias 1969.
modulam-na. Depende da avaliação que o indivíduo
BOBBE, S. Le piercing, ou la difficulté d’être soi.
faz da situação, bem como do sentido que lhe investe.
In: SIROST, O. (Org.). Le corps extrême dans les
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são matrizes que enformam a vivência emocional da
39-51.
dor e que, em última análise, condicionam as capa-
cidades de resistência pessoal do indivíduo perante CALABRESE, O. A idade neobarroca. Lisboa:
a sensação física que ela induz. Edições 70, 1999.
Por outro lado, ainda que o corpo extensivamente CLASTRES, P. Da tortura nas sociedades
marcado se apresente como um corpo pouco dócil primitivas. In: _____. A sociedade contra o Estado:
considerando as convenções corporais dominan- pesquisas de antropologia política. Rio de Janeiro:
tes, imbuído de uma atitude tida como excessiva, Francisco Alves, 1978. p. 123-131.
desafiadora e provocatória perante os modelos legí-
timos de corporeidade, não se tratará de um corpo COSTA, Z. Do porão ao estúdio: trajectórias
socialmente indisciplinado. Tratar-se-á, sim, de um e práticas de tatuadores e transformações
corpo in-disciplinado, na medida em que expressa no universo da tatuagem. 2004. Dissertação
um modelo de corporeidade que, embora dissidente, (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade
converge entre os seus usuários nos códigos sim- Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.
bólicos que o produzem como nomos alternativo, DALE, K. Identity in a culture of dissection: body,
não deixando de ser um modelo de corporeidade self and knowledge. The Sociological Review,
também sujeito a convenções e regras operativas Keele, n. 7, p. 94-113, 1997.
que o regulam socialmente, quer na esfera do con-
DELEUZE, G. Masochism: coldness and cruelty.
sumo, quer da própria produção, disciplinas essas
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que funcionam como importante pólo de avaliação
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Recebido em: 21/09/2009


Reapresentado em: 10/12/2009
Aprovado em: 15/12/2009

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