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Fre d e r i co Da i a Fi r m i a n o (O r g )

Mo i s é s Au g u s t o G o n ç a lv e s (O r g )

Coleção Olhares do Dissenso


Vo l u m e I I

Belo Horizonte
Maio de 2010
Copyrigth © 2008 · Editora BookJVRIS
Todos os direitos reservados aos autores.
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autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os
meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Organizadores
Moisés Augusto Gonçalves
Frederico Daia Firmiano (Org)

Editor
Marcelo José Ferreira

Revisão Final
Os autores

Capa:
Geraldo Magela de Fátima

Editoração Gráfica
Iconography

Projeto Gráfico
Luiz Felippe Nogueira

Firmiano, Frederico Daia e Gonçalves, Moisés Augusto (orgs.). Horizontes da


luta social – os sujeitos da política. Belo Horizonte: Bookjuris Editora,
Coleção Olhares do Dissenso, vol. II, Maio de 2010.
1ª ed. Belo Horizonte: Editora BookJVRIS 2010. 176 p.

ISBN 978-85-60131-26-6 (broch.)

1- Sociologia 2- Política 3- Movimentos Sociais 4- luta política

Fale com os autores


fredericofirmiano@gmail.com | profmoisesaugusto@gmail.com

Maio de 2010
Uma publicação

Daniel Lopes Faria, 210 – Belo Horizonte-MG – CEP 30610-120


e-mail: bookjuris@hotmail.com
3

“Carregamos no peito, cada um, batalhas incontáveis.


Somos a matéria perigosa das lutas.
Projetamos a perigosa imagem do sonho.
Nada causa mais horror à ordem do que homens e mulheres que
sonham. Nós sonhamos. “
(Os filhos da paixão, Pedro Tierra)
4 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
5

Sumário

9
Apresentação

13
I- Cultura, política e transformação
em Gramsci
Silas Nogueira

51
II- Leituras críticas: considerações sobre
o Estado, a sociedade civil, a cidadania e
a luta dos povos na construção da
democracia no século XXI
Frederico Daia Firmiano

81
III- Participação Social: da luta por autonomia
à participação institucionalizada –
Cristhiane Falchetti

105
IV- O surgimento histórico e os pressupostos
teóricos do Fórum Social Mundial.
Mauricio Bernardino Gonçalves

141
V- Reconstruindo a Trajetória das
Mobilizações e Lutas pela Educação
Escolar no MST - Bahia na década de 1990
Maria Nalva R. Araújo

175
Postfácio
6 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
7

Os Organizadores

Moisés Augusto Gonçalves - Mestre (UFPB) e


doutorando em Sociologia (UNESP), Professor da
PUC Minas nos Cursos de Comunicação Social e
Direito. Autor de Brados retumbantes – repertórios
de dominação, resistências e utopias na terra-brasilis
(2006) e Ruas vazias de gente (2007); Coordenador da
Coleção Olhares do dissenso. É diretor da Associação
dos Docentes da PUC Minas (ADPUC) e diretor do
Sindicato dos Sociólogos de Minas Gerais.

Frederico Daia Firmiano - Frederico Daia Firmiano


– Mestre e Doutorando em Sociologia pela Faculdade
de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista-
FCLar/Unesp; Docente junto a Fundação de Ensino
Superior de Passos/Universidade do Estado de Minas
Gerais-FESP/UEMG.
8 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
9

Apresentação
“Olhares sobre a luta social na contemporaneidade” é uma reivindicação
nossa, os organizadores, para que olhemos para as lutas sociais que inaugu-
ram o século XXI, reconhecendo-as no método da análise, compreensão e
reflexão das estruturas, processos e fenômenos sociais e tomando-as como
objeto de nossa atenção, nas suas expressões concretas.
Foi do nosso encontro, na universidade, no ano de 2007, que emergiu a
necessidade de confrontarmos esse horizonte teórico e metódico, nosso, com
outro que encontramos já institucionalizado pela academia e distante, por as-
sim dizer, da materialidade das relações. Em outros termos, tratava-se mesmo
de enfrentar uma perspectiva teórica sistêmica, inspirada e fomentada pela
ordem constituída e dissimuladora dos processos históricos concretos, a par-
tir de “olhares críticos”, voltados a alguns teóricos que, na contemporaneidade,
trazem referências para a reflexão da luta social na contemporaneidade; e vol-
tados para alguns sujeitos políticos, entre partidos e movimentos sociais.
Assim, organizamos a presente coletânea.
“Silas Nogueira e Frederico Daia Firmiano se voltaram se voltaram ao
pensamento social, latino-americano e europeu, tanto na configuração de pre-
missas de método para a análise e reflexão dos sujeitos políticos coletivos que
emergem no início do novo século, quanto na reflexão de conceitos, em grande
medida já abandonados pelo pensamento dominante, que estruturaram a re-
flexão crítica ao longo do século XX.
Ambos se encontram e divergem em considerações e argumentação sobre
o estado, a sociedade civil, a cidadania e a democracia. O primeiro apoiou-
se em terreno fértil: o pensamento de Antonio Gramsci, buscando “renová-
lo” à luz da história latino-americana e dos sujeitos constituídos nas últimas
décadas neste continente. Abrindo uma fecunda discussão, o sujeito grams-
ciano das profundas transformações da sociedade, o partido político, agora é
também encarnado pelos movimentos sociais populares”. Já o segundo, teceu
críticas ao pensamento pós-moderno e pós-marxista, empenhado, segundo
o autor, na “...perda [do] (...) horizonte de ruptura e emancipação...”, à me-
dida em que fomenta “...um certo tipo de produção intelectual amparada ou
no repertório do “possível” ou naquele que afirma a tarefa de reinvenção do
<<fazer político>>...”.
10 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

“Cristhiane Falchetti, Maurício Bernardino Gonçalves e Maria Nalva R.


Araújo refletem movimentos sociais contemporâneos, no campo e na cida-
de. Cristhiane Falchetti, que trata de “formas de participação” de movimen-
tos sociais populares a partir da relação entre Estado e sociedade civil. No
centro de suas preocupações está a questão da autonomia desses sujeitos, na
transição de manifestações espontaneistas para manifestações no interior de
instituições: certamente uma questão de relevância ímpar para aqueles que se
voltam para a compreensão das manifestações da sociedade civil e do Estado”.
Maurício Bernardino Gonçalves indaga o Fórum Social Mundial, discutindo
seus pressupostos teórico-metodológicos e suas perspectivas de luta, a partir
da indagação sobre o lugar do mundo do trabalho no FSM. A densidade te-
órica que recobre o texto é inspirada pelo “marxismo clássico”, que não cessa
de indagar as “novidades teóricas e metodológicas” trazidas pelo movimento
do Fórum. E, por fim, fechando nossa coletânea, Nalva R. Araújo nos trou-
xe a luta pela educação escolar na Bahia, na década de 1990, empreendida
pelo MST, fazendo co-existir a linguagem de sua experiência junto da luta do
movimento com a linguagem da teoria e trazendo-nos, com isso, um grande
trabalho etnográfico”.

Longe de se identificarem nas proposições, temas, problemas e mesmo


repertório conceitual, esses autores expressam o “dissenso”, “outros olhares”,
“olhares sobre a luta”, como ponto de tensões e de conquistas na luta por di-
reitos.

Frederico Daia Firmiano e Moisés Augusto Gonçalves


(Organizadores)
Maio de 2010.
Silas Nogueira 11

Silas Nogueira
Professor do Centro Universitário Moura
Lacerda e Fundação de Ensino Superior de
Passos/Universidade Estadual do Estado
de Minas Gerais; mestre em Sociologia pela
UNESP; doutor em Ciências da Comunicação
pela ECA/USP; pesquisador do CELACC-
ECA/USP e membro do C.C. Orúnmilá de
Ribeirão Preto – SP.
12 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
Silas Nogueira 13

Cultura, política e
transformação em Gramsci
Silas Nogueira

Situado na fase do marxismo que Anderson denominou de “pós-


clássica”, o pensamento de Gramsci é considerado um dos fundado-
res do marxismo ocidental, ao lado da produção de Georg Lukács
e Karl Korsch (Anderson, 1987, p. 18). A forma clara como tratou
tanto dos mais complexos temas da realidade que vivenciou quanto
da filosofia, apresenta momentos de lacunas e imprecisões impos-
tas pelas condições de encarcerado, mas não recai na falta de rigor
científico; ao contrário, apesar das limitações da prisão, Gramsci
mostra-se um crítico tenaz da pobreza de interpretação dos concei-
tos na ciência e no trabalho científico (Gramsci, 2001, v. 4, p. 18-19).
Com esse rigor debruça-se sobre o marxismo, a “filosofia da práxis”
e busca, a partir desta, uma interpretação da realidade e ataca os
reducionismos e as tentativas de transformação de seus conceitos
em dogmas (Idem, p. 31-41). Parece residir nesse encontro, do rigor
metodológico com interpretação dialética dos conceitos, uma das
fontes da riqueza de suas contribuições ao pensamento e à prática
revolucionária nas sociedades contemporâneas1.
Na sua leitura do mundo da cultura, Gramsci superou com tran-
qüilidade a leitura dualista, e mesmo mecanicista, dos conceitos de
infra e supra-estrutura. Ao interpretar dialeticamente as dimensões
culturais das relações sociais e as dimensões sociais das relações
culturais, entendendo seu caráter inseparável, Gramsci pôde desen-
volver as noções de “visão de mundo”, “senso comum” e “bom senso”
“desengessando” o conceito de ideologia que havia ganhado conside-

1 Essas contribuições levaram Norberto Bobbio a afirmar:”[...] (minhas intenções) eram as de mos-
trar que - no âmbito da tradição do pensamento marxista - Gramsci não fora um repetidor, mas
um interprete original”. (BOBBIO, N., O conceito de sociedade civil, Rio de Janeiro.1987, p.9)
14 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

rável rigidez particularmente com o pensamento de Althusser.


A originalidade de sua leitura sobre as questões políticas, e em
particular das possibilidades de superação do capitalismo, à qual
se referiu Bobbio, são reafirmadas por Coutinho ao mostrar que
Gramsci “assimila progressivamente os elementos essenciais da
heranças de Marx e Lenin” mas estabelece com eles “não uma re-
lação de simples continuidade, mas uma autêntica relação dialética
de conservação/renovação” (Coutinho, 1992, p. 4). E a análise da
dimensão da influência do pensamento de Gramsci mostra residir
nessa relação dialética (conservação/renovação) a capacidade de so-
brevivência e continuidade crítica que possibilitou sua permanência
no contexto histórico atual, marcado pela mundialização das econo-
mias, pela globalização das culturas.
Na questão da “conservação” em relação ao marxismo clássico,
em Gramsci, é preciso lembrar, como fez Coutinho , da afirmação
de Lukács sobre o método dialético:

O marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão


sem crítica aos resultados da pesquisa de Marx, não sig-
nifica uma “fé” numa ou noutra tese, nem a exegese de
um livro “sagrado”. A ortodoxia em matéria de marxis-
mo refere-se, pelo contrário, exclusivamente ao método.
Implica a convicção científica de que, com o marxismo
dialético, se encontrou o método de investigação justo, de
que este método só pode ser desenvolvido, aperfeiçoado,
aprofundado no sentido de seus fundadores [...] (Lukács,
1974, p. 15-16).

Não parece ser outra a fonte da segurança de Gramsci, senão o


método, para avançar de modo tão aberto e, portanto, renovador,
criando, a partir da realidade por ele experimentada, vivenciada,
“categorias cuja eficiência analítica transcende seu tempo, seu país”.
(Coutinho, 1992, p. 6). Seu impulso renovador foi tão fecundo que,
Silas Nogueira 15

mesmo diante de todas as transformações ocorridas nas sociedades


ao longo do século XX, o avanço do pensamento crítico voltado
para a superação das misérias e da alienação, fomenta-se e desen-
volve-se, em grande parte, com as possibilidades criadas por ele. Os
mais significativos movimentos sociais de transformação contem-
porâneos2, quer sejam de caráter mais abrangentes, como aqueles
de luta pela posse da terra, ou mais específicos como os de caráter
ecológico, étnico, “cultural” (aqui não só no sentido “gramsciano”) e
de gênero, ou tomam seu pensamento como base teórica ou justifi-
cam, com suas práticas, os conceitos de Gramsci referentes à hege-
monia, à sociedade civil, intelectual orgânico ou guerra de posições.
E isso é também explicado, em grande parte, pelos problemas mais
candentes existentes no processo de globalização - além da miséria
e da alienação - que são o caráter excludente do avanço tecnológico
e a perda da identidade, ou das identidades, dos povos, classes, gru-
pos e indivíduos3, presentes em praticamente todos os momentos
do capitalismo. Ao trabalhar dialética e politicamente a questão da
cultura, em seu sentido ampliado, Gramsci levantou os elementos
de uma pedagogia4 se transformou em uma verdadeira “escola gra-
msciniana” para a discussão da ciência, da história, do ensino e do
pensamento científico na contemporaneidade5. Do mesmo esforço
para o entendimento da questão política da cultura, incluindo aqui
os conceitos de “concepção de mundo”, “ideologia”, “senso comum e
bom senso”, deriva a sua contribuição para a discussão da identi-
dade, ou das identidades que, indissociavelmente, estão ligadas aos

2 Uma análise dos movimentos sociais contemporâneas é encontrada em TOURAINE, Alain.


Crítica da modernidade e em FERREIRA, M. Nazareth. Cultura, comunicação e movimentos
sociais.
3 Sobre identidade ver, entre outros, Hall, Stuart. A identidade na pós-modernidade.Rio de
Janeiro: DP&A, 2000
4 Ver principalmente GRAMSCI, Cadernos do Cárcere,Rio de Janeiro: Civilização Brsileira,
2001,v. 2, p. 9 -192
5 Ver obra de Paolo Nosella que sintetiza essa influência: NOSELLA, P. A escola de Grasmsci.
Porto Alegre: Artes Médicas,1992.
16 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

conceitos de nação, de estado e classe social, todos enriquecidos pelo


trabalho de Gramsci. Um trabalho calcado na tensão dialética entre
conservação/renovação e cujo vigor sustentou a aventura do conhe-
cimento na perspectiva da transformação histórica.

Economia, política e cultura: o equilíbrio e não


o determinismo

O pensamento de Gramsci, quer pelo seu teor filosófico, quer


pela sua postura política transgressora, continua oferecendo instru-
mentais teóricos, categorias, conceitos que, retomando ou reinter-
pretando aquilo que há de mais substancial no marxismo, contri-
buem para a reflexão acerca dos problemas contemporâneos6.
Se é possível destacar ou classificar diferentes aspectos das contri-
buições de Gramsci, o aspecto referente à relação dialética existente
entre infra e supra-estrutura destaca-se pelas possibilidades teóricas
surgidas após a intervenção gramscina. A retomada - ou mesmo a
reorganização do modelo marxista que comporta essas categorias,
explorando seu sentido filosófico amplo e não reduzindo-as a instru-
mentos mecânicos de análise - possibilitou a Gramsci a construção
de uma teoria que prima pela originalidade do seu conteúdo e pela
capacidade de criar novas condições de reflexão e atuação prática na
sociedade. A marca mais acentuada desse pensamento é o combate
ao reducionismo sofrido pelo marxismo - e a insistente permanência
desse reducionismo no campo teórico crítico - originado a partir de
diferentes interpretações da complexa obra de Marx e Engels. Com

6 “[...] o papel estruturador atribuído por Gramsci à filosofia não elimina o papel central que a
política desempenha na dinâmica social. Não apenas porque o objetivo da filosofia – o mundo
histórico presente – é político no sentido amplo, mas porque a política no sentido corrente,
entendida como um sistema de forças e lutas, faz comunicar entre si os problemas colocados
pela infra-estrutura – ou pelas contradições entre infra-estrutura em gestação e superestrutura
vigente – e a informação filosófica. (DEBRUN, M. Gramsci, filosofia política e bom senso.
Campinas: Unicamp, 2001, p. 32).
Silas Nogueira 17

a retomada da dialética, Gramsci pode opor-se ao mecanicismo, ao


determinismo e, principalmente, ao economicismo.
A ansiedade militante e as leituras apressadas das teses marxia-
nas levaram a concepções que predominaram principalmente a par-
tir da II Internacional (1889 – 1914)7, produzindo, entre outros
resultados, um dos aspectos reducionistas mais utilizados tanto
pelos próprios marxistas quanto por seus adversários. Trata-se da
“fórmula” segundo a qual “a base econômica determina a superestru-
tura (idéias, ideologia, pensamento, cultura, etc)”. A redução - que
ganhou publicidade, atravessou mais de século e permanece ainda
em alguns redutos contemporâneos - causou estragos de diferentes
quilates, tanto no pensamento quanto nas práticas mudancistas e
revolucionárias.
Chamado, com um certo exagero, de “teórico da superestrutura”,
por Nestor G. Canclini (Cf. 1983, p. 61-83), e interpretado, não
sem equívocos, por Norberto Bobbio como o pensador que “rein-
verteu” o pensamento de Marx em relação a Hegel (Cf. Bobbio,
1992), Gramsci, na realidade, retoma a leitura dialética existente no
“modelo” fundamental da relação dialética estrutura/superestrutura
existente no pensamento marxista. Compreende o caráter analítico
da divisão em dois pólos e, ao mesmo tempo, sua indivisibilidade no
movimento concreto da realidade concreta, da sociedade e suas rela-
ções. Mostra isso a partir de situações concretas cujas características
e contradições são explicitadas a partir de novas categorias como
“hegemonia” e “bloco histórico”:

Eles (os pólos infra e superestrutura) constituem um


“bloco histórico” no qual as forças materiais são o

7 Na realidade, o que ficou conhecido como “marxismo da II Internacional” é um conjunto


amplo de interpretações e posturas políticas marcadas em alguns casos pela ingenuidade, em
outros pela ortodoxia e em outros ainda pela redução do marxismo a instrumento partidário
de uso fácil e mecânico, distorções presentes também no espectro teórico conhecido como
“stalinismo”. Para uma leitura ampla e aprofundada do tema ver : HOBSBAWN, Eric J. (org.)
História do marxismo. vol. 2 e 3, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1989.
18 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que


essa distinção entre forma e conteúdo é puramente
didática, já que as forças materiais não seriam histori-
camente concebíveis sem forma e as ideologias seriam
meras fantasias individuais sem as forças materiais
(Gramsci, 1963, p. 64).

Com esta leitura, Gramsci aponta a existência de um “equilíbrio”


entre os dois referidos pólos e não os trata como duas forças distin-
tas em simples oposição. Não promove, portanto, a separação me-
cânica entre infra-estrutura (“mundo econômico”) e superestrutura
(mundo político,campo das idéias, da ideologia e da cultura). Esse
equilíbrio pode ser mais bem entendido em análises das formações
sociais específicas, análises estas feitas com o instrumental teóri-
co gramsciano e nas quais aquilo que pode ser interpretado como
superestrutura não aparece como dado secundário, como epifenô-
meno, como mero acessório da infra-estrutura. É, mais uma vez, a
referência a “bloco histórico” que contribui para o entendimento: “O
‘bloco histórico’, por exemplo, refere-se tanto à estrutura na qual as
classes são constituídas ao nível econômico (sobre esta base Gramsci
distingue entre classes ‘fundamentais’ e frações de classe), como no
nível político no qual as classes e as frações de classes se combinam”
(Hall; Lumley; Mclennan, 2000, p. 62).
O conceito de “bloco histórico” foi formulado por Gramsci du-
rante suas tentativas de compreender as formações sociais e en-
contrar as formas adequadas para a realização das transformações
sociais necessárias. Assim como os conceitos de “hegemonia” e as
suas concepções de estado e sociedade civil, o conceito de bloco his-
tórico foi muito importante no combate às tentativas de transposi-
ções mecânicas das “fórmulas” que “deram certo” no Oriente (leia-se
Rússia), antes e depois da Revolução de 1917. Dialogando com o
Silas Nogueira 19

pensamento de Lênin8 e analisando as práticas empreendidas pe-


los bolcheviques, Gramsci esforça-se para ressaltar a necessidade do
conhecimento da “realidade local” e nacional, do contexto histórico
no qual estão sendo processadas as mudanças9. As características
próprias desse contexto, as forças políticas e culturais, o modelo de
desenvolvimento econômico, ou seja, a história, presente e passado,
desse “locus” é que tanto apontam quanto criam as condições, obje-
tivas e subjetivas, para a realização e emulação das transformações
sociais. No seu texto “Maquiavel - notas sobre o Estado e a política”,
afirma Gramsci:

Deve-se recordar ao mesmo tempo a afirmação de


Engels de que a economia só em “em última análise”
é o motor da história (nas duas cartas sobre a filo-
sofia da práxis, publicadas também em italiano), que
deve ser diretamente conectada ao trecho do prefácio
à Crítica da economia política, onde se diz que os ho-
mens adquirem consciência dos conflitos que se veri-
ficam no mundo econômico no terreno das ideologias
(Gramsci, 2003, v. 3, p. 50).

Entender essa realidade, sua formação e a dinâmica das correla-


ções de forças é conhecer o “bloco histórico”. Assim, bloco histórico
é a formação social, e seu desenvolvimento, um conjunto de forças
políticas (portanto sociais, econômicas, culturais, ao mesmo tempo)
que, em dado momento histórico, constituem e movimentam a so-
ciedade. (Cf. Gruppi, 1978, p. 78).

8 - Para uma visão geral do pensamento e da ação política de Lênin ver: BANDEIRA, Moniz.
Lênin – vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978 e SALOMONI, Antonella. Lênin e a
revolução russa. São Paulo: Ática, 1994. De sua imensa contribuição ao pensamento moder-
no, pode-se dizer que as reflexões em torno de “teoria” e “prática” constituem aspecto de maior
valor político-filosófico.
9 Com essa preocupação Gramsci mergulha fundo na compreensão da realidade histórica da
Itália, tornando-se grande conhecedor de sua formação e da complexidade da sociedade italia-
na de seu tempo.
20 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Essa concepção de bloco histórico, na qual a sociedade aparece


enquanto totalidade e em movimento, mostra como Gramsci, ao
falar em “forças sociais” (políticas, econômicas, culturais), entende
com clareza a relação dialética existente entre infra e superestrutu-
ra. É também fundamental para o entendimento do que Gramsci,
novamente dialogando com pensamento de Lênin, denominou de
“hegemonia”, uma das categorias chaves de seu pensamento que é
mais bem compreendida quando se conhece os outros conceitos de
sua teoria.
Mas, para que não se atribua um sentido puramente idealista à
leitura dialética de Gramsci (o que também seria um “desequilíbrio”
entre os “pólos”), é preciso lembrar que ele assume os postulados
marxistas na acepção original, mas aprofunda a interpretação evitan-
do, dessa forma, o mecanicismo e o determinismo: “As estruturas e
as superestruturas formam um ‘bloco histórico’, ou seja, o conjunto
complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo das relações
sociais de produção” (Gramsci citado por Coutinho, 1992, p. 56).
O enunciado, se visto fora do conjunto dos pensamentos tanto
de Marx como de Gramsci, pode levar à idéia de “reflexo” como ação
automática, como um espelho a refletir mecanicamente uma ima-
gem, sem autonomia alguma, sem a noção de processo, de ato em
movimento dialético. Essa redução, registrada principalmente nos
manuais de doutrinação, tem origem nas substituições (inclusive nos
próprios originais de Marx, Engels, Lênin e Gramsci) do termo “re-
lações de produção” por “economia”. Nos originais, vê-se que a troca
ocorre sem a perda do significado já que está no conjunto da obra.
Mas nos “manuais”, a dimensão político-filosófica torna-se menor e
equivocada, quando o termo “economia” é interpretado e traduzido
como “relações técnicas de produção” (Idem, p. 55-59). Ao se refe-
rirem às “relações sociais de produção, tanto Marx como Gramsci,
mesmo quando ocasionalmente usam”economia”, vão muito além
das “técnicas” no sentido restrito, ultrapassam o sentido técnico/
Silas Nogueira 21

instrumental da produção de objetos materiais. Buscam mostrar o


“modo como os homens associados produzem e reproduzem não só
esses objetos materiais, mas suas próprias relações sociais globais”
(Idem, p. 56).
Mesmo a condição de “reflexo” não pode ser entendida como
uma determinação fatalista e estática. Só a partir da compreensão
do movimento dialético acentuado por Gramsci, na leitura de Marx,
chega-se com clareza ao significado de “determinação em última ins-
tância” das superestruturas pelas estruturas. Gramsci explora esse
aspecto, considerando que essa determinação é também opressão,
limitação do sujeito pelas forças e relações de produção. A busca
para atenuar essa opressão/limitação é a grande luta política, é a
busca da superação do estado de pobreza e limitação, de expansão
da condição humana pela atividade política.
Da mesma forma que o conceito de “economia” ganha dimensões
bem mais amplas, para além das “técnicas de produção”, também
em Gramsci, em mais uma recuperação dos conceitos ampliados de
Marx, o conceito de “política” não se restringe às práticas ligadas di-
retamente ao exercício do poder institucional, quer pelo Estado ou
por aqueles que atuam em torno dele ou com o objetivo de atingi-lo.
Muito menos por “política” entende-se simplesmente as atividades
partidárias, mesmo quando somadas àquelas que gravitam nas suas
proximidades com o objetivo de fortalecê-la ou alimentá-la.
Se “economia” tem o sentido de “conjunto das relações sociais” é
inegável no significado a aproximação com o sentido de “política” já
que “relações sociais” são, necessariamente, relações humanas, cultu-
rais, políticas, sociais concomitantemente. Mas antes de explorar a
visão de Gramsci segundo a qual “tudo é política” e sua extensão à
história, à cultura, e às diferentes manifestações da vida em socieda-
de, ou “à práxis em geral”, torna-se importante, mostrar a interpreta-
ção feita por Coutinho do pensamento de Gramsci acerca da relação
política e economia:
22 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

[...] ao contrário do que pensa certo marxismo economicista,


vulgar, o modo pela economia e política se relacionam não é
dado de uma vez por todas: o modo de articulação entre as
duas esferas, o maior ou menor poder de determinação em sua
ação recíproca, dependem do tipo específico da formação social
em questão, sendo portanto um fenômeno historicamente mu-
tável (Idem, p. 58).

E, para sintetizar a questão da relação infra-superestrutura, na


qual estão inseridas as questões política e economia e também cul-
tura e política e ou “a práxis em geral”

[...] a inegável ‘prioridade ontológica’ de uma esfera em re-


lação a outra (do ser em relação à consciência, da base em
relação às superestruturas), ou seja, o fato de que sem o ser
não existe a consciência, ou de que sem a base não existem
as superestruturas, essa prioridade não implica absolutamente
em uma hierarquia lógica ou causal eterna e fixa entre as duas
esferas em questão (Idem, p. 58).

Toda a produção teórica de Gramsci, mas particularmente sua


análise da relação dialética em sua totalidade, expressa na relação in-
fra/supra estrutura, permite afirmações como a de Nicola Badaloni,
segundo a qual “A ‘filosofia’ democrática de Gramsci, (...) é uma con-
tínua busca do diálogo, certamente baseado em princípios, mas não
em uma pretensão de ortodoxia” (Badaloni, 1983, p. 12).
Para a discussão e análise da realidade contemporânea e de seus
agentes, como os movimentos sociais, os desdobramentos e os “diálo-
gos” oferecidos pelo teor dialético da obra de Gramsci tornam-se funda-
mentais, em especial no que se refere a relações entre cultura e política:

[...] o impacto mais renovador de seu trabalho carregou


no seu bojo, desde logo, uma contribuição significativa
para alterar o estatuto teórico-político dessas relações. A
base para o impacto renovador do pensamento gramsci-
Silas Nogueira 23
no encontra-se em sua crítica poderosa ao reducionismo
econômico. Essa crítica afirma uma imbricação profun-
da entre cultura, política e economia e estabelece uma
equivalência entre formas materiais e elementos cultu-
rais dentro de uma visão integrada de sociedade como
um todo (Dagnino, 2000, p. 62).

Essa equivalência foi um dos aspectos mais relevantes que per-


mitiram, inclusive na América Latina, uma espécie de reconciliação
de parte do pensamento da esquerda com a realidade das lutas de-
senvolvidas fora dos espaços tradicionalmente reconhecidos como
“arena política”, o Estado, os parlamentos, os partidos políticos e as
entidades sindicais. Ganham visibilidade, interesse acadêmico e uma
maior influência nos componentes das sociedades civis as forças e
agentes oriundos de diferentes espaços, diferentes lutas e também
diferentes matizes culturais e ideológicas dentro dessas mesmas so-
ciedades, isto é, ganham importância os movimentos sociais.
O reconhecimento da “imbricação profunda existente entre cul-
tura, política e economia” fortalece, no campo teórico crítico, aquilo
que já mostravam, desde tempos mais remotos, as lutas, a prática e
o saber dos agentes sociais em suas diversificadas formas de atuação
e luta pelas transformações sociais.

Sociedade civil e Estado

O conceito de hegemonia em Gramsci, embora reproduzindo


parte do sentido que havia sido empregado por Lênin, difere deste
na medida que amplia seu significado para além de força/poder e
de “dominação”. Fica mais claro se pensado a partir dos conceitos de
estado e sociedade civil, estes também com alterações em relação aos
clássicos marxistas, particularmente as noções desenvolvidas por
Lênin em “O Estado e a Revolução”. Nas palavras de Gramsci:
24 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Para Halévy, ‘Estado’ é o aparelho representativo e ele


descobre que os fatos mais importantes da história fran-
cesa, de 1870 até hoje, não se devem a iniciativas de
organismos políticos derivados do sufrágio universal,
mas ou de organismos privados (empresas capitalistas,
Estado-Maior, etc), ou de grandes funcionários desco-
nhecidos do país, etc. mas isto significa que por ‘Estado’
deve-se entender, além do aparelho de governo, também
o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil
(Gramsci, 2001, v. 3, p. 254).

Para Gramsci, a separação entre Estado e sociedade civil não se


dá de maneira matemática nem mecânica. Superando a “fórmula”
pronta que “resolve” a questão do Estado com a afirmação de que
“todo Estado é uma ditadura de classe” ou um “comitê executivo” das
classes dominantes, Gramsci constata a existência de uma imbri-
cação do Estado na Sociedade Civil e desta no Estado, ampliando,
desta forma, os conceitos oriundos das leituras ortodoxas dos clás-
sicos10. Por outro lado, a leitura de Gramsci só se tornou possível
após as revelações do marxismo sobre o caráter e a origem de classes
do Estado. A complexidade atingida pelas sociedades capitalistas na
Europa Ocidental do tempo de Gramsci exigiu do pensador italiano
mais esforços e novos elementos teóricos para a compreensão das
relações de poder, da sociedade civil e do próprio Estado11.
Carlos N. Coutinho, autor cuja obra se destaca pelo esforço
em ressaltar a fidelidade do pensamento de Gramsci ao marxismo
original, sintetiza da seguinte forma os conceitos gramscianos de
“Estado” e “Sociedade Civil”:

10 Sobre o tema, ver excelente discussão feita em COUTINHO, C. N. A dualidade de poderes.


São Paulo:Brasiliense,1985, p.15 a 45.
11 “Surge uma esfera social nova, dotada de leis e funções relativamente autônomas e específicas,
tanto em face ao mundo econômico quanto dos aparelhos repressivos do Estado” (COUTI-
NHO, Gramsci. Um estudo de seu pensamento político. 1992, p. 74).
Silas Nogueira 25
O Estado em sentido amplo, com ‘novas determina-
ções’, comporta duas esferas principais: a sociedade
política (que Gramsci também chama de ‘Estado em
sentido estrito’ ou ‘Estado coerção’) que é formado pelo
conjunto de mecanismos através dos quais a classe domi-
nante detém o monopólio legal da repressão e da violên-
cia, e que se identifica com os aparelhos de coerção sob
controle das burocracias executiva e policial-militar; e a
sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto
das organizações responsáveis pela elaboração e/ou
difusão das ideologias, compreendendo o sistema es-
colar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as
organizações profissionais, a organização material da
cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comuni-
cação de massa, etc) (Coutinho, 1992, p. 77).

A leitura, que, na realidade, é uma leitura do poder “e suas tramas”,


amplia o conceito de Estado e revela, ao mesmo tempo, as extensões,
as ramificações do poder na sociedade civil em ações exercidas pelos
“aparelhos privados de hegemonia”. Mas é a conceituação de “socie-
dade civil” feita por Gramsci que se tornou um dos mais discutidos
e polemizados pontos de sua teoria. Sua concepção dialética, sua
percepção da unidade existente entre infra e superestrutura permiti-
ram a afirmação de que a sociedade civil é um momento da superes-
trutura. O impacto é grande para os ortodoxos que liam a sociedade
civil como “conjunto de relações econômicas” no sentido estrito. Na
realidade, na “Ideologia Alemã”, Marx e Engels já a definem como
“lócus”, como palco da história. No entanto, é a ampliação do signifi-
cado de “relações econômicas” para muito além de práticas e técnicas
e a acentuação da importância dos elementos que envolvem, de certa
forma, a cultura e a ideologia, que permitem a Gramsci elaborar o
instrumental teórico que localiza a sociedade civil na superestrutu-
ra. E, aqui, é grifado o “localiza” para acentuar que não se trata de
uma simples colocação de um objeto concreto em um determinado
26 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

lugar, mas sim da análise de algo complexo como são, em todos os


períodos históricos, as relações sociais no seu conjunto, na sua ri-
queza de aspectos tanto econômicos quanto culturais, tanto infra
como superestruturais, ou seja, no seu sentido histórico, um sentido
que abrange muito mais que técnicas e resultados fatalistas, muito
mais que o sentido estrito da “produção”. É o caráter ontológico que
confere uma dimensão renovadora à citação de Gramsci. Se com-
preendida a sociedade civil como “espaço” ou “palco da história” e a
história é construída pela ação dos homens, torna-se fundamental
entender que essa ação envolve teoria e prática, pensamentos e atos,
ou seja, envolve a criação da cultura, a criação dos campos do con-
creto e do imaginário, campos estes que atuam de forma concomi-
tante e coexistem inseparavelmente.
Se, no conceito ampliado de Estado, sociedade política é a de-
finição de uma esfera na qual se situam os mecanismos de atuação
direta (burocracia, aparato policial-militar, etc) de coerção e domi-
nação, os portadores materiais da sociedade civil “são o que Gramsci
chama de ‘aparelhos privados de hegemonia’, ou sejam, organismos
sociais coletivos e relativamente autônomos em face da sociedade
política”. Dessa forma, pode-se afirmar que a sociedade civil é tam-
bém “uma base material própria, um espaço autônomo e específico
de manifestação” da hegemonia (Idem, p. 77). É nesse espaço que a
hegemonia é cultivada, exercida e politicamente construída para a
criação e manutenção da direção política e do consenso, da aceitação
da situação de poder e domínio. E foi nessa esfera, na qual seu movi-
mento dialético sintetiza a relação entre infra e superestrutura, que
Gramsci concentrou seus esforços, sempre no sentido de buscar os
elementos capazes de desvendar e superar, historicamente, o “bloco
histórico”, a situação política e econômica que se sustenta na opres-
são, na exploração e na exclusão. Na sociedade política prevalece,
ainda que sem uma separação mecânica, o exercício da dominação
mediante a simples coerção, o uso da força propriamente dita, na
sua forma mais bruta e ostensiva.
Silas Nogueira 27

A densidade do conceito, embora provoque usos equivocados


ou tergiversados, oferece amplas condições para análise e questio-
namento das ações políticas desenvolvidas tanto para a conservação
quanto para a transformação do poder e de seu exercício nas socie-
dades contemporâneas, com suas economias e culturas globalizadas.
Nem mesmo as mutações sofridas pelos Estados nacionais, marca-
das no neoliberalismo por perdas de prerrogativas e diluições de sua
influência nos respectivos territórios, somadas ao aumento do poder
político/econômico/cultural das empresas transnacionais, grandes
conglomerados, holdings de grande capacidade de crescimento e
concentração, foram suficientes para que as formações sociais atuais,
distantes da Itália do tempo de Gramsci, escapassem ou se colocas-
sem fora do alcance da teoria e da crítica gramsciana. Ao contrário,
a evolução do capitalismo e seu atual estágio acentuam o caráter de
relação do poder e de sua não localização apenas no âmbito das es-
truturas do Estado. Da mesma forma, os processos de reprodução/
manutenção e expansão do poder, quando não estão totalmente nas
mãos dos círculos, organizações privadas e diferentes tipos de em-
presas, incluindo aquelas do campo da cultura, comunicação e edu-
cação, têm nessas organizações suas mais fortes bases de produção
e sustentação.
Para os movimentos sociais complexos como os da América
Latina, o conceito gramsciano de sociedade civil trouxe, além da já
citada colaboração para o entendimento e compreensão, o reconhe-
cimento de suas importâncias como sujeitos políticos assim como
um maior respeito político pelas suas origens, posturas e relações
político-culturais oriundas de conflitos e situações históricas, nem
sempre consideradas importantes ou fundamentais pelo fazer polí-
tico tradicional, inclusive no campo das esquerdas. Abre-se, ainda
que carregado de constrangimentos e tensões, o diálogo cujas pos-
sibilidades concretas estão implícitas no pensamento de Gramsci.
Outros elementos constitutivos das formações sociais complexas
28 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

superam os limites impostos pelos conceitos predominantes, nos


discursos e análises no campo das esquerdas. Culturas, etnias e iden-
tidades passam a equivaler ou a superar, em importância política, os
sentidos de “ideologia dominante”, “classes sociais”, “classe operária”
e “consciência de classe” e outros. Importa ressaltar que, para além
dos avanços das teorias, a realidade histórica, as mudanças concretas
nas estruturas e relações sociais, envolvendo, concomitantemente, o
mundo do trabalho e da produção e o mundo da cultura, tornaram
mais evidentes os limites daqueles conceitos e forçaram a busca de
novos horizontes e uma maior aceitação de renovações como aque-
las contidas na ampliação dos conceitos de sociedade civil e Estado
propostos por Grasmci.
Além de tornar mais visível a multiplicidade dos sujeitos envol-
vidos no movimento da história e contribuir para o desvendamento
das tramas do poder nas formações sociais da América Latina, a
leitura gramsciana elucida a capacidade dos mecanismos de criação
e manutenção da hegemonia e confirma a necessidade de democra-
tização/socialização desses mecanismos.
No que se refere à construção do consenso e da direção políti-
ca e, grosso modo, da visão de mundo preponderante, os meios de
comunicação, responsáveis pela divulgação “em massa” do discurso
do poder, representam um dos os mais eficientes mecanismos da
manutenção da hegemonia, principalmente se for considerado que,
na contemporaneidade, esses meios assumiram funções e importân-
cia superiores a outras agências e instituições sociais de formação
tradicional ou informal como escola, família, igrejas, exército. Seu
controle pelo capital e por agentes privados, na grande maioria dos
casos, mostra tanto a descentralização e pulverização espacial das
instâncias de poder e controle quanto a necessidade desse controle
ser democratizado/socializado chegando às classes, grupos e popu-
lações subalternizadas.
Silas Nogueira 29

Hegemonia e poder

Definido o seu “palco”, ou seu campo de ação e desenvolvimento,


torna-se importante uma reflexão acerca do conceito de hegemo-
nia em Gramsci. Considerado conceito-chave no pensamento de
Gramsci, hegemonia, ao contrário do que tem sido muito difundido,
não pode ser tratada como sinônimo exato de “poder” ou de “domi-
nação”, se tomados esses termos isoladamente. É um conceito com o
qual o pensador italiano busca entender os vários aspectos, as várias
formas e manifestações das relações de poder. Por isso não pode ser
reduzido a simples dominação, noção que está mais próxima do uso
feito por Lênin ao se referir à nova situação que seria criada pelo
proletariado, quando este atingisse o poder e assumisse o controle
do Estado. Em Gramsci, o significado é mais complexo. Tem como
um de seus pilares a ideologia12 mas também não pode ser reduzido
a “dominação ideológica”:

Deve, portanto, ficar claro que a hegemonia, para


Gramsci, inclui o ideológico mas não pode ser reduzido
àquele nível, e que ela se refere à relação dialética de for-
ças de classe. A dominação e a subordinação ideológica
não são compreendidas isoladamente, mas sempre como
um aspecto, embora crucialmente importante, das rela-
ções das classes e frações de classes em todos os níveis: eco-
nômico e político, bem como ideológico/cultural (Hall,
Lumley, Mclennan, 2000, p. 64).

Evitando uma definição fechada ou com pretensão à precisão sis-


temática, o que é praticamente impossível em relação ao pensamen-
to de Gramsci, pode-se afirmar que hegemonia é um conceito que

12 O conceito de ideologia usado por Gramsci, e que fundamenta o conceito de hegemonia, é


mais uma das suas contribuições ao enriquecimento do marxismo pois também ultrapassa a
condição de simples “reflexo da economia”, como se verá mais adiante.
30 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

envolve, além da ideologia, a “direção intelectual e moral” no âmbito


das relações de poder e classe e a aquiescência das classes e grupos
dominados, uma anuência que, em algum nível, envolve também
a persuasão e a sedução para a formação de um consenso sobre o
exercício do poder e suas características. Assim, de forma sintética
e limitada, mas apoiada nas palavras do próprio Gramsci, pode-se
identificar “hegemonia” com a “direção intelectual e moral” que um
“grupo social”13 exerce sobre outros em uma determinada sociedade.
Algumas considerações devem ser ressaltadas quanto ao conceito
de hegemonia e à leitura que ele possibilita das sociedades contem-
porâneas, como as latino-americanas, que apresentam formações
históricas distintas das sociedades européias14, principalmente no
que se refere a suas origens étnico-culturais e a seus processos de
industrialização, urbanização, formação de suas classes dominantes
e subalternas.
Para essas sociedades, as análises do poder e das formas da he-
gemonia carecem de ampliações que abranjam os vários elementos
de uma história que inclui a colonização e seus desdobramentos, na
maioria marcados por sangue e subjugação extrema dos vencidos. É
preciso considerar, como fez Octávio Ianni (1993, p. 27), que
[...] os séculos de colonialismo e escravismo, com base na
economia primária exportadora, ou de enclave, produzi-
ram estruturas sociais complexas, bastante diferenciadas
e rígidas. Nessa formação social, mesclam-se desigual-
dades sociais, econômicas, políticas, culturais, raciais e
regionais.

13 Vários autores usam, no lugar de “grupos sociais”, o termo “classe” mas o uso de “grupos”, in-
clusive no plural, por Gramsci, revela que o termo classe apresenta limitações diante de uma
realidade mais complexa embora, em outros textos e contextos, faça seu uso para se referir a
formações específicas.
14 “A história da América Latina é uma história de lutas sociais. Aí destaca-se primeiramente as
castas e os setores de castas durante o período colonial e entrando pelo século XIX. Depois ,
a partir da independência e abolição do trabalho compulsório, destacam-se as classes e setores
de classes”. Ianni, Octávio. O labirinto latino americano.Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.1993,
p. 27
Silas Nogueira 31

Por outro lado, considerando ainda as particularidades como


as desigualdades e as distâncias sociais, deve-se destacar o desen-
volvimento técnico-científico, ocorrido ao longo do século XX e a
sofisticação que esse avanço conferiu aos mecanismos de comuni-
cação, destacando a rapidez e a complexidade alcançadas no terreno
da informática. Esse avanço quantitativo e qualitativo, conduzido,
em grande parte, pelos detentores do poder político e econômico,
representa também, ainda que com contradições, um maior pode-
rio, uma maior eficiência na produção e reprodução no campo da
cultura e uma maior capacidade na divulgação dos bens simbólicos.
Sob controle do capital privado e gerido na forma de empresas, na
maioria dos casos, em consonância ideológica com os detentores da
hegemonia, os mecanismos de comunicação atuam, não sem con-
tradições, no sentido de consolidar a “direção moral e intelectual” da
sociedade, na formação do consenso necessário para a manutenção e
exercício da hegemonia. Sua sofisticação técnica e capacidade de uso
das diferentes linguagens interferem nos processos de transforma-
ção e renovação das culturas. Têm ampliadas suas potencialidades
de atingir e interagir no campo da subjetividade humana, particu-
larmente nos processos de persuasão e sedução. Esses processos en-
volvem, de alguma forma, os campos do consumo, das necessidades
e, ao mesmo tempo, da elaboração de uma “lógica da mercadoria”,
elementos da teoria da alienação, aspecto do marxismo não traba-
lhado por Gramsci mas que, nas formações capitalistas, não pode
ser desprezado, inclusive por contribuir para o entendimento das
“visões de mundo” e das características das relações sociais.

Hegemonia e ideologia

Importa ressaltar que Gramsci desenvolveu esse conceito a partir


de sua leitura crítica e renovadora dos clássicos marxistas e, princi-
32 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

palmente, no seu esforço de interpretação da realidade concreta de


uma formação social historicamente situada: a sociedade italiana,
sua história e seu momento político do fim do século XIX e início
do século XX. Em sua obra “Risorgimento Italiano”, escrito entre
1934 e 1935, Gramsci usa o conceito com clareza para explicar a
unificação italiana, o aparecimento e desenvolvimento do Estado
moderno na Itália:

[...] O critério metodológico sobre o qual se deve basear


o próprio exame é este: a supremacia de um grupo so-
cial se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como
‘direção intelectual e moral’. Um grupo social domina os
grupos adversários, que visa a ‘liquidar’ ou a submeter
inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e
aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigen-
te já antes de conquistar o poder governamental (esta é
uma das condições principais para a própria conquista
do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o
mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante mas
deve continuar a ser também ‘dirigente’ (Gramsci, 2001,
v. 5, p. 62).

Na reflexão sobre hegemonia, de um modo geral, é possível agru-


par importantes aspectos do pensamento de Gramsci. Um deles
é, como colocado anteriormente, a identificação da sociedade civil
como “lócus” da construção e preservação da hegemonia tirando a
ênfase do Estado no sentido restrito. Outro aspecto significativo
é a distinção dos modos como se manifesta a “supremacia”, o po-
der, separando, em tese, o “domínio” e a “direção intelectual e moral”.
Gramsci não identifica automaticamente essa direção como “direção
ideológica” mesmo considerando a proximidade de sentidos.
Silas Nogueira 33

Isso se torna mais claro com sua análise crítica das concepções
de ideologia com sentido unificado e mitificado. Ressalta como
uma das origens de erro a não distinção entre ideologias como su-
perestrutura necessária, aquelas “historicamente orgânicas”, e aque-
las “arbitrárias, racionalísticas, voluntaristas”, de caráter individual.
Reafirma o caráter de força viva e atuante da ideologia e critica a
análise mecanicista segundo a qual as ideologias estão separadas da
realidade e não transformam esta realidade:

O sentido pejorativo da palavra tornou-se exclusivo, o


que modificou e desnaturou a análise teórica do conceito
de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente
reconstruído: 1) identifica-se a ideologia como sendo
distinta da estrutura e afirma-se que não são as ideolo-
gias que modificam a estrutura, mas sim vice e versa; 2)
afirma-se que uma determinada solução política é “ide-
ológica”, isto é, insuficiente para modificar a estrutura,
enquanto crê poder modificá-la se afirma que é inútil,
estúpida, etc.; 3) passa-se a afirmar que toda ideologia
é “pura” aparência, inútil; estúpida,etc (Gramsci, 2001,
v. 1, p. 237).

E completa a análise mostrando que a necessidade de distinção


é vital para uma concepção abrangente que não imobilize, não “en-
gesse” o conceito:

Enquanto são historicamente necessárias, as ideologias


têm uma validade que é validade “psicológica”: elas “or-
ganizam” as massas humanas, formam o terreno no
qual os homens se movimentam, adquirem consciência
de sua posição, lutam, etc. Enquanto são “arbitrárias”,
não criam mais do que “movimentos” individuais, polê-
micas, etc. (nem mesmo estas são completamente inúteis,
já que funcionam como o erro que se contrapõe à verdade
e a afirma (Idem, p. 237).
34 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Ao recorrer ao uso de “ideologia”, Gramsci utiliza também con-


cepções equivalentes, ou próximas, como “filosofias”, “concepções de
mundo” e formas de consciência. Não se trata apenas de uso de ter-
mos mas de significados complexos. É em sua discussão sobre a im-
portância da filosofia nas relações humanas e sociais que ele aborda
com mais clareza a questão da ideologia, em sua conexão política
com a construção da hegemonia. Nessa abordagem sobre filosofia,
Gramsci discute o seu caráter, seu papel e função histórica assim
como suas conexões com o sentido amplo de política, trata-se do
campo, e das possibilidades, no qual se discute inclusive ideologia
mas não confundindo ou igualando as duas coisas.
Em uma de suas referências à ideologia, e aqui se torna mais
apropriado usar o termo “referência” que “definição”, Gramsci abre
um campo muito mais amplo e rico em possibilidades que a defini-
ção mais ortodoxa, no âmbito do marxismo, de “ideologia” como “re-
flexo da base econômica”, como algo secundário que “sofre” as trans-
formações oriundas da “base” ou da “estrutura”. Não estabelece uma
contradição nem “inverte” o marxismo, mas afronta e supera o
reducionismo e a castração dos sentidos do termo. Nessa refe-
rência, talvez a mais fecunda, aparece também o sentido trabalhado
por Marx e Engels, principalmente em “A ideologia alemã” como um
dos sentidos, mas sem reduzir, sem concentrar no termo “ideologia”
todos os sentidos que “explicariam” o imaginário, as representações,
as concepções de mundo, as filosofias:

Mas nesse ponto (da discussão acerca da filosofia) colo-


ca-se o problema fundamental de toda concepção de
mundo, de toda filosofia que se transformou em um
movimento cultural, em uma “religião”, em uma “fé”,
ou seja, que produziu uma atividade prática e uma
vontade nas quais ela esteja contida como “premissa”
teórica implícita (uma “ideologia”, pode-se dizer, des-
de que se dê ao termo “ideologia” o significado mais
Silas Nogueira 35
alto de uma concepção de mundo, que se manifesta
implicitamente na arte, no direito, na atividade eco-
nômica, em todas as manifestações de vida individu-
ais e coletivas) – isto é, o problema de conservar a
unidade ideológica em todo o bloco social que está
cimentado e unificado justamente por aquela ideolo-
gia (Idem, p. 98).

Assim, ideologia aparece como “uma concepção de mundo” e


também como “cimento” que unifica e conserva a unidade ideológica
em todo o bloco social. Não aparece como algo exclusivo de uma
classe ou grupo que a “fabrica” para impor aos grupos dominados e
subalternos, e nem somente com o sentido e aspecto negativo que o
termo ganhou em diferentes usos e interpretações mais estreitas. A
negatividade e a condição de falsificadora da realidade e de “cortina
de fumaça” que encobre a verdade não são descartadas nem perdem
o sentido. Mas “concepção de mundo” abre e amplia o conceito, re-
conhecendo a possibilidade de diferentes concepções surgidas em
diferentes contextos e com diferentes elementos. Ou seja, a “liga”
que dá qualidade ao “cimento” é formada em cada contexto especí-
fico com elementos próprios desse contexto. E isso os movimentos
sociais latino-americanos têm buscado não só “depurar” teoricamen-
te, como colocar em prática as idéias de transformação oriundas de
visões de mundo correspondentes aos diferentes povos, etnias, gru-
pos e também classes que formam o vasto universo das populações
exploradas, oprimidas e subalternas do continente.
Outro importante aspecto da reflexão filosófica de Gramsci acer-
ca da ideologia encontra-se no seu esforço teórico para entender
“o senso comum”, o conhecimento existente nas formações sociais
adquirido por intermédio das experiências e vivências, das tradições
e herdado dos antepassados. Mesmo reconhecendo os limites do
senso comum, ao colocá-lo como um dos elementos a serem anali-
sados na constituição da hegemonia, das relações de poder, ou seja,
36 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

das relações políticas, Gramsci traz para essa discussão o saber, a


cultura e as próprias experiências cotidianas com suas formas de,
a sua maneira, transformar a realidade e existir. Também aqui esse
conhecimento, essas idéias, essa cultura não são interpretados como
simples reflexo da base econômica, como “ideologia” que só mudará
“a reboque” da “economia” no sentido restrito. Gramsci não o descar-
ta, como ocorre nas concepções filosóficas clássicas; antes, reconhe-
ce a importância dos valores na elaboração de um conjunto de idéias
que, mesmo fragmentado e tendente a conservar as relações de po-
der, possibilita interpretações e a ação dos indivíduos. Nessa sua
análise do senso comum, encontra-se uma de suas argumentações
políticas, no sentido amplo, que contribui para uma noção de trans-
formação social de caráter coletivo e amplo. Trata-se da possibilida-
de do senso comum atingir o que ele denominou de “bom senso”, “o
núcleo sadio do senso comum”. Bom senso seria um “estágio” mais
avançado no qual o senso comum transforma-se, avança e atinge
uma elaboração menos fragmentada do saber, uma forma mais críti-
ca enquanto consciência e concepção de mundo. Ainda que passível
de abordagens críticas15, essa contribuição de Gramsci, mesmo que
desenvolvida no âmbito e com os elementos da cultura ocidental,
influencia e desencadeia mudanças que, como se verá mais adiante,
atinge tanto o campo teórico quanto as práticas das forças, agentes
e movimentos transformadores, particularmente os movimentos de
caráter popular no mundo todo.
A ênfase dada por Gramsci ao estudo da ideologia permitiu a su-
peração de muitos conceitos fossilizados mas mesmo assim, não se
pode afirmar que haja um conceito único e fechado de ideologia em
sua obra. Dessa forma, a referência de ideologia como “concepção
de mundo e como “cimento” que dá coesão, que permite a unida-
de das estruturas sociais e o domínio nas superestruturas, torna-

15 Ver o ensaio crítico feito em ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada- ensaios de cultura
e religião.Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1980.
Silas Nogueira 37

se um ponto em torno do qual é possível pensar de forma ampla e


satisfatória o conceito. Não mais como algo dado e definido, mas
como algo vivo que tanto sofre como promove transformações no
movimento dialético das formações sociais. Não mais como força
exclusiva dos grupos e classes dominantes, ou como força universal,
mas muito mais como resultante e resultado das relações de força na
ação política da dominação, e também nas possibilidades de trans-
formações das relações sociais:

(...) Gramsci concebe a apropriação diferencial das idéias


dominantes dentro do bloco governante e dentro da clas-
se dominada. A primeira tem sua base no fracionamen-
to do bloco dominante e numa divisão de trabalho entre
funções intelectuais e funções mais práticas; a segunda,
no complexo processo de acumulação, transformação e
rejeição das idéias dominantes pelas classes subordina-
das” (Hall, Lumley, Mclennan, 2000, p. 64).

Nesse complexo processo, no qual estão, ao mesmo tempo, a acu-


mulação e a rejeição das idéias dominantes pelos grupos, classes ou
povos dominados está, também, o espaço da atuação política tanto
no sentido da resistência à dominação/submissão quanto no sen-
tido de elaboração das possibilidades reais de construção de novas
relações de força na perspectiva de nova hegemonia e de um outro
bloco histórico16.

“Todos os indivíduos são filósofos e intelectuais”

A preocupação de Gramsci no estudo do papel das ideologias,


das concepções de mundo na formação da hegemonia exercida pelos

16 “(A hegemonia) (...) tende a construir um bloco histórico, sou seja, a realizar uma unidade de
forças sociais e políticas diferentes (...), a conservá-las juntas através da concepção de mundo
que a traçou e difundiu” (GRUPPI, A concepção de hegemonia em Gramsci.1978, p.78)
38 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

grupos dominantes, e na formação e manutenção da formação social


capitalista, o leva a encontrar os agentes responsáveis pela elabora-
ção, difusão e aceitação dessa hegemonia. Em sua ênfase nos aspec-
tos “superestruturais”, desvenda, primeiro, o papel dos intelectuais,
tradicionais e orgânicos, na formação da “direção intelectual e moral”
na sociedade. Redimensiona o conceito tirando-o das hostes elitis-
tas e estendendo suas qualidades, assim como suas funções conser-
vadoras, ao homem comum, aos grupos sociais subalternos.
Sua caracterização desses atores sociais singulares se inicia tam-
bém na sua análise da filosofia e depois se estende para todas as ati-
vidades formadoras, fomentadoras e conservadoras das formações
sociais e da hegemonia exercida no seu âmago. Sobre a filosofia e os
filósofos, afirma Gramsci:

É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que


a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser ativida-
de intelectual própria de uma determinada categoria
de cientistas especializados ou de filósofos profissionais
e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar que to-
dos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as
características desta “filosofia espontânea”, peculiar a
“todo mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na
própria linguagem, que é um conjunto de noções e de
conceitos determinados e não, simplesmente, de pala-
vras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso
comum e no bom senso; 3) na religião popular e, conse-
qüentemente, em todo o sistema de crenças, supertições,
opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam na-
quilo que geralmente se conhece por “folclore” (Gramsci,
2001, v. 1, p. 93).

A longa citação não indica que Gramsci, no conjunto de sua obra,


desdenha o papel do trabalho filosófico mais elaborado e nem que
não vê necessidade de uma filosofia sofisticada que seja capaz de, no
Silas Nogueira 39

campo político, enfrentar os problemas de cada época. Pelo contrá-


rio. Isso fica claro no seu esforço para conhecer com profundidade e
reinterpretar o marxismo original, ao qual se refere constantemente
como “filosofia da práxis”. Do enunciado acima, a força política, no
amplo sentido, das expressões, consiste na valorização tanto do ho-
mem “comum”, na sua capacidade de conhecimento e interpretação,
quanto da cultura “comum”, não sistematizada nem trabalhada pelos
“filósofos profissionais”17. Pode-se observar também a referência à
“religião popular”, de modo a diferencia-la da religião hegemônica,
particularmente o catolicismo, subentendida, então, como um ar-
senal de idéias sistematicamente trabalhadas. Da mesma forma, o
aparecimento do termo “folclore”, entre aspas, denota a falta de uma
definição precisa do termo e mesmo certa dificuldade de uso, diante
da ambigüidade que o termo apresentava na época e ainda hoje. A
referência ao “senso comum” e ao “bom senso” serve de contraponto
à análise mais “fria”, criticada por Ortiz, em que Gramsci acentua a
“fragmentação da consciência” nas chamadas classes subalternas e
populares (Cf. Ortiz, 1980).
A análise evidencia a força empregada por Gramsci na tentativa
de conhecer com profundidade as formações sociais, bem como os
processos e agentes responsáveis pela elaboração e sustentação das
forças e dos elementos que mantêm o funcionamento dessas forma-
ções. Em grande parte, integra a necessidade de se conhecer como
se dá o processo de “direção intelectual e moral” de grupos e clas-
ses sobre outras. Da mesma forma, na perspectiva revolucionária
que é a essência da sua obra e da sua militância, Gramsci, busca
esse entendimento para a contraposição, a fim de desvendar nesses

17 No que se refere à ampliação dos conceitos e à relação da proximidade conceitual entre cultura
e filosofia, importa ressaltar, aqui, que a citação está inserida em texto intitulado “INTRODU-
ÇÃO AO ESTUDO DA FILOSOFIA” e sub-intitulado “Apontamentos para uma introdução
e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura”, edição brasileira de
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp.
81 a 274.
40 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

processos e elementos as possibilidades de superação da hegemonia


exercida pelas classes e grupos dominantes, em suma, para a luta
política revolucionária, motor de toda a sua produção intelectual,
no amplo sentido.
É nesse contexto que Gramsci estende sua reflexão para o papel
dos intelectuais tanto na manutenção da dominação existente na
sociedade, como na possível criação das condições políticas para a
superação da dominação, criação de uma outra realidade histórica,
ou seja, para a atuação revolucionaria na sociedade.
Para Gramsci, assim como em relação aos filósofos, todos os ho-
mens são intelectuais. Portanto, “... seria possível dizer que todos os
homens são intelectuais mas nem todos os homens têm na socieda-
de a função de intelectuais” (Gramsci, 2001, v. 2, p. 18).A partir des-
sa constatação inicial, dedica um vasto espaço de sua obra na análise
dos agentes sociais e suas diferentes funções nas formações sociais.
O desenvolvimento teórico-metodológico está mais concentrado em
“Os intelectuais. O princípio educativo”, mas os fundamentos teóri-
cos perpassam todo o conjunto da obra e envolvem distintos, porém
inseparáveis, campos como o da cultura, da ideologia, do ensino e,
como em toda a análise gramsciana da sociedade, a ação política em
seu amplo significado. Mas essa leitura não nasce de uma simples
vontade ou de um exagerado entusiasmo do autor pela atividade
intelectual desassociada da prática política. Esta, a qual ele se refere
inclusive como “pedantismo”, também é analisada mas não é o cerne
de suas preocupações. Sua análise encontra-se dentro da elaboração,
ou re-elaboração geral de um método capaz de responder a questões
mais complexas. Está associada aos seus conceitos de hegemonia, de
sociedade civil e de transformação das relações sociais, é também
um dos pilares de seu pensamento como um todo.
Ao indagar-se sobre os limites de uma acepção de indivíduo in-
telectual e sobre os critérios para caracterizar as diversas atividades
intelectuais em relação a outras atividades, a resposta dada por ele
Silas Nogueira 41

mesmo mostra tanto as características do método quanto à dimen-


são da questão:

O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é


ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco
às atividades intelectuais, em vez de buscá-lo no conjun-
to do sistema de relações no qual estas atividades (e, por-
tanto, os grupos que as personificam) se encontram no
conjunto geral das relações sociais” (Idem, p. 18).

E, completando, oferece os elementos que permitiram afirmar


que “em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degra-
dado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo
de atividade intelectual criadora”:

Na verdade, o operário ou proletário, por exemplo, não


se caracteriza especificamente pelo trabalho manual ou
instrumental, mas por este trabalho em determinadas
condições e em determinadas relações sociais. (...) E já
se observou que o empresário, pela sua própria função,
deve possuir em certa medida algumas qualificações de
caráter intelectual, embora sua figura social seja determi-
nada não por elas, mas pelas relações sociais gerais que
caracterizam efetivamente a posição de empresário na
indústria (Idem, p. 18).

Nesse conceito ampliado, se pode afirmar que a distinção dos


intelectuais não reside em uma suposta capacidade diferenciada ou
um atributo individual. São as funções que esses indivíduos exer-
cem nas relações sociais que tornam possível uma distinção. O que
Gramsci mostra é que essas funções estabelecem a ligação orgânica
dos intelectuais com uma classe ou grupo e influenciam fortemente
seus interesses, suas posições políticas, suas concepções de mundo.
42 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Nesse sentido, importa mais saber a serviço de quem, de qual classe


ou grupo político, está o intelectual que a sua origem de classe. A li-
gação orgânica com uma classe e com os seus interesses não está ga-
rantida, portanto, pela origem ou pertencimento nato do indivíduo,
mas pela sua atuação e função na sociedade. Foi nesse sentido que
ele criou as expressões “intelectual orgânico”, para designar a ligação
intrínseca com a classe ou grupo social em determinado contexto
histórico, e “intelectual tradicional”, para referir-se a uma espécie de
intelectual, cujo vínculo orgânico pertence a uma classe ou grupo
social que desapareceu ou que perdeu suas capacidades diretivas,
organizativas, sua hegemonia. Esses intelectuais podem vir a se vin-
cular a uma outra classe que busque a ascensão e a hegemonia e,
também neste caso, desempenhar uma função revolucionária18.
A formação social capitalista foi célebre em criar uma quantida-
de enorme de intelectuais a seu serviço. A nova realidade surgida
com as revoluções burguesas e suas inovações, particularmente no
campo científico e tecnológico, permitiu um maior campo de atu-
ação intelectual, ideológico e, ao mesmo tempo, cultural. A adesão,
que permitiu a formação de um grande consenso em torno da nova
sociedade, envolveu os “intelectuais tradicionais” - que tinham fun-
ções e compromissos com a hegemonia anterior à hegemonia bur-
guesa - e os “criadores de grandes teorias”, incluindo, aí, os filósofos e
artistas de profissão, os sacerdotes e os cientistas, mas também uma
ampla rede de funcionários, diferenciados em graus e funções, que
são os gerentes, administradores, técnicos especializados e divulga-
dores em geral, jornalistas e propagadores das idéias, conceitos e de-
mais elementos de uma cultura gerada pelo conjunto de atividades
práticas e teóricas na formação social.

18 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, um estudo do seu pensamento político, p. 111. cha-
ma a atenção para um erro comum que é o de interpretar o sentido de “intelectual orgânico”
como “revolucionário” e “intelectual tradicional” como “reacionário e conservador”. Alerta que,
por exemplo, a burguesia também tem seus intelectuais orgânicos e que intelectuais tradicio-
nais podem se vincularem às lutas transformadoras da sociedade.
Silas Nogueira 43

Nesse contexto, Gramsci dedica especial atenção aos professores,


como formadores de concepções e divulgadores da ideologia e da
maior parte do conhecimento gerado na sociedade.
Essa percepção de Gramsci sobre esse aspecto do poder, que en-
volve o conhecimento, a informação, a comunicação, ou seja, que
envolve a ideologia em seu amplo sentido, o leva a concluir que a
mais significativa função do intelectual, também no amplo sentido,
é dar a toda a sociedade a “direção intelectual e moral” que interessa
politicamente a uma determinada classe ou grupo dominante. Em
outras palavras, a função é criar o consenso e moldar a hegemonia
de uma classe ou grupo dominante.
Com essa leitura, Gramsci mostra a importância dos indivíduos,
como sujeitos, nos processos de transformação social, assim como
da necessidade das forças sociais - quer como detentoras do poder e
da hegemonia, quer como forças transformadoras - de formar, criar
nos seus contextos os seus próprios intelectuais orgânicos, os agen-
tes sociais capazes não só de formatar e fundamentar a hegemonia
mas também de seduzir outros intelectuais, outras camadas para
criação do consenso, da anuência em relação ao poder e às formas do
seu exercício. Essa é uma das questões colocadas, ainda hoje, como
fundamental para as classes e camadas exploradas e subalternas.
Como e em quais condições criar os seus próprios intelectuais orgâ-
nicos, e fazer de sua cultura e suas práticas um atrativo para outros
setores, outras camadas, na perspectiva revolucionária de construir
uma outra hegemonia?
Uma das alternativas envolve o que é conhecido na literatura,
sobretudo latino-americana, como “educação popular”. A despeito
da ambigüidade que ambos os termos carregam, o sentido aqui em-
pregado refere-se às possibilidades das classes, grupos e povos ex-
plorados e excluídos, ou seja, subalternizados, se organizarem para a
reflexão, a produção e posterior aplicação prática/política de conhe-
cimentos e saberes. Como mostra Manfredi (1985, p. 41-41):
44 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

[...] a perspectiva apreendida em Gramsci parece in-


dicar uma linha de reflexão e de analise que centraria
sua atenção na educação popular enquanto processo,
que permitiria às classes subalternas elaborar e divulgar
uma concepção de mundo organicamente vinculada aos
seus interesses e não, simplesmente, como um instrumen-
to ideológico empregado pelas classes dominantes para a
conquista ou manutenção de sua hegemonia.

É conhecida a crítica empreendida por Gramsci às instituições


tradicionais de ensino da Itália de seu tempo, e o seu apreço pelas
organizações criadas pelos trabalhadores como círculos culturais,
clubes e associações, ou seja, lugares e agências de fomento e fruição
dos diferentes aspectos da cultura e da comunicação, as letras, o la-
zer, o debate. Ainda que, como seria de esperar de um revolucioná-
rio de seu tempo e contexto histórico, almejasse uma ligação dessas
agências com os mecanismos mais diretamente ligados à organiza-
ção da classe operária, especificamente os sindicatos e o partido, não
desprezou a importância desse tipo de organização para a educação
popular, entendida aqui como a educação gerida pelos e para os gru-
pos subalternos, na perspectiva de reflexão e (re)elaboração de uma
“visão de mundo organicamente vinculada aos seus interesses”.
Com a ênfase dada por Gramsci “ao terreno das ideologias” como
campo de forças vivas e atuantes e onde se busca atingir níveis mais
críticos de consciência, é natural que continue buscando os instru-
mentos necessários para a ação transformadora. Com os elementos
de sua época e, mais uma vez, sob forte influência de Lênin, empe-
nha-se na construção teórica de um dos mais significativos, para o
seu tempo, instrumentais de interferência na sociedade, o partido
revolucionário.
A concepção de partido político - em particular do partido que
se propõe a lutar e implantar as transformações na sociedade - de-
Silas Nogueira 45

senvolvida por Gramsci- levou Palmiro Togliatti19, a dizer que para


ele, o partido seria o “intelectual coletivo” na sociedade. Transfere,
portanto, todas as qualidades e funções atribuídas e desempenhadas
pelos intelectuais ao organismo político coletivo. Afirma Coutinho
(1988, p. 107):

Mas, se examinarmos a concepção que tem Gramsci dos


próprios intelectuais, talvez não seja exagerado inverter
a afirmação de Togliatti e dizer que, se para nosso au-
tor, também o intelectual tem funções similares às de um
partido político.

E, depois caracterizar a divisão feita por Gramsci entre “inte-


lectuais orgânicos” e “intelectuais tradicionais”, continua Coutinho
(idem):

O que importa ressaltar aqui é que ambos os tipos exer-


cem objetivamente funções análogas à do partido polí-
tico: eles dão forma homogênea à consciência da classe
a que estão organicamente ligados (ou no caso dos inte-
lectuais “tradicionais”, às classes a que dão sua adesão)
e, desse modo, preparam a hegemonia dessa classe sobre
o conjunto dos seus aliados. São, em suma, agentes da
consolidação de uma vontade coletiva, de um “bloco his-
tórico”.

Essa importância e esses valores atribuídos por Gramsci ao par-


tido político estão “organicamente” ligados ao seu momento histó-
rico, ao contexto em que desenvolveu sua teoria e sua luta que têm,
entre os seus aspectos mais significativos, a luta pela construção de
um partido revolucionário. E nesse contexto, da Itália do início do

19 Pensador e dirigente comunista italiano, foi contemporâneo e colaborador de Gramsci na luta


revolucionária e na construção do Partido Comunista Italiano (PCI). A respeito ver: SPRIA-
NO, Paolo. Marxismo e historicismo em Togliatti. In: Hobsbawm, Eric J. (org.) História do
Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, v. X, p. 251 - 306.
46 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

século XX, o partido político se apresentava como o mais signifi-


cativo instrumento da sociedade civil para a organização e luta das
classes e grupos sociais subalternos, particularmente a classe ope-
rária. O capitalismo não havia ainda atingido a complexidade dos
dias atuais, tanto no que se refere ao Estado, enquanto “sociedade
política”, quanto ao que se refere à sociedade civil e todo o seu amplo
mapa de práticas e instituições político-culturais. Na contempora-
neidade, diferentes contextos históricos, como a América Latina, e
diferentes formas do “fazer político”, como os movimentos sociais,
exigem a continuidade e a ampliação da reflexão.
Nos últimos anos, as organizações entendidas tradicionalmente
como “culturais”, círculos, clubes, associações, nas quais Gramsci já
havia constatado o teor político, como instâncias criadoras e cria-
tivas, passam a se constituir a partir de diferentes matizes políticas,
culturais, étnicas e assumem um caráter mais autóctone valorizando
os seus contextos de origem, suas histórias, suas identidades. Com
uma nova denominação, a de Centro Culturais, assumem em maior
número a condição de agentes políticos e uma maior compreensão
da sua função formadora de “intelectuais orgânicos” comprometidos
com as transformações. Em consonância com as outras transfor-
mações e desgastes das instâncias tradicionais do “fazer político” e
imprimindo uma maior visibilidade à inter-relação política/cultura,
se alinham mais aos movimentos sociais transformadores que a par-
tidos políticos e sindicatos.
Esse aspecto do contexto histórico, envolvendo as transformações
e os agentes no próprio movimento da história permitiu, ao mesmo
tempo, a acolhida do pensamento e das posturas de Gramsci bem
como das possibilidades de continuidade das renovações e adequa-
ções propostas a partir de sua obra:

Essa influência sem sempre foi direta ou explícita, mas


é possível identificar vários grupos e indivíduos que fo-
Silas Nogueira 47
ram claramente influenciados por Gramsci; para um
grande número de intelectuais de esquerda, suas idéias
passaram a integrar um novo conjunto diversificado de
referências teórico-políticas em desenvolvimento. Nesse
sentido, como sustentarei mais adiante, sua obra serviu
como veículo, catalisador e pretexto para uma discussão
renovadora dentro da esquerda, que incluiu várias outras
influências e ajudou a consolidar um conjunto de con-
cepções alternativo ao marxismo tradicional (Dagnino,
2000, p. 66).

O “novo conjunto diversificado de referências teórico-políti-


cas” é também, conforme já citado, “uma contínua busca do diálogo”
com as diferentes forças que buscam as transformações:

Se ele ainda estivesse vivo, qualquer orientação de pen-


samento ou movimento de luta no qual entrevisse ca-
pacidade e força libertadora seria apreciado e avaliado
positivamente. Isso deve ser dito inclusive com referência
à orientação que pode assumir o pensamento religioso,
desde que não subordinado aos elementos que o imobili-
zam e o dogmatizam, a pretexto de defender o existente
(Badaloni, 1983, p. 11).

A possibilidade de diálogo e a abertura para a diversidade e o


pluralismo, dentro do campo de luta pela transformação, formam o
principal vínculo do pensamento gramsciano com os movimentos
sociais contemporâneos da América Latina.
48 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

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50 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 51

Frederico Daia Firmiano


“Mestre e Doutorando em Sociologia pela
Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade
Estadual Paulista-FCLar/Unesp; Docente jun-
to a Fundação de Ensino Superior de Passos/
Universidade do Estado de Minas Gerais-
FESP/UEMG”.
52 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 53

Leituras críticas:
considerações sobre o Estado, a sociedade civil,
a cidadania e a luta dos povos na construção da
democracia no século XXI
Frederico Daia Firmiano

Em sua obra “Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-mo-


dernidade”, Boaventura de Sousa Santos configurou os termos da
construção de uma nova ordem, começando por apontar o fracasso
da modernidade que, constituída em sua matriz por uma busca de
equilíbrio entre regulação e emancipação, teria consistido “...global-
mente no desenvolvimento hipertrofiado do princípio do mercado
em detrimento do princípio do Estado e ambos em detrimento do
princípio da comunidade” (Santos, 2006, p. 237).
Tecendo crítica à teoria política liberal, Sousa Santos afirmou
que o “Estado (...) visa tão-só garantir a segurança da vida (Hobbes)
e da propriedade (Locke) dos indivíduos na prossecução privada
dos seus interesses particulares...”. Ainda, “...sendo os cidadãos livres
e autônomos...”, seu poder “...só pode assentar uma obrigação auto-
assumida, isto é, do contrato social” (Idem). Com isso, o princípio
da subjetividade ganhou maior relevância perante o princípio da
cidadania que, por sua vez, incluiu tão-somente a cidadania civil e
política - representativa - o que conduziu à marginalização do prin-
cípio de comunidade e, por conseguinte, a abstração da igualdade.
Nesta, prossegue o autor, a sociedade civil emergiu como uma forma
monolítica, ocultando, em primeiro lugar, o problema da formação
da vontade no âmbito da unidade mínima de produção econômica
54 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

(a empresa capitalista) e, em segundo lugar, relegando o domínio


das relações familiares à esfera da intimidade pessoal, “intransponí-
vel no plano da politização” (Santos, 2006, p. 239).
Assim:

A sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre


a subjetividade individual dos agentes na sociedade civil
e a subjetividade monumental do Estado. O mecanismo
regulador dessa tensão é o princípio da cidadania que,
por um lado, limita os poderes do Estado e, por outro,
universaliza e igualiza as particularidades dos sujeitos de
modo a facilitar o controle social das suas atividades e,
conseqüentemente, a regulação social (...) Ao consistir em
direitos e deveres, a cidadania enriquece a subjetividade
e abre-lhe novos horizontes de auto-realização, mas, por
outro lado, ao fazê-lo por via de direitos e deveres gerais e
abstratos que reduzem a individualidade ao que nela há de
universal, transforma os sujeitos em unidades iguais e in-
tercambiáveis no interior de administrações burocráticas
públicas e privadas, receptáculos passivos de estratégias
de produção, enquanto força de trabalho, de estratégias
de consumo, enquanto consumidores, e de estratégias de
dominação, enquanto cidadãos da democracia de massas.
A igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença
da subjetividade (...) (Santos, 2006, p. 240).

Também para o cientista social português, a oposição à teoria


política liberal feita pelo marxismo, particularmente pela proposi-
ção racional do socialismo, que fundamentou a reflexão crítica e des-
nudou as contradições presentes nas sociedades modernas buscan-
do projetar horizontes a partir da contraposição do Estado liberal
(“sujeito monumental”), teve limites muito estreitos, uma vez que:

[...] do ponto de vista das relações entre as particularida-


des únicas das subjetividades individuais e a abstração
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 55
e universalidade das categorias da sociedade política, a
eficácia subjetiva da classe operária é, ao nível da eman-
cipação, semelhante à da cidadania liberal, ao nível da
regulação. Ou seja, a subjetividade coletiva da classe ten-
de igualmente a reduzir à equivalência e à indiferença
as especificidades e as diferenças que fundam a perso-
nalidade, a autonomia e a liberdade dos sujeitos indi-
viduais. Marx reconheceu isso mesmo mas pensou que
tinha a evolução histórica do capitalismo do seu lado.
O desenvolvimento das forças produtivas conduziria à
proletarização da esmagadora maioria da população e à
homogeneização total do trabalho, da vida e, portanto,
da consciência dos trabalhadores. O conceito de classe vi-
sava precisamente contrapor à homogeneização regula-
dora do capitalismo a homogeneização emancipação da
subjetivadade coletiva dos produtores direitos. Sabemos
hoje que o capitalismo não proletarizou as populações
nos termos previstos por Marx e que, em vez de homo-
geneizar globalmente os trabalhadores, se alimentou das
diferenças existentes ou, quando as destruí, criou outras
em seu lugar. (Santos, 2006, p. 242).

Além disso, diz Sousa Santos, em Lênin a classe operária deu


origem a outro “sujeito monumental”, o partido da classe operária,
e nesses termos, não superou o problema da destruição da subje-
tividade individual, resolvendo falsamente a tensão entre esta e a
cidadania. “Em vez de superações, supressões; em vez de mediações
(...) o recurso exclusivo a sujeitos monumentais afim do único su-
jeito monumental já historicamente constituído, o Estado...”. Então,
para o autor:

se o liberalismo capitalista pretendeu expurgar a subje-


tividade e a cidadania do seu potencial emancipatório
– com o conseqüente excesso de regulação, simbolizado,
nos países centrais, na democracia de massas -, o mar-
56 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

xismo, ao contrário, procurou construir a emanci-


pação à custa da subjetividade e da cidadania [...]
(Santos, 2006, p. 242-243. Grifos nossos).

Na contemporaneidade, Mayra Paula Espina Prieto também


voltou-se para a discussão do Estado, sua função na eliminação da
pobreza em Cuba e, igualmente, questionou a capacidade do “socia-
lismo” em promover a erradicação deste problema social, promoven-
do, ao mesmo tempo, o desenvolvimento das sociedades: “...já não é
possível imaginar opções alternativas como um caminho único de
progresso, guiado pela inevitabilidade histórica e como missão de
uma só classe social...” e nem que “.... a solução ao amplo leque de pos-
sibilidades e contradições sociais poderia vir, linearmente da solução
para a contradição capital-trabalho”. Com isso, acreditou reivindicar
a não-linearidade da história e do progresso, trazendo como fato a
transformação sofrida pela classe operária e a combinação, no âmbi-
to da contradição fundamental capital-trabalho, de inúmeras outras
contradições, relações de exploração e “atores” [sic.]. Para ela, “a glo-
balização tem intensificado os processos de multiculralização (...),
tornando mais evidente (...) o fato que a diversidade sócio-cultural
é uma qualidade essencial da existência e um componente do desen-
volvimento”. Por isso, prossegue afirmando que qualquer “solução
homogênea” rumo à uma “transformação social profunda” é inócua.
(Prieto, 2008, p. 96).
Mas “outro” socialismo ainda seria possível para a autora:

Pensar no socialismo hoje é pensar em um modelo de


coordenação econômica, política e social multicêntrico,
de muitos atores, como múltiplos são os sujeitos
das transformações que hoje poderíamos imagi-
nar, sustentado na participação autotransforma-
dora radical em todos os setores da vida, assim
como na socialização da propriedade sobre os meios de
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 57
produção incorporando modos de co-gestão, a graduação
e as variantes que cada caso exija, afastando o modelo
hiperestatista como variante única e universal (Prieto,
2008, p. 97. Grifos nossos).

Nesses termos, o Estado não seria o catalisador das transfor-


mações sociais, mas dividiria a função de promover mudanças po-
líticas, econômicas e sociais profundas junto com a sociedade civil.
O “multiculturalismo emancipador”, nos termos já definidos por
Boaventura de Sousa Santos, seria a expressão de uma agenda so-
cial contemporânea, na qual “...o direito à diferença deve ser articu-
lado com o direito à igualdade através da distribuição da riqueza...”.
Nesta, um “conjunto de atores” seria o agente das transformações
profundas da sociedade, os interlocutores “...para nutrir um repertó-
rio geral alternativo de luta contra a pobreza...” (Idem).
Além disso, para autora, “...no ponto espaço-tempo no qual nos
encontramos na história social (...) não se cristalizou uma estrutura
de coordenação social alternativa...” ao Estado, que “...assegure ne-
gociações entre atores antagônicos que respeitem um mínimo de
eqüidade e uma estratégia integradora da multiplicidade de sujei-
tos sociais nas escalas territoriais ainda existentes...”, onde estes “...
sejam objeto de direitos universais” (Pietro, 2008, p. 99). Por isso, o
Estado, dividindo funções com a sociedade civil, deve se constituir
como um espaço de negociação entre sujeitos antagônicos.
A socióloga cubana recupera a noção de Atílio Boron de que “a
soberania popular que se expressa em um regime democrático deve
necessariamente se encarnar em um Estado nacional” (Boron, citado
por Prieto, 2008, p. 99). Por isso, propõe a recuperação das “...poten-
cialidades da estatalidade para exercer a coordenação vinculante de
divergências, forçando a balança ao maior espaço para a colaboração
da agenda social...”. Um Estado “...com alta capacidade de interven-
58 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

ção e regulação na vida econômica e social do país, para disciplinar


agentes econômicos nacionais mais poderosos, para exercer controle
efetivo sobre a corrupção...” e para assegurar a soberania e prover
bens públicos “...dentro de uma concepção de cidadania contempo-
rânea e para negociar, em função dos interesses nacionais, com os
agentes econômicos transnacionalizados...”. O que exigiria, junto
com Tethônio dos Santos, a necessidade de reformas mínimas, no
sentido de valorizar os “fatores do progresso”, garantindo, entre ou-
tros, a “defesa mínima da soberania e dos interesses nacionais”. Com
isso, no horizonte de Ramón Fogel, afirma: “...longe de destruir as
estruturais estatais e a esfera social, estas se recuperam para regular
o mercado, fortalecer os espaços microsociais e nacionais...”, entre
outras medidas de segurança econômica e social e erradicação da
pobreza (Prieto, 2008, p. 99-100).
Disso resultaria um Estado “mínimo-forte”, que deve ter “...ação
balanceada e forçada na direção dos interesses dos setores populares
através da sociedade civil...”. Um Estado “...questionado, controlado e
pressionado sistematicamente pela sociedade civil, particularmente
pelos setores populares e desfavorecidos...” (Prieto, 2008, p. 101), do
que decorreriam os pressupostos de uma política de enfrentamento
da pobreza e de inclusão social, tais como, universalização efetiva
dos direitos sociais; garantia de igualdade em um nível adequado
de satisfação das necessidades básicas para todos os cidadãos; radi-
calização do caráter público da política social; priorização da gestão
social; prioridade ética da política social; viabilidade institucional
da esfera social; controle democrático e social; integração e unicida-
de da política social; unidade e igualdade na diversidade; fortaleci-
mento da capacidade de autotransformação dos setores vulneráveis;
construção de agendas sociais extranacionais; combinação da ação
estatal com a de atores extra-estatais como o empresariado privado,
as ONGs e outras organizações como responsáveis pelos planos e
projetos específicos que devem se articular à lógica estratégica geral
(Prieto, 2008, p. 102-105), entre muitos outros.
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 59

“Emerge, assim, o horizonte contemporâneo, supostamente pro-


gressista, que tem buscado responder às profundas transformações
do capital, na perspectiva da resolução de sua contradição funda-
mental. Mas o que fica escamoteado no âmbito do pensamento
“pós-moderno”, até aqui exposto?”
***

Marx operou uma profunda transcendência epistemológica


diante da filosofia idealista (particularmente de Hegel) voltando-
se para o conhecimento enquanto práxis, o que o permitiu colocar-
se para além do horizonte liberal de “...<<um indivíduo>> sepa-
rado da (quando não enfrentado com a) comunidade social ou o
Estado...” (Grüner, 2006, p. 106), resgatando a perspectiva de uma
subjetividade ativa, “...que não se resigna simplesmente em registrar
os dados imediatos dos sentidos (...) mas também opera sobre eles
para transformá-los” (Grüner, 2006, p. 108)1.
Mas não é só: nesse “colocar-se além” está a busca pelo espírito
autocognoscente hegeliano, que só poderá emergir em uma subjeti-
vidade coletiva: “Marx sai da perspectiva estritamente <<individua-
lista>> que vê o sujeito como um mônada encerrada em si mesma...”
para configurar uma subjetividade coletiva: o proletariado – que
ocupa lugar estrutural na configuração lógica do modo de produção
capitalista, realizando a atividade transformadora, o “trabalho pro-
dutor do novo”. (Grüner, 2006, p. 110-12).
Assim, é a negação de um horizonte “além” do individualismo
burguês que impede que encontremos sujeitos coletivos da transfor-
mação da sociedade capitalista, levando-nos a afirmar que resulta “...
difícil definir um agente transformador concreto ou um conjunto de

1 Eduardo Grüner também tributa ao período posterior ao Renascentismo a emergência, no


âmbito da teoria do conhecimento ocidental, da subjetividade individual, descolada da natureza,
da comunidade humana. “É nessa época, para dizer tudo, que se pôde (e deveu-se) inventar a
noção de <<indivíduo>>, como uma entidade distinta do resto do universo, e cuja missão é
conhecer e dominar esse universo” (Grüner, 2006, p. 107).
60 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

atores...” a realizar as profundas transformações sociais (Prieto, 2008,


p. 97), ou a conciliar cidadania, subjetividade individual e emanci-
pação, a partir da idéia da “obrigação política horizontal entre cida-
dãos” e da idéia de “participação” e “solidariedade” na formulação da
“vontade geral” (Santos, 2006, p. 263).
Noutros termos, resulta difícil definir um “agente transforma-
dor” ou sujeito coletivo produtor do novo já que ao invés de operar
a análise a partir da expressão histórico-concreta das classes e gru-
pos sociais ou povos e comunidades, opera-se segundo as expres-
sões liberais abstratas, entre as quais, destacam-se os conceitos de
populações, demanda, massas, cidadãos, atores sociais. Em não ha-
vendo expressão histórico-concreta de forças políticas constituídas
ou constituintes não há confronto político, emergindo tão-somente
o conceito e a prática da negociação – que deve ser incorporada
pelo Estado mínimo forte Com isso, a sociedade civil deixa de ser
o lugar do confronto a partir do qual se projeta o Estado para se
configurar como o lugar do conflito de interesses. Nesta operação
subsumem a luta de classes, a luta dos povos pela emancipação, a
luta pela hegemonia.
Além disso, apóia-nos Eduardo Grüner, “...é necessário diferen-
ciar, analiticamente, o proletariado como categoria teórica do prole-
tariado como realidade sociológica, como coletivo humano <<real-
mente existente>>”. Isso pois, enquanto categoria teórica, trata-se
daquela “...<<classe>> de homens e mulheres despossuídos de todo
meio de produção, e tão somente proprietários de sua força de tra-
balho...”. No segundo caso, “...trata-se de uma realidade empírica ex-
traordinariamente complexa e mutável, com alto grau de determina-
ções concretas que variam de sociedade para sociedade...” (Grüner,
2006, p. 111). O proletariado como categoria teórica é abstração
do pensamento. O proletariado particular é realidade sociológica.
Existem, obviamente, relações entre a abstração do pensamento e o
objeto histórico, no entanto, coexistem “...em diferentes registros do
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 61

real”. E, “a confusão entre ambas as formas só poderia conduzir aos


mais aberrantes equívocos”. Por essa razão:

[...] referir-se ao proletariado como classe universal é


referir-se à primeira destas duas formas [como catego-
ria teórica], como deveria resultar óbvio: mal se poderia
falar de uma universalidade, digamos, existencial ou em-
pírica, muito menos de uma <<equivalência>>, entre o
proletariado de Londres ou Copenhague e o de Addis
Abebba ou Bogotá. Trata-se de determinar o lugar estru-
tural que o proletariado ocupa na configuração lógica do
modo de produção capitalista (Grüner, 2006, p. 111).

Este lugar é o da produção de mercadorias, mundo visível, con-


creto, de sua existência acabada, resultado das relações de produção
que são ocultadas. Aliás, prossegue Eduardo Grüner revisitando o
Capital, “...a totalidade do real visível somente pode aparecer como
tal totalidade precisamente porque está incompleta, por que deixa
<<fora de cena>> aquele <<trabalho>> que lhe dá existência”.
Conhecer a totalidade, assim, significa reconstruir o todo nessa par-
te que não é visível. Algo que, por sua vez, só pode ser do domínio
da razão, já que não é imediatamente captada pelos sentidos. No
entanto, e aqui retorna o critério da práxis, em Marx não se trata de
uma razão auto-suficiente (como em Hegel), capaz de tal empreen-
dimento por sí só. Em sendo assim, é só na atividade transforma-
dora que pode emergir um raciocínio capaz de “...captar a relação
de tensão (...) entre a (falsa) totalidade aparente apresentada pelo
capitalismo e o (invisível aos olhos) processo de produção do real”.
Ou seja, somente a práxis, que inclui a subjetividade crítica coletiva,
que é capaz de empreender a totalização do real. E essa “atividade
transformadora” é, na sociedade capitalista, realizada pelo proleta-
riado. Ora: “é ele quem está diretamente vinculado, de maneira pro-
tagônica, ao processo de produção do real, e quem, portanto, está em
62 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

condições de conseguir um potencial conhecimento do Todo”. Mas


outra vez é preciso assinalar junto com nosso autor: trata-se do
proletariado enquanto classe, categoria analítica, pois o “realmente
existente” está alienado, “prisioneiro da cisão sujeito/objeto”; é classe
em-si que, efetivamente, transforma o mundo, mas o faz sem saber
(Grüner, 2006, p. 112-113).
Por isso, a antecipação da passagem do “em si” para o “para si”
cabe ao intelectual crítico, que se coloca no “lugar” da práxis (do
proletariado). E o autor assinala: “...o que o <<intelectual crítico>>
pode fazer é tão somente (...) antecipar a passagem do em si ao para
si...”, algo que não pode substituir, “...senão que o proletariado deve-
rá realizar por meio de sua própria práxis coletiva e autônoma”. E
mais que isso: o proletariado encontra-se, em razão de sua situa-
ção histórico-concreta, “...potencialmente em condições de alcançar
esse conhecimento <<universal>>, ainda que não possa atualmente
fazê-lo...” (Grüner, 2006, p. 114. Grifos nossos).
Mais adiante, apoiado por Lukács, o autor se debruça na relação
dialética do em si/para si e explica que a situação histórico-concreta
do proletariado o reduz a mera condição de mercadoria, levando-o
a viver a si mesmo como objeto (o em-si) mas, ao mesmo tempo,
dialeticamente, também o transforma em sujeito (o para-si). Isso, “...
na mesma medida e pelo mesmo movimento da práxis pela qual o
proletariado conhece a matéria que está transformando, se conhe-
ce a si mesmo, aplicando o critério de que somente a transformação
(...) permite atingir o verdadeiro conhecimento...” (Grüner, 2006, p.
116).
Assim,

[...] se o <<proletariado>> começa por estar constituí-


do como objeto (em-si), e logo tem de constituir-se a si
próprio como sujeito (para-si) em um processo de (auto)
produção que somente pode estar <<completo>> no mo-
mento do <<comunismo>> (...) não está claro então que
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 63
o <<proletariado>> nunca é um sujeito <<pleno>>, e
sim um sujeito que está sempre em processo inacabado
(<<in-finito>>) de constituição, satisfazendo assim as
mais rigorosas normas do antiessencialismo pós-estrutu-
ralistas? (Grüner, 2006, p. 116-117).

O modelo da metodologia apoiado pela práxis social-histórica


do proletariado (como lógica de conhecimento) tem, ainda outra
conseqüência fundamental: o substrato histórico-social. Marx in-
sistiu na reprodução do concreto no processo de pensamento ou “...à
maneira pela qual a interpretação crítica re-produz (volta a produzir,
em outro plano) a práxis social-histórica, que é seu modelo”. Neste
esforço, só poder emergir como resultado uma “síntese de múltiplas
determinações”; uma abstração que, no entanto, conserva as deter-
minações particulares do objeto (sempre tensionando a universida-
de do conceito).
Com isso, diz Grüner (2006, p. 123):

[...] devemos chamar a atenção sobre o fato de que Marx


não se priva de utilizar o conceito de totalidade. Isto é
de capital importância hoje, na discussão com os <<pós-
estruturalistas” e/ou “pós-modernos” (porém também,
no mesmo lado da barricada por assim dizer, com certas
formas dos estudos culturais, pós-coloniais, multicultura-
listas e ainda do feminismo) que recusam de cheio e sem
matizes essa noção, confundindo-a com o “essencialismo”
e inclusive com o “totalitarismo” ou o “fundamentalismo”
de um pensamento do Absoluto. Desgraçadamente, nes-
ta recusa, costuma-se cair em um relativismo extremo
ou em um “particularismo” que é, no fundo, uma forma
mais elaborada desse <<caos>> de representações pu-
ramente singulares e justapostas sem hierarquia, o qual
costuma ser tanto teórico como politicamente ineficaz
(quando não diretamente daninho para a própria causa
que se pretende defender).
64 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

***
Feitas as considerações sobre o método marxiano, vejamos a
concepção pós-moderna de Estado. Augustín Cueva tratou as con-
cepções de Estado e sociedade civil correspondentes ao pensamento
“pós-marxista”. O sociólogo equatoriano é incisivo quando afirma
que no horizonte “crítico” desses teóricos os “...fortes ventos sopram
(...) [para o] lado do <<pacto social>>, da busca de uma <<go-
vernabilidade progressiva>> de nossas sociedades e do <<acordo
sobre aspectos substanciais da ordem social” (Cueva, 2008, p. 30).
A tese programática desse horizonte é o “...requerimento de uma
sociedade civil sempre vigilante, perante um Estado de que não se
pode presumir que necessariamente mantenha relações cooperativas
com ela...”. E mais: “...políticas de pactos ou de articulação da socie-
dade civil com a sociedade política e de expansão de oportunidades
de participação”. Mas as dúvidas são: “quem está incluído na órbita
dessa <<sociedade civil>> que terá de manter-se vigilante diante
dos possíveis abusos do Estado?”; ou “qual vai ser, finalmente, esse
Estado com o qual a <<sociedade civil>> vai fazer um pacto?”. Pois
no horizonte da “crítica” pós-marxista a sociedade civil identifica-
se ao que Marx chamou de <<comunidade ilusória>>, na qual os
antagonismos se resolvem pelo pensamento; igualmente, no lugar
do Estado, está uma “entidade ingrávida de suas determinações de
classe” (Cueva, 2008, p. 36).
Além disso, haveria a reivindicação, pós-marxista, de um certo
“movimentismo espontaneísta” das massas perante as formas mo-
dernas de organizações partidárias, “... apontando contra qualquer
organicidade partidária” que fundamenta-se, antes, na existência de
uma sociedade, “...constituída por seres pré-políticos, espécie de bons
saugaves alheios a toda modernidade” (Cueva, 2008, p. 37-38).
Aliás, a esse respeito, nós já escrevemos, em trabalho recente, que
num certo movimento do pensamento crítico pós-marxista, “seriam
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 65

os assim chamados movimentos de resistência (...) os portadores


contemporâneos da possibilidade de construção de uma outra cons-
ciência...”. Trataram mesmo de conferir aos movimentos sociais a ca-
pacidade de elevação do “...indivíduo para além da heterogeneidade,
imediaticidade e fluidez da vida cotidiana alienada, do momento
<<econômico-corporativo>> ao campo da <<universalidade>>
do ser social...” (Firmiano, 2009, p. 234).
Silas Nogueira, trazido em nossa coletânea, poderia ser situado
ao lado de Boaventura de Sousa Santos, por partilhar a idéia de que
a análise dos movimentos sociais “... confirma a existência de bus-
cas de novas formas de representação e participação política”. Para
esse autor, “menos presos aos limites dos conceitos e das representa-
ções tradicionais, constituem-se eles próprios em representações de
amplos setores das populações latino-americanas”, atuando, ainda,
como representações “...renovadas, abertas a elementos culturais, ét-
nicos, religiosos, regionais” (Nogueira, 2005, p. 111).
Para o autor:

[...] o que se pode observar atualmente é que essa constru-


ção histórica de formas de representação e novas formas
do <<fazer político>> buscam tanto construir, quanto
garantir seus espaços no confronto com as forças que se
mantêm hegemônicas há séculos (Idem).

Silas Nogueira trabalha as categorias de imaginário, represen-


tações sociais e poder simbólico, articulando os conceitos de ori-
gem positivista e funcionalista às formulações marxistas de Antonio
Gramsci. Com isso, rearticula teoricamente os campos da cultura e
da política, tratando como dimensões inseparáveis da vida do sujeito
histórico. Mas para o autor, recorrendo de Durkheim até Bourdieu,
ainda que sem a referência explicita, é o “aparato simbólico” que con-
figura os processos de “integração social” e de participação política.
66 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

O fato de, em grande parte, o imaginário das classes e grupos não


dominantes não integrar o repertório do “fazer política” no conti-
nente latinoamericano estaria na base da ausência de maior partici-
pação nos processos de confronto em torno da direção da sociedade.
Por isso, a construção da “cidadania” deveria contar com elementos
do imaginário das classes dominadas (Nogueira, 2005, p. 67).
O pesquisador não se furta à crítica da concepção burguesa-libe-
ral, pela qual o indivíduo existe tão-só como cidadão. Ao contrário,
reconhece que, nesse horizonte, só se realizam direitos e deveres em
abstrato e o indivíduo só tem reconhecimento enquanto parte de
um contingente populacional integrante de uma sociedade regulada
por um Estado constituído. “Na vigência da concepção liberal e das
suas formas de participação política consagradas, a possibilidade de
libertação/emancipação do indivíduo não ultrapassa a abstração e
a formalidade”. Mas, mesmo assim, é a cidadania, que deve ser rein-
ventada, comportando um sujeito de novo tipo, agora, reconhecido
em suas manifestações culturais (Idem)
Tudo parece necessitar ser reinventado, pois na ordem pós-mo-
derna, o socialismo, e com ele as teorias que fomentaram a ruptu-
ra, a emancipação e a revolução, caiu junto com o regime do Leste
Europeu. Tudo isto, agora, está em pecado ou, pelo menos, sob sus-
peita.
Atílio Boron, referindo-se a Ernesto Laclau, foi implacável ao
afirmar que o pensamento “pós-marxista” ou “ex-marxista” não tem
feito outra coisa que “...respaldar as teses fundamentais do pensa-
mento da direita”, mesmo não identificando-se com os ideólogos das
burguesias (Boron, 2006, p. 42) e, para nós, certamente tentando
combater as mais variadas formas de violências ou manifestações da
incivilidade, próprias da sociedade de classes, como a superexplora-
ção do trabalho, o abandono, a fome, o trabalho infantil, o trabalho
escravo.
Para Boron (2006, p. 42),
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 67
Tal é o caso da famosa <<radicalização da democra-
cia>> de Laclau e Mouffe quando estes autores propõem,
em Hegemony and Socialista Strategy, radicalizar nada
menos que a democracia burguesa como se esta tivesse
uma maleabilidade infinita que permitisse transcender
seus limites de classe.

Numa perspectiva clássica, Augustín Cueva, ao tratar do hori-


zonte da luta política na contemporaneidade, repõe o problema da
relação Estado/sociedade civil, buscando anular a operação, vale di-
zer liberal, de suposta necessidade de abandono do Estado como
horizonte da atividade política ampla:

A proposta de deslocar o lócus da política para fora do


Estado, tal como proposto por alguns <<movimentos>>
do Ocidente, não supõe nenhum acordo que obrigue a
burguesia a se retirar dele. Ao contrário, se baseia em um
<<pacto social>> sui generis segundo o qual a burguesia
permanece entrincheirada no Estado (além de não ceder
nenhum de seus bastiões da sociedade civil), enquanto as
classes subalternas se refugiam nos interstícios de uma
cotidianidade talvez mais democrática, em que o Estado
não intervém na medida em que as formas de sociabili-
dade escolhidas não obstruam a reprodução ampliada do
sistema capitalista-imperialista (Cueva, 2008, p. 38).

Assim, é possível desnudar a concepção liberal ou pós-liberal, tí-


pica das sociedades de capitalismo avançado, da “necessidade do “des-
locamento do fazer político”, ou do “alargamento” da política, como
querem alguns e, ainda, do “pacto social”, revelando seu caráter con-
servador e, sob certo sentido reacionário, à medida que afirma a ne-
cessidade do desfrute de certas liberdades individuais em abstrato.
Em Antonio Gramsci, ainda em seus escritos políticos anteriores
ao cárcere, lembra-nos Edmundo Fernandes Dias, o Estado é con-
68 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

cebido como a organização econômico-política da burguesia “...na


sua força concreta, atual”. Burguesia esta que “fora do plano estatal,
(...) não é senão um conjunto de grupos capitalistas que lutam in-
cessantemente entre si para obter o monopólio”. É precisamente por
essa razão que a luta pelo controle estatal é importantíssima. Mas
aqui há um aspecto de suma importância: os partidos burgueses -
prossegue Edmundo Fernandes Dias amparado por Gramsci – são
partidos de fração de classe, enquanto o Partido Socialista – forma
que se organizava a classe trabalhadora na luta pela emancipação,
na Itália no primeiro quartel do século XX – deve ser “o” partido de
classe, ou seja, enquanto os primeiros disputam o Estado entre si,
o Partido Socialista busca substituí-lo, substituir o regime. (Dias,
2000, p. 92-94; citação, p. 92).
Seus dizeres são claros: num horizonte de emancipação, o Estado
não é para ser disputado; não é lugar de conciliação de interesses,
nem de classe. A luta a ser empreendida deve substituir o Estado
burguês pelo Estado Socialista. Em sendo a ordem burguesa “...uma
concreção de formas políticas”, do ponto de vista das forças progres-
sistas constituintes, a cidadania liberal deve ser apenas um progra-
ma mínimo (Dias, 2000, p. 55-56).

***

É o partido político, no âmbito da reflexão gramsciana, o órgão


a se dedicar a “vontade coletiva nacional-popular” e nesta tarefa, “...
deve e não pode deixar de ser o anunciador e o organizador de uma
reforma intelectual e moral...”, que em outros termos, significa que
deve “...criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade
coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma
superior e total de civilização moderna”. E prossegue, afirmando que
essa ampla reforma intelectual e moral da sociedade “...não pode dei-
xar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais pre-
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 69

cisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo


concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e mo-
ral” (Gramsci, 2007, p. 18-19).
Por essa razão, “o Príncipe [partido político] toma [ou deve fazê-
lo] o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categó-
rico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa lai-
cização de toda a vida e de todas as relações de costume” (Gramsci,
2007, p. 19).
Para todos os grupos sociais, “...o partido político (...) é precisa-
mente o mecanismo que realiza na sociedade civil a mesma função
desempenhada pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na
sociedade política...” (Gramsci, 2004, p. 24).
Para Edmundo Fernandes Dias o partido político da classe traba-
lhadora é um “Estado em potência”, antagonista do Estado burguês,
que “...busca na sua luta diária contra este último e no desenvolvi-
mento de sua dialética interior, criar para si os órgãos para superá-lo
e absorvê-lo” (Gramsci, citado por Dias, 2000, p. 54).
Essa noção de “Estado em potência” possibilita a superação po-
sitiva do horizonte liberal do Estado e da democracia. Enquanto
o programa da burguesia revela-se “indiferente” perante outro, uma
vez que afirma direitos em abstrato e submete o cidadão a uma dis-
ciplina mecânica, retirando do indivíduo a livre adesão (Dias, 2000,
p. 61), o partido político progressista confere ao sujeito a possibili-
dade de “...assumir-se uma parte da responsabilidade nos aconteci-
mentos que se preparam, tornar-se artífice direto desses aconteci-
mentos” (Gramsci, citado por Dias, 2000, p. 61). Noutros termos,
a disciplina do partido é capaz, enquanto “Estado em potência”, de
romper com a disciplina da ordem burguesa.
Junto com Edmundo Fernandes Dias entendemos que, no hori-
zonte da reflexão crítico-revolucionária de Antonio Gramsci, é só na
atividade política, confrontando o projeto político dominante, que o
sujeito aprofunda a consciência, pratica a vontade e, com isso, cami-
70 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

nha no sentido do rompimento com a disciplina burguesa. Por isso,


a disciplina socialista não pode ocultar/reduzir o elemento classis-
ta, tratar o homem de forma genérica, como número, quantidade.
“Ela tem que privilegiar o elemento de consciência, de afirmação da
vontade, de livre adesão a programas. Essa disciplina cria um novo
indivíduo...” (Dias, 2000, p. 78).
Nos dizeres de Gramsci:

O socialismo, a nova ordem, é a democracia plena. A


democracia burguesa afirma que todos os homens podem
tornar-se autoridade (...) com a circulação das minorias:
todos os homens podem ser capitalistas, mas não todos
ao mesmo tempo e sim uma minoria por vez. O socialis-
mo ultrapassa essas limitações, elimina essa declaração,
realiza o primeiro modelo de representação direta do
produtor: os sovietes. E com isso elimina o domínio das
minorias sobre as maiorias e realiza a democracia mais
ampla, a democracia dos trabalhadores (Gramsci, citado
por Dias, 2000, p. 79).

***

Contemporaneamente, Ruy Mauro Marini configurou a lógica


dominante que opera as categorias do desenvolvimento econômi-
co, das capacidades produtivas da nação e da consolidação da “de-
mocracia” no continente latinoamericano. Para o autor, integrada à
economia mundial através da exportação dos recursos naturais, o
modelo de desenvolvimento vigente nos países latinoamericanos,
particularmente no Brasil, antes de redimensionar a indústria na-
cional, tornando-a competitiva no exterior e afirmando a sobera-
nia da nação, promove a destruição de parte de seu capital social,
“...porque somente ramos com vantagens comparativas reais ou que
absorvam alta tecnologia e grandes massas de investimento apare-
cem como viáveis nessa nova divisão do trabalho”. Com isso, emerge,
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 71

pois, uma reconversão que implica na “... redistribuição do capital so-


cial em favor dos grandes grupos industriais e financeiros...” e, para
as massas (sic.) “...o agravamento da superexploração do trabalho e a
generalização do desemprego, qualquer que seja a sua forma, como
resultado da destruição de parte do capital social e a rápida moder-
nização ecológica” (Marini, 2008, p. 13-14).
A alternativa a um projeto de sociedade de transferência dos
complexos mecanismos de produção e distribuição de bens à ini-
ciativa privada, que, segundo o autor, ocorre mediante a articulação
Estado/parlamento, deve encontrar resposta no “...movimento po-
pular [que] está em condições de contrapor seu próprio esquema de
organização social, baseado na organização das massas em função
de seus interesses imediatos e na sua participação direta nas instân-
cias pertinentes de decisão” (Marini, 2008, p. 26).
Isso exigiria um momento intermediário, uma fase transitória de
conversão de órgãos de democracia participativa em instrumentos
de controle do Estado, algo com o que o movimento popular conta,
pois além de suas organizações tradicionais, detém conhecimentos
que lhe conferem capacidade de compreender e dominar os meca-
nismos de produção e distribuição de bens e serviços - além de sua
experiência que “...tem ensinado que a concentração de poderes nas
mãos do Estado, quando este não é seu, apenas reforça a máquina
de opressão da burguesia”. Assim, “na luta pela sua proposta demo-
crática, o movimento popular necessita mais do que nunca de sua
unificação no plano social e da reconstituição de suas direções polí-
ticas”. E nesse ponto o autor dá uma importante referência, afirman-
do que hierarquizar ou subordinar os instrumentos de organização
das classes e grupos de trabalhadores e povos distintos, segundo
critérios e propósitos instrumentalistas, cumprem função somente
na condução do “...homem e sua prática social à desintegração”. Por
isso, nas sociedades democráticas, partidos políticos, movimentos
sociais, grupos organizados devem ser assumidos:
72 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

[...] como elementos interdependentes e harmônicos [que


levam] (...) à recuperação do homem integral em sua di-
versidade e riqueza, permitindo aspirar à construção de
uma sociedade que lhe proporcione o amplo espaço que
ele requer para o seu desenvolvimento (Marini, 2008,
p. 27-28).

Álvaro García Linera, em seu texto “A dimensão multicivilizató-


ria da comunidade política”, foi o autor a se esforçar na configuração
de uma “democracia popular” a partir das expressões concretas de
sua sociedade, a Bolívia. Avançou para além da questão da multi-
culturalidade ou plurinacionalidade – que fomentou uma longa
tradição do pensamento social deste País, o indigenismo katarista
que, por vezes, obscureceu as práticas democráticas e a possibili-
dade histórica de construção da emancipação dos povos e das clas-
ses trabalhadoras - e para além do marxismo vulgar, economicista,
evolucionista praticado ao longo de décadas neste País. Impõe-se
como questão fundamental a “...diversidade de sistemas ou de téc-
nicas políticas mediante os quais as pessoas assumem o exercício
e a ampliação de suas prerrogativas públicas” (Linera, 2008, p. 63).
Seriam as formas de organização política de grupos e comunidades
aquelas a integrar o repertório de um Estado popular-democrático
rumo à emancipação dos povos, portanto, para além do horizonte
liberal da democracia representativa e para além do horizonte pós-
moderno da “obrigação política horizontal entre cidadãos”, uma vez
que comporta os conteúdos político-ideológicos e a consciência de
organização e responsabilidade pública de grupos sociais concretos,
de comunidades vivas:

Na Bolívia, as identidades coletivas normativas por bair-


ro, ayllu, comunidade ou grêmio de trabalhadores prece-
dem majoritariamente qualquer manifestação de indivi-
dualidade e são utilizadas cotidianamente para exercer
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 73
controle social, planejar demandas, eleger representantes,
introduzir disputas igualitárias, formar uma moral cívica
de responsabilidade cidadã (Linera, 2008, p. 65).

A construção de uma nova ordem política passaria, portanto,


pela supressão daquilo que Linera (2008, p. 66) chama de estrutura
mono-organizativa do Estado, ou seja, a legitimação de uma única
forma de organização política, vale dizer, as instituições da democra-
cia representativa e liberal que repelem as referências ético-políticas
e formas organizativas dos povos, grupos, comunidades, suas:

[...] técnicas políticas diferenciadas, (...) sistemas de au-


toridade indígenas camponeses e urbano-plebeus [que]
formam parte da complexa trama multicivilizatória da
realidade boliviana, visível também através de outras
práticas sociais, como as que se derivam do entendimen-
to e exercício da justiça do ayllu, nas técnicas escriturais
andinas (têxtil e trançado), na predominância dos re-
pertórios textuais (a oralidade, a visualização etc.), na
gestão dos recursos coletivos, na gestão dos direitos fami-
liares vinculados às responsabilidades políticas etc.

Assim se formaria um “Estado multicivilizatório”, reconhecendo


e legitimando os sistemas políticos e de conformação de autoridade
praticados por comunidades, bairros, grêmios, entre outros; defini-
do os âmbitos legítimos de eleição de representantes onde vão atuar
esses sistemas deliberativos, tanto os representantes parlamentares
do nível superior do Estado, onde esses sistemas de deliberação
são predominantes ou parciais, quanto os parlamentares de regiões
autônomas de autogoverno dos povos indígenas; normatizando a
obrigatoriedade de reconhecimento da deliberação dos povos, gru-
pos e comunidades em torno de temas centrais da gestão estatal, tais
como, propriedade estatal de recursos, investimentos públicos, refor-
mas; reconhecendo as instituições tradicionais das formas de gestão
74 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

comunal da justiça, do controle coletivo de recursos e de conheci-


mentos médicos praticados pelos povos indígenas e tradicionais e,
por fim, reconhecendo, mediante a incorporação na Constituição
Federal, os sistemas de rotação de autoridades e de prestação de
contas a entes coletivos das autoridades que formam os diferentes
níveis do Estado, quais sejam, os municípios, regiões autônomas,
governo departamental, Estado geral. (Linera, 2008, p. 67-68).
Para Pablo G. Casanova, foi José Carlos Mariátegui quem enfren-
tou a discussão, articulando o conceito de colonialismo interno ao
conceito de luta de classes e de libertação nacional, colocando “...os
povos indigenas no centro da problemática nacional...” e propondo “...
uma luta nacional e ibero-americana em que o indo-nacional e o in-
doamericano inserem-se na realidade da luta de libertação e de clas-
ses” (Casanova, 2006, p. 406). Mariátegui teria “indigenizado a luta
de classes”, mesmo sem precisar os distintos espaços de dominação
e exploração em seu País (Peru), e sem definir as categorias, grupos,
coletividades que deveriam se integrar a luta2.
Segundo Augusto Caccia-Bava, “...adepto da ideologia marxista,
difundida em toda a Europa que conhecera [Mariátegui] apresen-
tava as práticas colonialistas como um dos mais fortes fundamen-
tos das rebeliões indígenas...”. O intelectual e militante da esquerda
peruana, reconhecia, desse modo, a rebelião “...como decorrente da
resistências às formas de sua submissão real às práticas políticas e
administrativas coloniais...”. No entanto, “era a época da formação de
partidos comunistas, de seus vínculos a associações internacionais”,
algo distinto “...do início do século XXI, quando se registram as lu-

2 Teriam sido Antonio Gramsci e Henri Lefebvre os autores a preencherem algumas dessas
lacunas. O primeiro, a partir da análise da questão meridional italiana, onde expõe o proble-
ma do colonialismo interno nos termos da inferioridade do sul e da superioridade do norte
como”fator determinante”, abordando a exploração regional (do norte pelo sul) e o problema
da unidade na diversidade para a formação de bloco histórico (camponeses e operários). O
segundo, tratando da ocupação do espaço, quando afirma a existência de um semicolonialismo
metropolitano que subordina grupos cuja existência está/esteve associada ao espaço rural e, no
interior do próprio centro urbano, grupos étnicos distintos, promovendo a segregação racial.
(Casanova, 2006, p. 407).
Fr e d e r i c o D a i a Fi r m i a n o 75

tas dos povos indígenas, as lutas pela terra e as práticas de resistên-


cia populares se realizando de maneira autônoma, umas perante as
outras” (Caccia-Bava, 2009, p. 107-110).
Na atualidade, radicalizado pelo processo de globalização, o fe-
nômeno do colonialismo opera na sua forma clássica internacional,
na forma interna (sobretudo nos países com história colonial que
reproduzem ou reconstituem as relações de exploração daquele pe-
ríodo com seus povos nativos) e na forma transnacional, seja por
meio de empresas ou regiões3, particularmente, controladas pela
“organização expansiva do complexo militar-empresarial” estaduni-
dense. Por isso, diz Casanova (2006), categorias como imperialis-
mo, Estado-nação e luta de classes não podem ser abandonadas pelo
pensamento crítico. (Casanova, 2006, p. 412-413).
Já caminhando para os últimos parágrafos de nossas conside-
rações - que também podem ser consideradas como um brevíssi-
mo esforço de recuperação de parte do pensamento social crítico
contemporâneo, com sentido claro de evidenciar referências para
a reflexão de “sociedades complexas” - parece-nos importante res-
saltar que, muito embora os fenômenos recentes de reorganização
do capitalismo, dados pela globalização/mundialização, tenham
trazido novos temas e problemas para as ciências sociais, impondo,
inclusive, a necessidade de uma ampla revisão do arsenal teórico,

3 No Brasil, Maria Aparecida de Moraes Silva demonstra o fenômeno a partir do campo brasi-
leiro. Segundo a autora, são poucas empresas transnacionais que controlam o comércio nacio-
nal e internacional de cereais, sementes e agrotóxicos, quais sejam, Monsanto, Bayer, Syngenta,
Dupont, Basf e Dow (sementes), além de Cargill, ADM, ConAgra, Bunge e Dreyfus (cereais).
Com isso, ocorre um fortalecimento do modelo técnico-científico-agroindustrial-financeiro-
mediático, a partir do qual capitais financeiros, de fundos de pensões (e outros investimentos
nacionais e internacionais), passam a ser aplicados na agricultura. Ao lado disso, “...a alta do
preço da terra é uma forma de garantir grandes lucros em função da especulação”. Desse modo,
“...as fronteiras nacionais se romperam e, sucessivamente, os grandes capitais dominam grandes
áreas de vários países, confirmando-se assim o seu caráter apátrida...”. A internacionalização
da propriedade da terra, que tem como corresponde a internacionalização de sua renda, é de-
monstrada pela presença do capital internacional nas regiões do cerrado e da Amazônia. A
premissa do processo de acumulação atual, para a autora, seria, portanto, a apropriação da
terra pelo capital internacional (Silva, 2008, p. 66-67).
76 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

conceitual e metódico que fundamentou a reflexão crítica ao longo


dos séculos XIX e XX, a projeção do futuro (ou antecipação do vir-
a-ser pelo pensamento) não pode, em hipótese alguma, abandonar
o horizonte da ruptura e da emancipação das classes, grupos e povos
distintos. Pois, no limite, é precisamente a perda desse horizonte de
“revolução”, aquilo que vem a fomentar um certo tipo de produção
intelectual amparada ou no repertório do “possível” ou naquele que
afirma a tarefa de reinvenção liberal do “fazer político”, da cidadania
e da democracia estruturada sob as bases do “pacto social”.
Por fim, a despeito das “conquistas democráticas” verificadas nos
países da América Latina no último quartel do século passado e iní-
cio do século XXI, devemos colocar o futuro da reflexão crítica, para
que assim possa ser chamada, além daquilo que, ainda em 1998,
Francisco de Oliveira configurou como a formação de um “falso con-
senso sobre a prevalência de regimes democráticos” que, apoiado por
uma espécie de “gramscianismo de direita”, identifica hegemonia à
democracia, desqualificando quaisquer possibilidades de crítica aos
atuais regimes segundo o argumento da “deslegitimação da demo-
cracia”. E isso só será possível se assumirmos como “primeira tarefa
intelectual e prática no campo democrático...” a problematização “...
do conceito e a prática dessa democracia <<consensual e hegemô-
nica>>” (Oliveira, 1998, p. 210-211).

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C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 79

Cristhiane A. Falchetti
Mestra em Sociologia pela Universidade
Estadual Paulista – UNESP/Araraquara
80 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 81

Participação Social: da luta


por autonomia à participação
institucionalizada
Cristhiane A. Falchetti

Este texto concentra-se em traçar a trajetória dos movimentos


sociais no Brasil, especialmente os movimentos urbanos, explorando
sua relação com o Estado. A proposta é verificar alguns dos fatores
relacionados à dinâmica da ação coletiva, que transita da organiza-
ção baseada em movimentos sociais reivindicativos para formas de
participação mais institucionalizadas no interior do aparato estatal.
Com isso, busca-se apontar algumas delimitações do atual quadro
político para a luta social. A apresentação do tema é feita com base
no histórico dos movimentos sociais urbanos e no referencial teóri-
co sobre o tema.

Manifestações Urbanas

Ao retomar o histórico dos movimentos sociais urbanos no


Brasil, vemos que eles se formaram a partir das transformações
desencadeadas pelo processo de acumulação capitalista, e que sua
forma de atuação teve forte relação com o formato assumido pelo
Estado.
Em países de industrialização tardia, como o Brasil, o Estado
assumiu um papel central, de indutor na transição para a econo-
mia industrial e na incorporação dos trabalhadores para o plano
dos direitos coletivos. Outra característica da industrialização nos
países periféricos do sistema capitalista foi o modo acelerado e con-
82 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

centrado como ela ocorreu, desencadeando um processo igualmente


acelerado e concentrado de urbanização. Vale esclarecer que a urba-
nização não deve ser entendida como mero reflexo do crescimento
econômico, pois sua dinâmica resulta de diferentes forças políticas
representadas pelas classes dominantes, pelas classes populares e
pelo Estado.
No Brasil, o processo de urbanização ganhou impulso na década
de 1930 e seguiu acelerado até os anos 70, período em que houve
grande expansão das periferias urbanas. A rapidez desse processo
criou um grande déficit na infraestrutura e nos serviços públicos, o
que resultou em inúmeros protestos e na emergência de movimen-
tos populares variados.
Analisando os movimentos sociais urbanos a partir das contra-
dições urbanas1, vemos que eles se constituem a partir das relações
entre as classes sociais e expressam as condições a que a classe tra-
balhadora é submetida pelo processo de acumulação capitalista. As
contradições sociais e políticas manifestas no meio urbano, conheci-
das como a “problemática urbana”, apareceram na década de 40 nas
grandes cidades brasileiras e acentuaram-se conforme o processo de
industrialização foi se intensificando.
Portanto, o surgimento dos movimentos populares urbanos está
ligado à natureza das contradições urbanas, entendidas aqui como
aquelas que se manifestam na esfera do consumo de bens, equipa-
mentos e planejamento público ligados ao setor urbano da sociedade.

Elas [as contradições urbanas] são geradas pelo processo


de acumulação e reprodução do capital. No plano urba-
no elas assumem grande importância, devido a dois fa-
tores: ao mesmo tempo que tais contradições transferem
para a esfera do consumo problemas básicos que se dão

1 Para melhor compreensão sobre a perspectiva de análise a partir das contradições sociais ver:
Borja (1975) e Castells (1976)
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 83
na produção propriamente dita e escamoteiam assim a
luta de classes, elas também podem constituir estopins de
conflitos sociais, temas básicos de mobilização popular
(GOHN, 1982, p. 13).

As tensões geradas pelo processo de industrialização e urbaniza-


ção foram mediadas pelo Estado. De acordo com Maria da Gloria
Gohn (1982), os movimentos sociais urbanos no Brasil possuem
uma dupla especificidade: uma histórica e outra conjuntural. A pri-
meira está ligada à forma como se deu o processo de apropriação do
excedente econômico no país, e remete, portanto, às relações entre
classes. Essa especificidade se traduz na forma de conflitos contra
o Estado, pois todos os desdobramentos do processo de acumula-
ção — concentração urbana, aumento das periferias, demandas por
capacitação profissional, infraestrutura urbana — são transferidos
para o Estado ou mediados por ele. A segunda especificidade está
relacionada à velocidade do processo de industrialização e urbaniza-
ção, que gerou grandes adensamentos populacionais nas periferias
urbanas.
Observa-se, portanto, que a especificidade dos movimentos
urbanos no Brasil está ligada ao caráter fortemente interventor
do Estado no processo de alavancagem e desenvolvimento do ca-
pitalismo no Brasil. Entre os anos 30 e 50 houve forte regulação
estatal nos fatores de produção (capital e trabalho), favorecendo a
expansão industrial, inicialmente, por intermédio de investimentos
na indústria de base e infraestrutura e, posteriormente, por meio de
incentivos à indústria de bens de consumo duráveis. A incorporação
política dos trabalhadores se deu sob o populismo, caracterizado
pela relação ambígua entre o líder político carismático e as camadas
populares. O governo populista mostrou-se adequado para a me-
diação das contradições e tensões urbanas, procurando “conciliar”,
de um lado, os interesses capitalistas e as condições necessárias ao
84 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

desenvolvimento industrial e, de outro lado, as reivindicações e de-


mandas populares por melhores condições de vida.
A dinâmica “conciliatória” e contraditória do populismo impli-
cou, também, na repressão às organizações populares autônomas
(movimentos, associações de bairro, sindicatos etc.) e na cooptação
da base social dessas organizações por meio da ação parlamentar
articulada e do controle do Executivo sobre o fornecimento de bens
de consumo coletivo, utilizando-se de práticas clientelistas na con-
cessão de direitos. Muitos dos movimentos que mediavam a relação
com o Estado eram impregnados de contradições, o que muitas ve-
zes deu sustentação à política “conciliatória” do populismo.

As contradições sociais irão permear toda a atuação


destas organizações, assumindo em alguns casos, caráter
duplo, pois, se por um lado são expressões espontâneas
da população, por outro, podem cumprir também um
papel integrador com a mesma. Ao mesmo tempo em
que são organismos de expressão e reivindicação da po-
pulação, são também anteparo e filtro de suas aspirações.
A mediação que estas organizações passam a exercer, en-
tre a população e o Estado, é de suma importância, me-
diação esta que não se constitui arbitria ou equalização
das forças sociais em conflito, mas antes um catalisador
de conflitos (GOHN, 1982, p.14).

Mas, se do lado das classes populares os avanços sociais eram per-


meados por contradições que interferiam na própria lógica da organi-
zação política dessas classes, do lado das classes dominantes, intensifi-
cava-se a utilização dos grandes centros urbanos como espaços privile-
giados de concentração tanto de capital quanto de força de trabalho2.
A insustentabilidade da prática “conciliatória” do populismo
mostrou-se com o golpe militar de 1964, assinalando a hegemonia

2 Sobre as formas de utilização das metrópoles pelas classes dominantes, ver Moises (1977, p. 46).
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 85

de uma classe no âmbito do Estado. Diante disso, a relação entre o


Estado e os movimentos sociais alterou-se substancialmente, assu-
mindo um caráter oposicionista. Muitas vezes, essa oposição era de-
finida pela polarização Estado versus sociedade civil. Nem sempre,
porém, a sociedade civil era contra a natureza de classe do Estado,
mas sim contra suas funções ou contra seu caráter autoritário (Gohn,
1982; Moisés, 1977).
Com o Regime Militar, encerraram-se as eleições diretas e o
populismo perdeu seus instrumentos. A maneira encontrada pelo
governo para legitimar-se frente às massas foi o clientelismo e o po-
der de barganha. As manifestações e interesses vindos da sociedade
passaram a ser sufocados em nome de uma “racionalidade” que se
dizia responder pelos interesses nacionais. A opinião pública resul-
tava, em grande medida, dos “projetos de impacto” que remetiam à
imagem de um “Brasil Grande”. Apesar disso, os problemas urbanos
tornavam-se evidentes e cada vez mais agudos. Já na década de 70,
cerca de 80% das habitações urbanas em São Paulo não tinham rede
de esgoto e 54% não dispunham de um sistema regular de água.
Além disso, 2/3 das ruas não eram pavimentadas e mais de 70 %
não tinham iluminação pública (Moises, 1977, p. 49-50).
O Estado atuava como garantidor das condições gerais para a re-
produção do capital e, conforme o capitalismo se consolidava, mais
evidente ficava a associação entre o Estado e as classes economica-
mente dominantes.

Portanto, era inevitável que as contradições geradas pelo


desenvolvimento urbano lançassem as classes populares
em uma relação antagônica com o Estado. Este, além de
aparecer como uma agencia de empregos só ao alcance de
uma burocracia inoperante e formada de “apadrinhados”
da chamada “classe política”, tem de assegurar, simul-
taneamente, funções contraditórias entre si, tais como:
assegurar as condições de vida para o conjunto da popu-
86 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

lação (isto é, reproduzir nas condições adequadas ao con-


texto urbano de trabalho) e, ao mesmo tempo, assegurar
o uso desenfreado do solo, em função da instituição da
propriedade privada. (...) Essas funções sociais, políticas
e ideológicas põem em evidência a fragilidade da ideolo-
gia socialmente sancionada da “cidade para os cidadãos”,
igualmente de todos os consumidores de equipamentos
coletivos, do “interesse da maioria sobre a minoria”, etc.
(MOISÉS, 1977, p. 52-53).

O grande adensamento das classes populares na periferia das


principais cidades era mais um aspecto da problemática urbana
também resultante do acelerado processo de industrialização. Na
década de 50, a capital paulista havia sido a cidade que mais cresce-
ra no mundo, chegando a uma taxa de crescimento geométrico de
5,6% ao ano.
Nesse ponto, cabe destacar a importância das reivindicações po-
pulares para a ampliação da infraestrutura urbana e para o surgi-
mento de novas organizações sociais e movimentos reivindicativos.
Conforme Gohn (1982, p. 16), “os efeitos políticos e urbanos dos
movimentos se farão sentir na configuração espacial da cidade e prin-
cipalmente na articulação das classes subordinadas”, e nesse sentido
eles atuam não apenas no formato urbano e na obtenção ou amplia-
ção de direitos sociais, por intermédio da garantia de serviços públi-
cos, mas também na formação de “consciência de solidariedade”.
Para José Moises (1977) os movimentos reivindicativos tinham
uma dinâmica própria e, embora fossem aparentemente espontâ-
neos, guardavam uma “eficácia política”. Assim, suas ações, por um
lado, mobilizavam o Estado para uma resposta às suas reivindica-
ções e, por outro, afirmavam diante dos próprios movimentos sua
potencialidade como força social capaz de intervir na sociedade,
dando-lhes um papel de sujeitos políticos.
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 87
Subordinadas ao domínio do Estado, é precisamente
na prática da ação direta, que essas massas populares
apreendem os limites e também as possibilidades de sua
atuação. (...) Na medida em que essa espontaneidade
viabilizava alguma forma de ação, essas massas come-
çam a experimentar sua própria potencialidade como
força social e política. É a sua prática, desorganizada ou
não, que coloca para elas a possibilidade de se fazerem
presentes, com algum grau de vontade própria, diante do
resto da sociedade (MOISÉS, 1977, p. 55).

Assim, num primeiro momento, a relação das classes populares


com o Estado é no sentido de pressão para a obtenção de serviços
e de infraestrutura pública. As primeiras formas de ação popular
iniciaram-se entre os anos de 1940 e 1950, organizadas por associa-
ções e sociedades de amigos de bairros, cujo objetivo era coordenar
ações reivindicatórias das classes populares dos bairros periféricos.
Outra forma de ação era a ação-direta, caracterizada pela emergên-
cia de protestos repentinos, relacionados ao consumo coletivo de
bens e serviços públicos. Exemplos disso são os “quebra-quebras de
trem” nos anos de 1947, 1959 e 1974. Ao longo da década de 70, os
movimentos sociais passam a lutar por autonomia e alteram muitas
de suas formas de atuação, colocando-se cada vez mais como atores
políticos e potencializando sua “eficácia política”.

Transições

O agravamento das condições de vida na cidade, o arrocho sa-


larial, o enrijecimento do regime autoritário e as experiências de
alguns movimentos implicaram em mudanças significativas na or-
ganização e atuação de diversos movimentos sociais na década de
1970. Esse período foi o momento de auge dos movimentos sociais
e da literatura sobre eles.
88 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Conforme Eder Sader (1988), as décadas de 1960 e 1970 mar-


cam o fechamento dos espaços públicos tanto de manifestação po-
lítica, como de convivência social. Assim, ao mesmo tempo em que
o regime militar intensificava o controle sobre as forças políticas,
restringindo e anulando direitos civis e políticos, também as modi-
ficações no meio urbano redesenham os espaços cotidianos onde as
experiências eram coletivizadas.
Nesse contexto, o tema da autonomia dos movimentos sociais
e oposição ao Estado ganham maiores proporções. Segundo Sader
(1988, p. 33), haveria nesse período uma “crise dos referenciais po-
líticos e analíticos que balizavam as representações sociais sobre o
Estado e a sociedade em nosso país”. Desse modo, intelectuais (aca-
dêmicos ou militantes) teriam deixado de ver o Estado “como lugar
e instrumento privilegiados das mudanças sociais e começam a en-
fatizar uma polarização — às vezes até maniqueísta — entre estado
e sociedade civil”.
Em boa medida, a luta por autonomia vinha da necessidade dos
novos atores políticos de constituírem uma identidade, enquan-
to sujeitos políticos, frente ao cenário público instituído em que
eles não eram reconhecidos como tal. É nesse sentido que vemos
a emergência e a redefinição de diversos movimentos e organiza-
ções sociais, como o clube de mães dos bairros, o novo sindicalismo,
o movimento de saúde, movimento do custo de vida, movimento
do transporte coletivo, movimento de moradia, movimento de luta
contra o desemprego, etc.
No caso do “novo sindicalismo”, desde 1967 a Oposição
Metalúrgica de São Paulo (OSM) confrontava a estrutura sindical
vigente por esta “associar-se” às empresas e submeter-se à manipula-
ção do Estado, atuando como aparelho burocrático com funções as-
sistenciais. Desta forma, a OSM buscava se autoafirmar como nova
protagonista da luta operária.
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 89
A identidade da OSM se constitui na medida em que
ela se autonomizava de duas referências exteriores: a)
os grupos que, convergindo, lhe deram origem e consti-
tuíram no inicio os espaços de elaboração política e de
continuidade da ação (sendo a OSM apenas um espaço
de articulação deles); b) o Sindicato enquanto objetivo e
espaço a ocupar, em função do qual ela definia seu calen-
dário e suas atividades. (SADER,1988, p. 229).

A autonomia torna-se, portanto, um imperativo para o movi-


mento sindical que se propunha a alterar as bases de sua atuação
e participação política, colocando-se em defesa dos interesses dos
trabalhadores na melhoria das condições de trabalho.
Os Clubes de Mães existiam desde a década de 1950, mas nos
anos 70 adquirem um novo formato e uma nova dinâmica, deixando
de ser organizações beneficiadas pela benevolência de entidades e
senhoras que ensinavam artesanato e higiene para as mulheres dos
bairros periféricos, para tornarem-se entidades lideradas pelas pró-
prias moradoras dos bairros, que as transformaram em organizações
mais politizadas e reivindicativas. Os clubes de mães passaram a atu-
ar também na coordenação de movimentos reivindicativos, como o
movimento do custo de vida, questionando as injustiças sociais.
O Movimento de Saúde emerge na periferia da cidade de São
Paulo em meados da década de 1970, a partir da percepção de que
as carências materiais eram ausência de direitos e de que era preci-
so lutar por eles. Embora, no início, o movimento tivesse um “tom”
caritativo (baseado na solidariedade mútua), rapidamente, a articu-
lação entre Igreja Católica, moradoras de bairros, médicos sanitaris-
tas, Pastoral Operária, passa a mobilizar-se e a reivindicar o direito
à saúde pública.
Os diversos movimentos formados por categorias sindicais de
trabalhadores, comunidades de base, moradores de favelas ou vilas,
associações de bairros, clubes de mães, etc. constituíram um grande
90 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

“ciclo reivindicativo” nos grandes centros urbanos, que ficou conhe-


cido como Movimento Popular, cuja articulação estava em torno
da Igreja Católica, agrupamentos de esquerda, organizações não-
governamentais e intelectuais (Doimo, 1995).
No campo teórico, os movimentos sociais ganham espaço nas pes-
quisas e análises a partir dos anos de 1960 e atingem seu auge entres
as décadas de 1970 e 1980. Inicialmente, eles apareciam na literatu-
ra associados à idéia de “classe social” e ao seu caráter revolucionário,
porém, algumas mudanças na organização produtiva e no cenário
político alteraram os parâmetros teóricos e interpretativos e deram
abertura a novas categorias explicativas, tais como: democracia dire-
ta, esferas públicas, cultura, experiências cotidianas, cidadania.3 Ana
Maria Doimo (1995, p. 47-49) verifica a existência de pelo menos
três matrizes interpretativas no Brasil no pós-1970, apesar destas não
serem totalmente delimitadas no campo da prática:
a) Enfoque Estrutural-autonomista: explica a natureza dos movi-
mentos sociais a partir das contradições urbanas, do caráter clas-
sista do Estado e da capacidade da sociedade civil de organizar-
se “autonomamente”. Esses “novos movimentos sociais” seriam os
novos sujeitos coletivos capazes de transformar as relações capi-
talistas de produção. Essa matriz ganhou muita força, especial-
mente no início da década de 1970, e caracterizou-se pela forte
expectativa depositada nos movimentos sociais.
b) Enfoque Cultural-autonomista: recusa os pressupostos do sujei-
to único e da homogeneidade de classe, trazendo à tona a “plura-
lidade de sujeitos” e seus “novos significados” criados a partir da
“própria experiência”. Os “novos movimentos” eram vistos como
“novos sujeitos políticos”, portadores de uma “nova identidade

3 Dentre as mudanças estão: a desregulamentação dos mercados, a institucionalização do con-


flito de classes no capitalismo avançado, a explosão de movimentos espontâneos, a desmistifi-
cação do regime socialista no Leste, o declínio das teorias marxistas a ascensão do pensamento
“pós-moderno” (Doimo, 1995; Sader, 1988; Gohn, 2004).
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 91

sócio-cultural” e da transformação radical da vida política por


meio da “democracia de base”, ou democracia “direta”, autônoma
e independente do Estado. Essa matriz teórica propagou-se por
toda a Europa e atingiu o Brasil no início da década de 1980,
onde estiveram afinadas com o discurso dos próprios movimen-
tos sociais. Seu otimismo teórico inicial, no entanto, foi redefini-
do pelos próprios formuladores;
c) Enfoque Institucional: desconstrói o caráter autônomo e anti-
institucional dos movimentos, proposto pelas duas correntes
anteriores, afirmando que o que havia era “um dinâmico quadro
de demandas, recusas, alianças, pactos e conflitos internos, onde
o Estado podia ser amigo ou inimigo, dependendo dos interes-
ses em jogo e da ótica cultural pela qual era reconhecido” (op.cit,
p.49). Dessa forma, a natureza dessas formas de participação re-
sidiria no crescimento e ampliação das funções do Estado sobre a
sociedade. Seu alcance, portanto, estaria circunscrito à ampliação
dos direitos de cidadania, em vez das radicais mudanças estrutu-
rais nas relações capitalistas. Essa corrente teórica, ganha espaço
já no final da década de 80, com o processo de redemocratização
e o avanço internacional do neoliberalismo.
Sader (1988) mostra que o final da década de 70 foi marcado
pela emergência de uma “nova configuração de classe”, com expres-
são diferente daquela libertária do início do século XX ou da popu-
lista do pós-1945.

No final da década vários textos passaram à irrupção


de movimentos operários e populares que emergiam
com a marca da autonomia e da contestação à ordem
estabelecida. Era o ‘novo sindicalismo’, que se pretendeu
independente do Estado e dos partidos; eram os ‘novos
movimentos de bairro’, que se constituíram num pro-
cesso de auto-organização, reivindicando direitos e não
trocando favores como os do passado; era o surgimento
de uma ‘nova sociabilidade’ em associações comunitárias
92 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

onde a solidariedade e a auto-ajuda se contrapunham


aos valores da sociedade inclusiva; eram os ‘novos movi-
mentos sociais’, que politizavam espaços antes silenciados
na esfera privada. De onde ninguém esperava, pareciam
emergir novos sujeitos coletivos, que criavam seu próprio
espaço requeriam novas categorias para sua inteligibili-
dade (SADER, 1988, p. 35-36).

O trecho acima retrata o momento de grande expectativa da lite-


ratura em relação aos movimentos sociais, os quais representariam
um novo protagonismo político dentro do contexto autoritário do
regime militar. Ruth Correia Cardoso (1994) classifica esse mo-
mento da literatura como a “emergência heróica dos movimentos”.
Dentro do enfoque “culturalista”, as expectativas eram em relação à
mudança na cultura política, no sentido de alterar o sistema político
tradicional baseado em relações clientelísticas e autoritárias.
Dentro desse quadro, destacamos a reemergência do termo “so-
ciedade civil”, como categoria analítica. No Brasil, entre outras ra-
zões, o termo ganhou centralidade por representar a articulação de
diversos setores da sociedade em torno da autonomia em relação ao
Estado e da oposição à ditadura militar. O forte controle político-
estatal sobre as organizações e manifestações sociais, exercido ora
por meio da tutela e da subordinação, ora por meio da repressão
violenta, tinha se tornado um obstáculo para a organização autôno-
ma da sociedade. Além disso, o discurso dos movimentos em torno
dos direitos também os colocava numa situação de contestação e
enfrentamento ao regime militar autoritário.

Novos Cenários Políticos

Dentro do contexto de efervescência política e aposta nos novos


movimentos sociais, o tema da democracia ganha expressão na pauta
de discussões da academia e de diversos segmentos sociais dos países
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 93

da América Latina no início dos anos 1980. O declínio dos regimes


autoritários, a redefinição dos atores sociais, o surgimento de novos
temas políticos, a análise crítica do “socialismo real” e as reformula-
ções da esquerda são fatores que colocaram a questão da democracia
no centro das reflexões teóricas e impulsionaram a mobilização da
sociedade civil em torno do processo de redemocratização.
A mobilização em torno do processo de democratização apoiou-
se na ideia de cidadania como “estratégia política” na construção
de uma democracia que envolvesse também a cultura política e as
desigualdades nas relações sociais. Nesse sentido, Dagnino (1994)
ressalta a emergência de uma “nova noção de cidadania”, a qual teria
surgido da experiência concreta dos movimentos sociais, e que se
distingue da concepção liberal de cidadania nos seguintes pontos: a)
não se limita à conquista legal dos direitos ou ao acesso daqueles já
definidos, mas redefine-os e inclui novos direitos que emergem de
lutas específicas e da sua prática concreta, cujo ponto de partida é
a concepção de “direito a ter direitos”; b) ao contrário da concepção
liberal, a nova concepção não se vincula a uma estratégia das classes
dominantes e do Estado com vistas à incorporação política progres-
siva dos setores excluídos rumo à integração social ou ao desenvol-
vimento do capitalismo; trata-se, ao contrário, de uma estratégia
dos não-cidadãos, dos excluídos, de uma cidadania de “baixo para
cima”; c) alarga o âmbito da cidadania, indo para além do conjunto
de direitos e constituindo-se numa “proposta de sociabilidade”; d)
ampliação do conceito em relação à cidadania liberal, ao incluir a
relação entre o Estado e a sociedade civil, em vez de privilegiar a
relação Estado/indivíduo; e) diferentemente do conceito liberal, em
que a luta é pela inclusão no sistema político, na nova noção a luta é
pela participação na própria definição desse sistema e pela “invenção
de uma nova sociedade” por eles construídas. (DAGNINO, 1994).
Um aspecto importante dessa concepção de cidadania é que ela
agrega tanto os direitos formais quanto a noção de sociabilidade, o
94 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

que vai além da armadura institucional e permite que as desigualda-


des e os conflitos sociais sejam reconhecidos e não fiquem mascara-
dos pela ideia da igualdade formal. O reconhecimento da “diferença”
e da desigualdade não significa, porém, abrir mão da igualdade em
favor de “particularismos” ou “parcialidades”, mas significa defender
tanto o direito à igualdade quanto o direito à diferença. Como ex-
plica Dagnino (1994, p.114) “a diferença emerge enquanto reivindi-
cação precisamente na medida em que ela determina desigualdade.
Numa sociedade heterogênea e desigual, que não atingiu patamares
mínimos de igualdade social e civil, a dinâmica de resolução de con-
flitos se processa “por fora” das estruturas estatais e das armaduras
jurídicas e burocráticas. A igualdade formal é, portanto, insuficiente
para resolver conflitos que emergem e se resolvem por mecanismos
informais, seguindo a lógica excludente e autoritária que rege as re-
lações sociais dessa sociedade. Como defende Vera Telles, a cida-
dania carrega a ideia de um “contrato social dinâmico” regido pelo
reconhecimento do outro.

Trata-se de um contrato peculiar que não se reduz ao


ordenamento jurídico estabelecido, pois é plural, ancora-
do em contextos societários diversos e regido por regras
sempre a serem reinventadas e negociadas na tempora-
lidade própria, particularizada e muitas vezes inusitada
dos conflitos. (TELLES, 1994, p.101).

Dentro dessa perspectiva, a “construção democrática” adquire


importância crucial na América Latina devido às suas característi-
cas históricas de desigualdade social e autoritarismo que perpassam
as relações sociais. Esse “autoritarismo social” “engendra formas de
sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz ao
conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações
sociais em todos os níveis” (DAGNINO, 1994, p.105). A democra-
tização da sociedade passa, portanto, pela superação desse autorita-
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 95

rismo, penetrando o tecido social em todas as suas relações.


Assim, a noção de cidadania vai dando o contorno às ações coleti-
vas por meio da idéia de “direito a ter direitos”, referindo-se ao acesso
ao sistema político por meio do direito de participar da própria de-
finição desse sistema (Dagnino, 1994, p. 109). Exemplo disso foi a
campanha pela participação popular na elaboração da Constituição
de 1988, quando os fóruns participativos ampliados tiveram impor-
tância capital para a construção de uma Constituição mais cidadã.
A Constituição de 1988 incorporou uma série de lutas e reivin-
dicações dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil,
modificando a relação entre o Estado e sociedade civil. A ampliação
e a universalização dos direitos sociais, a adoção de mecanismos par-
ticipativos nos processos decisórios do governo, a descentralização
político-administrativa eram demandas da sociedade, o que eviden-
cia o apelo à cidadania que passa a canalizar a energia sociopolítica
dos movimentos pós-1970.
Com o decorrer do processo de redemocratização do país e a
ascensão de grupos de esquerda aos governos municipais4, inaugu-
raram-se novas experiências participativas institucionalizadas. Os
mecanismos de participação, previstos na Constituição de 1988,
passam a ser regulamentados e implementados nos anos de 1990.
A descentralização político-administrativa contribuiu para a difu-
são desses novos arranjos ao transferir às esferas subnacionais atri-
buições e responsabilidades na provisão de infraestrutura, serviços
sociais e fiscalização das políticas públicas.
Vemos então que, juntamente com a transição do regime políti-
co, há uma transição na dinâmica de ação dos movimentos sociais,

4 Um exemplo disso é a prefeitura de São Paulo com a eleição de Luiza Erundina (PT), repre-
sentando os próprios movimentos populares. Os primeiros governos municipais de esquerda
formularam propostas críticas e alternativas aos limites da institucionalidade democrática re-
presentativa. Eram propostas alternativas de democracia que se apresentavam menos ligadas
ao regime político e mais atentas à criação e difusão de uma cultura democrática no âmbito
societário. No entanto, esse quadro foi se alterando.
96 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

em que o discurso da “autonomia” e da oposição ao Estado dá lugar


à luta por participação política no interior do Estado. Também pas-
sam a predominar as propostas de “partilha do poder” e de atuação
mais propositiva e menos reivindicativa. Essa tendência já era notada
em alguns movimentos que surgiram na década de 1970, como, por
exemplo, o movimento de saúde. Após conquistar a infraestrutura
urbana, o movimento passou a reivindicar participação na gestão
do serviço e, assim, nasceu dentro desse movimento a proposta de
Conselho Popular, cuja função era fiscalizar o funcionamento dos
órgãos públicos. Tal proposta passou a ser difundida para outros
movimentos que reivindicavam direitos sociais, dando início aos ca-
nais participativos institucionalizados, que previam o controle dos
serviços públicos por parte da população atendida.
Cabe ressaltar que essa transição na postura de alguns movimen-
tos sociais não foi um processo “natural” e homogêneo. Houve dis-
cordâncias e tentativas de manipulação por parte de setores gover-
namentais. Muitos movimentos acreditavam que a fiscalização dos
serviços públicos era uma função do Estado, enquanto que outros
acreditavam que essa era uma forma de obter mais poder junto ao
Estado.
Nos anos 1990, a idéia de “participação da sociedade civil” torna-
se quase um imperativo nos discursos políticos das mais diversas
orientações político-ideológicas. Os conselhos gestores de políti-
cas públicas nas áreas de saúde, educação, assistência social, etc.,
passam a ser uma exigência legal para todas as esferas de governo.
Entretanto, para compreender esse ideário participacionista é pre-
ciso analisar o contexto de democratização e reforma do Estado no
Brasil, destacando seu caráter contraditório.
Se por um lado, nos anos 80, a oposição ao regime autoritário e a
luta pela universalização dos direitos levou diversos setores da socie-
dade civil a reivindicar espaços públicos deliberativos, participação
na discussão e tomada de decisão e controle sobre a ação pública.
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 97

Os movimentos sociais e organizações da sociedade civil ganham


a cena pública e passam a debater uma democracia para além das
instituições representativas, reivindicando parte do poder decisório
sobre a política pública e adotando uma perspectiva de direitos e ci-
dadania calcados tanto nas formas legais, quanto na busca por uma
“sociabilidade igualitária”5.
Por outro lado, o movimento mundial de retomada do libera-
lismo desencadeia a reforma do Estado no Brasil. Tal movimento
compreende um conjunto de mudanças conhecido como “neolibera-
lismo”. Esse processo é marcado pela eleição do presidente Fernando
Collor em 1989, dando início a uma série de mudanças no papel do
Estado, que seguem as orientações do Consenso de Washington:
a) abertura comercial; b) alívio da pobreza; c) redução do papel do
Estado (privatizações, redução dos gastos com políticas sociais).
Imersos em dívidas e na crise inflacionária, os países, especialmen-
te da América Latina, recorreram a organismos internacionais que
lhes impuseram pesadas medidas de reestruturação econômica. As
crises econômicas e fiscais, que antecederam a crise dos Estados na-
cionais, enfraqueceram os sistemas de proteção social e a capacidade
de investimento social dos Estados.
Nesse sentido, a Constituição 1988 estava na contramão do mo-
vimento internacional de reforma do Estado, e sua aprovação só foi
possível devido à forte pressão popular existente naquele momento.
O neoliberalismo chega ao Brasil depois de ter chego a outros países
e suas primeiras ações implicam em modificações na Constituição
de 1988, considerada inadequada para o novo contexto político-
econômico mundial.

5 Telles (1994, p. 91) afirma que para além da armadura institucional garantidora da cidadania e
da democracia, os direitos sociais devem ser pensados a partir do modo como as relações sociais
se estruturam. Na medida em que os direitos são reconhecidos, eles estabelecem uma forma de
sociabilidade regida pelo reconhecimento do outro como sujeito de interesses válidos.
98 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

As medidas propostas pelo neoliberalismo resultaram no agrava-


mento da pobreza6, implicando uma inflexão no discurso neoliberal
em relação à questão social, a qual ganha centralidade na agenda
de reforma. Tendo em vista que a crescente pobreza se traduz num
risco à governabilidade e à estabilidade política, a redução da po-
breza e das desigualdades sociais torna-se uma condição para a es-
tabilidade política e continuidade das reformas. Essa inflexão em
relação à questão social também está presente nas formulações dos
organismos internacionais (FMI, BM, BID). Já no final da década
de 90, os resultados pouco satisfatórios das reformas neoliberais,
em termos sociais e redistributivos, levou às “reformas de segunda
geração”, também conhecidas como “Consenso de Santiago” (Cúpula
das Américas em 1998). É preciso destacar, no entanto, que o trato
a questão social adquire contornos muito distintos daqueles iden-
tificados nos sistemas de proteção social dos Estados de bem-estar
social, apresentando um caráter focalizado e assistencialista.
Dentro do novo programa de reformas, o impasse entre re-
dução dos gastos públicos e combate à pobreza é resolvido pelos
critérios de eficiência administrativa e complementaridade entre
Estado, mercado e sociedade civil. Conforme Nogueira (2005), a
lógica: menos Estado e mais democracia, menos burocracia e mais
iniciativa, exigia uma abertura para a sociedade civil. É dentro des-
se cenário que a sociedade civil ingressa no discurso e na prática
dos organismos internacionais como um agente fundamental para
a democracia, equidade e desenvolvimento social. “A sociedade civil
– locus de cidadãos organizados – passaria a ser o ambiente propi-
cio para uma participação convertida em movimento de maximi-
zação de interesses (rent-seeking) e/ou de colaboração governamen-

6 Os dados estatísticos dos países da América Latina, que passaram pelas reformas neoliberais,
revelam que a distribuição de renda desses países, nas décadas seguintes às reformas, piorou
numa média de 5-10 pontos percentuais no coeficiente de Gini. As pesquisas também apon-
tam o aumento da pobreza nesse mesmo período. (PANFICHI e CHIRINOS, 2002)
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 99

tal” (NOGUEIRA, 2005, p.57). Cabe destacar que a concepção


de sociedade civil adotada no âmbito dos programas e propostas
governamentais integra basicamente as formas de associativismo e
as Organizações Não-Governamentais, portanto, a sociedade civil
organizada e institucionalizada.
Outro aspecto importante das “reformas da segunda geração” é
a aposta na “forma de governar”, ou seja, na eficácia administrativa
como um fator decisivo para a solução dos problemas. Pelo conceito
de “governança”, a capacidade governativa não seria avaliada apenas
pelos resultados das políticas governamentais, mas também pela
forma pela qual o governo exerce o seu poder.7 Dentro das propo-
sições do Banco Mundial (apud SIMIONATTO, p.2), “a eficiência
do Estado é maior quando escuta a opinião do setor empresarial
e da cidadania em geral”, nesse sentido, a governabilidade estaria
associada à capacidade de diversificar os espaços de negociação e a
inclusão de diferentes atores, o que representaria um aumento da
participação.
Essa perspectiva gerencialista pode ser claramente percebida no
Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (1995) apre-
sentado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do
Estado (MARE), pelo então ministro Bresser Pereira. Na proposta
do MARE, diante da redução do papel do Estado e da ênfase na dis-
ciplina fiscal, a sociedade civil é convidada a participar no controle
dos gastos públicos e na execução de atividades públicas.

A estratégia da reforma do Estado se apóia na publi-


cização dos serviços não exclusivos do Estado, ou seja,
na sua absorção por um setor público não estatal, onde,
uma vez fomentados pelo Estado, assumirão a forma de
organizações sociais. Essa forma de parceria entre socie-

7 Essa perspectiva, também conhecida como “administração gerencial”, teve como referência o
livro Reinventando o Governo (1992) de Osborne e Gaeber.
100 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

dade e Estado, além de viabilizar a ação pública com


mais agilidade e maior alcance, torna mais fácil e direto
o controle social, mediante a participação, nos conselhos
de administração, dos diversos segmentos beneficiários
envolvidos. As organizações nesse setor gozam de uma
autonomia administrativa muito maior do que aquela
possível dentro do aparelho do Estado. Em compensação,
seus dirigentes são chamados a assumir uma responsabi-
lidade maior, em conjunto com a sociedade, na gestão da
instituição (MARE, 1997, p. 11).

As Organizações Sociais são incentivadas como parte da estra-


tégia no trato às políticas sociais, voltando-se para as políticas foca-
lizadas e retomando a concepção filantrópica e caritativa no trato à
questão social (Yazbek, 1995). Segundo Gohn (2000), as ONGs
criadas por lei em 1998 assumem um perfil assistencialista, diferen-
te das ONGs dos anos 80 que possuíam um caráter reivindicativo
e participativo.
A participação aparece associada à questão social e à eficiência ad-
ministrativa, tornando-se um instrumento de gestão para os gover-
nos. Como observa Luciana Tatagiba (2003, p.54), “Transformada
em ferramenta de gestão, a participação passa a significar condição
imprescindível para a eficácia dos programas e projetos, face à ex-
pectativa da redução dos custos, otimização dos esforços e controle
da ampliação e distribuição das verbas públicas”. A autora destaca
ainda que a adesão à participação está associada ao caráter moral e à
legitimidade macroeconômica e gerencial dos governos.
Tendo em vista o contexto de democratização e reforma do
Estado, podemos afirmar que a institucionalização da participação
nas deliberações públicas marca a “confluência perversa” entre dois
“projetos políticos” (DAGNINO, 2004): um que visa o ajuste e re-
forma do Estado, e outro que visa a democratização por meio da
participação popular nas decisões públicas. Assim, ao mesmo tempo
C r i s t h i a n e A . Fa l c h e t t i 101

em que o estabelecimento da participação na esfera pública atende


a reivindicação dos segmentos progressistas da sociedade civil, ele
também se coloca numa perspectiva de contenção das demandas so-
ciais no contexto de ajuste fiscal.
A abertura de novos canais de participação política junto ao
governo, a institucionalização de muitos movimentos, a “profissio-
nalização” das ONGs, a ampliação das temáticas abordadas e do
número de organizações sociais, a pluralidade de objetivos e posi-
cionamentos contribuíram para que o termo “sociedade civil” fosse
objeto de novos significados nos diferentes discursos. Como afirma
Boaventura Santos (2000), a “reemergência da sociedade civil” no
discurso dominante está associada a um reajustamento estrutural
das funções do Estado que marcam o declínio do intervencionismo
estatal no social.

Considerações Finais

Procuramos mostrar, ao longo do texto, alguns dos elementos


que configuraram o deslocamento das formas de participação social
de um suposto caráter “espontaneísta” e “autonomista” para um ca-
ráter institucionalizado e propositivo. Ao retomar a trajetória dos
movimentos urbanos reivindicativos, pudemos identificar que a ten-
dência à participação institucionalizada é mais forte nestes movi-
mentos, os quais estão mais ligados às luta por melhores condições
de vida no meio urbano, e estabeleceram uma relação mais direta
com o Estado. Desta forma, a institucionalização dos canais de par-
ticipação surgem primeiro no âmbito das políticas sociais, cujas de-
mandas eram reivindicadas pelas classes populares, como é o caso
da saúde em São Paulo.
O outro fator que caracteriza esse deslocamento é o modo como
se estabelece a relação Estado/sociedade civil no Brasil, que é mar-
cada por um ideário participacionista resultante da convergência
102 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

perversa entre as reformulações da agenda neoliberal e o projeto


político democrático. Essa confluência entre projetos com diferen-
tes orientações, atribui um caráter ambíguo à noção de participação,
que aparece ora como elemento democrático, ora como recurso ge-
rencial.
Por fim, vale ressaltar que, apesar de termos tratado aqui de uma
tendência à “institucionalização da participação”, não pretendemos
afirmar que todos os movimentos seguiram o mesmo curso em rela-
ção à ação social. Como se sabe, alguns movimentos mantêm posturas
mais combativas ou revolucionárias, e muitos deles vêm sendo crimi-
nalizados pelo Poder Público e por segmentos da sociedade civil.
A nosso ver, não se trata de desqualificar essa ou aquela forma de
participação, pois nenhuma delas deve servir de modelo para que se
deslegitime outras formas de ação coletiva. Nesse sentido, a institu-
cionalização da participação e a formalização de canais de participa-
tivos da sociedade civil não deve servir de argumento ao discurso de
combate aos movimentos sociais mais expressivos e questionadores
da ordem social e das desigualdades sociais.
A participação da sociedade civil sempre envolve um universo
muito amplo e heterogêneo de organizações e propostas, as quais
variam desde reivindicações pontuais e específicas até lutas mais
amplas e emancipatórias. Essa heterogeneidade que se coloca den-
tro do campo multifacetado da sociedade civil é um dos principais
desafios para se pensar os novos horizontes de lutas.

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Maurício Bernardino Gonçalves 105

Maurício Bernardino Gonçalves


Mestre em Sociologia pela Faculdade de
Ciências e Letras da Universidade Estadual
Paulista Unesp, campus de Araraquara.
106 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
Maurício Bernardino Gonçalves 107

O surgimento histórico e os
pressupostos teóricos do Fórum
Social Mundial
Maurício Bernardino Gonçalves

A gênese histórica do Fórum Social Mundial

O FSM tem como data de sua primeira realização o mês de ja-


neiro de 2001 em Porto Alegre-RS. Para que ele ocorresse (com
todos os seus significados e conseqüências para a prática política de
transformação social), no entanto, algumas condições tiveram que
existir. Essas condições remontam, especialmente, ao último quarto
do século XX. Dentre vários fatores, dois em especial proporciona-
ram as modificações no capitalismo mundial que possibilitaram o
surgimento de um fenômeno, que vários anos depois veio dar ori-
gem a um tipo particular de crítica social e a um determinado mo-
vimento de cunho político, que encontrou no FSM sua expressão
mais relevante.

Porto Alegre é a manifestação, a atualização de um


processo latente em obra há vários anos – o de um mo-
vimento de convergência mundial de ações e visões de
movimentos sociais e de entidades (sindicatos, ONGs,
intelectuais, jornalistas, estudantes, igrejas, etc) repre-
sentativas da sociedade civil, colocando novamente em
questão a globalização tal como hoje se faz (Houtard &
Polet, 2002, p. 165).
108 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

O primeiro desses fatores processa-se com mais evidência apro-


ximadamente a partir de fins dos anos 1970 e início dos anos 1980
com a tendência à liberalização das economias e sociedades mais ou
menos estruturadas no estado de bem estar social de tipo keynesia-
no e fordista1. Margaret Thatcher e Ronald Reagan, na Inglaterra
e Estados Unidos, respectivamente, são considerados os seus im-
pulsionadores. Essas transformações, que passaram a ser designadas
sob o nome de “neoliberais”, tiveram impacto diferente em diferentes
partes do mundo. Para o que nos interessa aqui, entretanto, as con-
quistas sociais adquiridas logo depois da 2ª guerra mundial pelas
classes dos trabalhadores e dos produtores, começaram a ser paula-
tinamente atacadas. O sistema social dominado pelo capital intensi-
ficou o ritmo da acumulação e começou um novo ciclo de expansão,
agora mais agressivo que antes.
O citado processo de liberalização, de quebra de barreiras cam-
biais e tarifárias nacionais e de intensificação dos fluxos de capitais,
matérias-primas, mercadorias e investimentos em nível internacio-
nal pode ser chamado de globalização2. Em nível nacional, os países

1 Podemos entender o fordismo como “a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho
consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela
produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do
controle de tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção em série fordista;
pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre ela-
boração e execução no processo de trabalho; pela existência de unidades fabris concentradas
e verticalizadas e pela constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo
fabril, entre outras dimensões” (Antunes, 2005, p. 25).
2 O debate sobre o significado da globalização é bastante controverso. As controvérsias se lo-
calizam em vários pontos: na origem e duração histórica da globalização (em até que ponto
é um fenômeno recente); em que medida a globalização é ou não uma construção ideológica
utilizada para controlar os cidadãos e justificar as mudanças no regime de acumulação do capi-
talismo neoliberal transnacional; em que sentido é um fenômeno positivo e/ou negativo; se se
trata de um sinônimo eufêmico para o imperialismo em sua nova configuração, etc. A idéia que
utilizamos para globalização é a mais fortemente utilizada pelos integrantes do FSM: corres-
ponde a um momento da interligação internacional, ou global para ser mais específico, onde a
humanidade está cada vez mais interdependente, e onde o poder das empresas transnacionais
e organismos multilaterais (muitas vezes utilizados em seu nome) se exerce de forma cada vez
mais universal. As trocas, não apenas comerciais, mas também simbólicas e/ou culturais, entre
os países e entre os povos não gerariam apenas dominação de uns sobre outros. Entretanto,
este último aspecto é o dominante e também o principal impulsionador do processo de glo-
balização. As decisões que interferem nas vidas dos mais diferentes cidadãos espalhados pelo
mundo passam a depender cada vez mais de acordos e negociações internacionais, que estão
alheios ao controle desses mesmos cidadãos.
Maurício Bernardino Gonçalves 109

viram a influência do Estado nacional “diminuir”3 face à interligação


da economia mundial e, seguindo a tendência iniciada na década de
1980, realizaram reformas institucionais de Estado (onde o papel
deste em vários setores invariavelmente foi, ora eliminado, ora re-
configurado a um conteúdo meramente “regulador”) para justificar
a inserção em um mercado competitivo global.
Essas transformações se deram especialmente através de privati-
zações de empresas e serviços públicos antes considerados estraté-
gicos; ajustes fiscais; redução de investimentos sociais, em especial
nas áreas de saúde, previdência social e educação; mudança no pa-
drão de emprego, com a constante diminuição do emprego formal
e a sub-contratação de trabalhadores ou sua contratação através de
empresas terceirizadas; ataque aos sindicatos e desmantelamento da
organização dos trabalhadores; diminuição cada vez mais acentuada
da iniciativa pública em detrimento à privada, entre outras. Todos
esses processos combinados internacional e nacionalmente, e vistos
de um ponto de vista geral, são conhecidos como “globalização ne-
oliberal”.
O segundo fator foi a queda do muro de Berlim em 1989, e o
conseqüente desmantelamento da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) em 1991. O fim dos sistemas sociais ditos comu-
nistas abalou fortemente as utopias de transformação social que pre-
tendiam acabar com o capitalismo no mundo. A polarização entre ca-
pitalismo e comunismo, que marcou grande parte do século XX, pas-
sou a ser vista como uma dicotomia atrasada e antiquada, posto que o
capitalismo tinha demonstrado sua superioridade. No embalo desses
acontecimentos surgiu o discurso do ‘fim da história’, e o que mais

3 Isto não pode ser concebido em abstrato. Se é verdade que os países ficaram mais vulnerá-
veis aos acontecimentos sócio-econômicos ocorridos em outros países, alguns deles ficaram
mais do que outros. E, ainda, o poder de Estado de alguns deles não chegou a diminuir, pelo
contrário. Por outro lado, o processo de interdependência fez aparecer de forma mais clara as
relações existentes entre muitas das empresas transnacionais, os organismos multilaterais e os
aparelhos de Estado.
110 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

tarde o FSM iria chamar de “pensamento único”. Ignacio Ramonet,


editor do jornal francês Le Monde Diplomatique, e que teve gran-
de importância para o pontapé inicial do FSM escreveu em 1995:

O que é o pensamento único? A tradução em termos


ideológicos com pretensão universal dos interesses de um
conjunto de forças econômicas, em particular aquelas do
capital internacional. [...]. O primeiro princípio do pen-
samento único é tão forte que um marxista distraído não
o renegaria: o econômico se impõe sobre o político (...)
Em nome do “realismo” e do “pragmatismo” - que Alan
Minc formula da seguinte maneira: “O capitalismo não
pode entrar em colapso, é o estado natural da sociedade.
A democracia não é o estado natural da sociedade. O
mercado, sim” (Cambio 16, 05/12/1994) -, a econo-
mia é colocada no lugar de comando (...) Este catecismo
é constantemente repetido em todas as mídias, por quase
todos os políticos, tanto de direita como de esquerda [...]
Isso lhe confere uma tal força de intimidação que ele asfi-
xia toda tentativa de reflexão livre e torna muito difícil a
resistência contra esse novo obscurantismo [...] (Correa
Leite, 2003, p. 46).

Esse processo também se materializou com grandes mudanças


no mundo do trabalho. Essas mudanças trouxeram enormes conse-
qüências, tanto práticas como teóricas. O modelo de organização do
trabalho baseado no fordismo-taylorismo passou (e vem passando)
por um processo de considerável modificação. Elas poderiam ser re-
sumidas assim:

Novos processos de trabalho emergem, onde o cronômetro


e a produção em série e de massa são “substituídos” pela
flexibilização da produção, pela “especialização flexível”,
por novos padrões de busca de produtividade, por novas
formas de adequação da produção à lógica do mercado
(Antunes, 2005, p. 24).
Maurício Bernardino Gonçalves 111

Essas transformações (que podemos chamar de “acumulação flexí-


vel” e/ou “reestruturação produtiva do capital”) marcariam o “declínio
do fordismo”, mas não somente. Trariam uma tendência cada vez maior
ao desaparecimento do operário-trabalhador coletivo de massa, da
concentração e (mesmo da existência) da classe trabalhadora, e ainda,
de uma perda progressiva na importância da categoria ‘trabalho’ como
fator importante de organização e explicação da vida social. Estaríamos
nos alvores de uma sociedade pós-industrial, pós- capitalista.
Por outro lado, dado o grau crescente de fragmentação, hete-
rogeneidade e complexidade (trabalho terceirizado, precarizado,
por tempo determinado, desempregados, etc) dos proletários e
trabalhadores assalariados em geral4, e o concomitante desenvol-
vimento de vários movimentos sociais (negros, mulheres, LGBT5,
ecológico, etc), a teoria social passou a considerar cada vez menos
as mudanças sociais com base na categoria classe, tão cara ao século
XX. Veio à tona a luta pelo reconhecimento das várias e diferen-
tes identidades. Ainda que grandes vertentes da teoria social não
tenham abandonado a utilização das categorias “classe social” e “tra-
balho” no entendimento da estruturação da moderna sociabilidade
contemporânea, essas passaram a receber estatuto metodológico e
explicativo “semelhante” às demais categorias relacionadas às dife-
rentes identidades.

A outra variante crítica que nega o caráter capitalista


da sociedade contemporânea defende, em grande parte
de seus formuladores, a recusa do papel central do tra-
balho, tanto na sua dimensão abstrata, que cria valores
de troca- pois estes já não seriam mais decisivos hoje-

4 Utilizamos aqui a distinção entre proletários e assalariados. Ainda que todos os proletários
sejam assalariados, nem todos os assalariados são proletários. Esses, ainda que tenham sido
expropriados de tudo e só possuam como única fonte de sobrevivência a necessidade de vender a
sua força de trabalho, característica que define fundamentalmente os assalariados, possuem ain-
da a peculiaridade de estarem localizados no núcleo da “produção material da riqueza social”.
5 LGBT: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros.
112 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

quanto na negação do papel que o trabalho concreto tem


na estruturação de um mundo emancipado e em uma
vida cheia de sentido. Quer pela sua qualificação como
sociedade de serviços, pós-industrial e pós-capitalista,
quer pela vigência de uma lógica institucional tripartite,
vivenciada pela ação pactuada entre o capital, os tra-
balhadores e o Estado, essa sociedade contemporânea,
menos mercantil e mais contratualista, não mais seria
regida centralmente pela lógica do capital, mas pela bus-
ca da alteridade dos sujeitos sociais, pela vigência de rela-
ções de civilidade fundadas na cidadania, pela expansão
crescente de ‘zonas de não-mercadorias’, ou ainda pela
disputa dos fundos públicos (Idem, p. 86).

Seria um exercício bastante estreito reduzir os grandes e novos


problemas surgidos com a nova “forma de ser” da sociedade produ-
tora de mercadorias ao poder explicativo do arsenal heurístico das
categorias relacionadas ao trabalho. Entretanto, apesar de todas as
transformações no mundo do trabalho e em toda a sociedade global,
e ao contrário da idéia que propugna uma maior liberdade para o
trabalhador, aliada a uma maior horizontalidade e democracia nas
relações de trabalho (as positividades da expansão do “toyotismo”
ou das novas configurações do trabalho), entendemos que, além da
pertinência da centralidade da categoria “trabalho” na explicação dos
dilemas da sociabilidade contemporânea, esta é marcada pela “per-
manência e intensificação” do fenômeno social do estranhamento.
A noção de alienação/estranhamento se manifesta em todas as di-
mensões da vida humana, uma vez que “...o conceito de alienação em
Marx compreende as manifestações do “estranhamento do homem
em relação à natureza e a si mesmo”, de um lado, e as expressões desse
processo na relação entre homem-humanidade e homem e homem, de
outro” (Mèszáros, 2006, p. 21).
Ou seja, ao contrário de estar construindo um mundo onde pos-
sa desenvolver as suas plenas capacidades humanas rumo a uma
Maurício Bernardino Gonçalves 113

“vida cheia de sentido” (Antunes, 2005), um mundo emancipado, os


humanos, através de uma cada vez maior subordinação do trabalho
concreto ao trabalho abstrato, intensificam o processo de estranha-
mento. Intensificam a perda de sua “vida genérica”, do que os carac-
teriza enquanto “seres humanos”.

Precisamente por isso, na elaboração do mundo objeti-


vo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar e
efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua
via genérica operativa. Através dela a natureza apare-
ce como a sua obra e a sua efetividade (Wirklichkeit).
O objeto do trabalho é portanto a objetivação da vida
genérica do homem: quando o homem se duplica não
apenas na consciência, intelectual[mente], mas operati-
va, efetiva[mente], contemplando-se por isso, a si mesmo
num mundo criado por ele. Conseqüentemente, quando
arranca (entreisst) do homem o objeto de sua produção,
o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica,
sua efetiva objetividade genérica (wirkliche Gattungs-
gegenstandlichkeit) e transforma a sua vantagem com
relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu
corpo inorgânico, a natureza (Marx, 2004, p. 85).

Dado que o estranhamento inverte a relação sujeito-objeto


(transformando os homens em objetos de um mundo que aparente-
mente não controlam e os oprime), entendemos que qualquer pro-
jeto emancipatório deve tratar da questão do estranhamento social.
As categorias e o mundo do trabalho tem um papel primordial nes-
sa questão, ainda que não esgotem nem resolvam todas as questões
relacionadas às lutas emancipatórias da humanidade.
Ao lado disso, do ponto de vista simbólico, o trabalho ainda
ocupa um lugar muito importante na vida cotidiana das pessoas.
Em entrevistas com camelôs do estado de São Paulo, Henrique
Organista pôde verificar como a associação com a idéia do trabalho
114 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

tinha força na definição que os próprios camelôs faziam de si como


‘agentes sociais moralmente aceitáveis’. Em um relato, um deles di-
zia: “...quando o jornal associa a gente com bandido, eu, que acho
que lá tem pessoas inteligentes, fico me perguntando para onde foi
a inteligência deles, afinal bandido não trabalha”. Organista (2006,
p. 20) conclui:

Portanto, apesar das considerações acerca das mutações


do mundo do trabalho que apontam para o fim da centra-
lidade do mesmo e para um novo paradigma da sociedade
do lazer e do tempo-livre, verificar-se-á que essas transfor-
mações não estão levando a uma produção simbólica que
referende, no mundo cotidiano, a idéia de que estaríamos
vivendo num mundo mais livre das amarras do trabalho.

O “trabalho” é aqui considerado como condição e dimensão insu-


perável do próprio processo dos humanos se fazerem enquanto hu-
manidade. Discutir e propugnar propostas de “outro mundo possível”
devem necessariamente levar em conta as relações e o mundo do tra-
balho. Como entender a sociabilidade contemporânea e qual o lugar
que as relações e o mundo do trabalho desempenham em seu projeto
de mudança? Como o FSM se relaciona com essas questões?
Uma grande quantidade de teóricos coloca o FSM como o her-
deiro, ou ainda, como o resultado mais elaborado de uma nova tra-
dição teórico-política que remonta ao último quarto do século XX e
início do século XXI. Essa recente tradição carrega novas formas de
articulação e da própria realização da política. A explicação do cará-
ter de novidade está fundamentalmente associada à idéia de que há
uma mudança qualitativa nas formas do exercício da política. Mais:
que a forma de atuação dos novos movimentos sociais, fenômeno do
qual o FSM é o mais representativo, introduz a constatação que vi-
vemos em uma realidade social fortemente diferente da experimen-
tada nos dois últimos séculos.
Maurício Bernardino Gonçalves 115
A primeira questão ao se lidar com os novos movimentos
sociais é a seguinte: sob que aspectos são eles novos? Em
nossa tentativa de resposta, relacionaremos este caráter
de mudança, acima de tudo, com a forma pela qual as
novas lutas ocasionaram uma crise de um paradigma
tradicional das Ciências Sociais, referente ao tipo de uni-
dade que caracteriza os agentes sociais e as formas assu-
midas pelo conflito entre eles (Laclau, 1986, p. 41).

É necessário o aprofundamento de sua própria identidade. O


que é o FSM? Antes: o que ele afirma ser? Qual a identidade que se
auto-atribui? Para isso colocamos abaixo a resposta retirada de seu
próprio sítio na internet6:
O FSM é um espaço de debate democrático de idéias,
aprofundamento da reflexão, formulação de propostas,
troca de experiências e articulação de movimentos so-
ciais, redes, ongs e outras organizações da sociedade civil
que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mun-
do pelo capital e por qualquer forma de imperialismo.
Após o primeiro encontro mundial, realizado em 2001,
se configurou como um processo mundial permanente de
busca e construção de alternativas às políticas neolibe-
rais. Esta definição está na Carta de Princípios, princi-
pal documento do FSM.
O Fórum Social Mundial se caracteriza também pela
pluralidade e pela diversidade, tendo um caráter não
confessional, não governamental e não partidário. Ele
se propõe a facilitar a articulação, de forma descentra-
lizada e em rede, de entidades e movimentos engajados
em ações concretas, do nível local ao internacional, pela
construção de um outro mundo, mas não pretende ser
uma instância representativa da sociedade civil mun-
dial. O Fórum Social Mundial não é uma entidade nem
uma organização.

6 Disponível em: www.forumsocialmundial.org.br. Grifos nossos.


116 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Não podemos considerá-lo apenas como um evento. Ele deve


ser entendido em sentido amplo, não se resumindo aos dias em que
ocorre nos meses de Janeiro. Deve ser entendido como um processo
que se estende para além dos dias dos eventos. Não é também ape-
nas o somatório dos Fóruns ocorridos, quer esses sejam mundiais,
nacionais, regionais, sub-regionais ou temáticos.
O FSM é o conjunto de fóruns – mundiais, temáticos,
regionais, sub-regionais, nacionais, municipais e locais –
que se organizam de acordo com a Carta de Princípios
(...) devem também ser incluídas no FSM as reuniões,
nacionais ou internacionais, de movimentos ou organi-
zações com vista à preparação dos fóruns acima citados
(...) deve considerar-se como parte do processo do FSM
as ações regionais ou globais levadas a cabo pelas redes
de movimentos e organizações que integram o FSM, des-
de que essas iniciativas respeitem a Carta de Princípios
(Sousa Santos, 2004, p. 28-29. Grifos nossos).

Como foi afirmado acima, não se trata de uma organização ou


entidade. Não há documentos ou manifestos que são aprovados e
seguidos por quem dele participam.
Não cabe ao FSM promover campanhas ou ações e nem
produzir declarações ou documentos finais em seus even-
tos. O FSM é um espaço onde organizações, movimentos
e entidades da sociedade civil se encontram para debater
idéias e propostas e não tem caráter deliberativo. Nesse
sentido, o FSM não se constitui em uma instância de po-
der, a ser disputado pelos participantes de seus encontros.
Ninguém está autorizado a exprimir, em nome do
Fórum, posições que pretenderiam ser de todos(as) os(as)
seus (suas) participantes. Entretanto, o FSM possibilita,
sim, aos participantes que se articulem e que proponham
ações concretas ou produzam documentos referentes às
suas posições. (Idem, p. 28-29. Grifos nossos).
Maurício Bernardino Gonçalves 117

Boaventura de Sousa Santos7, intelectual e ativista do FSM, pro-


cura demonstrar que ele representa não apenas um novo movimento
político global em luta pela emancipação8 que teria surgido tempo-
ralmente no século XXI após os colapsos dos “velhos” movimentos
sociais do século XX. A novidade é mais profunda e diz respeito à
própria discussão sobre as possibilidades emancipatórias da moder-
nidade ocidental que, segundo ele, estariam calcadas sobre um proje-
to de racionalidade que acabou por legitimar o que criticava.
Ou seja, o FSM representaria não apenas um novo movimento
político, mas também um novo movimento teórico-epistemológico,
que transcenderia as limitações da racionalidade hegemônica da
modernidade, positiva e instrumental, que acabou colonizando e
abafando outras racionalidades e outras possibilidades de conheci-
mento e intervenção do real. Para ele, a própria modernidade, sua
determinada racionalidade e suas promessas emancipatórias, perde-
ram a vigência. Tratar-se-ia de renovar a teoria crítica e de reinven-
tar a emancipação social.

Ao contrário de Habermas (1990), para quem a moder-


nidade ocidental é ainda um projecto incompleto, tenho
vindo a argumentar que o nosso tempo é testemunha da
crise final da hegemonia do paradigma sócio-cultural da
modernidade ocidental e que, portanto, é um tempo de
transição paradigmática (Sousa Santos, 2008, p. 7).

7 Boaventura de Sousa Santos deve ser entendido como o intelectual “típico” do FSM. A idéia
de tipicidade evocada aqui leva em conta que é nele onde se localizam as elaborações mais pro-
fundas e desenvolvidas sobre o FSM, ou seja, é nele onde a realidade se manifesta e se encarna
de forma mais explicitada. Ainda que existam outros intelectuais importantes em seu seio,
nenhum deles conseguiu expressar de forma tão densa e complexa o fenômeno do FSM. Em
suma, Sousa Santos enquanto teórico e homem de ação evidencia a realidade do fenômeno do
FSM ou, em outras palavras, expressa no nível da teoria a realidade social objetiva que produ-
ziu e vem reproduzindo o FSM.
8 Utilizamos aqui a distinção entre “emancipação política” e “emancipação humana”. Enquanto a
primeira integra, inclui e garante aos seres humanos uma série de conquistas sociais (direitos
civis, políticos e sociais) imprescindíveis para a qualificação dos homens enquanto cidadãos
modernos plenos (mas sem alterar o próprio ordenamento fundamental da sociedade, ou seja,
a divisão social do trabalho e a existência das classes sociais), a segunda trabalha na perspectiva
de proporcionar a desagregação das condições sociais que mantêm as promessas da emancipa-
ção política sempre irrealizáveis, ou dito de outra forma, a superação da ordem social atual. As
categorias ligadas ao “trabalho” são fundamentais para a compreensão desta distinção.
118 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Ainda segundo Sousa Santos, a racionalidade que acabou por se


tornar hegemônica no ocidente, instrumental e regida pela lógica da
eficiência, foi a base sobre a qual todas as teorias críticas modernas
se estabeleceram. Essa racionalidade não considerou, por um lado,
que “a realidade não pode ser reduzida ao que existe”, uma vez que
desconsidera a existência de determinadas experiências sociais que
não são reconhecidas ou legitimadas pelo cânone dominante. Esse
movimento acabou por produzir e continua produzindo “formas so-
ciais de inexistência”. Por outro lado, também desconsidera as possi-
bilidades do futuro inscritas no presente. A referência aqui vem do
conceito do “ainda não” em Ernst Bloch.
O FSM seria o movimento político, social e cultural que se pro-
põe a estabelecer uma nova práxis, baseada em uma nova forma de
apreender o real, forma essa estabelecida para além do horizonte
moderno e de seus paradigmas de conhecimento. Em suma, ainda
que as promessas e os valores emancipatórias modernos não devam
ser descartados, eles exigem uma própria superação dos termos co-
locados pela modernidade para a sua concretização. O FSM repre-
sentaria essa tentativa de superação.

Embora se apresente enquanto agente da transformação


social, o FSM rejeita a noção de um sujeito histórico e
não atribui prioridade a qualquer actor social específi-
co nesse processo de transformação social. Não assume
uma ideologia claramente definida, tanto naquilo que
rejeita como naquilo que defende. Considerando que o
FSM se auto-concebe enquanto luta contra a globaliza-
ção neoliberal, será essa uma luta contra uma forma de
capitalismo ou contra o capitalismo em geral? Tendo em
conta que o FSM se encara como sendo uma luta contra
a discriminação, a exclusão e a opressão, será que o su-
cesso dessa luta pressupõe um horizonte pós-capitalista,
socialista e anarquista, ou, pelo contrário, pressupõe que
Maurício Bernardino Gonçalves 119
nenhum horizonte seja especificamente definido? (...) As
lutas sociais que encontram expressão no FSM não se
ajustam adequadamente a nenhuma das vias de trans-
formação social sancionadas pela modernidade ociden-
tal: reforma e revolução (Sousa Santos, 2005, p. 6).

Esgotamento do welfare-state e lutas sociais


contra o taylor-fordismo

Quando Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido


Comunista em 1848, o capitalismo passava por um marco histó-
rico em seu desenvolvimento. A revolução social se espalhava pela
Europa e pela primeira vez as classes sociais que cerca de meio
século antes haviam, juntas, proporcionado a vitória da revolução
francesa, mediam forças umas contra as outras. Em especial, 1848
marca o fim da burguesia enquanto uma classe social progressiva e
com interesses na emancipação geral da humanidade. O proletaria-
do percebeu-se enquanto antagonista estrutural da classe burguesa
e do capital e que para libertar-se deveria lutar independente e reso-
lutamente contra ela.
Em outras palavras, após 1848 dá-se o que Lukács viria a chamar
de “decadência ideológica” da burguesia, indicando que essa classe,
que havia capitaneado o processo de dissolução do antigo regime
e do mundo da feudalidade, desligava-se definitivamente do mo-
vimento histórico-político que proporcionou a eclosão do mundo
moderno. Transformava-se em uma classe reacionária do ponto de
vista do desenvolvimento histórico. Estava interessada na manuten-
ção do mundo tal qual ele se apresentava naquele momento e deixa-
va para trás as bandeiras que anteriormente empunhara lado a lado
com as demais classes do Terceiro Estado.
120 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

As conseqüências teóricas não poderiam deixar de serem senti-


das. Enquanto parte do movimento histórico-político revolucioná-
rio, a burguesia tinha interesse em descobrir a verdade, em demons-
trar racionalmente que as instituições, tradições e visão de mundo
do antigo regime impediam o desenvolvimento do gênero humano e
serviam, na verdade, como forma de manutenção e justificativa ide-
ológica desse mesmo mundo. A partir de então, a burguesia passa a
possuir uma visão de mundo cada vez mais conservadora e, no limite,
reacionária, fazendo com que as suas próprias elaborações teóricas e
racionais (legadas pela cultura da ilustração9), revistam-se, de manei-
ra sempre crescente, em formulações ideológicas e vulgares. Não é à
toa que, nesse período, a própria economia política clássica, “maior e
mais típica ciência nova da sociedade burguesa” (Lukács apud Netto,
2006, p. 18), entra em crise e dá lugar à economia vulgar.

Ao tornar-se uma classe conservadora, interessada na


perpetuação e na justificação teórica do existente, a bur-
guesia estreita cada vez mais a margem para uma apre-
ensão objetiva e global da realidade; a Razão é encarada
com um ceticismo cada vez maior, renegada como ins-
trumento do conhecimento ou limitada a esferas progres-
sivamente menores ou menos significativas da realidade.

9 Segundo Coutinho (1972), a burguesia abandonou os três elementos filosóficos fundamentais


criados durante o período de ascensão histórica do gênero humano que vem desde o Renasci-
mento e passa pelo Iluminismo: o historicismo concreto, o humanismo e a razão dialética. Hegel
é concebido por ele como o filósofo da grande síntese entre esses três elementos. O auge no plano
filosófico de toda essa tradição. É em sua fase decadente que a burguesia irá abandonar essas con-
quistas e os seus edifícios filosóficos posteriores se chocarão e procurarão desacreditar o sistema
do filósofo alemão sempre em um sentido empobrecedor e vulgarizador. “O mérito essencial de
Hegel reside nessa sua capacidade de sintetizar e elevar a um nível superior todos os momentos
progressistas do pensamento burguês revolucionário. Podemos resumi-los, esquematicamente,
em três núcleos: o humanismo, a teoria de que o homem é um produto de sua própria atividade,
de sua história coletiva; o historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter ontologicamente
histórico da realidade, com a conseqüente defesa do progresso e do melhoramento da espécie
humana; e, finalmente, a Razão dialética, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade
objetiva imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma de unidade dos
contrários), e aquele das categorias capazes de apreender subjetivamente essa racionalidade obje-
tiva, categorias que englobam, superando, as provenientes do <<saber imediato>> (intuição) e
do <<entendimento>> (intelecto analítico)” (Coutiho, 1972, p. 14-15).
Maurício Bernardino Gonçalves 121
Referindo-se à revolução européia de 1848, na qual a
burguesia traiu definitivamente a causa do progresso so-
cial, Marx indica as raízes reais dessa ruptura no seio
da evolução cultural burguesa: “A burguesia tinha uma
exata noção do fato de que todas as armas que forjara
contra o feudalismo voltavam seu gume contra ela, que
todos os meios de cultura que criara rebelevam-se contra
sua própria civilização, que os deuses que inventara a
tinham abandonado10”. Entre o que a burguesia agora
apressava-se a abandonar estava, talvez em primeiro lu-
gar, a categoria da Razão (Coutinho, 1972, p. 08-09).

Carlos Nelson Coutinho argumenta com base nas trilhas deixadas


por Lukács, em especial nas existentes em seu livro “A Destruição da
Razão”, que a cultura burguesa pós-decadência ideológica divide-se
em duas grandes vertentes: uma irracional e outra racional-formal.
No limite, as duas vertentes são parte de uma mesma totalidade his-
tórica, a do período aberto pela decadência ideológica, que as inca-
pacita de apreender a essência do mundo. Em suma, ambas capitu-
lam diante da “positividade fetichizada do mundo contemporâneo”
(Idem, p. 03). Os argumentos de Coutinho são muitos e variados, e
não nos cabe aqui descrevê-los. O que nos interessa mostrar é que a
riqueza de sua análise reside justamente em mostrar que os diferen-
tes períodos históricos de desenvolvimento do ser social produzem
e têm como articulações determinadas, certas elaborações no plano
da teoria. Que essas elaborações teóricas não são casuais, não caem
do céu, mas respondem e influenciam o desenvolvimento histórico
desse tipo de ser em um dado período. É evidente que essa maneira
de lidar com a questão da relação entre períodos históricos deter-
minados e elaborações teóricas correspondentes, estão formuladas
em um “nível mais geral do processo histórico-universal em seu
conjunto” (Ibidem, p. 48). Essa periodização não é suficiente para a
análise de uma corrente teórica determinada, por exemplo, a corren-

10 Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, In.: Marx-Engels, Obras Escolhidas, ed. Bra-
sileira, Rio de Janeiro, 1956, vol. 1, p. 261.
122 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

te teórica da “pós-modernidade de oposição (ou contestação)”11, na


qual o FSM faz parte, com todas as suas singularidades e sua forma
específica de articulação com seu tempo. Só uma análise concreta
pode realizar essa tarefa. Ainda assim, mesmo que no nível abstrato,
a citação de Coutinho abaixo “contribui para uma compreensão dia-
lética das contradições filosóficas da atualidade” (Ibidem, p. 48).

Tanto o irracionalismo quanto o “racionalismo” forma-


lista (do qual o estruturalismo é apenas uma manifes-
tação) são expressões necessárias do pensamento ideoló-
gico da burguesia contemporânea, incapaz de aceitar a
Razão dialética, a dimensão histórica da objetividade, a
riqueza humanista da práxis. O predomínio de uma ou
outra posição – como tentaremos indicar – depende de
causas históricas. Quando atravessa momentos de crise,
a burguesia acentua ideologicamente o momento irracio-
nalista, subjetivista; quando enfrenta períodos de estabi-
lidade, de “segurança”, prestigia as orientações fundadas
num “racionalismo” formal (Ibidem, p. 03).

Os anos 1960 (1967-1975)12 marcam exatamente a transição de

11 Utilizamos aqui a distinção efetuada por Sousa Santos, entre: uma “pós-modernidade de cele-
bração”, que com uma posição política de direita, tem uma concepção epistemológica tendente
a apagar ou realizar uma ruptura completa e total com os pressupostos categoriais da moder-
nidade, uma vez que entende que nenhum deles pode dar conta da explicação do mundo atual,
completamente fluido e efêmero; e, uma “pós-modernidade de oposição (ou contestação)”, que
possuindo uma posição política de esquerda, critica a globalização hegemônica neoliberal e
prega a necessidade de constituição de uma outra racionalidade, uma vez que a razão moderna,
ainda quando são levadas em conta as de tendências críticas, acabaram por corromper os ideais
de emancipação que as animavam.
12 As manifestações de 1968 em todo o mundo são pensadas como erupções de um período his-
tórico [compreendido de 1967 a 1975 conforme sugestão de Tariq Ali em seu livro “O poder
das barricadas” lançado no Brasil pela Boitempo Editorial], de crise estrutural do capital e de
uma luta pela conquista da hegemonia do trabalho sobre o capital. No final desse período, o
capital consegue, através da reestruturação produtiva e do neoliberalismo, introduzir elemen-
tos sociais e ideológicos que re-atualizam e re-configuram sua hegemonia. Na verdade, foi a
derrota do “movimento social do trabalho” em sua luta pelo “controle social da produção” (luta
que foi travada na França, por exemplo, com a junção das mobilizações dos trabalhadores e
suas comissões de fábrica aos estudantes e outros movimentos reivindicatórios específicos)
que fez com que a ofensiva neoliberal conseguisse se estabelecer e retirasse cada vez mais as
conquistas sociais do período imediatamente anterior (conhecido como Estado de bem-estar
Maurício Bernardino Gonçalves 123

uma forma e etapa de acumulação do capital à outra. A transição


de um capitalismo “manipulado” para um “desregulado”. A ascensão
paulatina e persistente do neoliberalismo. Mas para que essa ascen-
são acontecesse o movimento social dos trabalhadores e dos diver-
sos agrupamentos sociais específicos (“novos” movimentos sociais),
teve que ser, no geral, “derrotado”. Ao contrário do que cinicamente
propaga Nicolas Sarkozy, atual presidente da França, por ocasião
dos 40 anos do maio francês de 1968, em verdade suas declarações
se dão em clima de assombro e de medo pelas diversas rebeliões de
jovens imigrantes que conseguiram certa simpatia de outras cama-
das sociais francesas, em especial de setores organizados das classes
trabalhadoras, não foi o movimento revolucionário desses anos que
proporcionou e fez emergir o domínio da globalização neoliberal
nas décadas seguintes. Para além das trajetórias individuais de al-
guns dos seus líderes, que depois viriam a renegar e maldizer o seu
passado como sendo marcado por loucuras juvenis, foi exatamente a
sua “derrota” que abriu o caminho para a devastação neoliberal.

Os anos 1960 (1967-1975) foram um período de luta contra o


taylor-fordismo. Este deve ser entendido como uma forma de vida e
como modo de administração de toda a ordem social, não se restrin-
gindo ao espaço fabril. “O taylor-fordismo mais do que um conjunto
de técnicas de gestão e de produção, é um modo de vida: o ameri-
can way of life. Mais do que propaganda ele é condição do domínio
do capital, uma ideologia constituidora do real” (Dias, 1996, p. 13).
Essa luta se deu nas mais variadas dimensões: negros em busca dos
direitos civis nos EUA; o movimento contra a guerra do Vietnã em
diversos países, tendo este sido pacifista ou não; a liberação sexu-

social). Depois dessa derrota, a articulação do movimento dos trabalhadores com os “novos”
movimentos sociais não se estabeleceu de maneira robusta, ocorrendo apenas marginal, pontu-
al e excepcionalmente. Na verdade, a exclusão dos movimentos estruturados no trabalho, tanto
das questões e preocupações teóricas como das práticas, só fez aumentar.
124 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

al, em especial das mulheres, e a crítica radical ao padrão burguês


de vida: casamento, família, tradição, projeto de vida; o questiona-
mento da estrutura de educação universitária e sua formação técnica
para a alimentação de mão de obra para as empresas verticalizadas
do governo ou da iniciativa privada; e, não menos importante, na
verdade, decisivo, o movimento dos trabalhadores pelo controle so-
cial da produção, fundamentalmente, nos principais países do ca-
pitalismo europeu. Todas essas dimensões colocavam em cheque a
“hegemonia” das classes dominantes e do taylor-fordismo em geral.
Para romper com a ordem social taylor-fordista, o movimento
operário e os demais movimentos sociais em luta, tinham um gran-
de obstáculo à frente: as próprias organizações políticas criadas no
passado e que deveriam representá-las. Viram-se na circunstância
de que para vencer, teriam que derrotar não apenas os representan-
tes oficias do capital, mas também os partidos e sindicatos social-
democratas, integrados à ordem social do pacto keynesiano, por
um lado, e os Partidos Comunistas, subordinados mais ou menos à
política de Moscou, por outro. Não foi por acaso que em 1968, por
exemplo, os tanques soviéticos invadiram a Tchecoslováquia e acaba-
ram com a conhecida “Primavera de Praga”, tentativa de construção
de um “socialismo democrático”, uma via alternativa tanto ao “capi-
talismo manipulado” quanto ao “socialismo burocrático”. Em suma,
as possíveis alternativas socialistas que existiam, estavam necessa-
riamente espremidas entre os dois blocos existentes à época. Pois o
bloco dito comunista, era parte integrante e integrada da totalidade
mundial do sistema do capital e não se propunha a romper com a
política de coexistência pacífica existente desde o fim da Segunda
Guerra Mundial.
Uma alternativa independente desses dois blocos integrados, a
corrente política desenvolvida por Leon Trotski13 após sua expulsão

13 Sousa Santos percebe que Trotski tentou contrapor-se aos desvios da burocracia russa e que
tentou resgatar o pensamento crítico de esquerda, em crise durante o século XX, mas tem para
Maurício Bernardino Gonçalves 125

da Rússia, estava em sua maioria estilhaçada e desorganizada em vá-


rios pequenos grupos (por várias razões, não podemos elucidar esse
movimento nessas linhas), além de vários deles estarem também
realizando uma ação periférica e, no limite, integrada aos Partidos
Comunistas hegemonizados por Moscou. Não podendo superar
essas contradições e incapaz, tempestivamente, de improvisar uma
direção política consistente para os momentos mais quentes daque-
les combates, o movimento social do trabalho pelo controle da pro-
dução e os “novos” movimentos sociais foram, em geral, e de maneira
complexa e sinuosa, derrotados. O fim dos anos 1960 (1967-1975)
presenciou a transição para uma etapa contra-revolucionária mun-
dial, em que a ascensão do neoliberalismo e a ofensiva do capital são
as suas expressões mais evidentes.
Uma outra manifestação dessa derrota, essa de porte decisivo e
com implicações políticas e teóricas fundamentais, deu-se na cres-
cente desconexão14 entre as dimensões da emancipação política e

com ele a mesma perspectiva que carrega para todo o pensamento de esquerda da modernida-
de, em especial para o marxismo. “Este tipo de crise encontra-se bem caracterizado nos escritos
de Trotski no exílio. Trotski apercebeu-se rapidamente da gravidade e ímpeto dos desvios de
Estaline à revolução [...] Mas nem por um momento duvidou que a história seguiria a revo-
lução do mesmo modo que os verdadeiros revolucionários seguiam a história” (Sousa Santos,
2008, p. 02). Neste caso, Trotski serve para mostrar que mesmo as alternativas críticas que
a “velha” esquerda tentou forjar, não eram críticas o suficiente, pois ainda estavam animadas
pelas matrizes de pensamento legadas pela razão moderna (a ideologia do progresso, neste
caso, é um belo exemplo). O FSM é, para ele, exatamente a possibilidade que o pensamento de
esquerda do século XXI possui para superar o paradigma moderno de racionalidade e recupe-
rar a dimensão utópica e crítica perdida.
14 Alguns “novos” movimentos sociais da década de 1960 estavam encontrando a chave para
essa conexão. O debate sobre a conexão entre essas dimensões, ou ainda, a luta específica dos
diversos movimentos sociais tomados em sua particularidade, mas necessariamente articula-
dos a uma luta universal, é um tema muito complexo. O exemplo da luta de Malcolm X e do
movimento negro norte-americano sob sua influência é emblemático. Em suma, o resultado
da síntese entre particularidade e universalidade, foi encontrada por ele e sua frase a expressa:
“Não há capitalismo, sem racismo”. Abaixo um diálogo entre ele e Tariq Ali, que por outras vias
serve de ilustração para o argumento.
Malcolm X: Martin Luther King faz o jogo deles – disse – A Klan lincha negros, aterroriza e mata
garotos brancos que vão para o sul registrar eleitores. A polícia faz parte do sistema da Klan.
King diz ao povo para dar a outra face. Não dá para lidar com brutamontes desse jeito...Sei que
é por isso que o establishment liberal branco adora King e me condena. Tenho de dizer a verda-
de. Digo a eles que o sistema é corrupto e baseado na opressão dos negros nos Estados Unidos
e no resto do mundo. Os negros são um barril de pólvora. King quer molhar o barril com água.
Acho que temos de acender o pavio. É o único jeito de ensiná-los a nos respeitar.
126 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

da emancipação humana. É evidente que formas de manifestação


para a citada desconexão existem antes e mesmo durante a década
de 1960. Entretanto, após esse período a desconexão se transforma
em regra geral e passa a caracterizar a época posterior (neoliberal).
Essa característica marca, no fundamental, todo o desenvolvimento
das lutas sociais pós-anos 1960 (1967-1975) e influencia, de manei-
ra não secundária, o próprio desenvolvimento do FSM.

Os impactos teórico-práticos da derrota dos anos


1960 (1967-1975) e a emersão e consolidação de
um novo padrão de lutas sociais

A derrota dos movimentos dos anos 1960 (1967-1975)


inaugurou uma nova fase da hegemonia do capital no mundo.
Denominamo-la de neoliberalismo. Ou seja, o FSM só pode
ser compreendido quando inserido nesse contexto. Situando a
discussão em um plano mais geral e abstrato, a referida derro-
ta inaugura paulatina e progressivamente na cultura do fim do
século, o afastamento e desqualificação das categorias relacio-
nadas ao trabalho (dialética, totalidade, classes sociais, revolu-
ção, partidos políticos, trabalho abstrato e concreto, alienação,
fetichismo, etc). Houve, ainda, um claro deslocamento e prio-

[...]
Tariq Ali: Às 2 horas da madrugada percebi que estava infringindo o regulamento proctorial e expli-
quei a Malcolm os porquês e portantos. Ele ficou espantadíssimo e riu. Enquanto me preparava
para ir embora, apertamos as mãos e declarei ter esperanças de que logo voltaríamos a nos
encontrar. Ele sorriu e, sem nenhum sinal de emoção, disse:
- Acho que não. Ano que vem, mais ou menos nessa época, vou estar morto.
Parei de repente, fitando-o incrédulo. Sentamo-nos de novo. Ele explicou que, enquanto fora um
Black Muslim, tinham-no tolerado. Mas depois que rompera com a Nação do Islã, avançara
em outra direção. Percebera que a raça sozinha nunca seria critério suficiente para se obter
mudanças sociais. (Ali, 2008, p. 116. Grifos nossos). É evidente que a citação não serve para
desqualificar ou menosprezar o líder Martin Luther King e a luta dos negros pacifistas. A
exemplo de Malcolm X, ele também lutou e tombou. A ênfase está na articulação que Malcolm
X conseguiu perceber, ou seja, entre a luta específica pelos direitos civis e políticos dos negros e
a concomitante luta contra o estado social de coisas que impossibilita que esses direitos sejam
efetivados.
Maurício Bernardino Gonçalves 127

rização para o pólo do sujeito na questão do conhecimento, fa-


zendo com que a ciência fosse dominada cada vez mais por uma
perspectiva “subjetivista” e, por conseqüência, preocupações
ontológicas15 fossem desconsideradas, ora sendo consideradas
como pura metafísica, ora tratando-se de questões incognoscí-
veis, fazendo com que um epistemologismo, muitas vezes arbi-
trário, viesse à tona. Se durante o período de “segurança” e es-
tabilidade do pós-guerra, ou seja, durante a vigência ascendente
do taylor-fordismo, a “razão” formal era tida como a razão em
geral, agora, o pêndulo caminhava claramente para o pólo irra-
cionalista. Em suma, várias das conquistas teóricas do gênero
humano durante o longo período de lutas pela consolidação do
mundo moderno e liquidação do antigo regime foram todas (ou
quase) colocadas à prova. Vejamos algumas das principais com
a ajuda de Netto16 (2002, p. 94-96)17∗:

15 Não nos referimos a uma ontologia metafísica, mas sim à ontologia materialista do ser so-
cial, tal como formulada e sistematizada pelo último Lukács. A impostação ontológica mostra
que “a razão é o reflexo na consciência (“saber”) das determinações ontológicas (“objetivas” e
“universais”) da realidade (“substância absoluta”). [...] Verifica-se uma clara subordinação da
lógica (e da epistemologia) à ontologia” (Coutinho, 1972, p. 85). “a) a análise lukacsiana tem
na categoria de totalidade a sua pedra-de-toque; b) como o exige toda reflexão centrada nas
questões ontológicas, a elaboração lukacsiana ancora-se também numa categoria de substância,
só que radicalmente histórica e criativamente redimensionadora das relações entre essência e
fenômeno; c) abordando a constituição do social como um nível específico do ser, tomado este
na sua unidade (donde a diversidade dos seus constituintes), Lukács mantém sempre firme a
determinação distintiva entre natureza e sociedade; d) o ser social, para Lukács – como para
o jovem Marx –, é um ser objetivo, isto é, um ser que se objetiva; a realidade objetiva com que
se defronta e a que ele responde, precisamente através das suas objetivações, configura-se como
o complexo em movimento das determinações naturais e sociais (exatamente as objetivações
acumuladas e em processo) que envolvem e constituem o agir social teleológico; e e) a história é
o processo de produção e reprodução daquelas objetivações – e se estas, sempre, são teleologi-
camente efetivadas, o processo histórico, em si mesmo, não dispõe de finalismo” (Netto, 2002,
p. 90).
16 Os pontos usados aqui para ilustrar o questionamento e desqualificação das conquistas do
gênero humano na longa tradição progressista, que vem do renascimento até a consolidação
do mundo moderno, passando pela ilustração, são utilizadas por Netto, de maneira específica,
para mostrar os núcleos de colisão entre a herança e o legado do pensador húngaro Georg
Lukács e a cultura de seu tempo, que é ainda, no essencial, a nossa cultura. Para nós, os pontos
assinalados por ele servem perfeitamente para indicar as repercussões teóricas da emersão e
vigência da dominação neoliberal.

17 As próximas referências a Sousa Santos, presentes nas notas 19-23, são retiradas de Netto (2002).
128 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

• a determinação do estético e sua delimitação frente ao co-


nhecimento científico, nomeadam ente no quadro das ciên-
cias sociais, têm sido postas como irrelevante18;
• [...] as categorias de “aparência” e “essência”, sem as quais
não há como implementar e compreender o processo do co-
nhecimento (antropomorfizador ou não), [...] esse par cate-
gorial não desfruta de nenhum valor na cultura em tela19 –
antes, é mesmo visto como suspeito20;
• a ciência que é um “reflexo” do mundo objetivo, transforma-
se na cultura em questão, em um saber de caráter discursivo,
similar a outras discursividades – e, reduzida ao “discurso”,
além de constituir-se num estrito “jogo de linguagem”, não
pode aspirar a nenhuma “superioridade cognitiva” em face
de outros saberes e, uma vez que posta como discurso, o es-
tatuto de sua “verdade” encontra-se na “retórica”21;
• a “unidade diferenciada” que envolve sociedade e natureza,
tende a ser na cultura aqui referenciada claramente substitu-
ída por uma “identidade” – o que, no limite, conduz à tese

18 “... está precludida qualquer possibilidade de demarcações rígidas entre disciplinas ou entre
gêneros, entre ciências naturais, sociais e humanidades, entre arte e literatura, entre ciência e
ficção” (Sousa SantosSOUSA SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político
na pós-modernidade. 10ª edição, São Paulo, Cortez Editora, 1995. p. 332.
19 A cultura referida é, de maneira aproximada, a cultura hegemônica desde os últimos 25 anos
do século XX, ou seja, a cultura da era neoliberal. Podemos utilizar também a expressão “cul-
tura pós-moderna”.
20 “...o novo paradigma da ciência ‘suspeita da distinção entre aparência e essência’ (SOUSA
SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10ª edi-
ção, São Paulo, Cortez Editora, 1995, p. 331).
21 “As lutas de verdade são travadas com discurso argumentativo e a verdade é o efeito de con-
vencimento dos vários discursos de verdade em presença e em conflito. A objetividade é a
propriedade do conhecimento científico que obtém consenso no auditório relevante dos cien-
tistas” (Sousa Santos, Boaventura. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro,
Graal Editora, 1989, p.149). “[...] Produto de comunidades interpretativas [...], o conhecimen-
to emancipatório pós-moderno assume a sua artefactualidade discursiva. Para essa forma de
conhecimento, a verdade é retórica, uma pausa mítica numa batalha argumentativa contínua
e interminável travada entre vários discursos de verdade” (SOUSA SANTOS, Boaventura.
Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São
Paulo, Cortez Editora, 2000, p.96).
Maurício Bernardino Gonçalves 129

segundo a qual todas as ciências são sociais22;


• a “realidade objetiva” [...], tende a ser algo minimalista para
a cultura referida, uma vez que sua “objetividade” é reduzida
a “dimensões simbólicas”, ocorrendo uma “semiologização”
inclusive dos seus níveis materiais – a reificação do “imagi-
nário” sinaliza otimamente esse processo de desontologiza-
ção da realidade;
• quanto à categoria “trabalho”, ela vem tendo a sua centrali-
dade como constitutiva da socialidade inteiramente desloca-
da e, em casos extremos, assiste-se a um verdadeiro cancela-
mento de sua vigência “na sociedade pós-industrial”;
• enfim, no que tange à idéia da “história” como processo,
também ela é dissolvida num caleidoscópio de representa-
ções expressas em discursos que não pretendem mais que se
apresentar logicamente articulados.

Mas este se trata de um movimento amplo, geral e em um nível


elevado de abstração. Cabe inserir o FSM, de maneira específica,
no interior desse movimento para que se possa avaliá-lo de maneira
singular. O FSM é, por um lado, uma resposta à hegemonia neoli-
beral e, por outro, uma evidência de seu esgotamento. Mais uma vez,
o FSM é entendido aqui como o resultado das lutas “anti-globaliza-
ção” do fim do século XX e início do XXI (Seattle, Gênova, etc). E,
também, é evidente que esgotamento não significa morte, pois para
que isso possa acontecer, uma alternativa concreta deveria surgir em
seu lugar.
Ainda que se insira nos marcos históricos dessa cultura neolibe-
ral, o FSM deve ser entendido, de acordo com o já anteriormente
mencionado, como parte da porção crítica dessa cultura. Como fa-

22 “A distinção natureza-sociedade faz hoje pouco sentido, uma vez que a natureza é cada vez
mais a segunda natureza da sociedade. A natureza é uma relação social que se oculta atrás de
si própria...” (SOUSA SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade. 10ª edição, São Paulo, Cortez Editora, 1995, p. 274).
130 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

zendo parte da corrente pós-moderna de oposição (ou de contesta-


ção). A questão então é avaliar a natureza, o grau e a amplitude da
criticidade dessa corrente, em que Sousa Santos é o seu intelectual
mais típico.
Essa corrente, ainda que procure representar-se como o real-
mente “novo” movimento de crítica social ao mundo globalizado e
neoliberal, realiza a identificação de todos os movimentos sociais
modernos de emancipação (onde o marxismo é considerado o prin-
cipal) com os pressupostos racionais da ordem burguesa (fetichiza-
da e instrumental) que buscaram combater23.
O ataque se dirige a todo tipo de teoria que pretenda atingir a uni-
versalidade, por conseguinte, também à categoria da totalidade e, por
fim, à possibilidade de uma reconstrução global do mundo pela razão.

23 O problema aqui está na identificação realizada por praticamente todas as correntes de pen-
samento pós-moderno (e a corrente pós-moderna de contestação não é exceção) entre as ca-
tegorias de intelecto e Razão sistematizadas por Hegel. O intelecto é um momento abstrato
e necessário do processo de racionalidade e apreensão da realidade imanente do mundo. Mas
não esgota, nem engloba a Razão. O intelecto privilegia a forma. A Razão, a articulação da
forma com um conteúdo determinado. Esta rearticula e totaliza concretamente o que o in-
telecto dividiu abstratamente, e assim consegue apreender a complexidade e a totalidade do
movimento do real. Ocorre que ao igualar intelecto e Razão, a cultura pós-moderna colabora
para o processo de empobrecimento da Razão em geral. É aqui onde se origina a desqualifica-
ção de todas as tentativas emancipatórias dos movimentos sociais da modernidade, pois esses
estavam parametrizados pela Razão manipulatória e instrumental (que aqui é tomada como
Razão moderna em geral). “[...] o problema que aqui se coloca é o da passagem do intelecto à
Razão. Deixando de lado as questões ontológicas do em-si, a práxis manipulatória pode ope-
rar eficazmente com as categorias do intelecto; como vimos, ocorre nela um processo no qual
divide-se o real em um certo número de “dados” ou elementos finitos, posteriormente combi-
nados segundo regras formais. (Os elementos sublinhados constituem precisamente categorias
intelectivas: divisão, finitude, combinatória, formalização). Por outro lado, os procedimentos
intelectivos, fixados em regras independentes do conteúdo, constituem aquilo que Horkhei-
mer chamou de “razão subjetiva” (em contraste com a “objetiva”). Embora provenham de uma
abstração realizada no objeto, a característica essencial delas não é a de constituírem reflexos da
realidade, mas a de serem procedimentos subjetivos que, formalizados e generalizados, possam
tratar o objeto como um mero material de manipulação; em outras palavras, essas categorias
ou regras refletem a própria atividade do sujeito no ato da práxis manipulatória. Por isso, não
podem estabelecer a verdade ou falsidade do pensamento; seu único critério é a “eficácia”. Ao
contrário, as categorias da Razão (ou da “razão objetiva” de Horkheimer) são um reflexo da
configuração ontológica da objetividade, uma tentativa de apreendê-la em sua verdade objetiva.
Enquanto o intelecto empobrece o real (ao dividi-lo, formalizá-lo e reduzi-lo à pura finitude),
a Razão tenta apreendê-lo em sua totalidade: como unidade na diversidade, como síntese de
conteúdo e forma, como dialética do finito e do infinito. A Razão, assim, corresponde àquele
nível da práxis que definimos como apropriação humana da objetividade” (Coutinho, 1972, p.
82-83).
Maurício Bernardino Gonçalves 131

Em suma, o mundo é um emaranhado de particularidades, impossível


de ser reconstituído racionalmente. Com isso, o que cabe é a consoli-
dação de uma democracia epistemológica (é evidente que aqui, mais
uma vez, fica clara a postura anti-ontológica do FSM). As particula-
ridades não se reúnem e não se articulam em uma totalidade. Essas
concepções têm uma clara repercussão na prática política do FSM.

Como mencionei acima, a teoria política da modernida-


de ocidental, tanto na versão liberal como na marxista,
construiu a unidade na acção colectiva a partir da unida-
de dos agentes. De acordo com ela, a coerência e o sentido
da transformação social baseou-se sempre na capacidade
de o agente privilegiado da transformação social, fosse ele
a burguesia ou a classe operária, representar a totalidade
da qual a coerência e o sentido político derivariam. De
uma tal capacidade de representação provinham, quer
a necessidade, quer a operacionalidade, de uma teoria
geral da transformação social.
A utopia e a epistemologia subjacentes ao FSM colo-
cam-no nos antípodas dessa concepção. Como já referi,
a extraordinária energia de atracção e de agregação re-
velada pelo FSM reside precisamente na recusa da idéia
de uma teoria geral. A diversidade que nele encontra um
abrigo está decidida a não ser canibalizada por falsos
universalismos ou por falsas estratégicas únicas, avança-
das por uma qualquer teoria geral. O FSM sublinha a
idéia de que o mundo é uma totalidade inesgotável, dado
que possui muitas totalidades, todas elas parciais. Por
conseguinte, não faz sentido tentar apreender o mundo a
partir de uma única teoria geral, pois uma tal teoria irá
pressupor sempre a monocultura de uma dada totalida-
de, necessariamente parcial e a homogeneidade das suas
partes. O tempo em que vivemos, cujo passado recente
foi dominado pela idéia de uma teoria geral, é talvez um
tempo de transição que pode ser definido da seguinte ma-
neira: não precisamos de uma teoria geral, mas ainda
132 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

precisamos de uma teoria geral sobre a impossibilidade


de uma teoria geral. Por outras palavras, precisamos de
um universalismo negativo: um acordo geral sobre o facto
de que nenhum grupo, nenhuma teoria ou prática singu-
lar possui a receita infalível para conceber outro mundo
possível e concretizá-lo (Sousa Santos, 2008, p. 30).

Os movimentos sociais emancipatórios da modernidade se cor-


romperam e corromperam suas utopias, fundamentalmente, pelo
fato de estarem animados pela racionalidade de seus antagonistas,
e não por conta de determinadas circunstâncias históricas24. Assim
procedendo, essa corrente busca inaugurar uma nova época e um
novo padrão de lutas emancipatórias, onde o passado deve ser mais
esquecido do que lembrado.
Em suma, para uma nova cultura política emergir, e o FSM a
representaria, deve-se subjetivamente construí-la no dia a dia, evi-
tando-se cair na racionalidade da política da modernidade, onde

24 Aqui ocorre uma recaída idealista por parte da pós-modernidade de contestação, com a en-
tificação da razão moderna. “Um dos traços que melhor caracterizam a ambiência cultural
pós-moderna – para além de um surpreendente banalismo nas suas formulações – reside em
que, nela, o antiontologismo associa-se a uma concepção clara e grosseiramente idealista do
mundo social. A regressão teórica contida nessa recaída idealista aparece especialmente na
entificação da razão moderna pelos pós-modernos, entificação que a torna um demiurgo oni-
potente de fazer inveja ao Espírito hegeliano: a razão é a responsável pelas “falácias” que se re-
vestiram do caráter das “promessas” da Modernidade – o controle otimizado da natureza (que,
de fato, se revelaria como destruição e vestíbulo da catástrofe ambiental) e a interação humana
emancipada (que, na verdade, se mostraria como opressão e heteronomia). Na imanência da
razão moderna, a dimensão instrumental estaria inevitavelmente vocacionada para “colonizar”
a dimensão emancipatória. É ao movimento da razão moderna que se creditam as realidades
constitutivas da sociedade urbano-industrial, com a sua coorte de seqüelas deletérias, da opres-
são generalizada a vazios mitos libertários e à destruição de ecossistemas. Nas construções
pós-modernas, a realidade da ordem burguesa contemporânea deriva do dinamismo interno
da razão incondicionada, que tudo pode.
Obviamente que esse idealismo não é inocente: ao creditar à razão a realidade histórico-social con-
temporânea, o que fica na sombra é a ordem do capital, com a dominação de classe da burguesia.
É evidente que as implicações políticas dessa regressão teórica também são regressivas: entre
os pós-modernos, as alternativas à sociedade capitalista ou não se põem ou, quando se põem,
estão no limbo das utopias. A inofensividade dessas construções em face da ordem do capital –
assim como são inofensivas ao domínio capitalista as defesas extremas do “multiculturalismo” e
do “direito à diferença” – é tão mais cristalina quanto mais “radicais” (e menos politizados) são
os “discursos” que a atualizam” (Netto, 2002, p. 97-99).
Maurício Bernardino Gonçalves 133

luta política somente pode levar à dominação25. Assim, busca-se


modificar a natureza do complexo da política, pela modificação da
forma como se concebe e se vivencia a política. Em resumo, busca-se
modificar o mundo pela modificação da forma como se apreende
o mundo. Ou ainda, em outras palavras, o ser do mundo é, em-si
mesmo, o que subjetivamente entendemos sobre ele. A mudança do
mundo é teoricamente possível como vontade subjetiva interior de
mudança. Assim, é o subjetivo que instaura o objetivo. A metáfora
de Francisco Whitaker, outro intelectual fundamental para o surgi-
mento e a dinâmica do FSM, é emblemática. “O polvo”, ou a tentação
de dominar as pessoas enquanto se luta pela emancipação, práticas
do “velho” mundo ou da “velha” esquerda, deve manter-se controla-
do, afastado, sufocado. “O polvo” dificilmente deixará de existir, mas
nós podemos evitar que ele lance seus tentáculos e nos corrompa.
Em vez de conceber a luta emancipatória como um direcionamento
rumo à superação das condições socais que mantêm “o polvo” sem-
pre presente, como um fantasma jamais exorcizado, o FSM busca, a
partir do subjetivo, da força de vontade e da retidão pessoal, inaugu-
rar um novo tempo para as lutas emancipatórias.

Continuam existindo no Fórum tensões permanentes


entre o mundo velho e o mundo novo. Nossas práticas
são guiadas pela horizontalidade, na perspectiva da não
disputa pelo poder, mas de cooperação, de tentar enten-
der o que o outro fala, articular. Porque a união faz a
força. E isso em um mundo que tradicionalmente tem
uma disputa de hegemonia contínua. A união se faz pela
escuta, pela cooperação. E isto eu vejo que está aconte-

25 O FSM tem uma concepção de poder que o impossibilita de se constituir em um sujeito político
importante na luta política mundial efetiva contra o neoliberalismo. Essa concepção incapaci-
ta-o de constituir sujeitos políticos capazes de “ocupar e lutar pelos espaços de poder em nível
local, regional e global”. Muito dessa idéia deriva da recusa do FSM em enveredar para o que
para ele é um caminho inexorável à corrupção dos ideais: a luta pela conquista do poder polí-
tico.
134 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

cendo. Muita gente não se dá conta. Costumo dizer que,


quando trabalhamos no processo do Fórum, sentados à
mesa de debates, é como se embaixo da mesa tivesse um
polvo enorme, que é o polvo do mundo velho, tentando
puxar para baixo o que a gente está fazendo. E temos
que permanentemente estar atentos a isso. No processo
do Fórum, temos que nos livrar do polvo nas nossas ten-
tativas de começar algo novo, práticas novas e uma nova
maneira de fazer política (Whitaker, 2006).

No limite, a proposta emancipatória do FSM é uma proposta de


emancipação pelo complexo da ética. E ainda que essa dimensão seja
indispensável, não pode ser concebida como fundante para uma prá-
tica política emancipatória. A dimensão ética da luta emancipatória
só pode ser justa e corretamente concebida quando referida ao em-si
do mundo, à sua dimensão ontológica, que ao mesmo tempo possi-
bilita e limita uma dada prática ética. Não podemos inaugurar uma
nova ética, uma nova cultura emancipatória, etc, apenas propondo
uma vivência ética diferente entre os seres humanos, ou entre os di-
versos movimentos sociais em luta contra a globalização, ainda que
isso tenha muita importância. Uma nova ética só pode surgir quando,
no movimento de busca pela nova ética, enfrentamos objetivamente
o estado de coisas que impossibilita a realização dessa ética buscada.
Entretanto, o movimento ético buscado pelo FSM é transcendente e
não se vincula à imanência do mundo capitalista e neoliberal.
Depois de ter exposto como a prevalência do epistemológico sobre
o ontológico e do subjetivo sobre o objetivo são dimensões constitu-
tivas do FSM, é importante, mesmo que de passagem, mostrar como
isso repercute em sua prática política emancipatória. Em outras pa-
lavras, como as concepções teóricas acabam se encontrando com as
concepções políticas e como elas se retro-alimentam mutuamente.
As principais contribuições do FSM para a esquerda do século
XXI, segundo Sousa Santos, são: as pluralidades despolarizadas e a
Maurício Bernardino Gonçalves 135

tradução intercultural, que nós podemos resumir na capacidade que


os mais diversos movimentos sociais têm em se articular, evitando
as polarizações que impedem as ações coletivas e fortalecendo os
laços que possibilitam as práticas mais amplas e eficientes contra o
neoliberalismo. Respeito pela diversidade, reconhecimento das di-
ferenças e unidade na ação, em resumo. É evidente que isso muitas
vezes requer uma reconsideração das próprias bases teórico-práticas
e da autocrítica que cada movimento faz sobre si mesmo. Em suma,
as atividades dos eventos anuais devem servir como modelo para as
atividades de articulação entre os movimentos sociais no seu coti-
diano de lutas. Parece claro que para que um modelo como esse pu-
desse aparecer e tivesse a necessidade de ser teorizado, como Sousa
Santos procura fazer, temos como pressupostos, por um lado, a
maior fragmentação proporcionada pela alteração e remodelação do
padrão de exploração capitalista de taylor-fordista em toyotista e,
por outro lado, uma grande incapacidade de auto-crítica por parte
da esquerda anti-capitalista em geral.
Desde o seu início, o FSM se enfrenta com a questão de definir-
se enquanto um espaço aberto ou um movimento social. A primeira
perspectiva nunca deixou de ser hegemônica no seu desenvolvimento.
Os intelectuais mais representativos para o seu evolver sempre se posi-
cionaram pela defesa da primeira opção. A idéia política de um espaço
aberto se articula com o que já dissemos acerca da democracia episte-
mológica (que no fundo é também uma visão de democracia política) e
da ênfase ética que a dimensão emancipatória tem em seu seio.
Em 2005, com um manifesto assinado por alguns importantes
intelectuais que fazem parte de seu Conselho Internacional (CI), e
mais recentemente com a colocação de Walden Bello em um artigo
de 200726, as questões: (1) acerca da necessidade de modificar a na-

26 Bello, Walden. The Forum at the crossroads [O Fórum Social Mundial na encruzilhada],
136 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

tureza da Carta de Princípios do FSM, para permitir, por exemplo,


que ele se posicione em relação a acontecimentos políticos mundiais
importantes, como a invasão ao Iraque, entre outros; e, (2) se ele já
atingiu sua função histórica, ganharam proporções não secundárias.
Bello colocou assim a questão:“tendo cumprido a função histórica
de reunir e vincular os diversos movimentos de contestação gerados
pelo capitalismo global, não será chegada a hora de o FSM levantar
acampamento e dar lugar a novas formas de organização mundial de
resistência e transformação?” (Bello apud Sousa Santos, 2008: 21).
É claro que aqui Bello questiona o princípio da não tomada de po-
sição do FSM e a necessidade de uma concepção de poder diversa,
que coloque a necessidade da conquista do poder político27.
Sousa Santos e Whitaker, representando a defesa do FSM como
um espaço aberto28, afirmam que o FSM ainda não esgotou o seu
potencial aglutinador. Ainda que reconheçam que existem lutas po-
líticas mais avançadas contra a globalização neoliberal, eles se man-
têm convictos à idéia de que o FSM como espaço aberto não atrapa-

Foreign Policy, 2007. In.: Focus. Disponível em: www.fpif.org/fpiftxt/4196.


27 Aqui, num todo orgânico, mais uma vez se encontram as várias concepções do FSM que desa-
creditam a tentativa de conquista do poder político, objetivo central, em seu entender, de todos
os movimentos emancipatórios anteriores, uma vez que esta levaria inexoravelmente à derrota
da emancipação: a identificação do intelecto à Razão; a busca da emancipação pela dimensão
da ética transcendentemente concebida, ou seja, sem uma vinculação histórico-ontológica; a
idéia de uma epistemologia democrática, entre outras. Isto é assim, pois o domínio do Estado,
para o FSM, é o domínio da hierarquia, da coação, da violência, da Razão manipulatória e
instrumental. Em suma, de tudo que se busca eliminar. O mais interessante aqui é que o FSM
não propõe a superação do Estado, mas uma dada relação entre esse e a sociedade civil, onde
esta possui a prevalência e é o pólo direcionador. Caso esta controle e limite o poder daquele,
é possível uma combinação que beneficie o conjunto da sociedade. De maneira mais geral, a
sociedade civil é vista como contraposta ao Estado, ainda que não antagônica. Em suma, de um
ponto de vista estratégico, não se trata da reabsorção da sociedade política pela sociedade civil,
mas a instauração da “melhor” forma de relação entre ambas. Por outro ângulo fica claro que a
emancipação política passa a ser o horizonte máximo, e esta já não está articulada com luta pela
emancipação humana.
28 Sousa Santos tem uma posição mais complexa acerca do FSM como um espaço aberto: “... a
concepção liberal de ‘espaço aberto’ defendida por muitos fundadores do FSM – ou seja, a idéia
de que o FSM não pode subscrever nenhuma posição política ou luta particular, embora os gru-
pos que o constituem sejam livres de o fazer – criou a ilusão de que o FSM pode ficar acima das
confrontações políticas e ideológicas, transformando-se numa espécie de fórum neutro, onde
a discussão está cada vez mais desligada da acção, esgotando ‘a energia das redes da sociedade
civil [que] deriva da sua militância nas lutas políticas” (Bello, 2007). “Esta crítica tem vindo a ser
dirigida ao FSM desde o seu início e eu próprio a subscrevi” (Sousa Santos, 2008, p. 23).
Maurício Bernardino Gonçalves 137

lha essas lutas, pelo contrário, pois,

[...] mesmo pressupondo que o FSM tem vindo a ser


ultrapassado por outras concepções e práticas de resis-
tência e alternativa, é importante que o FSM continue
a ancorar as lutas que ainda necessitam dele. É igual-
mente importante para reduzir o impacto negativo e a
frustração causados pela eventual derrota das lutas mais
avançadas (Sousa Santos, 2008, p. 25).

Especificamente nesse ponto, Sousa Santos concebe o FSM como


um “evento” ou uma “reunião” pontual durante alguns dias do ano.
Entretanto, quando entendemos o FSM como um “método”, uma
“nova maneira de conceber as transformações sociais”, ou como um
“novo padrão de lutas sociais emancipatórias”, ou seja, exatamente o
que o FSM se propõe a ser, uma vez que não se pretende restrito aos
dias do mês de Janeiro em que ocorre, e quando levamos em conta
o que o próprio Sousa Santos disse mais acima: “deve considerar-se
como parte do processo do FSM as ações regionais ou globais leva-
das a cabo pelas redes de movimentos e organizações que integram
o FSM, desde que essas iniciativas respeitem a Carta de Princípios”,
vemos a impossibilidade desse “novo padrão de lutas emancipató-
rias” expandir-se como uma alternativa verdadeiramente concreta
ao domínio e à “hegemonia” neoliberal.
Pois nessa particular concepção de “espaço aberto”, dos “consen-
sos”, da dimensão “ética”, subjetiva e transcendentemente entendida
enquanto “fundante”, de sua recusa em lutar pelo “poder político”, da
prevalência do “subjetivo” sobre o “objetivo”, do primado da “episte-
mologia” sobre a “ontologia”, da impossibilidade de um critério racio-
nal que supere as diversas “particularidades” e re-estabeleça a “totali-
dade” efetiva dos diversos movimentos sociais em articulação e luta
pela emancipação, o FSM contribui, mesmo que esse não seja o seu
objetivo, para a “obstaculização” da emersão de um movimento que,
realizando a articulação entre a emancipação política e a emancipa-
138 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

ção humana, ou seja, entre as particularidades e a universalidade,


entre os direitos e a superação da necessidade de se lutar por direi-
tos29, possa fornecer uma alternativa, desta vez sintética, urgente e
necessária, à barbárie que se estabelece cotidianamente e que se in-
tensifica com a manutenção do domínio neoliberal sobre os nossos
destinos.

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29 Um teórico que Sousa Santos já havia rejeitado pelo fato de, em seu julgamento, estar apri-
sionado pela ideologia do progresso, mesmo tendo buscado romper os descaminhos da luta
emancipatória e revolucionária de sua época, numa linguagem que os pós-modernos conside-
rarão certamente ultrapassada, disse certa vez: “A IV Internacional não rejeita as reivindicações
do velho programa mínimo, à medida que elas conservam alguma força vital. Defende incan-
savelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais. Mas conduz este
trabalho diário ao quadro de uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. À medida
que as velhas reivindicações parciais mínimas das massas se chocam com as tendências destru-
tivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo –, a IV Internacional
avança um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido é dirigir-se, cada vez mais aberta
e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês. O velho programa mínimo é
contentemente ultrapassado pelo programa de transição, cuja tarefa consiste numa mobilização
sistemática das massas em direção à revolução proletária” (Trotski, 1938, p. 03).
Maurício Bernardino Gonçalves 139
Acesso em Out. de 2008.
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digoDaSecao=10&dataDoJornal=1160751636000. Acesso em Out. de 2008.
140 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
Maria Nalva R. Araújo 141

Maria Nalva R. Araújo


Mestre e doutora em Educação (UFBA)
Professora da Universidade Estadual da Bahia
(UNEB)
142 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política
Maria Nalva R. Araújo 143

Reconstruindo a Trajetória
das Mobilizações e Lutas
pela Educação Escolar no MST
Bahia na década de 1990.
Maria Nalva R. Araújo

Para o MST investir em educação é tão importante


quanto o gesto de ocupar a terra. Um gesto, aliás, que se
encontra no centro da pedagogia do Movimento. Aqui
educar é o aprendizado coletivo das possibilidades da
vida. As dores e as vitórias são face e contraface do mes-
mo processo.
Pedro Tierra.

Ao olharmos para a história da educação brasileira, observa-se


que esta tem sido o registro de uma dívida histórica para com as clas-
ses populares, em especial, as de meio rural. Dados oficiais constatam
déficits quantitativos e qualitativos. Pesquisa realizada pelo INEP
/ FIPE/USP em 2004, nos assentamentos de reforma agrária no
Brasil, constatam que 96% das crianças do campo até 3 anos de idade
não freqüentam a educação infantil; de 4 a 6 anos, 53% das crianças
não freqüentam a escola, e das que freqüentam, 52% estão na série
indicada e 48% estão fora da série indicada para a sua idade.
De conformidade com a mesma pesquisa, há ainda nos assenta-
mentos rurais 4,3% das crianças de 7 a 10 anos que não freqüentam
a escola, e ainda 6% das crianças de 11 a 14 anos que também não
freqüentam a escola. A partir do segundo segmento do ensino fun-
damental (5ª a 8ª série) e o ensino médio, a oferta é praticamente
inexistente. Apenas 26,9% dos estabelecimentos têm turmas de 5ª
à 8ª série, e apenas 4,3% das escolas nos assentamentos da reforma
agrária oferecem ensino médio.
144 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

No Estado da Bahia, no que diz respeito à educação, dados do


IBGE de 2001 indicam que existem 18,8% de pessoas analfabetas, o
que contabiliza dois milhões de pessoas, índice bem acima da média
nacional que é de 13,3%.
O acesso das populações camponesas à educação escolar consti-
tui ainda enormes desafios para a sociedade brasileira. Deste modo,
a luta pela escola é uma temática das classes populares e justifica
muitos debates sobre ela.
Os dados mencionados revelam as desigualdades e a falta de po-
líticas sociais. Conseqüência disso é a exclusão escolar, que se confi-
gura de diferentes formas ao longo do tempo e do espaço para aque-
les que vivem e trabalham no campo.
Daí então observar que existe uma demanda latente dos povos
do campo pela democratização do acesso à escola, melhoria da qua-
lidade do ensino oferecido, melhorias de infra-estrutura e outros...
Desse modo os povos do campo, organizados em movimentos de
lutas, ao perceberem a importância estratégica destas escolas para o
desenvolvimento dos assentamentos e o avanço do projeto de refor-
ma agrária que defendem como parte do seu projeto histórico, aliam
a luta pelo acesso à terra à luta pela democratização da escola.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
constitui um desses Movimentos. É fruto das contradições do mo-
delo capitalista em que, de acordo com dados da ONU, o Brasil
é o 2º país com maior concentração de terras do mundo: 1% dos
proprietários possui 165 milhões de hectares. Entre outros fatores,
o MST nasceu objetivando romper as estruturas da propriedade
da terra no País, ou seja, lutar pela terra e pela Reforma Agrária,
buscando dar continuidade ao processo histórico de conquista da
emancipação e da liberdade, objetivos almejados por outros movi-
mentos camponeses1 que, no decorrer desses quinhentos anos de
história resistem e disputam a posse da terra no Brasil. Desejam
construir uma sociedade justa, solidária e igualitária.

1 As referências feitas tratam das inúmeras lutas e movimentos de resistência pela posse da
terra: Canudos, Contestado, Ligas Camponesas, entre outros.
Maria Nalva R. Araújo 145

Com a conquista da terra, os trabalhadores caminham em direção


à conquista da emancipação humana. Para isso buscam, através de
suas mobilizações e lutas sociais, ter acesso aos bens materiais até en-
tão negados aos trabalhadores brasileiros, em especial aos campone-
ses. Assim, lutam pelo acesso à educação de qualidade, saúde, cultura
e arte, créditos para subsidiar a produção e outros; criam e recriam
suas alternativas de sobrevivência, e tentam resgatar sua identidade
cultural e a possibilidade de se tornarem sujeitos e construtores de sua
história. Desta maneira põe em evidência o debate e a luta pelo direito
ao trabalho, à terra e ao conhecimento na agenda política brasileira.
O MST, com o estudo e a organização, caminhou em direção à
luta pela reforma agrária, compreendendo-a de forma ampla, pois
como afirma Stédile (1997) só a terra não vai libertar o trabalha-
dor da exploração. E só a escola também não é capaz de libertar o
sem- terra da exploração do latifúndio... A reforma agrária é a jun-
ção destas duas conquistas: ter acesso à terra e ter acesso à escola, ao
conhecimento, à educação.
Os esforços dos trabalhadores rurais organizados no MST são,
portanto, para garantir também outro projeto, o de fixação do ho-
mem no campo, ancorado em um projeto alternativo de educação
e de sociedade.
No tocante à preocupação do MST com sua base social, ele
aponta para a continuidade da luta não apenas contra o latifúndio,
mas também por acesso a outros direitos negados historicamente
ao povo brasileiro, em especial os povos do campo. Nesse processo,
as lutas pela garantia da educação escolar e pela ampliação da esco-
larização na perspectiva dos trabalhadores são fundamentais para a
construção da emancipação dos trabalhadores e, para conseqüente-
mente atingir os objetivos estratégicos do Movimento.
Objetiva-se com este texto registrar as lutas por escolas empre-
endidas pelo MST na singularidade de uma região Extremo Sul do
146 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Estado da Bahia, durante a década de 1990 do século XX. Década


essa proclamada pelos organismos internacionais como a década da
“Educação para todos”.

A luta por escolas não é novidade na história da


classe trabalhadora.

As lutas pela democratização do acesso à escola como dever do


Estado, não constituem uma novidade na história da educação das
classes populares brasileiras e já têm sido objeto de várias pesquisas
e produções acadêmicas.
A história dos trabalhadores dos diversos países europeus de-
monstra que estes vêm lutando pela escola básica,

[...] a luta pela escola fez parte, na verdade, entre os in-


teresses dos trabalhadores e dos donos do capital e nela,
os primeiros, tem defendido a escola como obrigação do
Estado(...) pronunciando-se pela escola comum que eli-
mina a distinção entre a <<formação>> num sentido
mais amplo e a educação voltada para o trabalho, bem
como as barreiras levantadas contra o livre acesso (...)
a níveis superiores de Educação. Essa é uma luta que
ainda se está travando em países capitalistas avançados
(Paiva, 184, p.21-22).

No Brasil, vários estudos têm sido elaborados enfocando os dife-


rentes períodos históricos e, mais recentemente, mostrando que ela
continua fazendo parte da agenda dos diversos movimentos sociais.
Marília Spósito, em seus trabalhos: “O povo vai à escola” e “Ilusão
Fecunda - a luta por educação nos movimentos populares”, reconsti-
tui a luta pela ampliação das ofertas educacionais na cidade de São
Paulo. Na primeira pesquisa, a autora retrata a luta pela criação de
Maria Nalva R. Araújo 147

novos ginásios públicos, naquela cidade, entre as décadas de 1940


e 1970. Na segunda (1993), continua a reflexão sobre as lutas por
educação a partir dos movimentos populares. Analisa as mudanças
econômicas e políticas implantadas durante o regime autoritário,
ressaltando a degradação do ensino público e a falta de oportuni-
dades educacionais para a classe trabalhadora urbana, contrastando
a opulência de poucos e pobreza de muitos. Ressalta o processo de
continuidade da negação do acesso à educação escolar para a grande
maioria das populações periféricas da cidade de São Paulo. Nesta
pesquisa, além de recuperar as lutas por educação no período de
1970 a1985, a autora examina as razões e o sentido dessas ações
coletivas, assim como os embates e conflitos com o Estado, na figura
da Secretaria Estadual de Educação.
O trabalho de Spósito (1999) inaugura outra perspectiva de aná-
lise e interpretação da oferta/ampliação dos serviços educacionais,
na medida em que a autora enfoca a questão da democratização do
acesso como uma conquista dos movimentos populares, ao contrá-
rio das análises que privilegiam a ótica da concessão por parte do
Estado Brasileiro.
Ainda nesta perspectiva, há que se acrescentar o trabalho de
Campos (1989), realizado com as populações dos bairros operários
de Belo Horizonte. Sua obra faz uma análise macro-histórica do
desenvolvimento capitalista no Brasil, nas décadas 1970 e 1980, e as
transformações decorrentes, aliando-as ao crescimento dos bairros
populares em questão e promovendo a exclusão dos trabalhadores,
tanto dos meios de produção, como do acesso aos serviços sociais
básicos, dentre eles, os escolares.
Ao analisar a luta dos trabalhadores pelo acesso à escola, o autor
aponta que:
As lutas apresentavam como características importantes
o fato de serem entendidas como lutas por direitos sociais
148 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

elementares, com ênfase nos aspectos do direito ao acesso


à educação escolar, à permanência na escola, à progres-
são na vida escolar e à utilização das escolas para ma-
nifestações culturais e associativas dos moradores, entre
outras reivindicações (Campos, 1989, p.18).
Aponta ainda o papel do Estado brasileiro que continua fazendo
o discurso da escola universal pública e gratuita, “mas tudo faz para
que as comunidades arquem com os custos da educação”.
Dentre as reivindicações coletivas apresentadas pelos movimen-
tos sociais, Campos (1989) aponta que as referentes à educação
possuem um caráter essencialmente inovador, pois estão intrinse-
camente vinculadas às condições histórico-políticas de emergência
dos subalternos, enquanto força político-social.
Quanto ao estudo da educação escolar no meio rural, há também
que se apontar a existência de inúmeros trabalhos de pesquisa que
enfocam, desde a situação real das escolas e suas deficiências, até
estudos que trabalham com representações sociais acerca da impor-
tância e da valorização do saber escolar pelos trabalhadores rurais.
Tais estudos contrariam a representação dominante oficial de
que o homem do campo possui visões atrasadas, em decorrência do
descaso para com o saber formal. Pelo contrário, Andrade ressalta
que: “o trabalhador da terra sempre demonstrou interesse pela edu-
cação escolar, tendo se registrado demandas sempre maiores do que
as ofertas escolares efetivas” (Andrade, 1997).
Independentemente da finalidade, seja com objetivos de ascensão
social, seja para o trabalho ou para superar as condições de exclusão
política e econômica, o fato é que as populações rurais têm utilizado
as mais variadas estratégias para terem acesso à escola. Individual
ou coletivamente, a luta pela escola tem feito parte das práticas das
populações camponesas, há muitas décadas.
Maria Nalva R. Araújo 149

Mais recentemente, reagindo ao processo de exclusão social de


direitos e serviços sociais e educacionais, através do MST, as popu-
lações rurais têm se organizado coletivamente para ter acesso à es-
cola e construir um projeto de educação diferente, com a identidade
na cultura e na vida dos excluídos do campo.
Dada a amplitude que as iniciativas do MST estão adquirindo,
inúmeros estudos vem sendo desenvolvidos. Os estudos pioneiros
acerca da relação MST e a Educação se encontram em Caldart e
Schwaab (1991). As autoras analisam a questão da educação nas
áreas de acampamentos e assentamentos no Rio Grande do Sul, e
constatam que existe “uma história dentro da luta pela terra que ain-
da não foi contada”. Segundo as autoras, “é inovadora a valorização
prática da educação nas lutas e movimentos populares e, em especial
nas do meio rural”. Destacam, ainda, como novidade, “a organização
coletiva dos pais, alunos e professores na luta por uma escola pública de
qualidade para todas as crianças” (Caldart e Schwaab, 1991, p. 85).
Menezes Neto (1999) analisa as práticas educativas desenvol-
vidas pelo MST, realizando uma reflexão/discussão dos princípios
educativos do MST, sobre os quais afirma: “para o MST, a Educação
deverá ter um caráter formal e informal, pois mais do que o acesso à
informação, o Movimento entende ser importante a luta pela escola,
visto que esse é um direito do cidadão, do qual ele jamais deve pres-
cindir” (Bezerra Neto, 1999, p. 113).
No MST a educação acontece em processos, desde a participa-
ção das crianças, das mulheres, dos jovens e dos idosos, construindo
novas relações e consciências, até a participação nas marchas, assem-
bléias, cursos, caminhadas, trabalhos voluntários, gestos de solida-
riedade, ocupações, mobilizações. É mais que reunir-se para apren-
der e ensinar o alfabeto, é o ato de ler e escrever a realidade e a vida,
contrapondo-se à educação para a conformidade e para a integração
no mundo do trabalho capitalista.
O enfoque deste trabalho de pesquisa são as dimensões das lu-
tas por escolas, já trabalhado por Spósito (1999) e Campos (1989),
150 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

qual seja, interpretar as lutas e mobilizações pela educação escolar,


na ótica dos movimentos sociais e dos seus sujeitos, os trabalhado-
res rurais sem terra.
Trajetória de Lutas e Mobilizações por educação
no MST-BA.

No Estado da Bahia, as lutas do MST pela terra e pela educação,


desde 1985, percorrem a mesma trilha. Em cada ocupação realiza-
da, uma escola é construída como resultado das lutas e mobilizações
que o Movimento foi desenvolvendo ao longo da sua história. O
MST no Estado da Bahia acumula experiências históricas de mo-
bilizações pelo acesso à escola, bem como a construção e implemen-
tação da proposta de Educação emancipatória, norteada por um
conjunto de princípios filosóficos e pedagógicos2. Assim, o MST
defende ser possível contrapor-se à ordem vigente, tecer e construir
espaços com novas formas de relações sociais, tendo como objetivo
central a emancipação humana.
As experiências de mobilização por educação no MST/BA, ao
mesmo que constituíram ações coletivas para reivindicar serviços
educacionais, também se tornaram momentos de aprendizagem para
os que participavam das lutas gerais do movimento. É através desta
atuação, como se vê mais adiante, que os assentados aprendem a lu-
tar, a se organizar, a reivindicar, a gerir e coordenar coletivamente as
escolas conquistadas, a construir projetos de escola, educação e socie-
dade, com identidade própria. Depoimento da primeira professora
de um acampamento do Movimento exemplifica essa afirmação:
A primeira escola foi um verdadeiro dilema. A cobertura
de lona preta, as paredes de palhas, bancos de embaúba.
Era tudo improvisado. Bastante sofrimento para mim e
para os alunos. Quando chovia e ventava bastante forte

2 Os Princípios Pedagógicos e Filosóficos da Educação do MST encontram-se no Caderno de


Educação n.º 8.
Maria Nalva R. Araújo 151
a lona voava e rasgava. A chuva molhava toda a sala,
os banquinhos encharcavam de água, aí não tinha como
continuar na sala de aula com os alunos. Muitas vezes
fizemos até valeta dentro da escola para escorrer a água.
Eu juntamente com os alunos, fizemos um bonito jardim
na frente da escola. Cercamos de pau a pique e tudo en-
tre nós era um coletivo.
Coletivo para os alunos era o que eles mais gostavam.
Trabalhei até com 62 alunos numa sala de aula peque-
na, mas o coração era grande e generoso. Eu contava
histórias para eles. A História do Chê Guevara. E eu
dizia que o Chê era um militante do amor e da paz e
não gostava de ver seus semelhantes sofrer e passar fome
e não poder estudar, e pedia a todos que lutassem pelo
bem estar de cada um.
Então aí nasceu uma palavra de ordem na sala de aula.
Na boca de cada um descendente do Chê. A palavra de
ordem: ‘Chê, Zumbi, Antônio Conselheiro, na luta por
justiça nós somos companheiros’. E cantávamos várias
canções entre esta a música:
A de assentamento
E de educação
I de instrumento
O de ocupação
Isto só acontece com o U de União.

Na região Extremo sul da Bahia, e no movimento como um todo,


a luta por educação escolar nos acampamentos e assentamentos as-
sumiu o caráter de um movimento de reivindicação e, ao mesmo
tempo, um processo de reinvenção e recriação da escola pública po-
pular. É uma forma de lutar fazendo.
Ao construir, ainda que de maneira precária, uma escola debaixo
da lona e à sombra das árvores, os sujeitos coletivos partícipes desse
movimento acumularam experiências do aprendizado, gestado no
calor das lutas e enfrentamentos, construindo, ao mesmo tempo, a
152 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

consciência das necessidades concretas, como sendo parte da pró-


pria cidadania política.
Nessa construção, parte-se inicialmente de pequenas demandas
e necessidades elementares. No início das lutas por escolas, as rei-
vindicações eram as mais elementares: liberação de professores, ma-
terial didático, espaço físico para estudar. Mas, à medida que o pro-
cesso de luta avança, ampliam-se os avanços político-organizativos
e os desafios.
As primeiras mobilizações por educação escolar na Bahia sur-
giram no inicio dos anos de 19903. Naquela época, os trabalhado-
res do assentamento 1º de Abril formaram uma comissão de pais
e junto com a direção das associações de produção dos assentados,
foram à prefeitura do Município de Prado pedir a regulamentação
das escolas precariamente existentes. Reivindicavam contratação de
professores e merendeiras para os quatro assentamentos existentes:
1º de Abril, Riacho das Ostras, Corumbau e Três Irmãos.
Apesar das promessas do então prefeito e sua secretária de edu-
cação, as solicitações não foram atendidas. Em vista disso, a partir
daquele momento, adotou-se durante as mobilizações por educação
escolar, as mesmas táticas utilizadas nas ocupações de terra, ou seja,
acampar em frente às prefeituras:

Vendo que negociação através de comissões não estava


surgindo efeito, juntamos todo povo dos outros assen-
tamentos... ocupamos a prefeitura o Prado, estavam os
pais, as crianças, jovens, essa ocupação teve repercussão
estadual onde nós assentados ficamos com total controle
da prefeitura. Ai que começa a oficialização das escolas,
professores pagos, merendeira (Irailton).

3 O levantamento e descrição das lutas por educação escolar foram elaborados tomando-se por
base documentos produzidos pelo setor de educação do MST/BA e depoimentos dos partici-
pantes.
Maria Nalva R. Araújo 153

Esta primeira mobilização foi relevante e significativa, pois per-


mitiu resgatar e manter viva a esperança, alargando a compreensão
de que o capítulo da história da luta pela terra não se encerra com a
conquista de um “pedaço de chão”. Constituiu um aprendizado para
todos os que dela participaram e transformou-se em referência para
o Movimento como um todo, na região do extremo sul.
Durante esta mobilização foram apresentadas ao poder munici-
pal as seguintes reivindicações: oficialização das escolas, contratação
de professores de 1ª e 4ª séries, reforma das escolas que tinham sido
construídas nos assentamentos, em forma de mutirão, pela própria po-
pulação e equipamentos para a escola: cadeira, mesas, armários, mime-
ógrafo, quadro de giz.
O teor das reivindicações evidencia as precárias condições de
funcionamento das escolas rurais da região, na época. Hoje, ob-
servando-se as condições físicas e materiais das escolas existentes
percebe-se que a melhoria das escolas deu-se em alguns assenta-
mentos, mas em outros, continuam as mesmas condições precárias
de outrora.
Após a primeira mobilização por escolas, outras se seguiram com
certa freqüência, pois a conquista de novos assentamentos deman-
dava novas lutas por escola.
Ao levantar e organizar as pautas e documentos apresentados às
prefeituras do extremo sul, pode-se perceber que, durante os anos
de 1990 a 1993, as reivindicações apresentadas aos poderes muni-
cipais, pelas comissões de assentados, referiam-se quase que exclu-
sivamente a itens relativos à instalação e funcionamento das escolas
construídas pelas populações acampadas e assentadas, demandas de
criação de novas escolas, visando a ampliação do nível de escolari-
dade para os quatro últimos anos do ensino fundamental e de aten-
dimento à população de 0 a 6 anos; demandas para a construção de
novas unidades escolares para atender a população em idade escolar,
nos novos assentamentos conquistados.
154 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Em dezembro de 1994, uma comissão de professores, juntamente


com pais, fez um levantamento nos vários assentamentos da região e
detectou a existência de um alto número de crianças, adolescentes e
jovens que já haviam terminado as séries inicias (1ª a 4ª) durante o
período de 1988 a 1994, mas que não estavam tendo oportunidade
continuar os seus estudos, devido à não instalação das séries finais
do ensino fundamental.
Os dados obtidos, através do levantamento, foram apresentados
e discutidos com as comunidades assentadas e a partir de então, a
implantação das séries terminais do ensino fundamental tornou-se
a principal bandeira de luta.
Deu-se início ao ritual: em primeiro lugar, enviavam documentos
contendo as reivindicações educacionais aos órgãos públicos. Estes
por sua vez, utilizando os já conhecidos argumentos – falta de infra-
estrutura e falta de condições financeiras das prefeituras para construir
escolas, prometiam empenhar-se sem, contudo, atender à principal
reivindicação apresentada, de criação do ensino fundamental comple-
to. Esta reivindicação levou mais de três anos para ser atendida.
Diante das constantes negativas das prefeituras municipais em
instalarem salas de aula para o funcionamento de 5ª a 8ª séries nos
assentamentos, a população e a direção do MST/Bahia resolveram
levar as reivindicações a outras instancias governamentais: Estado
e União. Para pressionar essas instancias governamental, organi-
zaram-se duas mobilizações estaduais, durante os meses de abril e
setembro de 1995.
Durante as mobilizações, ocupou-se o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária-INCRA, em Salvador, durante
trinta dias. Neste período, foram realizadas várias reuniões com
representantes dos poderes públicos estaduais e federais, ficando
acordado que, tanto o Governo do Estado (através da Coordenação
Estadual da Reforma Agrária – CORA), como o INCRA, construi-
riam escolas nos seguintes assentamentos: Beira Rio, União, Paixão,
Nova Deli, Três Irmãos, Palmares, Wanda, Nova Suiça e 4045.
Maria Nalva R. Araújo 155

Um informe do MST/BA sobre os resultados das mobilizações


estaduais e negociações com Governo de Estado, em 1995, atesta a
mudança das instâncias que foram objetos de pressão popular.

O governo do estado encaminhará a decisão imediata


sobre a construção de escolas em onze áreas de assenta-
mentos. O INCRA fará tomada de preços para construir
escolas nos demais assentamentos, em 1996: juntamente
a essas conquistas específicas o documento aponta outras:
energia elétrica, telefones, poços irrigação, estrada, crédi-
tos, sementes, emissão de posse, desapropriação, assistên-
cia (Informe MST, fev/96).

Neste sentido, as reivindicações por escolas fazem parte de um


conjunto de serviços vinculados à melhoria da infra-estrutura ne-
cessária ao funcionamento dos assentamentos como um todo.
Este informe mostra também, que as reivindicações por educação
escolar não estão isoladas das demais necessidades das famílias as-
sentadas e acampadas: crédito, estradas, desapropriações, enfim, das
condições necessárias à sobrevivência e à fixação digna do homem ao
campo, fazendo parte e integradas à luta pela reforma agrária, enten-
dida num sentido amplo.
Assim, através de cada mobilização, de cada enfrentamento, ainda
que os resultados obtidos não fossem os esperados, os trabalhadores
iam somando experiências e ganhando consciência das contradições
sociais e políticas; aprendiam a desafiar, negociar, pressionar as au-
toridades, e que era preciso persistir.
Por mais que as autoridades municipais, ou seus representantes,
negassem o direito aos serviços educacionais, relutassem em atender
às reivindicações dos trabalhadores, estes, por sua vez, teimavam em
voltar e continuavam a lutar por mais e melhores escolas.
O quadro a seguir sintetiza a trajetória das mobilizações realiza-
das pelo MST na década de 90 no Extremo sul da Bahia:
QUADRO 01- Resumo das mobilizações por escolas realizadas pelo MST na década de 1990.
Assent. E acamp. mobi- Instancia pres- Tática de mobilização
Município e data Tipo de reivindicação Conquistas obtidas
lizados sionada e pressão
Prado 1º de Abril, Riacho da Ostras, Prefeitura Acampamento na praça Ampliação do atendimento escola para a faixa de 11 a 14 anos. -Materiais didáticos para as escolas
06/1994 Guairá, Trás Irmãos, Modelo, principal da cidade. -equipamentos e materiais didáticos . existentes.
Rosa do prado, Corumabau -Infra- estrutura (reformas e construção de prédios escolares.
Alcobaça/ 4045 Prefeitura Passeata na - Ampliação do atendimento escolar para a faixa de 11 a 14 anos e -Materiais didáticos
Fev/95 cidade educação infantil. -Formação dos Professores e
-Formação dos professores e permissão para participação nos eventos participação nos eventos do MST.
Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

do MST.
-Infra estrutura e construção de prédios escolares
Prado/ 1º de Abril, Riacho da Ostras, Prefeitura Passeata na - Ampliação do atendimento escola para a faixa de 11 a 14 anos e -Materiais didáticos
março /95 Guairá, Trás Irmãos, Modelo, cidade educação infantil. -Formação dos Professores e
Rosa do prado, Corumabau -Panfletagem -Infra estrutura reforma e construção de prédios escolares. participação nos eventos com direito
-equipamentos e materiais didáticos. a substituição.
-Formação dos professores, participação em eventos. direito a substitui- - Transporte escolar para alunos do
ção para realização de estudos dos professores. Ensino médio.
-Transporte escolar para alunos do Ensino médio.
Mobilizaçao estadual Todos os assentamentos e acam- INCRA e governo Ocupação da Desapropriações, Créditos para produção, postos de saúde, estradas, Créditos, postos de saúde, credito
Abrli/95 pamentos vinculados ao MST do estado. sede do INCRA crédito habitação, habitação, construção de prédios
no Estado. em Salvador -Construção de prédios escolares. escolares.
Prado Março/98 1º de Abril, Riacho da Ostras, Prefeitura Ocupação da prefeitura e Ampliação do atendimento escola para a faixa de 11 a 14 anos e edu- Ampliação do atendimento escolar
Guairá, Trás Irmãos, Modelo, da praça municipal. cação infantil para a educação infantil.
Rosa do prado, Corumabau Aula publica -equipamentos e materiais didáticos . -equipamentos e materiais didáticos
-Infra- estrutura (reformas e construção de prédios escolares.
Jucuruçu Ass. Nova Dely Prefeitura Ocupação da prefeitura e Ampliação do atendimento escolar para a faixa de 11 a 14 anos e edu- -equipamentos e materiais didáticos.
Abril /98 da praça municipal. cação infantil.
Aula publica -equipamentos e materiais didáticos.
Mucuri Asst. Paulo Freire Prefeitura Passeata Atendimento escolar para a faixa de 11 a 14 anos e educação infantil. Equipamentos e materiais didáticos;
Abril /98 Ato público na praça -Infra estrutura (reforma e construção de prédios escolares. -Transporte escolar para alunos do
-equipamentos e materiais didáticos. Ensino médio.
Contratação dos professores
-Transporte escolar para alunos do Ensino médio.
Certificação da escolaridade aos alunos que estudaram no acampamento
Mucuri Asst. Paulo Freire Prefeitura Marcha do assentamento Atendimento escolar para a faixa de 11 a 14 anos e educação infantil. - Contratação dos professores
Jun /98 à sede do município -Infra estrutura (reforma e construção de prédios escolares. - Certificação da escolaridade aos
Aula publica -equipamentos e materiais didáticos. alunos que estudaram no acampa-
Passeata na cidade Contratação e formação dos professores mento;
Certificação da escolaridade aos alunos que estudaram no acampamento - Contratação e formação dos professores
156 Alcobaça Ass. 4045 Prefeitura Boicote as aulas ministra- Troca do diretor/gestor da escola Troca do diretor/gestor da escola
Maio/98 das no prédio da escola .
Fonte - quadro construído com a consulta aos documentos como: pautas de reivindicações e atas de negociações entre o MST e os gestores municipais e estaduais.
Maria Nalva R. Araújo 157

Reafirmando a omissão do Estado no que diz respeito aos direi-


tos educacionais básicos, Campos (1989, p. 64) ressalta:

A ausência do Estado no cumprimento do seu dever


constitucional corresponde ao aumento da luta pelo di-
reito à educação escolar. Os trabalhadores crescem poli-
ticamente nesse processo mesmo com derrotas, vitórias
parciais soluções paliativas [...]

Igualmente, afirma Camini (1998, p.89):

A própria história lhe mostrou que lutar pela distribui-


ção justa da terra e por políticas públicas necessárias a
permanência do homem no campo exige lutar pela es-
colarização das novas gerações entendida aqui como o
acesso a escola de boa qualidade e a permanência nela.

Os documentos pesquisados evidenciam que, durante os anos de


1996 e 1997, as mobilizações por escolas arrefeceram no extremo sul
da Bahia. É possível que duas ordens de fatores sejam responsáveis
pelo desaquecimento das manifestações públicas. Como razões de
ordem interna, podem-se apontar a priorização e o fortalecimento
da organização interna do movimento, envolvendo ações do tipo:
formação dos núcleos de educação nos assentamentos, formação de
educadores, organização das crianças assentadas, que culminou com
o I Encontro Regional dos Sem Terrinha. Segundo depoimentos,
durante esse período foi possível trabalhar de uma maneira mais cla-
ra e organizada, a participação das crianças nas atividades do MST.
Um segundo fator, refere-se às razões externas e convém lem-
brar que, durante o ano de 1996, em virtude das eleições municipais,
houve mudanças nas gestões das prefeituras da região. Sendo assim,
os documentos consultados revelam que foram realizadas várias ne-
158 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

gociações nos diferentes municípios, entre as comissões de assenta-


dos e prefeitos, sendo que estes últimos, por terem sido recém em-
possados, pediam tempo para “arrumar a casa” e comprometiam-se
com as pautas apresentadas, várias vezes reiteradas.
Embora não havendo grandes mobilizações populares, os docu-
mentos consultados, datados de 1997, revelam a existência de for-
mas de cobranças por parte dos setores organizados do Movimento,
feitas através de ofícios entregues por comissões de representantes
dos vários assentamentos, aos poderes municipais.
Em 1998, reiniciaram-se as mobilizações por educação escolar, em
quatro municípios da região do extremo sul: Prado, Alcobaça, Jucuruçu,
Mucuri. Através dos dados sistematizados pode-se constatar também que:

a) as mobilizações realizadas a partir de 1998 reno-


vam as reivindicações para construção e equipamento
de novas unidades escolares, visando a escolarização de
crianças de 0 e 6 anos e 7 a 14 anos;
b) as populações assentadas agregam às anteriores a rei-
vindicação e escolarização para o grupo de jovens e adultos
e o transporte escolar para o acesso ao ensino médio, nas
escolas urbanas;
c) procuram garantir certificação da escolaridade para
o ensino oferecido nas escolas existentes nos acampamen-
tos e que ainda não tinham sido oficializadas pelos órgãos
públicos;
d) pela primeira vez, surge uma mobilização para
questionar formas de gestão escolar contrárias aos prin-
cípios do Movimento.

Principais Formas de Pressão e Negociação.


Ao longo dos dez anos de mobilizações, o Movimento foi desen-
volvendo uma série de táticas de organização e pressão. Inicialmente,
as formas mais adotadas eram: a negociação, a ocupação de prefeitu-
Maria Nalva R. Araújo 159

ras e acampamentos em praças públicas. Durante as mobilizações de


1998 mantiveram as mesmas formas de organização e pressão ado-
tadas nos períodos anteriores. Contudo, a partir destes anos, novas
formas foram criadas.
Uma breve descrição de cada uma destas táticas, revela o nível de
envolvimento político, a criatividade e a organização interna atingida.
Quanto às negociações, elas são precedidas de um levantamento
de carências realizadas nos diferentes acampamentos e assentamen-
tos. Feito isso, elabora-se uma pauta de reivindicações, encaminha-
das através de ofícios aos órgãos públicos. Concede-se um prazo, e
quinze dias após, uma comissão volta, para cobrar o atendimento
das pautas enviadas.
Os representantes dos poderes públicos e comissões de sem terra
tentam encaminhar reuniões de negociação que, às vezes, transcor-
rem num clima pacífico, outra vezes, em clima tenso, como mostra
o depoimento de um assentado, por ocasião de uma negociação na
Prefeitura de Jucuruçu, com secretários municipais, que pretendiam
mandar móveis e equipamentos velhos para escola do assentamento
Nova Dely. Segue trecho de relatório desta reunião:

Seu Dete, morador do assentamento interrogou os secretá-


rios: o que fizeram com aquela ponte que vocês receberam
dinheiro do INCRA para fazer uma nova e vocês não
fizeram, só reformaram? O secretário respondeu: “vocês
queimaram.” Então, disse seu Dete: é o mesmo que vamos
fazer se vocês mandarem equipamentos velhos para nossa
escola, porque lixo é para ser queimado, nós e nossos filhos
somos cidadãos desse município, então precisamos de res-
peito e temos direito à uma escola e um assento decente
para poder estudar [...] (relato feito por Djacira).

A ocupação de prefeituras (prédios públicos) constitui uma tá-


tica utilizada pelo MST, não apenas para reivindicar escolas, mas
160 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

também para apresentar outras reivindicações aos órgãos públicos.


Consiste no ingresso e tomada dos vários setores de uma repartição
pública, interrompendo seu funcionamento, como mostra o depoi-
mento a seguir, de um dos assentados:

Na sede desse município nunca tínhamos feito uma mo-


bilização, chegamos e tomamos conta da prefeitura
e todas as secretarias, exigimos a presença do prefeito,
ele não estava, tinha viajado para Salvador, a 1.000 Km
de distância. Os responsáveis pela prefeitura chamaram
a polícia, quando o capitão chegou, ele localizou o prefei-
to, que o nomeou como seu negociador. (grifos nossos)

Já as manifestações públicas, objetivam esclarecer a opinião


pública sobre a realidade dos assentamentos e acampamentos, de-
nunciar a ausência de “serviços e direitos” e o não cumprimento, por
parte do Estado, dos seus deveres e obrigações. Constituem formas
públicas de pressão e têm assumido as mais variadas formas: dis-
tribuição de panfletos, passeatas, aulas públicas, acampamentos em
praças públicas, marchas e outras. A partir de 1998, introduziram-
se inovações: a aula pública e as marchas do assentamento até a sede
do município. Os depoimentos abaixo mostram como se desenvolve
a aula pública:

Paralelamente às negociações realizamos aulas públicas:


a gente instala as escolas, acampamos, e inicia-se a aula
ali mesmo, na rua, explicando à população que nos ouve,
os problemas e carências das escolas dos assentamentos
(Djacira)

As crianças dos assentamentos mesmo se encarregaram


de falar sobre sua realidade, mostrando a dura realidade
e justificando a necessidade de mobilização. “Certa vez,
as crianças da cidade queriam saber como era a vida no
Maria Nalva R. Araújo 161
assentamento, os presentes fizeram várias perguntas e as
crianças responderam (Solange).

Ao lutar pela terra junto como os pais, as crianças e ado-


lescentes, demonstram para o mundo dos adultos, que um
corpo físico de qualquer tamanho, precisa não apenas de
um lugar no espaço, mas do universo para se desenvolver
enquanto ser humano, social e político (Bogo).

As reações dos ouvintes (residentes na cidade e turistas), ma-


nifestam-se das mais variadas formas: aplausos, cuidados com as
crianças que fazem parte da manifestação, através do fornecimento
de água potável, lanches, local para tomar banho; perguntas sobre a
vida na cidade, encorajamento para persistirem na luta. Expressões
do tipo: não é possível o prefeito gastar milhões numa festa de car-
naval e não pensar nas crianças sem escola! Há também opiniões
contrárias ao movimento: “ninguém sabe o que esses sem terra que-
rem, já não receberam suas terras?” Ou ainda: “o prefeito nada tem
haver com vocês, pois vocês não são deste município!” (referindo-se
aos acampados).
Sobre a participação das crianças, também há manifestações de
apoio e de repúdio. Alguns populares consideram importante a par-
ticipação na luta desde a infância, outros se manifestam radicalmen-
te contra, argumentando que é “cabeça feita”, lavagem cerebral, feita
pelo Movimento. Este clima de tensão e as falas diferenciadas contra
e a favor das manifestações populares, são inerentes à existência de
contradições entre as diferentes classes na sociedade. As diferentes
falas expressam as diversas orientações político-ideológicas existen-
tes numa sociedade como esta, cuja organização econômico-social é
altamente excludente.
Além da participação das crianças nas aulas públicas, nos dois
últimos anos, as crianças também estão sendo incluídas nas comis-
162 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

sões de negociação com prefeitos e secretários.


Nesse sentido, a luta pela escola parte da realidade histórica onde
as crianças são sujeitos ativos, sendo impossível ignorar sua presen-
ça. Roseli Caldart ressalta a importância desse envolvimento como
aprendizagem política:

O primeiro lugar ocupado pelas crianças foi como testemu-


nhas da luta de suas famílias, ou seja, estavam lá e acompa-
nhavam, sofriam, o desenrolar dos fatos de cada ocupação,
acampamento, assentamento (...); o segundo lugar foi da
percepção de suas presenças, e esta exigindo atenção espe-
cífica ou seja, a inclusão da luta pela escola na luta pela
terra (...) e o terceiro lugar é o que está sendo construído
ou conquistado pelas crianças sem terra ou sem terrinha
identificando-os como sujeitos sem terra – e parte efetiva da
dinâmica do MST (Caldart, 2000, p. 189-192).
No extremo sul da Bahia, as crianças sempre estiveram presentes
nas mobilizações públicas por escola. Contudo, a partir de 1998,
são incorporadas às comissões de negociação. A intervenção do ga-
roto Jocélio, de 13 anos, na negociação com prefeito e secretária de
educação do Município de Mucuri, quando os dois propuseram que
as crianças do assentamento viessem estudar na cidade, e que colo-
cariam um ônibus à disposição, revela sua condição de negociador
hábil e firme, quando argumentou:

Prefeito, não tem sentido conquistar a terra e depois sair


para ter de estudar fora; além disso as crianças da cidade
tem vida diferente da nossa. Muitos de nós vamos ter
que ir para escola com roupas rasgadas e sandálias de
dedo, sendo uma de correia verde e outra preta, como
estou aqui agora. Nós vamos servir de mangação para
outras crianças e nós não vamos agüentar mais tanta hu-
Maria Nalva R. Araújo 163
milhação. Basta os nossos pais que já foram humilhados
e explorados a vida inteira.

A secretária de educação do município, que acompanhava a ne-


gociação, interveio perguntando o que o garoto entendia por explo-
ração, ao que ele respondeu:

Exploração é tudo que fizeram com a minha família


até pouco tempo e o que fazem com um monte de tra-
balhadores por aí. Olha meu pai, meus irmãos, minha
mãe e eu trabalhávamos o dia inteiro na roça de cacau
para receber um dinheiro que só dava para comprar osso,
farinha e feijão para comer. Eu e meus irmãos não tí-
nhamos direito de ir à escola, isso é exploração ou não?1

O depoimento acima, além de reafirmar a participação das crian-


ças como sujeitos conscientes de seus direitos, permitem analisar e
identificar dois aspectos relevantes: o primeiro refere-se à maturida-
de na escolha do espaço onde desejam estudar, valorizando tanto a
conquista da terra como da escola; o segundo aspecto é a capacidade
de argumentação deste jovem trabalhador rural, expressando coe-
rência e clareza política. Uma coerência que é fruto da experiência
histórica coletiva, que se traduz na certeza de que pode ter acesso
a direitos que lhes foram negados e no direito de “não ser discrimi-
nado”, por assumir sua condição social de assentado e trabalhador
rural.

Organização e Preparação das Mobilizações nos


Locais de Moradia.
A organização das mobilizações sempre decorre de procedi-
mentos democráticos e descentralizados. Iniciam-se em grupos de
famílias, organização nuclear de base nos assentamentos e acampa-

1 Depoimento colhido e gravado durante reunião de negociação, em julho/98.


164 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

mentos. Esses grupos reúnem-se, quinzenalmente, para estudar e


discutir as questões e problemas gerais do movimento e específicos
do assentamento ou até do próprio grupo.
Assim, reunidos em grupos de dez famílias, os moradores discu-
tem necessidades e prioridades educacionais. Após as reuniões, as
conclusões dos grupos são apresentadas, discutidas e votadas.
Definidas as reivindicações, o tipo de mobilização e as datas de
sua realização, passa-se à etapa seguinte, de divisão das tarefas: aos
homens adultos e à coordenação do assentamento compete provi-
denciar o transporte, lonas, caso seja preciso ficarem acampados na
cidade, e alimentação. Os educadores se responsabilizam por prepa-
rar as crianças para as aulas públicas; motivá-las a criarem palavras
de ordem; ensaiar músicas, paródias, teatros, preparar os cartazes,
providenciar garrafas com água para beber. Criam palavras de or-
dem tipo: “Bandeira! Bandeira! Bandeira vermelhinha, o Futuro do
Brasil, está na Mão dos Sem Terrinha!” “MST em ação queremos
que o prefeito legalize a educação”. “Florestan Fernandes, que Deus
já levou, nossa homenagem a esse grande educador”2.
À coordenação regional do setor de Educação cabe: unifi-
car as necessidades e reivindicações, convertendo-as num docu-
mento e encaminhá-lo às prefeituras com antecedência, contatar
imprensa e personalidades públicas; articular e sensibilizar to-
dos os assentamentos em torno da mobilização; ajudar na pre-
paração da negociação e assessoria aos professores envolvidos.
Preparar e realizar mobilizações no MST é sempre uma festa, pois
durante as manifestações não há formalidades, as práticas se misturam:
cantos, danças, rezas, símbolos e instrumentos músicas, ferramentas de
trabalho. Compõem um enredo e um ritual que se repete, mas também
se renova.
Os mesmos corpos que andam a pé 18 km por dia para realizar

2 Palavra de ordem foi criada pelas crianças do acampamento Florestam Fernandes, após ser
trabalhada a história do sociólogo porque o acampamento levava aquele nome
Maria Nalva R. Araújo 165

uma marcha, são capazes de dançar, cantar reisado, jogar capoeira


até a madrugada e, no dia seguinte estar em pé no horário e local
combinados para participar de uma manifestação coletiva. Como
ressalta Brandão: “é importante captar todas as dimensões existentes
no processo de organização e luta será que os que cantam e crêem
não participam e não lutam? E será que os que lutam e participam
não crêem e não cantam?”. São muitas facetas: políticas, estéticas,
artístico-culturais, religiosas, presentes nas práticas e manifestações
das classes populares.
Qualquer observador que presencie as manifestações públicas
do MST, durante algum tempo, percebe que cada nova ação é uma
recriação do momento vivido, uma reinvenção das formas de socia-
bilidade e de fazer política.
Essa multiplicidade de ações e práticas recriadas vem contribuin-
do para que o MST marque sua presença na sociedade brasileira,
também construindo práticas culturais e uma identidade própria.

A Experiência da Luta e o reflexo no


cotidiano da Escola.

O acúmulo de experiências, através das mobilizações, também tem


seus reflexos nas salas de aula. Um exemplo dessa influência pode ser
constatado na mobilização realizada espontaneamente por alunos
da escola “Elói Ferreira da Silva”, no assentamento 4045, em Maio
1998. A escola que foi construída nesse local foi fruto, como referido
anteriormente, das mobilizações realizadas pelo MST nos anos de
1995/96, junto ao INCRA e ao governo do Estado. Logo que a esco-
la ficou pronta, começou a funcionar com recursos do município. A
direção dessa escola foi entregue a um diretor escolhido pelo prefeito
municipal. A comunidade era contra, mas o diretor iniciou os seus
trabalhos com a promessa de atuar em parceria com a comunidade,
respeitando as opiniões e sugestões vindas dos assentados. É hábito,
nas escolas dos assentamentos, logo no início das aulas, que os alunos
166 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

cantem o hino nacional e o do MST, e hasteiem as duas bandeiras: do


Brasil e do movimento. Relato de um dos alunos:

Não sabemos se foi orientado pelo prefeito ou não, mas


um dia, o diretor impediu que cantássemos o hino do
MST e hasteássemos a nossa bandeira. Para nós foi o
maior desrespeito com nossa organização, pois aquela
escola foi conseguida com mobilizações, não foi de graça
não (Reinaldo).

Por conta desse episódio, os próprios alunos organizaram um


boicote às aulas. A reivindicação principal era a saída do diretor.
Os alunos pleiteavam um diretor que não impedisse a democrati-
zação do espaço escolar conquistado, respeitando os símbolos do
Movimento.
Esse exemplo mostra que a luta pela escola não se encerra em si
mesma, que constitui um aprendizado para a vida cotidiana e para
sempre. Além disso, tais exemplos também são indícios de que a
luta pela democratização da escola, passa também pela democrati-
zação da qualidade do ensino e da gestão da escola.
Nesse sentido, Bezerra Neto (1999 p.112) ressalta:

O MST inova também conceito de escola pública, en-


tendendo que esta deva ser mantida com recursos (esta-
tais) e orientada pelos interesses da comunidade. Para o
MST, o fato de a educação ser um dever do Estado não
pode significar que a direção da escola pública deva ser
reservada exclusivamente ao Estado, pois ela tem que
estar a serviço da comunidade e é a comunidade quem
melhor identifica suas necessidades.

A compreensão histórica mais abrangente das lutas e mobiliza-


ções por escolas nos assentamentos remete a alguns processos de
natureza global, relativos ao desenvolvimento e expansão do capi-
Maria Nalva R. Araújo 167

talismo no campo e ao papel que o Estado brasileiro tem desempe-


nhado nesse processo.
O avanço do capitalismo no campo, nos últimos anos, tem se
dado de forma desigual e excludente, com o predomínio de relações
de produção subordinadas à lógica do capital, gerando intensos flu-
xos migratórios para os centros urbanos. Nas últimas décadas, mais
de 30 milhões de camponeses foram expulsos do campo.
Sem entrar na discussão das causas sócio-ecônomicas e políticas
que explicam esses processos de expulsão e exclusão, cabe ressaltar que
a diminuição em termos quantitativos da população rural, passando
de 55%, em 1960, para 26%, em 1991, tem feito com que o Estado
priorize as políticas públicas de oferecimento de serviços educacionais
para os setores urbanos. Os dados oficiais de oferta de serviços educa-
cionais, atestam o privilegiamento da população urbana recente.
Por outro lado, tem provocado a reação e a contraposição aos
processos de exclusão econômica, social, cultural e política dos dife-
rentes setores e classes trabalhadoras brasileiras.
Organizados em movimentos sociais, como o MST e outros de
menor abrangência, os trabalhadores do campo têm resistido e avan-
çado. O MST e outros movimentos sociais do campo têm contribu-
ído substancialmente para manter as populações camponesas fixadas
ao campo, fazendo o caminho inverso da tendência apontada acima.
Organizado em 23 Estados da Federação, o MST apresentou como
resultado, até 2004, o assentamento de 400 mil famílias, perfazen-
do 1.7 milhões de pessoas num território de 14 milhões de hectares.
Quanto aos acampamentos, estes somam hoje em média 500, com
100 mil famílias. (Agenda MST 2004).
Analisando a trajetória das mobilizações por escola no extremo
sul da Bahia, na década de 90, observou-se que a garantia de direitos
assegurados legalmente só se efetivará através de um longo e penoso
percurso de lutas e pressões constantes.
168 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

Quanto a ausência de efetivação de direitos aos camponeses, no


que toca ao lugar e à qualidade da escola no campo, Mançano (1999
p. 65) alerta que: “na maioria dos Estados, a escola rural esta re-
legada ao abandono. Em muitos recebeu a infeliz denominação de
escolas isoladas. Como predomina a concepção unilateral da relação
campo, muitas prefeituras trazem as crianças para as cidades, num
trajeto de horas de viagem”.
Essa realidade é questionada nos documentos do MST e a re-
ferencia que vai sendo construída é de outra escola: o que está em
questão é um projeto de escola e não a sua localização. “Uma escola
do campo tem uma especificidade que é inerente à histórica luta de re-
sistência camponesa. Ela tem seus valores singulares que vão em direção
contrária aos valores burgueses. Esse é um dos elementos importantes
sua essência”. (MST, p. 1998).

As escolas conquistadas e construídas

Em abril de 2000, existiam nos assentamentos e acampamentos


da região, 26 escolas; destas, 12 foram conseguidas através de mobi-
lizações, 13 com negociação, uma com doação3 de uma administra-
ção municipal italiana. Como se observa na tabela 11, os dados não
assinalam mobilizações nas prefeituras de Itamarajú e Porto Seguro.
As razões identificadas nas entrevistas evidenciam que as negocia-
ções realizadas através de comissões nesses municípios, foram até
o momento, suficientes, não havendo necessidade da utilização de
outras formas de pressão massiva.

3 Essa doação aconteceu quando da visita de Prefeitos italianos ao ainda acampamento Bela
Vista. Na oportunidade foram recepcionados pelas crianças que ofereceram para comer o me-
lhor que tinham: milho cozido, aipim, café. Com bastante emoção, perguntaram quais eram os
sonhos das crianças, tinham, presentes que gostariam de ganhar e todas responderam numa só
voz: uma escola.
Quadro 02 - Escolas conquistadas e existentes nos assentamentos da Região Extremo Sul.
Início/
N.º Nº Nº
Município Assenta-mento Escolas Séries Funciona- Formas de pressão adotadas
Professores Alunos mento
Alcobaça 4045 06 12 545 Ens. Fund. I e II 1988 e 1996 Mobilização e Negociação
Mobilização na Prefeitura , cami-
Paulo Freire 02 02 75 Ens. Fund. I 1998
nhada e ocupação
Mucuri Florestan
01 01 25 Ens. Fund. I 1999 Mutirão e Trabalho voluntário
Fernandes
Bela Vista 01 06 250 Ens. Fund. I e II 1999 Doação Adm. Italiana
Corte Grande 01 05 95 Ens. Fund. I e II 1986 e 1998 Negociação e Mobil. INCRA
Itamarajú
Goiânia* 01 01 96 Ens. Fund. I 1999 Negociação e Mutirão
1º de Abril 01 01 56 Ens. Fund. I 1990 Mobilização
Riacho das Ostras 02 03 190 Ens. Fund. I 1988 Mobilização
Corumbau 02 02 108 Ens. Fund. I 1989 Mobilização
Guaíra 01 01 40 Ens. Fund. I 1986 Negociação
3 Irmãos 01 06 107 Ens.Fund. I e II 1989 Mobilização
Prado Modelo* 01 01 31 Ens. Fund. I 1990 Mutirão
Mobilização pelo Material e
Ensino Fundam.
Rosa do* Prado 03 06 296 1994 construção dos pais para cons-
I
trução
Chico Mendes 01 02 82 Ens. Fund.I 1999 Mutirão e negociação
52
Porto Seguro Terra Nova 01 02 Ens.Fund. I 1998 Negociação
Maria Nalva R. Araújo

Jucuruçu Nova Dely O1 04 82 Ens. Fund. I e II 1998 Mobilização


Fund. I – 21
Total 26 55 - - -
Fund. II - 5
Fonte: Setor de Educação MST-BA abril/2000
169
170 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política

As construções dos prédios escolares efetuadas pelo governo


do Estado possuem um bom padrão de qualidade, em muitos ca-
sos, superando o das escolas oficiais. Entretanto, suas condições de
funcionamento ainda são precárias, possuem o básico para funcio-
namento: carteiras, quadro de giz, poucos materiais didáticos e co-
zinha equipada. Mas não possuem equipamentos como: armários,
arquivos, bibliotecas, exceto nos assentamentos 4045, Três Irmãos,
Bela Vista e Corte Grande. Em tais casos, a implantação das mes-
mas deveu-se à iniciativa do setor de Educação do MST que, jun-
tamente com os professores, vêm realizando campanhas de doação
de livros, prateleiras, mesas junto à população urbana (estudantes,
professores, sindicatos e outros).
No que diz respeito à legalização das escolas de acampamentos da
região, ainda não foram legalizadas aquelas pertencentes ao município
de Mucuri.
Quanto ao atendimento à população de 7 a 11 anos, a pesquisa rea-
lizada nos acampamentos/assentamentos não identificou a existência
de crianças fora da escola. Contudo, observou-se a existência de um
sério problema em relação à distorção idade/série. Esta situação é nu-
mericamente significativa e, para ilustrá-la, trago alguns dados de um
levantamento feito no acampamento Rosa do Prado, em abril/2000.
A classe de 3ª série é freqüentada por 26 alunos, sendo que apenas
dois alunos têm 9 anos; 10 alunos possuem de 10 a 12 anos e o restan-
te possui idade superior, ou seja, aproximadamente 50% estão defa-
sados em relação a idade. Esses dados demonstram que o ingresso na
escola, para muitos desses alunos, foi tardio em virtude da situação de
exclusão a que estavam submetidos. Nesse sentido, não fogem ao pa-
drão da maioria das escolas do campo no Brasil. Em todo o Estado da
Bahia desde as séries iniciais do ensino fundamental, cerca de 41,4%
dos alunos matriculados nas escola públicas baianas estão com idade
superior à série que cursam. Esta questão se reflete nas demais séries,
fazendo com que esses alunos cheguem às séries finais do ensino fun-
damental com uma defasagem acima de 56% em todo o Estado.
Maria Nalva R. Araújo 171

Quanto ao Ensino Fundamental completo, a situação ainda é


precária. Em todas as mobilizações realizadas pelo MST, até 1998,
o ponto principal das pautas consistia na reivindicação da imple-
mentação das séries 5ª a 8ª do Ensino fundamental. Até 1998, ape-
nas o município de Alcobaça havia atendido a essa demanda e até
março/2000, os seguintes municípios atenderam à reivindicação de
implantação das séries finais do ensino fundamental: Prado (assen-
tamentos 3 irmãos e Corumbau); Itamarajú (assentamentos Bela
Vista e Corte Grande) e Jucuruçu (assentamento Nova Dely). Cerca
de 350 jovens ainda são transportados para as escolas da cidade. Na
atualidade (2008) já funcionam o ensino médio nos assentamentos
Três Irmãos, Bela Vista e 4045.
Não se pode negar que as condições educacionais ainda estão
deficitárias, mas as conquistas têm sido significativas para aos os ho-
mens e mulheres sujeitos desta luta.
A década de 1990 do século XX, escolhida pelos organismos
Internacionais como a década da educação para todos, só se efe-
tivou no campo brasileiro, PARA TODOS AQUELES QUE
LUTARAM.

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174 Horizontes da Luta Social – os sujeitos da política Po s t f á c i o

Postfácio
Minhas Saudações
Moisés Augusto Gonçalves (Catatau)

Aos homens e mulheres


que se despiram das máscaras que vestimos para suportar a vida,
e ousam dizer um não sempre renovado
à imagem imposta pela mediocridade que os cerca
e condena às sombras, o eu real - o eu mesmo -, feito de carne e osso,
faminto de tesão e fantasia, talhado dentre as pedras que
correm no leito da caminhada; águas de muitas margens e faces
machucadas pelas pedradas, atiradas pela antepenúltima
mentira.
Escândalo! No reino da hipocrisia.
Impertinência! Sem licenças ou imprimatur.
Aos que não se venderam por trinta moedas aos podres poderes,
sabedores de sua tramas, sua lama e armadilhas,
não mendigaram suas benesses e status,
nem se prostraram diante do altar do vil metal.
Aos que tem a ousadia de extrair da longa caminhada a grande lição:
conhecer é sentir bem lá dentro as agruras e beijos do estar aqui,
decifrar seus códigos e rituais – ainda que para virá-los ao
avesso -, desvendar seus segredos e interditos.

Aos que não se enquadram na moldura e desnudos das fachadas


pintadas de medo - clausura dos que temem voltar-se
para a boca da caverna e sentir seu calor e clarão -,
(re-) desenham formas e sentidos outros-, aqueles que não
sufocam o poeta..
Enfim, aos que descobriram nas páginas da vida
o sentido da palavra por excelência: DIGNIDADE!
E por isso mesmo, se fizeram resistência e ternura,
Gente no calor das lutas!

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