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FÓRUM FORUM 1749

Autonomia: viver a própria vida


e morrer a própria morte

Autonomy: to live one’s own life


and to die one’s own death

Diaulas Costa Ribeiro 1

Abstract A palavra autonomia, do Grego autos (próprio)


e nomos (regra, autoridade ou lei), foi utilizada,
1 Promotoria de Justiça The present study describes the changes that have originariamente, para expressar o autogoverno
Criminal de Defesa dos
occurred in most Western countries, Brazil in- das cidades-estado independentes. Na década
Usuários dos Serviços
de Saúde, Ministério Público cluded, since medicine has shifted progressively de 1970 – tomamos como referência o Relató-
do Distrito Federal from a paternalistic model to one that promotes rio Belmont –, incorporou-se à biomedicina
e Territórios, Brasília, Brasil.
patients autonomy and self-determination. Re- para significar atribuição de poder para se to-
Correspondência spect for patient autonomy and self-determina- mar decisões sobre assuntos médicos. Compa-
D. C. Ribeiro tion is the primary basis for withholding and rativamente, uma pessoa com autonomia ple-
Promotoria de Justiça
withdrawing life support. An adult patient who na tem os mesmos poderes e garantias que um
Criminal de Defesa dos
Usuários dos Serviços de has decision-making capacity and is appropri- Estado: autodeterminação.
Saúde, Ministério Público do ately informed has the right to forgo all forms of O Relatório Belmont, de 1978, foi apresen-
Distrito Federal e Territórios.
Eixo Monumental,
medical therapy, including life support measures. tando pela National Comission for the Protec-
Praça do Buriti, Lote 2, The right to refuse treatment applies equally to tion of Human Subjects of Biomedical and Be-
Sala 507, Brasília, DF withholding therapy that might be offered, such havioral Research, instituída pelo Governo
70094-900, Brasil.
diaulas@diaulas.com.br
as cardiopulmonary resuscitation, and to with- americano, em 1974, “com o objetivo de levar a
drawing therapy that is already underway, such cabo uma pesquisa e um estudo completo que
as artificial hydration, nutrition, and ventila- identificassem os princípios éticos básicos que
tion. This right is based on the ethical principle deveriam nortear a experimentação em seres
of autonomy or self-determination. Helping an humanos nas ciências do comportamento e na
informed and capable patient to forgo life sup- biomedicina” 1 (p. 10). Nele, foram identifica-
port under these circumstances is regarded as dos três princípios éticos básicos: autonomia,
distinct from participating in requested homi- beneficência e justiça.
cide, assisted suicide, or passive/active euthana- As relações de saúde, construídas sob o mo-
sia. The patient has the right to choose, includ- delo paternalista, foram diretamente afetadas
ing where the deathbed will be placed, and to be pelo princípio da autonomia. No Brasil, a mu-
left alone with family at that time. dança ainda não está consolidada, mas há si-
nais indicativos da substituição do paternalis-
Personal Autonomy; Assisted Suicide; Euthana- mo pelo consentimento livre e esclarecido. Fa-
sia; Bioethics la-se, hoje, em empowerment health, apodera-
mento sobre a saúde, ou seja, o paciente con-
quistou o poder de tomar decisões sobre sua

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saúde e sua vida; de sujeito passivo passou a ti- que declarou a amigos e familiares sua rejeição
tular do direito. O profissional de saúde, o mé- ao esforço terapêutico nos casos de estado ve-
dico por todos, de sujeito ativo passou a titular getativo permanente ou de doença terminal:
de uma obrigação. Antes soberano para tomar trata-se de justificação testemunhal dessa von-
decisões clínicas, passou a conselheiro, num tade. Essa via, contudo, demanda processos ju-
diálogo franco com o paciente, titular do direito diciais longos, como ocorreu com Karen Quin-
de tomá-las mediante esclarecimento que lhe lan, Nancy Cruzan e Terri Schiavo. Por sinal, nos
é devido pelo profissional. dias de exposição do Caso Terri Schiavo, insis-
A nossa legislação já contempla o respeito à tiu-se na supremacia do direito de viver, quan-
autonomia do paciente. Mas o Novo Código Ci- do o caso indicava a necessidade de debater-se
vil brasileiro, com suas três décadas de gesta- o direito de morrer, o direito autônomo de deli-
ção, ainda usa expressões paternalistas, de- berar sobre o tempo e o lugar da própria morte.
monstrando que não foi assimilado o “neolo- O direito de viver não é antagônico ao direi-
gismo”. Confira-se o art. 13, que diz: “salvo por to de morrer: compreende, na verdade, duas
exigência médica, é defeso o ato de disposição dimensões de um mesmo direito. Aliás, o direi-
do próprio corpo, quando importar diminuição to de viver já foi, inclusive, objeto de atual con-
permanente da integridade física, ou contrariar sideração da Igreja Católica, a Declaração sobre
os bons costumes”. Não existe mais exigência a Eutanásia (Sagrada Congregação para a Dou-
médica. A autonomia deu lugar à indicação, à trina da Fé. Cidade do Vaticano; 1980): “de fato,
recomendação, à prescrição, afastando a exi- há quem fale de ‘direito à morte’, expressão que
gência, a ordem. No art. 15, ocorreu o mesmo: não designa o direito de se dar ou mandar pro-
“ninguém pode ser constrangido a submeter-se, vocar a morte como se quiser, mas o direito de
com risco de vida, a tratamento médico ou a in- morrer com toda a serenidade, na dignidade
tervenção cirúrgica”, permitindo-se concluir humana e cristã”.
que há obrigação de aceitar tratamento ou ci- O sistema jurídico brasileiro assegura o di-
rurgia sem risco de vida, o que seria, hoje, um reito de viver e, dentro daquela aparente con-
contra-senso ético e jurídico. A leitura desse tradição, não reconhece formalmente o direito
artigo “conforme a Constituição” deve ser: nin- de morrer, o que levou a doutrina jurídica a
guém, nem com risco de vida, será constrangi- afirmar equivocadamente que não há esse di-
do a tratamento ou a intervenção cirúrgica, em reito entre nós. Viver a vida com autonomia é
respeito à sua autonomia, um destacado direi- um direito potestativo, que pode ser exercido
to desta Era dos Direitos. sem qualquer anuência de terceiros; ninguém
A autonomia não dispensa a capacidade pa- precisa de licença de outrem para viver a sua
ra expressá-la. Há situações em que o paciente própria vida, mormente em países sem pena de
se torna incapaz de decisões instantes, como morte. Feita essa exceção, ninguém, nem mes-
nos estados de inconsciência em geral, justifi- mo o Estado, pode impor qualquer restrição a
cando o surgimento dos testamentos vitais e esse direito, razão para se chamá-lo supremo.
das diretivas antecipadas, instrumentos de ma- Essa conclusão não afasta uma releitura do
nifestação de vontade para o futuro, com a in- direito de viver, que, por ser direito potestativo,
dicação negativa ou positiva de tratamentos e é renunciável apenas pelo seu titular. E se não
assistência médica. fosse renunciável, não seria direito, mas dever
Esses testamentos são usados para tratar da de viver. E enquanto dever de viver geraria con-
assistência ao paciente terminal; as diretivas seqüências jurídicas distintas das que hoje são
são utilizadas para dispor dos tratamentos mé- conhecidas, começando pela punição da ten-
dicos em geral, dos quais se pode recuperar ou tativa de suicídio, passando pela proibição dos
não. Há, portanto, continência entre os institu- esportes radicais e atividades de risco em geral
tos, não se justificando distingui-los 2. Adota- e culminando na mecanização da vida para
mos diretivas antecipadas que têm, pelo me- além da vida, o que imporia tratamentos desu-
nos, quatro alternativas para materializar-se: manos e degradantes ao doente.
escritura pública em cartório; declaração escri- Alemanha e Portugal, dois sistemas jurídi-
ta em documento particular, de preferência cos paradigmas para o Brasil, têm, como nós,
com firma reconhecida; declaração feita ao mé- punição para o homicídio. Têm, diferentemen-
dico assistente, registrada no prontuário, com a te de nós, um crime chamado homicídio a pe-
assinatura do paciente. Em qualquer situação, dido da vítima, punido com uma pena simbó-
poderá haver a nomeação de um procurador lica se comparada com o homicídio tradicio-
para tomar decisões não incluídas nas diretivas. nal. Em Portugal, quem mata determinado por
A quarta alternativa se refere ao paciente pedido sério, instante e expresso da vítima é
que não elaborou diretivas antecipadas, mas punido com pena de 1 mês a 3 anos, enquanto

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o homicídio qualificado pode chegar a 25 anos meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravi-
de prisão. Na Alemanha, quem mata a pedido dez resulta de estupro e o aborto é precedido de
da vítima é punido com pena de 6 meses a 5 consentimento da gestante ou, quando incapaz,
anos de prisão, enquanto o homicídio qualifi- de seu representante legal”. A doutrina brasilei-
cado pode ser punido com prisão perpétua. ra afirma há 60 anos que, na primeira hipótese,
O homicídio a pedido da vítima tem a carac- o médico não precisa de consentimento livre e
terística de ser um crime punido apenas quan- esclarecido da mãe, sendo exclusivamente sua
do a morte decorre de uma ação, de uma con- a decisão de interromper a gravidez nesses ca-
duta positiva, de um fazer algo. Não há crime sos, o que viola todos os novos princípios éti-
quando o pedido é negativo, para não se fazer cos e as garantias jurídico-constitucionais in-
algo, com exceção apenas para os casos de sui- corporadas à nossa ordem jurídica a partir do
cídio, em que não se aceita a omissão de trata- reconhecimento, dentre outros, do direito à au-
mentos vitais a pedido do suicida socorrido. tonomia como inerente à dignidade humana.
Isso quer dizer que a omissão de tratamen- “Mas como é? Em qualquer situação, mas espe-
tos médicos a pedido ou por recusa do doente cialmente nesta situação ético-existencial, em
não suicida não constitui crime e não se con- que se trata de decidir sobre a morte ou a vida
funde com o homicídio a pedido da vítima nem de um filho (ainda que em formação na “barri-
pode ser chamado de eutanásia passiva. Muito ga” da mãe), vai prevalecer a vontade do médico
pelo contrário, não respeitar o direito de mor- sobre a [vontade] da mãe? E não é a liberdade
rer, o direito à autodeterminação, é constrangi- consciente da mãe uma manifestação essencial
mento ilegal, pode ser abuso de poder e até le- da sua dignidade humana? Mais: vai ser o mé-
são corporal, na opinião de Claus Roxin 3 (p. 23): dico o juiz dos interesses (que não são econômi-
“se o paciente recusa a operação que salvaria cos!...) da mãe? Sobre essas considerações, não
sua vida, ou a necessária internação numa uni- posso deixar de dizer apenas isto: pobres garan-
dade de tratamento intensivo, deve o médico tias individuais. Só se fosse uma ordem jurídica
abster-se de tais medidas e, se for o caso, deixá- nazista; ai de nós se prevalecesse esta orwellia-
lo morrer. Esta solução é deduzida, corretamen- na república dos médicos!” 4 (p. 225).
te, da autonomia da personalidade do paciente, O pedido instante ou a recusa a tratamen-
que pode decidir a respeito do alcance e da du- tos em geral, feita por diretivas antecipadas,
ração de seu tratamento”. Em outras palavras, o denomina-se Suspensão de Esforço Terapêutico
dever de cuidado, que decorre da relação do pa- (SET). Como o nome indica, trata-se de suspen-
ciente com o seu garante, seja ele médico ou são de tratamentos – incluindo nutrição, hidra-
não, cessa com a oposição ao cuidado, feita au- tação e respiração artificiais – que visam ape-
tonomamente pelo doente ou seu representan- nas a adiar a morte, em vez de manter a vida. A
te legal: pais, tutor, curador ou um procurador finalidade da SET é afastar um obstáculo para
nomeado em diretivas antecipadas. que a morte, naturalmente, instale-se; é sus-
A propósito – e também para a devida com- pender a obstinação terapêutica, a distanásia,
paração com o art. 15 do Código Civil –, o Códi- a insistência tecnológica em “vencer o fim”, co-
go Penal brasileiro tratou do tema: “Art. 146. mo se isso fosse possível e atendesse ao melhor
Constranger alguém, mediante violência ou gra- interesse do doente.
ve ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por Essa conclusão também foi adotada pela
qualquer outro meio, a capacidade de resistên- Igreja Católica na Declaração sobre a Eutaná-
cia, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o sia: “na iminência de uma morte inevitável,
que ela não manda. (...) § 3o – Não se compreen- apesar dos meios usados, é lícito em consciência
dem na disposição deste artigo: I – a interven- tomar a decisão de renunciar a tratamentos que
ção médica ou cirúrgica, sem o consentimento dariam somente um prolongamento precário e
do paciente ou de seu representante legal, se jus- penoso à vida, sem contudo, interromper os cui-
tificada por iminente perigo de vida; II – a coa- dados normais devidos ao doente em casos se-
ção exercida para impedir suicídio...”. As exce- melhantes. Por isso, o médico não tem motivos
ções feitas nesse parágrafo terceiro significam para se angustiar, como se não tivesse prestado
que o médico não está obrigado a tomar essa assistência a uma pessoa em perigo...”. Mas,
medida. Mas, se a tomar, não praticará crime, desde 24 de fevereiro de 1957, já havia referên-
o que demonstra o resquício do paternalismo – cia, nos discursos do Papa Pio XII, à licitude da
o médico decide – inerente à época da elabora- recusa a tratamentos extraordinários: “a razão
ção do Código Penal, em vigência desde 1942. natural e a moral cristã fundamentam, ambas,
Ainda a título de ilustração, o art. 128, do o direito e o dever de, em caso de doença grave,
mesmo Código Penal, diz que “não se pune o procurar o tratamento para conservar a saúde e
aborto praticado por médico: I – se não há outro a vida. Normalmente alguém está obrigado a

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empregar apenas os meios ordinários – confor- conhece, que compreende, aceita e considera
me as circunstâncias de pessoas, tempos e cul- “humano” interromper o sofrimento incurável
tura –, isto é, meios que não impliquem ônus ex- de um animal, mas que não permite, com o
traordinário para si ou para outrem. Obrigação mesmo argumento – obviamente sem a metá-
mais severa seria por demais onerosa para a fora – e nas mesmas condições, afastar o sofri-
maioria das pessoas e tornaria muito difícil a mento de um homem capaz e autônomo. É in-
consecução do bem superior, mais importante. teressante notar, ainda, que, enquanto se dis-
Vida, saúde, todas as atividades temporais es- cute sem consenso a aceitação da eutanásia
tão na realidade subordinadas aos fins espiri- como um ato de cuidado, outros movimentos
tuais” 5 (p. 147). se desenvolvem e constroem soluções a partir
No Brasil, não há autorização legal para a de princípios que também são invocados na-
eutanásia nem para o suicídio assistido. Por si- quela discussão: a autonomia e a dignidade no
nal, na Alemanha, não é crime a participação fim da vida.
em suicídio, cuja punição, entre nós, tem pou- Como resultado desses movimentos, o Mi-
ca lógica jurídica, estando sustentada pela con- nistério da Saúde editou a Portaria n. 675/GM
veniência de uma política criminal influencia- de 30 de março de 2006, aprovando a Carta dos
da pelo Código Canônico, que previa, até 1982, Direitos dos Usuários da Saúde, consolidando,
punições para os suicidas. Antes mesmo da re- num documento único, os direitos e deveres do
vogação das punições aplicadas aos suicidas, exercício da cidadania na saúde em todo o Bra-
que eram basicamente a proibição de celebra- sil. Nota-se, nesse documento, que o uso da
ção fúnebre religiosa e o sepultamento em ce- palavra usuário – em vez de paciente, o sujeito
mitérios católicos, a Igreja já havia compreen- passivo – não foi uma opção lingüística neutra,
dido que a exigência de suspensão de esforço mas um passo decisivo para consolidar, no sis-
terapêutico feita pelo paciente não se confun- tema de saúde nacional, a prevalência do inte-
dia com suicídio 4. resse do doente e não mais do profissional de
Mas a suspensão de esforço terapêutico tem saúde. Em outras palavras, trata-se de iniciati-
suporte entre nós na Constituição Federal (art. va histórica a afirmar o consentimento livre e
1.o, III, e art. 5.o, III) – que reconhece a dignida- esclarecido como substituto do paternalismo
de da pessoa humana como fundamento do es- nas relações de saúde, garantindo ao usuário o
tado democrático brasileiro e diz expressamen- direito à informação a respeito de diferentes
te: ninguém será submetido a tortura nem a tra- possibilidades terapêuticas de acordo com sua
tamento desumano ou degradante –, no Código condição clínica, considerando as evidências
Civil (art. 15) – que autoriza o paciente a recusar científicas e a relação custo-benefício das al-
determinados procedimentos médicos –, na Lei ternativas de tratamento, com direito à recusa.
Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90, art. 7.o, III) Essa portaria reafirmou que é direito do
– que reconhece o direito à autonomia do pa- usuário o consentimento ou a recusa de forma
ciente – e no Código de Ética Médica – que repe- livre, voluntária e esclarecida, depois de ade-
te esses mesmos princípios legais e ainda proí- quada informação, a quaisquer procedimentos
be o médico de realizar procedimentos terapêu- diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, sal-
ticos contra a vontade do paciente, fora de um vo se isso acarretar risco à saúde pública. Tam-
quadro de emergência médica de salvação, o que bém é direito do paciente revogar ou retratar, a
não é o caso de um quadro irreversível, sem ne- qualquer momento, por decisão livre e esclare-
nhuma resposta a qualquer tipo de tratamento. cida, o consentimento ou a recusa anteriores,
Há, ainda, uma lei excepcional sobre esse sem que lhe sejam imputadas sanções morais,
tema: a Lei dos Direitos dos Usuários dos Servi- administrativas ou de qualquer natureza. São,
ços de Saúde do Estado de São Paulo (Lei n. ainda, direitos do usuário não ser submetido a
10.241/99), conhecida como Lei Mário Covas, nenhum exame, sem conhecimento e consen-
que assegura em seu art. 2 o: “são direitos dos timento, bem como a indicação de um repre-
usuários dos serviços de saúde no Estado de São sentante legal de sua livre escolha, a quem con-
Paulo: XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou fiará a tomada de decisões para a eventualida-
extraordinários para tentar prolongar a vida”. de de tornar-se incapaz de exercer sua autono-
Ressalte-se, como a vida, que a morte digna mia (direito de apresentar e de ter respeitadas
também é um direito humano. E por morte dig- suas diretivas antecipadas). Por fim, foi assegu-
na se compreende a morte sem dor, sem angús- rado o direito de opção pelo local de morte,
tia e de conformidade com a vontade do titular que contempla o direito de opção pelo tempo
do direito de viver e de morrer. E nesse sentido da morte. Esse direito atende à reivindicação
é paradoxal a postura social, muitas vezes ema- da desospitalização do paciente, recusada por
nada de uma religiosidade que a religião des- médicos sob o temor de estarem, com a alta a

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pedido, concorrendo para a morte do paciente, meios, quando os resultados não correspondem
o que também é inerente ao paternalismo e já às esperanças neles depositadas. Mas, para uma
não tem razão de ser neste novo contexto. tal decisão, ter-se-á em conta o justo desejo do
Assim, morrer em casa é um valor que se doente e da família, como também o parecer de
resgata para escapar da solidão das UTIs, da médicos verdadeiramente competentes...”. (Sa-
engenharia médica de circunstância, da obsti- grada Congregação para a Doutrina da Fé. De-
nação terapêutica e da indignidade no morrer. claração sobre a Eutanásia. Cidade do Vatica-
O direito de morrer a própria morte em casa – no; 1980).
ou onde se quiser morrer – é o direito sagrado Em conclusão, o respeito à autonomia, à
de escolher onde, quando e com quem se quer autodeterminação pessoal é a base para a sus-
fazer essa passagem, que são requisitos tam- pensão de esforço terapêutico dos usuários dos
bém feitos para o casamento, que é um dos mais serviços de saúde. Por suspensão de esforço te-
antigos exemplos de respeito à autonomia e ao rapêutico compreende-se não iniciar ou sus-
consentimento livre e esclarecido do nosso sis- pender uma terapia iniciada, não ressuscitar
tema jurídico. nos casos de parada cardiorrespiratória, não
Um exemplo recente ilustra e ajuda a com- submeter o doente à ventilação mecânica, ali-
preender o que é morrer a própria morte. Cons- mentação e hidratação artificiais contra a sua
ta-nos que o Papa João Paulo II decidiu deixar vontade, que pode ser instante ou manifestada
o hospital, onde provavelmente seria submeti- em diretivas antecipadas. Os médicos e demais
do a esforço terapêutico, para permanecer em profissionais de saúde têm o dever de respeitar
casa, entre os seus, à espera da morte oportu- a autonomia do usuário, inclusive para lhe dar
na. Chamamos essa decisão de A Encíclica Si- alta “a pedido”, deixando que a morte ocorra no
lenciosa de Karol Wojtyla 6, que, como informa- local, no tempo e em companhia de quem o
do acima, havia aprovado, em 5 de maio de doente quiser. O usuário dos serviços de saúde
1980, a Declaração sobre a Eutanásia, que tra- tem o direito de estar só e de morrer só, de es-
tou do que a Igreja considera e do que não con- tar acompanhado e de morrer entre os seus 7.
sidera eutanásia. Tratou do consentimento li- Por fim, Maquiavel classificou três tipos de
vre e esclarecido e da suspensão de esforço te- inteligências humanas: a dos que entendem as
rapêutico, constituindo um documento básico coisas por si próprios; a dos que discernem o
para essa discussão, que, apesar de travar-se que os outros entenderam; e a dos que não en-
num Estado laico, não pode desconsiderar os tendem por si próprios nem sabem discernir o
aspectos religiosos que se apresentam no en- que os outros entenderam. Espera-se apenas
frentamento da morte. “É lícito, com o acordo que o direito de viver a própria vida e o direito
do doente, recorrer aos meios de que dispõe a de morrer a própria morte, enquanto primeiro
medicina mais avançada, mesmo que eles este- e último dos direitos potestativos da personali-
jam ainda em fase experimental e não seja isen- dade, não fiquem à mercê desse último tipo de
ta de alguns riscos a sua aplicação. Aceitando- inteligência e que possam, pelas outras, ter a
os, o doente poderá dar também provas de gene- devida compreensão. Essa sempre foi a reivin-
rosidade ao serviço da humanidade. É também dicação dos que morreram antes de nós.
permitido interromper a aplicação de tais

Resumo

Este estudo destaca mudanças ocorridas no Ocidente, ção mecânica, alimentação e hidratação artificiais
inclusive no Brasil, em decorrência da substituição do contra a sua vontade, que pode ser instante ou mani-
princípio do paternalismo pelo consentimento livre e festada em diretivas antecipadas. Os médicos e demais
esclarecido nas relações biomédicas, com destaque pa- profissionais de saúde têm o dever de respeitar a auto-
ra a integração da autonomia como princípio inerente nomia do usuário, inclusive para lhe dar alta “a pedi-
à dignidade humana. O respeito à autonomia, à auto- do”, deixando que a morte ocorra no local, no tempo e
determinação pessoal é a base para a suspensão de es- em companhia de quem o doente quiser. O usuário dos
forço terapêutico dos usuários dos serviços de saúde serviços de saúde tem o direito de estar só e de morrer
com capacidade preservada. Por suspensão de esforço só, de estar acompanhado e de morrer entre os seus.
terapêutico compreende-se não iniciar ou suspender
terapia iniciada, não ressuscitar nos casos de parada Autonomia Pessoal; Suicídio Assistido; Eutanásia;
cardiorrespiratória, não submeter o doente à ventila- Bioética

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1754 Ribeiro DC

Referências

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medicina. Direito e Justiça, Lisboa 2004; XVIII:
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cae Sedis 1957; 49:147.
6. Ribeiro DC. Promotor do Distrito Federal quer
garantir sexo para pacientes com paralisia cere-
bral [Entrevista]. Revista Época 2005; 365:22-6.
7. Queiroz A. Como vamos viver a morte? Jornal de
Brasília 2004; 23 nov.

Recebido em 24/Abr/2006
Aprovado em 24/Abr/2006

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