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05/10/2018 Consenso, só no paredão!

Cinismo e falência da crítica, de Vladimir Safatle


Por Alexandre Nodari em setembro 10, 2009 1:33 AM | Permalink | Comentários (14)

A história do poder é a história da captura das formas de crítica e resistência a ele. Este bem
poderia ser o mote de certa tradição intelectual marxista, que se cristaliza na chamada Escola de
Frankfurt (por esse motivo, sempre acusada de pessimista), e na qual se inscreve Vladimir
Safatle. Como sabemos, uma das características que marca a especificidade da guinada
intelectual dos frankfurtianos é a aliança entre teoria social crítica e psicanálise (a ausência
completa desta em Habermas é suficiente para sinalizar que ele não é herdeiro desta tradição) -
e, também aqui, com a presença decisiva de Lacan no rol analítico de Safatle, se pode notar a sua
filiação a esta corrente. Este é um dos motivos pelos quais a acusação feita por Evando
Nascimento - a de ser um "amálgama" intelectual - em relação a Cinismo e falência da crítica,
que hoje discutiremos, ser falha: não leva em conta a centralidade que Adorno e Lacan possuem
na análise de Safatle: Foucault e Deleuze, "estão, em larga medida, sendo criticados em pontos regionais e precisos", para
usar os termos do próprio autor em sua resposta à Evando Nascimento. A meu ver, a postura de Nascimento reforça
uma oposição que esteriliza o pensamento brasileiro, a oposição entre "pós-estruturalistas" e os "uspianos marxistas"
(prova disso são os textos de encerramento do "debate", em que não se debate mais nada, pois a dicotomia fora
traçada como premissa na resenha inicial) - e, a meu ver, a obra de Safatle deve, por isso, ser inserida neste contexto como
um esforço de, partindo de uma teoria crítica frankfurtiana, dialogar criticamente com o "pós-estruturalismo", isto é,
aproximar (no sentido de colocar em contato, o que não quer dizer fusionar) correntes que, no Brasil, costumam ficar
separadas como água e vinho (citar um autor de uma delas aparece como filiação imediata). Há, porém, um ponto em que
a resenha de Nascimento é certeira: "a impressão", que se tem ao ler o livro, de "que teria havido na história do globo um
período de total e pleno direito, após o qual ocorreria o advento de sociedades anômicas, em que predomina a crise de
legitimação". Talvez se Safatle tivesse atentado mais à periferia global (ele o faz, mas de passagem), pudesse ter visto que,
aqui, nunca houve crise de legitimação, porque nunca houve legitimação da racionalidade social.

Mas, antes das críticas, vamos ao diagnóstico traçado por Safatle. A situação que ele descreve se assemelha ao que Paulo
Arantes, em Extinção (que discutimos no Clube de Leituras anterior), chamou de "estado de sítio moral da
inteligência globalitária". Porém, Safatle vai mais além e procura compreender a lógica desta "petrificação geral da
linguagem" (para usar outra expressão de Arantes), na qual identifica o "cinismo": "a recorrência de casos de enunciação
da verdade que anulam a força perlocucionária da própria enunciação sem, contudo, transgredir os critérios normativos
de enunciação e justificação" (p. 76). Não se trata de mera contradição performativa, como na hipocrisia, mas de um
discurso que mantém a lei ao transgredi-la, mostrando como não é possível estabelecer um nexo seguro entre a lei e sua
aplicação, isto é, para usar a terminologia de Safatle: mostrando como a indexação não é um processo inequívoco, está
longe de ser uma subsunção lógica. Se o cinismo pôde funcionar como instrumento de crítica, hoje ele teria sido capturado
e internalizado pelo status quo: "o cinismo é a continuação do princípio da identidade por outros meios" (p.60), ele
mantém "a lei do valor ao mesmo tempo em que mina o valor da lei" (p. 102). Ou seja, não enfrentaríamos mais a
"ideologia" enquanto "falsa consciência", mas sim enquanto "falsa consciência esclarecida", ou "ideologia reflexiva". Isto
porque o capitalismo contemporâneo, como bem aponta Safatle a partir de uma indicação precisa de Adorno, é totalmente
transparente. Aqui, a análise da configuração recente dos produtos da indústria cultural revela tudo: "Os [seus] conteúdos
já são previamente ironizados e é isso que lhes permite continuar circulando": "Personagens de contos de fadas que não
mais se reconhecem e criticam seus próprios papéis, propagandas que zombam da linguagem publicitária, celebridades e
representantes políticos que se auto-ironizam em programas televisivos", etc. Como está cada vez mais claro, há um
paralelo entre a situação de exceção atual e o fascismo: assim, Safatle, fazendo uso mais uma vez de uma análise de
Adorno, argumenta que, neste, "tudo era aparência posta como aparência e, fato de suma importância, sabia-se disso" (p.
97). Poderíamos dizer, portanto, que O Grande Ditador, de Chaplin, não é uma paródia a Hitler, mas o seu perfeito
retrato - e daí um certo mal-estar entre algumas pessoas que assistem ao filme (e o gozo de muitas outras).

A ideologia, deste modo, não seria uma crença, mas "uma questão de repetição de rituais materiais", o que, sob o reino do
cinismo, implica "uma inércia na modificação do agir (...) ainda maior, pois o sujeito se dessolidariza de seu próprio ato,
que ganha a força do automatismo" (p. 106). Além do paralelo entre exceção contemporânea e fascismo, Safatle aponta
para outra especificidade do capitalismo atual bastante visível: a centralidade do consumo em detrimento da produção. A
partir desse dado, Safatle tenta mapear como isso acarretou (e foi acarretado por) uma mudança na "economia libidinal":
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a passagem de uma ética do trabalho e da poupança a uma "ética do direito ao gozo" - "a incitação e a administração do
gozo se transformaram na verdadeira mola propulsora da economia libidinal" (p. 128). O resultado não seria tanto a
"satisfação administrada", mas a "insatisfação administrada", pois há uma "desvinculação geral entre imperativo de gozo e
conteúdos normativos privilegiados" (p. 132): o imperativo de gozo jamais é satisfeito, o "Goze!" é um significante vazio,
jamais se identifica, senão parcialmente, com um objeto. Além disso, os produtos disponíveis à suposta satisfação já são
de antemão ironizados (eles nem prometem mais a satisfação). Os objetos de consumo não disponibilizam só conteúdos
determinados de certa formatação social (como uma crítica simplista insiste), mas "a pura forma da reconfiguração
incessante que passa por e anula todo conteúdo determinado", pura forma essa possibilitada pela manutenção de um
"único axioma intocável": "o processo de autovalorização do próprio capital. Axioma, e não código que determina o
sentido dos fluxos que os processos de equivalência produzem" (p. 140). Até aqui, estou de acordo com o Safatle. Mas, a
partir desse panorama, quero apontar algumas divergências:

1) Não estou inteiramente convencido de que a passagem do supereu repressor ao supereu que ordena o gozo implica
necessariamente que o capitalismo contemporâneo não incuta mais culpa. Pelo contrário. Walter Benjamin, em "O
capitalismo como religião", texto de 1921, identifica o capitalismo como a primeira religião sem dogma, no que converge
com a análise de Safatle (no fato da ideologia não ser uma crença, mas repetição de rituais materiais), mas se afasta dela
ao acrescentar que, além disso, o capitalismo, enquanto religião não produz a expiação, mas a culpa. Creio que a culpa seja
a forma do capitalismo capturar a insatisfação em relação a ele (captura que Safatle também aponta, a partir de Guy
Debord). Inserindo a insatisfação no domínio jurídico da culpa, que, como todo ato jurídico, pode ser compensado,
transigido, julgado, o capitalismo se retroalimenta - basta ver o atual discurso da responsabilidade (também um termo
jurídico) social, ambiental, do consumo responsável, etc. Porém, o capitalismo não expia a culpa, a produz. Daí que a
retroalimentação se torne infinita. Ao exercermos o "consumo socialmente correto", tentamos expiar o inexpiável - e logo
tentaremos a expiação em outra "forma de vida" oferecida como commodity.

2) A partir desta idéia benjaminiana de que o capitalismo é uma religião puramente ritual, ou seja, sem dogma, gostaria
de apontar outro ponto que está ausente em Cinismo ou falência da crítica. Não é propriamente uma falha de Safatle, já
que ele não se propõe a investigá-lo, mas que poderia trazer mais elementos para a análise. Me refiro à passagem entre os
dois regimes (aquele no qual se tentava legitimar as condutas e os discursos apelando a uma normatividade da
racionalidade social, e o atual, em que esta é ironizada de antemão - ou, por outra, a passagem do supereu repressor ao
supereu que ordena o gozo). Se Safatle explica muito bem tanto um quanto outro, não investiga a transição entre os dois
regimes. Não estou falando aqui das mudanças infra-estruturais, mas do modo, do procedimento desta ruptura, desta
descontinuidade. Isto poderia jogar luz no porquê, apesar do valor da lei ser minado, a lei do valor se manter, isto é, no
porquê a "forma mercadoria" se sustentar. Acredito (mas por ora é só uma hipótese) que esta passagem se dá por um
contínuo esvaziamento da função significante da linguagem, por um processo no qual todas as determinações referenciais
entre significante e significado tivessem se "gastam". É como se quanto mais comunicação e informação, quanto mais
linguagem houvesse, menos sentido se produziria. Ou seja, haveria uma íntima ligação entre a esfera pública (que nasce
com a burguesia) e o esvaziamento dos significantes. No limite, todo significante é um significante vazio e indeterminado
(como o imperativo "Goze!"). O sentido da Babel é esse: não a produção de línguas intraduzíveis entre si, mas a exposição
do hiato, inerente à linguagem, entre significante e significado. As apostas na "ação comunicativa" ou mesmo na
bizarra traduzibilidade eletrônica de conceitos, não ignoram esse dado; pelo contrário, intensificam o hiato: o que
fazem é tratar a linguagem como pura forma, cujo conteúdo pode ser substituído (traduzido) ou valorado por uma
racionalidade que se tornou procidemental (o melhor argumento). Vale quanto pesa: isto é, a linguagem se converteu em
dinheiro (isto é, em uma pura forma destituída de valor, mas que torna todos os conteúdos equivalentes, isto é,
cambiáveis). Isto explicaria porque a indústria cultural, a sociedade do espetáculo e do consumo são hoje eixos do
capitalismo contemporâneo: este replica o hiato específico à linguagem (entre significante e significado), racionalizando-o
(capturando-o) como instaurador de equivalências cambiáveis;

3) Antes de encerrar, mais umas linhas sobre a "forma mercadoria" e sobre este hiato inerente à linguagem. O
diagnóstico, traçado por Safatle, de que o modelo atual de crítica faliu se dá no contexto da discussão sobre a indexação da
lei: o cinismo dominante revelaria que a denúncia da inadequação entre ato e lei não serviria mais à crítica, pois o poder a
internalizou: "Talvez estejamos tão acostumados a compreender racionalidade como normatividade que nos
espantamos com situações nas quais o acordo intersubjetivo em relação a critérios e valores não nos leve a um acordo
em relação aos modos de aplicá-los ou, ao menos, a maneiras de retirar a ambigüidade de sua aplicação" (p. 79). Porém,
há toda uma linhagem "crítica", para a qual a reflexão sobre a linguagem foi essencial (pós-estruturalismo, feminismo,
etc.), que jamais achou ser tarefa sua essa denúncia da inadequação entre ato e lei (antes, a inadequação lhe serve de
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premissa). Se alguma crítica faliu, foi uma crítica marxista embebida por demais em certo kantismo. Por isso, Safatle não
tem como, depois de traçado o diagnóstico, analisar soluções propostas justamente por esta "outra" linhagem crítica - é o
que faz no capítulo dedicado à paródia. Se ele está correto em dizer que a paródia reforça o original - algo que Mário de
Andrade, ele mesmo praticante inveterado da paródia, enunciava ao dizer que é o falso que valoriza o autêntico -, não
acredito que ele o esteja quando aponta as limitações, por exemplo, da idéia de "profanação", do Giorgio Agamben,
argumentando que o capitalismo a capturou. A profanação, segundo Agamben, é a restituição, daquilo que estava
separado, numa esfera sacralizada, ao uso comum dos homens. A meu ver, o melhor exemplo de profanação foi descrito
por Guy Debord, em sua análise da Revolta da população negra no bairro de Watts, em 1965: "A passagem do
consumo à consumação realizou-se sob as chamas de Watts. As grandes geladeiras roubadas pelas pessoas que não
possuíam eletricidade, ou que tinham a corrente cortada, é a melhor imagem da mentira da abundância tornada verdade
em ação. A produção mercantil, assim que deixa de ser comprada, transforma-se em criticável e modificável em todas as
suas formas particulares. Apenas quando paga com dinheiro, qual símbolo de um grau na sobrevivência, ela torna-se
respeitada como um fetiche admirável". Não se tratava de expor a inadequação entre lei e ato, mas de mostrar como tal
inadequação, quando não mediada pela forma dinheiro, ameaçava esta. Do mesmo modo, a crítica ao cinismo passa por
encarar o hiato entre significante e significado como campo da ação humana, isto é, livre da mediação de uma linguagem
convertida em pura forma, em dinheiro, da mediação entre equivalentes cambiáveis. Quando a linguagem se torna
dinheiro, talvez a solução seja tornar o dinheiro linguagem.

Bem, para o pontapé inicial do debate, já falei demais. Abordei apenas alguns pontos do livro, mas tenho certeza que os
companheiros do Clube irão esmiuçar todos os demais.

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