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Formas da Mística (Daniel R.

Placido)

1) Etimologia

Segundo António de Macedo [1], o substantivo “misticismo”, de cunhagem mais


recente, tem sua origem em um adjetivo antigo, “mystikos”, o qual remetia aos
mistérios, sobretudo os eleusinos. Por sua vez, a palavra “mistério” se originou
da raiz my- (ou –mu), da qual derivaram verbos gregos como myeô (iniciar nos
mistérios, sagrar, instruir) e myô (fechar a boca ou os olhos, guardar silêncio);
dessa mesma raiz deriva o termo latino “mutus” (mudo) e deriva também o termo
grego “mythos”, revelando-se aqui uma associação interessante, para alguns,
entre silêncio e mito.

Conforme ainda A. de Macedo (ibidem), na terminologia mistérica da Antiguidade


os adjetivos “mystikos”(em grego) e “mysticus” (em latim) eram usados por
remissão aos mistérios das religiões pagãs, de natureza iniciática; e o adjetivo
“mysticus” passou, doravante, a significar o que era secreto ou misterioso, em
sentido amplo. Apenas em um contexto já cristão, paulatinamente, “místico” e
“mística” passaram a designar tanto o estado contemplativo das realidades
espirituais superiores quanto a doutrina teológica correspondente.

2) Caracterização geral:

Para designar tanto a prática em si quanto os suportes teóricos e metafísicos


correlatos, falaremos de mística ou misticismo como uma forma de união direta,
de contemplação, de contato íntimo da alma (e/ou do espírito) com Deus ou o
Divino, ultrapassando a mera crença e as mediações puramente institucionais
entre o homem e o transcendente (ao menos em determinado aspecto, sem
necessariamente prescindir delas). O místico não obtém contentamento em ter
unicamente fé no Divino ou em falar Dele, não aceita que outro faça o papel de
mediador ou delegado exclusivo entre seu ser e o reino transcendente, tampouco
fica satisfeito em participar dos ritos e atos da religião formalista, ainda que nada
o impeça de participar disso tudo. Na realidade, até mesmo nos ritos e
prescrições da religião formal o místico percebe um aspecto interior, mais sutil e
profundo, como aponta um poeta sufi: “Para se aproximar de Deus, há algum
caminho mais curto que a oração?” Ele respondeu: ‘A oração. Mas a oração não
é somente essa forma exterior. Isso é o ‘corpo’ da oração; a oração formal
comporta um começo e um fim, e tudo o que implica um começo e um fim é um
corpo. [...]. Portanto, a alma da oração não é somente sua forma: ela abre
caminho para a absorção em Deus e para a perda da consciência. Assim, todas
as formas são exteriores’".(Rumî, "Fihi-Ma-Fihi")

Dessa maneira, o místico não pode prescindir de experimentar, saborear,


vivenciar, conhecer o Divino direta e intimamente, em “primeira mão”, até sofrer
uma transformação e virar um exemplar vivo desse “conhecimento”. Conhecer,
querer e ser não se dissociam nesse domínio. Mesmo quando está inserido
dentro de uma tradição regular, o místico procura algo “além”: explorar e atingir
os fundamentos últimos desta tradição, até mesmo para reforçar sua confiança
nela depositada. Isso é possível a partir da pressuposição de que o Divino não
é apenas transcendente: ele é ao mesmo tempo imanente, reside no âmago ou
centro do ser humano; teologia e antropologia são solidárias aqui. Essa
experimentação, contato ou união mística com o Divino nem sempre é agradável
(ou compreensível) aos olhos dos religiosos não-místicos, parecendo-lhes com
frequência uma espécie de soberba e até mesmo megalomania; já o místico, por
sua vez, não vê nisso nada além do seu direito e meta legítimas, pois parte da
concepção de ter sido feito à imagem e semelhança divinas.

Não podemos nos esquecer da habitual incapacidade dos não-místicos de


compreenderem a linguagem bastante peculiar, sibilina e simbólica a perpassar
as obras e manifestações ligadas ao misticismo. O místico utiliza a linguagem
para superá-la, e visa assinalar algo além da rede ordinária de sentidos e
significações: “O nome é ruído e fumaça, e obscurece a claridade dos
céus”(Goethe, “Fausto” I). Em aparente paradoxo, o místico acaba por tematizar
o Silêncio e o Inefável através da linguagem, com uma riqueza imensa de
metáforas e requintes verbais, uma verdadeira explosão de significados e
sentidos. Ele busca provocar uma espécie de revelação, de teofania,
compreendida além das palavras, ao mesmo tempo velando e protegendo o
"mistério" dos “não-iniciados”. Não por acaso, muitos grandes místicos estão
situados entre os grandes poetas (Rûmî, São João da Cruz, A. Silesius, Blake,
Novalis, entre tantos outros), e mesmo quando o místico não pode ser
considerado um poeta no sentido mais estrito da palavra, ainda assim sua
linguagem se aproxima bastante do poético, como é o caso de um J. Boehme.

3) Formas da mística

Ora, é possível encontrarmos vários “tipos”, “modos” ou “formas” dentro da


mística (ou das místicas). Elas correspondem aos “temperamentos” e
“idiossincrasias” dos mais diversos místicos, assim como aos mundos culturais
e religiosos distintos, nos quais esses indivíduos estão inseridos enquanto
indivíduos e dos quais são ecos ou reflexos. Além disso, é forçoso admitir que o
acesso direto e experimental ao Divino admite mais de um caminho ou método.
A rigor, mesmo dentro de uma única e mesma religião/tradição mística
encontramos, às vezes, enorme heterogeneidade. Por exemplo, no caso do
cristianismo, basta fazermos o estudo comparado das vidas e obras de
Agostinho, Mestre Eckhart, Hildegarda von Bingen, Francisco de Assis, Bernardo
de Claraval e João da Cruz, entre muitos outros, para notarmos um verdadeiro
vitral de possibilidades de expressão e compreensão. Por conseguinte, podemos
tentar delinear algumas formas básicas e mais recorrentes de mística, a partir de
um estudo comparativo, inclusive atravessando limites e fronteiras culturais,
entretanto sem a pretensão de esgotar o assunto ou considerar tais divisões algo
além de um recurso teórico e exegético. Para tal, vamos citar alguns estudiosos
e intérpretes das tradições místicas.

Com o enfoque apenas na tradição mística ocidental, Henrique C. de Lima Vaz


[2] diferencia as seguintes formas, sem deixar de frisar quão precárias são estas
divisões, não sendo estanques e absolutas, pois existem “comunicações” inter-
categoriais:

- mística especulativa: Platão, neoplatônicos pagãos, neoplatonismo cristão e


suas variantes, J. Boehme (exemplos);
- mística mistérica: mistérios gregos e mistérios cristãos (Paulo, João, Orígenes,
como exemplos);

- mística profética: textos neo-testamentários (como o Apocalipse joanino), S.


João da Cruz;

Não é difícil notar a possível conexão simbólica, como o próprio Lima Vaz
reconhece, a partir das várias alusões feitas, entre a mística especulativa
(indissociável da filosofia) de um Platão ou um Plotino com os mistérios gregos.
E tampouco precisamos ir tão longe para perceber que, por exemplo, um místico
cristão como J. Boehme na realidade não era tão especulativo assim, sendo, a
rigor, muito mais voluntarista e devocional, com a presença de uma alta dose de
profetismo e do papel mediador da Graça divina em suas obras místico-
teosóficas.

Por sua vez, Francisco G. Bazán [3], o qual leva em conta tanto a tradição mística
do Ocidente quanto a do Oriente, propõe as seguintes distinções:

-mística da transcendência divina: teísta e devocional, exemplificada por figuras


como S. João da Cruz, Al Ghazzâlî, Râmânuja, Teresa de Ávila, Catarina de
Siena;

- mística da imanência: transpessoal e especulativa, exemplificada por figuras


como Valentino, Shankara, Plotino e Mestre Eckhart;

-mística voluntarista: voltada para a ação voluntariosa, exemplos: Jesus, Mani,


Paulo, Bernardo de Claraval, H. Bergson.

Tais divisões, apesar de úteis e orientadoras para o trabalho crítico-histórico,


todavia têm suas evidentes limitações. Um exemplo: existe muito da mística
devocional até mesmo em um místico especulativo como Shankara, ao compor
(segundo a tradição) diversos hinos religiosos e devocionais de inspiração
shivaísta.
Já o filósofo Ken Wilber [4] estabelece uma relação interessante entre as formas
de misticismo e os “estados de consciência” (não se trata aqui de uma
“hierarquia” exatamente):

-misticismo da natureza: ocorre no estado de vigília, quando se tem um “êxtase”


de comunhão com a natureza;

- misticismo da divindade: ocorre no estado de sono, quando é possível sentir


uma espécie de fusão com, por exemplo, uma chama de luz de amor radiante;

-misticismo sem forma ou causal: acontece no estado de sono profundo, sem


sonhos, quando ocorrem experiências descritas como vazias, sem formas, não-
manifestas (Ayn Sof Aur, Brahman, Ungrund);

-misticismo não-dual: tratam-se de experiências de “fruição”, em que a pessoa


se sente em comunhão com tudo que está surgindo, em qualquer estado.

Acrescentamos de nossa parte e responsabilidade, a primeira forma (misticismo


da natureza) é muito comum em vários poetas com propensão panteísta, por
exemplo, Whitman ou Novalis. A segunda (misticismo da divindade), em místicos
com uma tendência mais teísta ou “bhakti”, como, por exemplo, São João da
Cruz ou A. K. Emerich. E a terceira (misticismo causal), em místicos
especulativos como Plotino, Eckhart ou Shankara. Cabe notar, todavia, que
podemos encontrar essas três primeiras formas (e mesmo a quarta, misticismo
não-dual), ao mesmo tempo, em um J. Boehme, desde que ele não seja tomado
por um “panteísta”, porquanto reconhecia na Natureza apenas um reflexo de
Deus, e não uma parte do próprio.

Para concluir, por tudo que vimos acima podemos assumir quão complexa e
heterogênea é a mística (ou místicas), e é importante relativizar essas categorias
ou formas propostas, apesar do seu valor “didático” e comparativo. É preciso
reconhecer sempre a singularidade de cada autor e de cada obra, mesmo
quando ele tem em comum com outros uma mesma tradição e mesmo quando
a mística possa apresentar elementos universais e transculturais.
Notas
1.In: Cristianismo iniciático. Lisboa: Ésquilo, 2011, pp. 27 ss; Cf. Francisco G.
Bazán, In: Aspectos inusuales de lo sagrado, pp. 93-97, pp. 79-100, Madri:
Editorial Trotta, 2000
2. In: Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, SP: Loyola, 2000, pp.
29-75
3. Ibidem, pp. 93-97, pp. 79-100; Idem, La religíon y lo sagrado, pp. 36-37, In: El
estúdio de la religíon, Francisco Velasco y Francisco G. Bazán, Madrid: Editorial
Trotta, 2002.
4. In: A visão integral. SP: Cultrix, 2008, p. 139

Bibliografia complementar

-“Plotino e neoplatonismo”, Giovanni Reale. SP: Edições Loyola, 2008.


-“Confissões”, Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes, 2001.
-“Aurora nascente”, J. Boehme. SP: Paulus, 1998.
-“Sermões alemães”, Mestre Eckhart. Petrópolis/Bragança Paulista:
Vozes/Editora Universitária São Francisco, volume I (2006) e volume II
(2008)
-“Antigos cultos de mistério”, Walter Burkert, SP: Edusp, 1992
-“Esprit et réalité”, Nicolas Berdiaeff. Paris: Editions Aubier Montaigne,
1950.
-“A Cabala e seu simbolismo”, Gershom Scholem. São Paulo: Perspectiva,
2006 .

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