Você está na página 1de 3

A glória da fraqueza

gazetadopovo.com.br/vozes/francisco-escorsim/a-gloria-da-fraqueza/

São Silvestre: Resultado da prova masculina e feminina em 2019 | Foto: ESTADÃO


CONTEÚDO
Por Francisco Escorsim

[03/01/2020] [00:01]

2019 terminou como? Com o tapa do papa. Simbólico, não? Ainda mais tendo saído o tal
filme Dois Papas, que na verdade é sobre apenas um, Francisco, com Bento XVI servindo
como o Dedé do Didi. Mas aí estou sendo injusto, os filmes dos Trapalhões são muito
melhores que este, não merecem comparação. Adversário à altura seria Rampage, aque
assisti nesta semana também e cuja história é bem mais verossímil do que a inventada em
Dois Papas: temos um lobo, um crocodilo e um gorila gigantes destruindo Chicago. É
possível, sim, leitor de pouca fé.

Mas, antes do tapa, tivemos a chegada impressionante da corrida de São Silvestre, com a
ultrapassagem de Jacob Kiplimo por Kimiwott Kandie nos últimos passos da prova.
Assistiu? Vale a pena. A cara de surpresa de Kiplimo, quase a da senhora que levou o tapa
do papa; a ficha do que aconteceu caindo segundos depois, quase a do papa depois de ter
dado o tapa. É simbólico também. Do quê, exatamente? Da nossa fraqueza.

Quando se é jovem achamos possível fazer mais do que somos capazes. E quando
conseguimos, viramos heróis, ainda que derrotados

Kiplimo é jovem, tem apenas 19 anos, já vitorioso na carreira e um ídolo nacional de


Uganda. Sua entrevista depois da prova demonstra que tem a maturidade do vencedor,
1/3
lamentando a derrota, mas já aprendendo com ela. Disse que da próxima vez tentará
abrir mais distância do segundo colocado, mas acho que nem precisa tanto, ô, Kiplimo,
uma olhadinha a mais antes de terminar a prova já resolveria. Mas entendo que pense
assim, quando se é jovem achamos possível fazer mais do que somos capazes. E quando
conseguimos, viramos heróis, ainda que derrotados, como aconteceu com Dorando Pietri,
em 1908.

Não sei se você sabe, leitor wikipedieiro, mas a distância oficial de uma maratona é de
42,195 quilômetros, estabelecida em 1921 pela Federação Internacional de Atletismo por
causa dos Jogos Olímpicos de Londres de 1908, onde esses metrinhos a mais foram
acrescidos em consequência do pedido do rei Eduardo VII, que queria que a maratona
começasse no palácio de Windsor. E esta maratona entrou pra história por outra razão
também.

O italiano Dorando Pietri, 23 anos, liderava a prova no seu final, mas já tendo passado do
ponto de exaustão, sem fôlego e desorientado. Ao entrar no estádio olímpico, para os tais
metros finais a mais, foi na direção contrária e, se não fosse ajudado pelos fiscais de
prova, jamais a teria terminado, pois, além de lhe devolverem ao rumo certo, ainda
continuaram ajudando-o a se levantar, pois caía constantemente até conseguir, enfim,
atravessar a linha de chegada, ainda em primeiro. Mas não venceu; foi desclassificado por
ter sido ajudado, e o ganhador da medalha de ouro foi o americano Johnny Hayes. Há
uma gravação da prova, confira uns trechos:

Watch Video At:

https://youtu.be/ZX21tXYmOqI

Não venceu, mas a derrota heroica lhe foi muito mais proveitosa. Quem estava no estádio
assistindo à prova foi Arthur Conan Doyle. Sim, o criador do Sherlock Holmes, que
escreveu sobre a corrida ao jornal Daily Mail: “Ele foi ao extremo da resistência humana.
Nenhum romano do alto escalão jamais se comportou melhor que Dorando, na Olimpíada
de 1908. A grande raça ainda não está extinta”. Mas Doyle foi além. Em sua autobiografia,
2/3
Memórias e Aventuras, contou mais sobre o depois da corrida: “Eu não apenas escrevi
sobre Dorando, mas comecei uma campanha para ele no Daily Mail, que arrecadou mais
de 300 libras – uma fortuna em sua vila italiana – para que pudesse abrir uma padaria, o
que ele não poderia ter feito com uma medalha olímpica”.

Ao que parece a padaria nunca foi aberta, pois Dorando virou celebridade internacional,
ganhando bom dinheiro em diversas corridas pelo mundo, especialmente nos Estados
Unidos, competindo várias vezes com Hayes e vencendo quase todas. Ganhou também
um troféu especial dado pela rainha da Inglaterra e virou música, Dorando, composta por
Irving Berlin. Nada mau para um derrotado, não?

Veja Também:

Eis mais um bom símbolo sobre a fraqueza humana. Se com Kiplimo ela pode se tornar
força pelo quanto se tira de lição da derrota, ou seja, pela maturidade adquirida por causa
dela, talvez até sabedoria, com Dorando temos o limite da força em que reencontramos a
fraqueza, mas agora transfigurada em força maior ainda, digna de admiração e até de
prêmios melhores do que a vitória. E o que tem a ver o tapa do papa com isso? Com ele
enriquecemos ainda mais o símbolo da fraqueza humana, que pode ser não apenas
instrutiva ou heroica, mas mais do que isso: gloriosa.

São Paulo, em sua segunda carta aos Coríntios, no versículo 12, escreveu: “Portanto,
prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo” Só
podemos encontrar essa glória na miséria do nosso arrependimento. Pois se 2019
terminou com a fraqueza do papa Francisco dando um tapa numa fiel, 2020 começou
com ele transfigurando-a para a glória de Cristo ao pedir desculpas publicamente: “Muitas
vezes perdemos a paciência. Eu também. Peço perdão pelo mau exemplo de ontem”.

Que belo exemplo. Muito melhor que o da falsa fraqueza dos papas inventados no filmeco
de Fernando Meirelles, sobre o qual remeto o leitor à crítica bem fundamentada feita por
Bruno Lincoln em entrevista dada a Francisco Razzo para esta Gazeta do Povo. Até queria
escrever mais sobre, mas é começo de ano e a fraqueza da ressaca me impede, deixando-
me como o Conan Doyle e o Dorando quando da entrega daquelas 300 libras, como
contou Doyle: “(fiz) a apresentação em inglês, que ele não conseguiu entender; ele
respondeu em italiano, o que não conseguimos entender; mas acho que realmente nos
entendemos da mesma maneira”.

Encontrou algo errado na matéria?comunique erros Sobre a Gazeta do Povo


Sobre a Gazeta do Povo

Sua Leitura 0pontos


+0

3/3

Você também pode gostar