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Cognição, motricidade, autocuidados, linguagem e socialização no


desenvolvimento de crianças em creche

Article  in  Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano · August 2011


DOI: 10.7322/jhgd.20010

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1 author:

Angelina Lessa
University of Glasgow
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Cognição, motricidade, autocuidados, linguagem Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2011; 21(2): 220-229
Rev Bras Crescimento Desenvolvimento Hum. 2011; 21(2): 220-229 PESQUISA ORIGINAL
ORIGINAL RESEARCH

COGNIÇÃO, MOTRICIDADE, AUTOCUIDADOS, LINGUAGEM


E SOCIALIZAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO
DE CRIANÇAS EM CRECHE

COGNITION, MOTOR ACTIVITY, SELF CARE, LANGUAGE


AND SOCIALIZATION DURING CHILDREN
DEVELOPMENT IN DAY CARE
Agnes Maria Gomes Murta 1
Angelina do Carmo Lessa 1
Antônio Sousa Santos 1
Nadja Maria Gomes Murta 1
Rosana Passos Cambraia 1

Murta AMG et al. Cognição, motricidade, autocuidados, linguagem e socialização no desen-


volvimento de crianças em creche. Rev Bras Cresc e Desenv Hum 2011; 21(2): 220-229.

RESUMO
Objetivo: avaliar o desenvolvimento cognitivo e motor, autocuidados, linguagem,
socialização de crianças e estado nutricional de zero a seis anos. Método: como sujeitos,
participaram 48 crianças matriculadas na instituição filantrópica Casa da Criança, residentes
na periferia da cidade de Diamantina (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil). Para a
coleta dos dados foram utilizados os seguintes instrumentos e procedimentos: aplicação do
Inventário Portage, avaliação nutricional e aplicação de questionário sócio-econômico.
Resultados: a análise de correlação parcial revelou que ocorreu correlação estatisticamente
significante entre os pares de variáveis: cognição x linguagem, socialização x autocuidado
e motor x peso/altura e peso/idade. Discussão: percebeu-se a necessidade de implantação
de um programa nas creches na área de desenvolvimento infantil, que integre saúde e
educação, e que possa ser planejado a partir da perspectiva do Inventário Portage. A utilização
das ferramentas como as definidas no estudo possibilita a otimização dos repertórios das
crianças, a capacitação dos educadores e a orientação dos familiares para estimulação das
crianças. Conclusão: uma intervenção baseada no Inventário Portage mostra-se promissora
para promoção das interações saudáveis entre as crianças e pais/cuidadores.

Palavras-chave: atividade motora; cognição; desenvolvimento infantil; linguagem infantil;


nutrição infantil; socialização.

1 Professores da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde - FCBS, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri - UFVJM, Campus Diamantina, MG, Brasil. Correspondência: Rosana P. Cambraia, Grupo Jequi Saúde Coletiva,
Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde - FCBS, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM.
Rua da Glória 187, sala 15, Centro, Diamantina, MG, 39100-000. Telefone: 38 3532-6054. Email: rosacambraia@pq.cnpq.br
Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital Ciências Humanas 06/2003, processo
nº 403.806/2003-8.

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ABSTRACT
Objective: to evaluate the cognition and motor development, self care, language,
socialization and the nutritional status of child with zero to six years old. Method: 48
children attending a philanthropic day care called Casa da Criança, living in Diamantina
Town (Jequitinhonha Valley, Minas Gerais, Brazil) participated in this study. For data
collection it was used the following instruments and proceedings: Portage Inventory
application, nutritional evaluation and social and economic questionnaire. Results: the
partial correlation analyses demonstrated that there were significant correlations within
the following pair of variables: cognition x language, socialization x self care and motor x
weight/height and weight/age. Discussion: we perceived the necessity of implantation of a
program for child development stimulation in the day care that integrate health and education,
which may be planned into the Portage Inventory perspective. The use of instruments in
this study makes possible the children repertory optimization, the educators training and
the family orientation to the children stimulation. Conclusion: an intervention based on
the Portage Inventory shows as promising tool to the healthy interaction between the children
and parents/caregivers.

Key words: motor activity; cognition; child development; child language; infant nutrition;
socialization

INTRODUÇÃO tas, reforçando-se mutuamente, como a desnu-


trição protéico-calórica e as deficiências de
A situação da miséria e da fome reflete a microminerais, como o ferro3,4, o zinco5,6 e as
longa história de exclusão social e econômica vitaminas7. Além disso, a desnutrição envolve
de parcelas significativas da população brasi- também outros elementos de origem fisiológi-
leira, especialmente no que se refere ao acesso ca, social, política, econômica e cultural. A re-
à educação, à informação e aos recursos produ- lação entre a educação materna e o estado nu-
tivos ou empregos que garantam a construção tricional da criança vem sendo investigada com
de um mínimo de autonomia para o ser huma- mais atenção, com enfoque integrado de saúde
no1. Sobre o estado nutricional, alguns pontos e comportamento8,9.
críticos devem ser considerados, como: perío- A questão vai além da sobrevivência in-
do crítico de deficiência nutricional e alimen- fantil e da mortalidade e da morbidade mater-
tar, interação de múltiplos nutrientes, variáveis nas. Além de suportar incapacitação e fragili-
como fisiologia, ambiente e fatores sociais2. dade em seu sistema imunológico, as crianças
A desnutrição é resultado de complexa malnutridas sofrem ainda de limitação em sua
interação de fatores que envolvem diferentes capacidade de aprendizagem10,11. Em crianças,
aspectos, entre os quais se podem citar: a pro- a desnutrição desmotiva a curiosidade e reduz
dução de alimentos, o acesso e o consumo dos as atividades ligadas aos atos de brincar e ex-
gêneros alimentícios entre os membros da fa- plorar. Esses efeitos comprometem o desenvol-
mília, os tipos de cuidados disponíveis para a vimento mental e cognitivo, reduzindo os ní-
mulher e a criança, a disponibilidade de água veis de interação da criança tanto com o
limpa e saneamento, o acesso a serviços bási- ambiente quanto com as pessoas responsáveis
cos de saúde e alimentação escolar. por ela12,13.
A desnutrição pode assumir formas va- Um estudo14 sobre os efeitos de um pro-
riadas que frequentemente se manifestam jun- grama de suplementação nutricional durante

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dois anos revelou as consequências da tipo de dificuldade e impedimento, para deter-


suplementação com ou sem a estimulação do minar seu desenvolvimento e planificar pro-
desenvolvimento psicomotor de crianças gramas educativos17.
malnutridas. Quatro anos após o fim da inter- A associação entre fatores de desenvol-
venção as crianças apresentaram benefícios no vimento na saúde de crianças requer o investi-
fator percepção-motricidade. Também em ou- mento na alimentação e na estimulação, como
tra pesquisa15 semelhante, verificou-se que bai- forma de proteger, prevenir e controlar defasa-
xa estatura no início da vida da criança está gens no desenvolvimento infantil. O objetivo
associada a uma série de defasagens na função é avaliar o desenvolvimento cognitivo e mo-
cognitiva e na educação escolar. Enfim, a des- tor, autocuidados, linguagem e socialização de
nutrição no início da vida modifica a trajetória crianças pré-escolares e sua relação com o es-
de desenvolvimento da criança, a menos que tado nutricional.
haja reabilitação em médio e longo prazos.
Na América Latina, as condições que
propiciam a redução da mortalidade infantil MÉTODO
estão relacionadas às boas práticas de cuida-
dos e ao acesso aos serviços básicos de saúde, Local e participantes
incluindo planejamento familiar e serviços de O local de estudo concentrou-se na pe-
água e saneamento. As condições básicas para riferia da cidade de Diamantina, localizada no
esse progresso envolvem a capacitação da Alto Vale do Jequitinhonha, região que se ca-
mulher, traduzida em educação e controle dos racteriza por ser uma das mais pobres do Esta-
recursos monetários 12. Além da questão da do de Minas Gerais e pelas condições
mortalidade, os estudos envolvendo a qualida- insatisfatórias de vida de parcela significativa
de do desenvolvimento infantil ainda precisam da população18,19.
apontar, entre as populações em situação de Os participantes foram crianças matri-
risco, qual realmente é o prejuízo que advém culadas na instituição Casa da Criança de
da baixa capacidade intelectual em condições Diamantina, que compreende uma creche (zero
adversas e quais as populações especialmente a quatro anos) e uma pré-escola (cinco a seis
vulneráveis. anos), localizada em um bairro onde predomi-
O desenvolvimento infantil tem sido nam famílias de baixa renda. Aproximadamente
avaliado por um instrumento conhecido como 100 crianças frequentavam a instituição e rece-
Guia Portage de Educação Pré-Escolar16, que biam pelo menos três refeições no período em
faz parte de um sistema de treinamento de pais que estavam no local. Para amostragem20, foram
e educadores do nível pré-escolar. Tal projeto sorteadas as crianças entre aquelas que frequen-
teve início em 1969 em Portage, Wisconsin tavam a creche e que não apresentavam proble-
(Estados Unidos da América), visando desen- mas de saúde. Optou-se pelo sorteio de oito crian-
volver e implementar um programa modelo que ças para cada uma das seguintes faixas etárias:
atendesse crianças em fase pré-escolar com de 0-1 ano, 1-2 anos, 2-3 anos, 3-4 anos, 4-5 anos
dificuldades de desenvolvimento. A escala ava- e 5-6 anos, totalizando 48 sujeitos.
lia cinco áreas (cognitiva, motora,
autocuidados, linguagem e socialização), O Inventário Portage
totalizando 580 itens de avaliação. Pode ser É um instrumento avaliativo que também
utilizado tanto com crianças normais (zero a permite a proposição de atividades pertinentes
seis anos), para determinar o nível de desen- à estimulação e à formulação de programas
volvimento, quanto com crianças com algum infantis pré-escolares. É importante destacar

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que o guia Portage é utilizado em estudos so- fosse especificado de modo diferente) após o
bre desenvolvimento21 e é aplicado em progra- início da tentativa, caracterizada por uma ins-
mas de acompanhamento de desenvolvimento trução, modelo e/ou apresentação de um deter-
infantil em diferentes continentes, com diver- minado objeto, conforme o caso.
sas populações. Em alguns casos, à medida que se cons-
tatava que o desempenho da criança era insu-
DELINEAMENTO E PROCEDIMENTOS ficiente, ou seja, quando a criança não respon-
As avaliações baseadas no Inventário dia ao estímulo dado, conforme instrução
Portage Operacionalizado englobaram o desen- contida no Inventário Portage Operacionaliza-
volvimento cognitivo e motor, autocuidados, do, havia retrocesso na faixa etária.
linguagem e socialização das crianças e as con- Para tanto, foi utilizado o seguinte cri-
dições socioeconômicas das famílias. As me- tério: apresentação da tarefa três vezes, se a
didas antropométricas das crianças foram criança obtivesse pelo menos um acerto, pas-
registradas para avaliação do estado nutricio- sava-se para a próxima tarefa. Caso a criança
nal. Um questionário socioeconômico foi res- não conseguisse nenhum acerto mediante as
pondido pelos pais ou responsáveis. As avalia- três chances dadas, havia interrupção do pro-
ções foram realizadas em uma sala e as cesso e passava-se para a faixa etária anterior.
observações em outras dependências da pró- Se a criança não acertasse cinco itens, retroce-
pria instituição. dia-se na faixa etária. Só foram consideradas
O material utilizado para as avaliações como atividades realizadas aquelas cujas ob-
foi composto por diferentes objetos, brinque- servações foram tidas como positivas para
dos, jogos, que eram indicados no Inventário ambos observadores.
Portage para cada uma das faixas etárias e para Para a avaliação das áreas de socializa-
cada área de desenvolvimento. De uma forma ção e autocuidados, optou-se por entrevistar os
geral, o acervo conteve brinquedos que faziam educadores e os pais nos casos em que os edu-
parte do cotidiano das crianças, como bolas, cadores não conheciam a situação da criança a
quebra-cabeças, papel/tesoura e utensílios do- respeito de um determinado item. Isso se deu
mésticos de brinquedo ou reais adquiridos no porque alguns itens que continham essas esca-
comércio local da própria cidade. las são algumas vezes mais difíceis de obser-
Semanas antes do início das avaliações, vação direta e somente podiam ser bem conhe-
a equipe passou alguns dias entre as crianças, cidos pelos pais e educadores.
para que elas se habituassem e para evitar Para a avaliação socioeconômica foi uti-
reatividade por parte dos sujeitos. A equipe de lizado o questionário respondido pelos pais/res-
avaliadores foi constituída por dois observado- ponsável, que forneceu informações relevantes
res e um mediador em cada sessão de aproxi- sobre as famílias das crianças, tornando possí-
madamente 30 minutos, na qual o mediador ja- vel a análise socioeconômica. Foi utilizado como
mais insistia no prosseguimento das atividades, instrumento de medição do nível socioeconô-
se a criança apresentasse sinais de cansaço. mico um questionário para identificação de gru-
O critério de desempenho comum para pos vulneráveis à desnutrição infantil, especial-
as áreas cognitiva, motora, autocuidados, lin- mente elaborado para populações carentes22 e
guagem e socialização envolveu a ocorrência adaptado do modelo original para ser utilizado
de no mínimo três respostas corretas em qua- com a população brasileira23.
tro tentativas. Além disso, para que uma res- Foi utilizado o aplicativo de informáti-
posta fosse considerada correta, a criança de- ca Excel® (Microsoft Office®) para tabulação
veria iniciá-la em 30 segundos (a não ser que e confecção de gráficos e o aplicativo estatís-

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tico SPSS® para Windows®. A análise de da- (p < 0,05) entre o desenvolvimento cognitivo
dos foi de correlação (áreas de desenvolvimen- e o motor, assim como entre a cognição e o
to e estado nutricional). estado nutricional. Observou-se que o déficit
Atendendo as diretrizes éticas interna- nutricional influiu negativamente tanto no de-
cionais para pesquisas biomédicas envolven- senvolvimento motor quanto nas habilidades
do seres humanos, foi obtido o termo de con- cognitivas nessa faixa etária.
sentimento livre e esclarecido dos pais ou Na faixa etária de um a dois anos de ida-
representantes legais após encontro em que de, houve correlação significante (p < 0,05)
foram informados sobre os objetivos e proce- entre a linguagem e o estado nutricional, as-
dimentos da pesquisa*. A direção da Casa da sim como foi possível verificar que peso e al-
Criança foi esclarecida sobre a pesquisa e for- tura apresentaram correlação significativa en-
neceu sua anuência formal para que o estudo tre si. Observou-se que as crianças na faixa
fosse realizado na instituição. etária de um a dois anos obtiveram resultados
satisfatórios (número de acertos acima de 60%)
em todas as habilidades testadas (Tabela 1).
RESULTADOS Na faixa etária de dois a três anos de
idade as crianças obtiveram resultados
Na faixa etária de zero a um ano de ida- satisfatórios em todas as habilidades avaliadas,
de, verificou-se correlação significante porém vale ressaltar que na área cognitiva,

Tabela 1: Desempenho nas áreas de desenvolvimento (cognição, motricidade, autocuidados,


linguagem e socialização) em porcentagem para cada faixa etária das crianças. Observação: a
avaliação cognitiva das crianças do grupo com idade entre 2-3 anos foi efetuada na faixa etária de
1-2 anos
Crianças Cognição(%) Motor(%) Autocuidados(%) Linguagem(%) Socialização(%)
0-1 ano 53,57* 58,89 92,30 38,00 70,71
1-2 anos 70,00 83,82 75,00 61,24* 72,50
2-3 anos 96,25 77,20 70,90 70,63 75,00
3-4 anos 63,59 90,83 77,14 65,48 53,57
4-5 anos 73,86 92,19 70,11 85,83 75,00
5-6 anos 32,95 84,26 58,89* 78,57 78,79
* Correlação estatisticamente significante (p < 0,05). Diamantina, 2005.

conforme recomendado no Inventário Portage, ção (53,57%). Na faixa etária de quatro a cin-
foi necessário retroceder à faixa etária ante- co anos observou-se também resultado aci-
rior. Tal rebaixamento de faixa etária indicou ma de 60% de acertos em todas as áreas ava-
que as crianças avaliadas se encontravam em liadas.
acentuada defasagem nessa habilidade. Na faixa etária de cinco a seis anos de
Por sua vez, na faixa etária de três a idade houve correlação significativa (p < 0,05)
quatro anos de idade ocorreu menor percen- entre autocuidados e o estado nutricional (in-
tual de comportamento na área de socializa- dicador peso/altura). Observou-se nessa faixa

* O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri,
registro no. 051/2006.

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defasagem (< 60%) na área cognitiva (32,95%) tricional nas faixas de dois a três anos (com
e de autocuidados (58,89%). relação ao peso) e de três a quatro anos (com
Para a faixa etária de zero a um ano de relação à altura). A linguagem, por sua vez,
idade foi possível observar que o Inventário apresentou-se deficitária na faixa de um a dois
Portage não permite avaliação uniforme para anos (com relação ao estado nutricional).
todas as crianças compreendidas nessa fase, Os resultados da análise estatística para
considerando-se que nessa faixa os comporta- algumas áreas são apresentados na Tabela 2,
mentos seriam mais bem compreendidos se as em que os coeficientes negativos indicam va-
crianças fossem agrupadas em faixas por meses riáveis inversamente proporcionais, enquanto
de idade. Percebeu-se que o desenvolvimento os coeficientes positivos indicam variáveis di-
infantil está estritamente ligado ao desenvolvi- retamente relacionadas.
mento físico, o qual apresenta intensa comple- A análise de correlação parcial demons-
xidade entre zero e um ano de idade. trou que ocorreu correlação estatisticamente
Verificou-se que o desenvolvimento significante entre os pares de variáveis:
cognitivo esteve comprometido na faixa etária cognição x linguagem, socialização x
de zero a um ano de idade, enquanto houve autocuidado e desenvolvimento motor x esta-
associação entre a motricidade e o estado nu- do nutricional (peso/altura e peso/idade).

Tabela 2: Correlação entre o desenvolvimento cognitivo, motor e autocuidados. Os dados


representam o coeficiente de correlação com o p valor entre parênteses.
WHP (P/A) WAP (A/I) Linguagem Socialização
Cognição -0,863 (0,688) 0,0045 (0,983) 0,5196(0,009)* -0,0499 (0,835)
Motor -0,4284 (0,037)* -0,4408 (0,031)* -0,1495 (0,486) -0,0875 (0,684)
Autocuidado -0,1372 (0,523) -0,1354(0,528) 0,0405 (0,851) 0,4331 (0,035)
* Significância estatística (p < 0,05). Diamantina, 2005.

DISCUSSÃO dessem produzir inconsistência de nomeação.


Assim sendo, a adaptação procedida no pre-
A adaptação do Inventário Portage no sente estudo buscou evitar tais tipos de incon-
presente estudo possibilitou a observação das sistências nominais.
associações entre as áreas do desenvolvimento Sobre a mediação no estudo, vale res-
e o estado nutricional infantil de crianças bra- saltar que o desempenho das crianças foi aquele
sileiras. Embora o Inventário tenha sido ela- observado espontaneamente diante de uma
borado originalmente nos Estados Unidos, foi pessoa familiar, e o avaliador pôde ir obtendo
possível sua aplicação na realidade brasilei- medidas de linha-de-base do próprio desem-
ra. Estudo comparativo24 entre crianças bra- penho do mediador. Nesse sentido, coube ao
sileiras e norte-americanas utilizou a nomea- observador orientar o mediador em como apre-
ção de figuras, familiaridade com o conceito sentar as condições à criança, além de obser-
representado e a complexidade visual. Os au- var e registrar o comportamento apresentado.
tores verificaram que o conjunto de figuras Esse procedimento permitiu que o Inventário
utilizado se mostrou adequado para uso em Portage fosse utilizado com facilidade frente à
diferentes culturas, embora tenham recomen- realidade local e, além disso, a adequação dos
dado evitar o uso de algumas figuras que pu- brinquedos utilizados foi de grande relevância

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para que fossem semelhantes àqueles disponí- re-se que em outro estudo possa ocorrer a in-
veis no ambiente das crianças. vestigação detalhada, de forma que as crian-
Um estudo que utilizou o Inventário ças venham a ser agrupadas em períodos mais
Portage foi realizado satisfatoriamente na curtos nessa faixa etária, como de três em três
Espanha17 e consistiu-se na avaliação do de- meses, o que permitiria avaliação das referi-
senvolvimento psicológico de crianças de um das áreas de desenvolvimento. Futuramente, a
a cinco anos de idade. Enquanto que naquele utilização de testes para crianças nessa faixa
estudo considerou-se a relação do abandono deve então levar em conta intervalos mais cur-
físico no desenvolvimento infantil, neste levou- tos medidos em meses ao invés de anos.
se em conta a relação com o estado nutricional Quanto ao desenvolvimento motor, é
de crianças de famílias de baixa renda. A con- interessante observar que ele melhora a partir
dição de abandono físico esteve associada ao do momento em que as crianças passam a fre-
atraso no desenvolvimento infantil, sendo que quentar uma creche, entretanto alguns autores
sugeriram futura comparação com os estilos de colocam em questão se isso ocorre devido ex-
interação entre crianças e seus pais/cuidadores. clusivamente à família, à creche ou a ambos26.
No presente trabalho, verificou-se que Creche de boa qualidade pode ser uma exce-
o desenvolvimento cognitivo, a linguagem e lente oportunidade para as crianças estarem em
os autocuidados apresentaram relação com o um local seguro, onde possam brincar, além
estado nutricional das crianças, estando, por de se alimentarem satisfatoriamente e terem
sua vez, associados à condição socioeconômi- companhia de outras da mesma idade.
ca das famílias. Porém, em algumas faixas etá- Sobre a interação ambiental, é funda-
rias, foi possível perceber que também os esti- mental a identificação dos fatores de risco que
los de interação entre as crianças e suas famílias parecem estar associados à qualidade do am-
precisam ser mais bem investigados. biente e a algumas características das crianças,
O desenvolvimento da linguagem, por contribuindo como um aporte ao estudo do
sua vez, apresenta estreita ligação com a ex- desenvolvimento infantil no que diz respeito a
ploração do ambiente e com a interação social. grupos vulneráveis, priorizando as ações pro-
Conforme demonstrado em um estudo recen- tetoras de saúde27. Os aspectos preventivos
te25 com a interação educadora/bebê, existe um devem ser investigados, incluindo programas
desafio para os educadores em relação ao cui- de promoção de saúde e qualidade de vida das
dado simultâneo de várias crianças em dife- pessoas, em especial da população infantil.
rentes faixas etárias. A responsividade inter- Com a identificação de variáveis associadas ao
pessoal das crianças foi investigada, enquanto desenvolvimento infantil, é possível programar
processo de comunicação entre cuidador e ações orientadas para as principais necessida-
criança no ambiente de uma creche, e os resul- des das crianças.
tados mostraram que a qualidade da interação A importância da estimulação para o
social e, consequentemente, o desenvolvimen- desenvolvimento cognitivo infantil, da melho-
to da linguagem parecem depender da quanti- ria das condições materiais e da dinâmica fa-
dade de crianças por cuidador/educador. miliar, parte do efeito da estimulação sobre a
Considerando a grande variação na apre- cognição, que é mediada pela condição ma-
sentação de habilidades pelas crianças na fai- terna de trabalho e de seu nível de escolarida-
xa etária de zero a um ano de idade (cognição, de28. Embora não tenha sido o objeto direto
motricidade, autocuidado, linguagem e socia- deste estudo, verificou-se que a formação dos
lização), optou-se por agir com cautela na ava- cuidadores é limitada para a promoção ade-
liação de tal faixa etária na análise final. Suge- quada e estimulação das crianças

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frequentadoras da creche. Além disso, o nú- A avaliação das áreas do desenvolvimen-


mero insuficiente de profissionais de educa- to infantil por faixa etária possibilitou revelar
ção na instituição, devido à sua restrição or- que o desenvolvimento cognitivo foi compro-
çamentária, faz com que haja número metido na faixa etária de zero a um ano de ida-
excessivo de crianças por cuidador, o que pre- de, enquanto houve associação entre a
judica a interação entre eles. motricidade e o estado nutricional nas faixas
Assim, com relação à população alvo, de dois a três anos (com relação ao peso) e de
é urgente a priorização de programas que pro- três a quatro anos (com relação à altura). A lin-
tejam a saúde, com atenção especial às fa- guagem, por sua vez, apresentou-se deficitária
mílias e às creches para adoção de modos de na faixa de um a dois anos (com relação ao
vida saudáveis, além da identificação de si- estado nutricional).
tuações de risco. Consideramos que a quali- As implicações do Inventário Portage
dade do ambiente e da relação cuidador- para o tratamento e a intervenção são impor-
criança é fundamental para o pleno tantes para a manutenção das interações ade-
desenvolvimento infantil, e devem ser esti- quadas entre as crianças e pais/cuidadores. As
muladas e promovidas ações educativas e de ações devem ser dirigidas precisamente para o
formação voltadas aos educadores e familia- enriquecimento de tais interações mediante
res das crianças. Dessa forma, recomenda- planos formativos, que possam incrementar o
se também a inclusão de práticas de estimu- repertório dos educadores e das famílias das
lação cotidiana e a promoção de hábitos crianças que frequentam creches.
saudáveis nas atividades desenvolvidas nas
creches, com participação de educadores e
familiares. AGRADECIMENTOS
O estudo permitiu investigar associações
significativas entre algumas áreas de desenvol- À direção da Casa da Criança de
vimento e o estado nutricional, como o obser- Diamantina (MG), às mediadoras Aline F.
vado na faixa etária de um a dois anos (lingua- Miranda e Marciane Almeida e aos colaborado-
gem e estado nutricional) e de cinco a seis anos res Josefina Murta, M.A.B., Rafael C. Teixeira e
(autocuidados e estado nutricional, e lingua- Valéria M. M. Franco. Especial agradecimento a
gem e altura). Juliana V. M. Mambrini pelo apoio estatístico.

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