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OS LIMITES DO CAMPO JURÍDICO: UMA VISÃO A PARTIR DA

PERSPECTIVA DECOLONIAL

Milena Moraes Lima1


José Edmilson de Souza-Lima2

RESUMO:
Propõe-se no presente estudo uma reflexão sobre o campo jurídico, com enfoque na sua base
epistêmica. O objetivo da reflexão é identificar os limites epistemológicos do campo,
adotando-se como marco teórico o pensamento decolonial. Como meio de concretizar o
objetivo proposto, adotou-se a metodologia da pesquisa bibliográfica. Inicialmente, foi
apresentada a relação existente entre o processo de colonização e a base epistemológica
adotada no campo jurídico, evidenciando-se a hegemonia da episteme eurocêntrica no
campo. Após, foram apontados os limites dessa episteme, dentre os quais constatou-se a
subalternização dos saberes locais e o isolamento do Direito com relação aos demais campos
do conhecimento. Concluiu-se que, para romper com os limites epistemológicos existentes
no campo, é necessário promover o diálogo interdisciplinar, bem como realizar uma abertura
do processo de produção do conhecimento jurídico para outras bases epistêmicas, em
especial para os saberes locais.

Palavras-chave: Direito; Epistemologia; Pensamento Decolonial; Interdisciplinaridade;


Saberes locais.

1 INTRODUÇÃO

O conhecimento científico é absolutamente influenciado pela forma como se constrói


a relação entre o sujeito que investiga e o objeto investigado, de modo que existem variadas
formas de produzi-lo. Na filosofia, existe um subcampo que se ocupa exatamente do estudo
destas formas de produção do conhecimento, o qual é denominado epistemologia.
No presente artigo é proposta uma reflexão sobre a base epistemológica do campo
jurídico, ou seja, sobre a forma como o conhecimento é produzido dentro do Direito. O
objetivo é identificar os limites epistêmicos existentes no campo.

1
Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.
Bacharel em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB (2016).
2
Pesquisador e Docente no Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário
Curitiba – UNICURITIBA. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do
Paraná – UFPR (2005).
2

Foi estipulado como marco teórico o pensamento decolonial, o qual propõe reflexões
epistêmicas a partir das margens do conhecimento e dos saberes periféricos. Para a coleta de
dados, adotou-se a estratégia metodológica da pesquisa bibliográfica e da análise qualitativa.
Na primeira parte do estudo serão abordadas as heranças epistemológicas da
colonização latino-americana, em especial no campo jurídico. Já na segunda parte serão
evidenciados os limites da episteme predominantemente adotada no campo. Ao final, serão
feitas considerações sobre a necessidade de romper com esses limites e indicados alguns
caminhos que podem ser adotados para tanto.
A pesquisa justifica-se pela constante necessidade de tensionar os limites que existem
nos campos do conhecimento, especialmente com relação à eficácia social dos saberes que
são produzidos.

2 A HERANÇA EPISTEMOLÓGICA DO PROJETO COLONIZATÓRIO

A colonização na América Latina é usualmente atrelada ao “descobrimento” das


Américas e à exploração econômica deste território pelos países europeus. Entretanto, o
projeto colonizatório que foi concretizado na América Latina possui também outras faces3,
as quais incluem, para além dos aspectos territoriais e econômicos, o social, o cultural, o
político e o epistemológico.
Nesse sentido, depreende-se que para legitimar a apropriação territorial e econômica
das colônias, o projeto colonizatório fundamentou-se em uma episteme eurocêntrica. Para
garantir a propagação e hegemonia dessa episteme, qualquer saber que fosse produzido fora
dos padrões eurocêntricos de conhecimento era considerado ilegítimo pelos colonizadores
e, consequentemente, condenado ao extermínio e ao esquecimento.

Durante o domínio colonial, não somente se produzia conhecimento acerca do


colonizado para melhor dominá-lo, mas também afirmava-se culturalmente a
supremacia europeia, com a transmissão da sua visão de mundo, religião,
linguagem, artes e ciência no território conquistado. (HENNING; MATTOS;
COLAÇO, 2017, p. 46)

Houve, portanto, a colonialidade 4 do saber, a qual:

3
Para Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 37), o colonialismo consiste no “conjunto de trocas extremamente
desiguais que assentam na privação da humanidade da parte mais fraca como condição para sobreexplorar ou
para a excluir como descartável.”
4
Para Henning, Mattos e Colaço (2017, p. 46), a colonialidade “designa as diferentes maneiras pelas quais a
mentalidade do povo colonizado constrói a imagem do povo conquistador em detrimento da sua própria”.
3

[...] classifica como subalternos os conhecimentos produzidos pelas nações não


civilizadas, ou fora do eixo América e Europa [...] Ela institui o Eurocentrismo
como fonte única do saber, descartando qualquer tipo de produção oriunda dos
indígenas ou afros, e também das mulheres, campesinos e outros grupos
historicamente subalternizados. (BORGES; GALINDO; RAMOS, 2017, p.237)

Essa colonialidade do saber e do poder, na perspectiva do colonizador, era uma


“missão civilizatória” (MBEMBE, 2017) na qual ele deveria conduzir o colonizado, que era
detentor de saberes locais, a um ideal de desenvolvimento, onde existe apenas um saber, que
é autodeclarado como neutro e universal. Entretanto, a episteme considerada universal pelo
colonizador, na realidade, era a episteme produzida por ele mesmo. Assim, “o pensador
europeu se proclamou como o detentor de um saber universal que representaria a verdade,
sendo que os “outros” detinham saberes “locais”; desta forma se constitui o eurocentrismo”
(COLAÇO, 2012, p. 20).
O conhecimento produzido na perspectiva eurocêntrica é pretensamente neutro,
descontextualizado, objetivo e universal, consistindo na única forma “correta” de produzi-
lo. Ele baseia-se na ideia de separação entre a mente e o mundo, entre o sujeito e o objeto de
conhecimento, partindo da ideia de um ponto zero do conhecimento. Esse local “zero” de
enunciação não seria influenciado pelas particularidades do sujeito e, portanto, o
conhecimento ali produzido pode ser considerado como universal e aplicável a todos os
povos.
Nessa construção epistêmica, as formas alternativas de produção do conhecimento
que reconhecem o seu local de enunciação são impuras e não produzem saberes válidos.
Consequentemente, os saberes “locais” são subalternizados, uma vez que não se enquadram
no ideal de “ponto zero” do conhecimento.

A epistemologia eurocêntrica do “ponto zero” configurada pela teopolítica e pela


egopolítica do conhecimento é, deste modo, um fator determinante da
colonialidade. Ao construir uma visão hegemônica e deslocalizada, assumindo um
ponto de vista universalista, neutro e objetivo, o conhecimento eurocêntrico
sustenta a retórica da modernidade (evolução, progresso, desenvolvimento etc.) e
ao mesmo tempo silencia os saberes locais. (COLAÇO, 2012, p. 142)

Dentro dessa perspectiva, os povos originários das Américas, que produzem um


conhecimento que reconhece o seu local de enunciação e tem como base na interação entre
a mente/sujeito e o mundo/natureza, eram invariavelmente considerados primitivos. Os seus
conhecimentos, portanto, eram inválidos, de modo que eles deveriam abandonar as suas
construções epistêmicas em favor da episteme universal.
4

O saber “universal” deveria ocupar o lugar do saber local, não sendo permitida a
coexistência de formas diferentes de se produzir o conhecimento. A universalidade do
discurso se legitimava exatamente pela erradicação da variedade de discursos locais.
Portanto, para concretizar a missão “civilizatória”, o projeto colonizatório utilizou-se da
violência, da limitação da liberdade e do tolhimento da diversidade humana nas formas de
criar, questionar, sentir, produzir e viver.

Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas –entre seus


descobrimentos culturais– aqueles que resultavam mais aptos para o
desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. Em segundo
lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo
com os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus
padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de
expressão e de objetivação da subjetividade. (QUIJANO, 2005, p. 232)

A hegemonia da episteme eurocêntrica era afirmada pela invalidação e


subaltenização das epistemes dos povos colonizados, sendo que todos aqueles que
resistissem a esse “desenvolvimento” estavam condenados ao extermínio. Deste modo, todas
as formas de violência empregadas para garantir a dominação territorial europeia foram
justificadas por essa construção epistêmica, sendo que as vítimas do herói civilizador (o
índio colonizado, o escravo africano, a destruição ecológica, etc.) eram consideradas
holocaustos de um sacrifício salvador (DUSSEL, 2005, p. 60).
Assim, a construção de conhecimento que toma a Europa como centro foi propagada
como se fosse neutra, um ideal epistemológico a que todos os demais povos deveriam atingir.
Apesar do rompimento político das colônias com os países colonizadores no século
XIX, denota-se que no campo epistemológico existe até hoje uma hegemonia da episteme
eurocêntrica.

Durante os últimos 500 anos (pelo menos) apenas uma forma de conhecer o
mundo, a epistemologia ocidental, postulou-se como válida, quer dizer a única
capaz de propiciar conhecimentos verdadeiros sobre o direito, a natureza, a
economia, a sociedade, a moral e a felicidade das pessoas. Todas as demais formas
de conhecer o mundo foram relegadas ao âmbito da doxa, como se fossem o
passado da ciência moderna, e consideradas, inclusive, como um obstáculo
epistemológico para alcançar a certeza do conhecimento. (COLAÇO, 2012, p. 16)

Todavia, ao contrário do que se propaga no discurso hegemônico, assim como os


saberes locais, a episteme “universal” possui um local de enunciação e também é
influenciada pelas particularidades do sujeito que o produz.
5

2.1 O PENSAMENTO DECOLONIAL

Conforme antecipado, a episteme hegemônica é eurocêntrica e foi produzida pelos


colonizadores europeus (branco, homem e capitalista), com o objetivo de legitimar o projeto
colonizatório de controle econômico e social das colônias. Entretanto, algumas vertentes
teóricas questionam a universalidade e neutralidade dessa base epistêmica, bem como a sua
aplicabilidade no contexto social latino-americano.
Neste estudo, adotamos o marco teórico do pensamento decolonial, o qual tensiona
os limites verificados na episteme eurocêntrica. Dentro dessa construção teórica, a
colonialidade é compreendida como um fenômeno prolongado, que se perpetua na
atualidade por meio do campo epistêmico. Assim, ela busca chamar a atenção “sobre as
continuidades históricas entre os tempos coloniais e o tempo presente e também assinalar
que as relações coloniais de poder estão atravessadas pela dimensão epistêmica” (COLAÇO,
2012, p. 123).
No pensamento decolonial o local de enunciação dos saberes é identificado,
afastando as concepções de “ponto zero do conhecimento”, neutralidade e universalidade da
episteme eurocêntrica. São evidenciados os limites do discurso hegemônico e enaltecidos os
conhecimentos marginais e periféricos, uma vez que estes reconhecem o seu local de
enunciação e se relacionam com as particularidades do seu entorno5, sem qualquer pretensão
de serem objetivos ou universais.
Então, esse discurso propõe a realização de um giro na forma de produção do
conhecimento, ou seja, a construção do saber parte das margens do conhecimento central,
reconhecendo o seu lugar de enunciação e dialogando com outras bases epistêmicas.
Portanto, o pensamento decolonial é “indissociadamente um movimento teórico, ético e
político ao questionar as pretensões de objetividade do conhecimento dito científico dos
últimos séculos” (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2014, p. 69), problematizando a questão “de
onde” o conhecimento está sendo enunciado.

5
Dentro da concepção decolonial, a natureza, por exemplo, não é tratada como um objeto ou como uma
entidade separada dos seres humanos. Nesta concepção existe uma continuidade entre os mundos naturais,
humanos e sobrenaturais (COLAÇO, 2012, p. 177).
6

3 OS LIMITES EPISTEMOLÓGICOS DO CAMPO JURÍDICO

Tomando por base a proposta do giro decolonial, nesta seção objetivamos tensionar
os fundamentos epistêmicos do campo jurídico6, verificando o local de sua enunciação e os
seus limites. Nesse sentido, depreende-se que a episteme eurocêntrica produz um Direito
dissociado da realidade social em que ele será aplicado.
Como vimos, ainda que se auto intitule como neutro e universal, o conhecimento
produzido por essa episteme é influenciado pela realidade social europeia e marcado pela
perpetuação das relações de saber e poder. Assim, do mesmo modo que o projeto
colonizatório teve efeitos diversos para o colonizador e para o colonizado 7, teorias jurídicas
transplantadas do país colonizador para a realidade social e cultural da colônia será ali
experenciado de forma diversa.
Isso porque existem diferenças sociais (povos, culturas, línguas, religião, moeda,
clima, etc.) gritantes entre Europa e América Latina, de modo que a aplicação do
conhecimento jurídico eurocêntrico não condiz com a experiência social latino-americana.

Aplicada de maneira específica à experiência histórica latino-americana, a


perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que distorce o
que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho não é de todo
quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços históricos europeus
em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos tão
profundamente distintos. Daí que quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a
imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida. (QUIJANO, 2005,
p. 240)

Portanto, por que razão devemos importar teorias jurídicas estrangeiras para o
contexto social local se eles são tão diferentes? Por que motivo enaltecemos aportes teóricos
que não abarcam a diversidade cultural, social, ambiental e econômica existente no nosso
território?
Ao colocarmos a episteme europeia no centro de produção de conhecimento,
condenamos os saberes produzidos dentro da realidade local ao esquecimento, à repressão,
invisibilidade e inexistência, sendo que o único caminho possível para elas é o da sua
erradicação. Assim, as formas de conceber o Direito que não se adequam aos ideais

6
Consideramos aqui as epistemes racionalista e positivista como fundamentos do campo jurídico.
7
Para o sujeito colonizador o projeto colonizatório era uma missão heróica de salvação, o triunfo da
racionaldiade e do progresso. Por outro lado, para os povos colonizados a colonização trazia o genocídio, a
violência, a condenação ao esquecimento.
7

propagados pela episteme hegemônica são destinados a desaparecer, ficando de fora daquilo
que se considera como progresso, moderno (MORENO, 2005, p. 192).
Ressalte-se, contudo, que não pretendemos afirmar que as teorias estrangeiras não
devem ser objeto de estudo e que não possuem contribuições para o conhecimento jurídico
local, mas somente questionar os limites verificados na sua hegemonia em detrimento dos
saberes e conhecimentos jurídicos locais. Quando nos deslocamos até os limites desse centro
de conhecimento hegemônico encontramos os saberes locais, nos quais é possível cultivar
outras formas de conceber e compreender o direito que dialogam entre si e, assim, melhor
se adequam à nossa realidade social.
Por fim, outra limitação existente na episteme eurocêntrica é que ela conduz o Direito
como um campo de monocultura do conhecimento (SOUZA-LIMA, 2014, p. 20),
construindo o saber jurídico a partir de uma visão fragmentada e completamente distante dos
demais campos disciplinares8. Como resultado disso, propaga-se a ideia de que o Direito só
pode ser estudado e compreendido de forma isolada.
Contudo, essa concepção fragmentada do Direito se mostra insuficiente, uma vez que
a ciência jurídica é uma produção social, diretamente relacionada com os aspectos culturais,
políticos, morais e também com as relações de poder existentes na sociedade. O fenômeno
jurídico, portanto, consiste em:

[...] uma expressão cultural de ideias, práticas normativas e instituições que


necessitam transcender a mera reinterpretação de fontes passadas [...] o campo
jurídico não pode ser tido como um sistema fechado ou uma ciência que se baseie,
meramente, na análise normativa. (KOSOP; SOUZA-LIMA, 2017b, p. 200)

Ademais, ressalte-se que em contraponto à visão fragmentada de que o Direito ocupa-


se somente da normatividade, a construção de um conhecimento jurídico híbrido ocorre por
meio do diálogo com outros campos do conhecimento, outras perspectivas e outras formas
de conceber e interpretar o Direito. Há, nesse sentido, o fortalecimento do campo, uma vez
que a policultura de conhecimentos, “em lugar de estremecer as bases dos campos
monocultores, tende a fortalecê-los” (SOUZA-LIMA, 2014, p. 19).

8
Nesse sentido, o Direito tem por base o método cartesiano de produção do conhecimento, o qual é pautado
na ideia de unidisciplinariedade e “consubstanciado no projeto de investigação que compartimentaliza as fases,
em prol do maior grau de esclarecimento e pureza do conhecimento adquirido e despendido” (KOSOP;
SOUZA-LIMA, 2017a, p. 907).
8

Portanto, foram evidenciados dois limites da episteme hegemônica no campo


jurídico, quais sejam a sua inadequação com a realidade social local e a sua fragilização
decorrente da visão fragmentada que é adotada.

3.1 A NECESSIDADE DE ROMPER COM A EPISTEME HEGEMÔNICA

Propomos nesse tópico a reflexão sobre a necessidade de superar os limites


epistêmicos do campo jurídico, considerando que “as reflexões epistemológicas percebem-
se na possibilidade de tensionar os conceitos já instituídos, tanto no intuito de testá-los,
teoricamente, quanto de apontar os limites que possam causar a criação do espaço entre sua
validade e sua eficácia social” (KOSOP; SOUZA-LIMA, 2017b, p. 200).
Destacamos que, apesar das diferentes culturas e formas de produção de
conhecimento que existem no contexto social não encontrarem respaldo no direito estatal
(que é pautado na episteme hegemônica), a prática forense exige cada vez mais uma resposta
jurídica aos tensionamentos existentes nos limites entre a episteme hegemônica e a
periférica. Os anseios sociais não são atendidos por meio do ocultamento e da invisibilidade
normativa da diversidade local e dos conhecimentos periféricos.
A sociedade caminha em direção ao reconhecimento de que o ordenamento jurídico
não é “universal” e absoluto, mas que, em verdade, apresenta diversos tensionamentos e
fissuras que podem ser utilizadas na busca pela adequação e construção de um saber jurídico
compatível com a realidade plural em que ele será aplicado.

Nesse sentido, é possível identificar no Brasil o sucesso de algumas reinvindicações


pelo reconhecimento normativo da existência e da garantia de direitos para grupos sociais
até então subalternizados e excluídos da visão eurocêntrica (os índios, o negro, a mulher, o
deficiente etc.). À guisa de exemplo, é possível extrair do ordenamento jurídico brasileiro o
reconhecimento expresso de direitos e a estipulação de algumas ações afirmativas em favor
destes grupos no artigo 5º, inciso I (igualdade entre homens e mulheres); artigo 231
(reconhecimento dos povos indígenas e de seus direitos), ambos da Constituição Federal
(BRASIL, 1998); e nas recentes Lei 12.990/2014, que estabelece cotas raciais em concursos
públicos federais (BRASIL, 2014), e Lei 13.146/2015 que instituiu o Estatuto da Pessoa com
Deficiência (BRASIL, 2015).
9

Tais reconhecimentos normativos nada mais são do que frutos das lutas desses grupos
marginalizados pela ocupação de um espaço onde até então eles não eram reconhecidos.
Depreende-se, portanto, que apesar de não serem compreendidos como válidos dentro da
visão hegemônica, os saberes periféricos continuam a existir dentro dessas sociedades e
reivindicam cada vez mais o reconhecimento da sua existência e validade no âmbito local.

Há outros direitos, outras formas de pensar o direito baseadas em outras histórias


e experiências e não apenas nos modelos epistêmicos jurídicos ocidentais. Estas
formas de conhecimento não almejam a universalidade, mas se reconhecem
enquanto locais. É claro, que quando falamos em “local”, não queremos dizer que
os saberes são separados e não se comunicam entre si. Pelo contrário, o local é
sempre “interlocal”, porém nunca epistemicamente universal. (COLAÇO, 2012,
p. 23)

Portanto, tensionando os limites dessa episteme fechada e “única”, centrada na


realidade europeia, encontramos saberes que partem dos grupos que foram subalternizados
pelo discurso hegemônico de uniformidade. Essas construções epistêmicas reconhecem o
seu local de enunciação, não pretendem ser universais e reconhecem a diferença e a
heterogeneidade dentro do texto normativo. Além disso, nos limites da visão fragmentada
de Direito encontramos uma abordagem interdisciplinar que contempla a multiplicidade de
formas de pensar e viver o Direito que existem nos demais campos do conhecimento.

Por meio do diálogo entre saberes e da produção de conhecimento com bases


epistêmicas periféricas e locais, rompe-se com a incansável busca de adequação da nossa
realidade social ao “espelho universal”, que nada mais é do que um espelho europeu. Logo,
o rompimento com os limites impostos pela hegemonia epistêmica consiste em produzir um
Direito que reconhece e atende as particularidades da diversidade local.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível concluir que os efeitos do projeto colonizatório europeu no continente


Latino Americano continuam sendo perpetuados por meio do campo epistemológico. Com
relação ao campo jurídico, evidenciou-se que os limites impostos pela adoção exclusiva da
episteme eurocêntrica resultam no distanciamento entre o direito e a realidade social em que
ele é aplicado.

Nesse sentido, constatou-se que a imposição de uma única forma de pensar e produzir
o conhecimento jurídico perpetua as relações de poder e, dentro da perspectiva das relações
10

colonizatórias, reproduz o projeto de subordinação do colonizado ao colonizador na


construção do conhecimento.

Ao tensionar os limites dessa episteme, é evidenciada a necessidade de que sejam


rompidos os paradigmas predominantes. Para tanto, é necessário o cultivo de diálogos com
outras disciplinas e também com outras formas de conhecer o mundo que se adequem à
realidade social de cada região.

Portanto, o reconhecimento dos saberes locais e o cultivo de diversos campos de


conhecimento de forma interrelacionada contribui para o fortalecimento do campo jurídico.
Logo, a partir da perspectiva decolonial, o rompimento com a ideia de uma única base
epistêmica para o direito é possível por meio da manifestação, do diálogo, do
reconhecimento e da legitimação das outras formas de conhecimento que existem na
sociedade. Consequentemente, ampliam-se as possibilidades epistemológicas do campo
jurídico para além do saber construído em uma base eurocêntrica.

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