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candido

jornal da biblioteca pública do paraná


52 NOVEMBRO 2015
www.candido.bpp.pr.gov.br
DW Ribatski

A literatura
afro-brasileira
pede passagem
O Cândido traz um panorama
da produção de autores negros
na literatura brasileira, dos precursores
até a novíssima geração

Entrevista | Nei Lopes • Perfil do leitor | Ciro Pessoa • Poema | Xico Chaves
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

editorial
Foto: Kristiane Foltran expediente

candido
Cândido é uma publicação mensal
da Biblioteca Pública do Paraná

Governador do Estado do Paraná: Beto Richa


Secretário de Estado da Cultura: João Luiz Fiani
Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Marta Sienna

Coordenação Editorial:
Rogério Pereira e Luiz Rebinski

Redação:
Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy

Estagiários:
Kaype Abreu e Lucas de Lavor

Coordenação de Desenho Gráfico | CDG | SEEC

A
Rita Solieri Brandt | coordenação
contribuição da cultura negra para “A literatura espelha o preconcei- tomada, no Brasil, de um movimento
a formação do Brasil é inegável e to social e torna a questão ainda mais de reconhecimento da contribuição do Bianca Franco, Marília Costa, Marluce Reque
fundamental. Na literatura não é visível”, observa Regina Dalcastagnè, negro à vida cultural brasileira”, con- e Raquel Dzierva | diagramação
diferente. No mês em que se co- professora da Universidade de Brasí- forme explica Lopes.
memora o dia da Consciência Negra lia (UnB) que coordenou pesquisa en- Já o ensaio assinado pelo pro- Colaboradores desta edição:
(20 de novembro), o Cândido resgata o volvendo 700 romances brasileiros, cujo fessor Claudecir de O. Rocha resga- Alessandro Rolim Moura, Bianca Franco, Claudecir de O. Rocha, D.W.
percurso de escritores afro-descenden- resultado apontou que 96% dos autores ta a história da poeta negra curitibana Ribatski, Eduardo de Assis Duarte, Fernando Severo, Gil Jesse, Henry
Milléo, Jair Ferreira dos Santos, Kraw Penas, Laura Santos, Marília
tes em nossa história literária. são brancos. Laura Santos. Influenciada pela estética
Costa e Xico Chaves.
Dos fundamentais e clássicos Em ensaio inédito, Eduardo de parnaso-simbolista, principalmente por
Machado de Assis e Lima Barreto, pas- Assis Duarte, professor da Universida- Olavo Bilac, ela criou uma poética di-
sando por nomes menos conhecidos, de Federal de Minas Gerais (UFMG), ferenciada e moderna, com traços bio- Redação:
como Luiz Gama, até chegar a poetas analisa o percurso dos nomes mais rele- gráficos, por meio dos quais elucidava imprensa@bpp.pr.gov.br | (41) 3221-4974
e prosadores contemporâneos, como o vantes da literatura afro-brasileira, co- a realização dos seus anseios, ao mesmo
curitibano Celio Jamica (foto), a edição nhecidos ou não dos leitores do país. tempo em que expressava um desejo de
mostra como e sobre o que esses auto- Autor de mais de 20 livros, Nei transcendência. Biblioteca Pública do Paraná
res escreveram. Lopes lançou neste ano seu mais re- A 52ª edição do Cândido ainda traz Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 | Curitiba | PR.
Horário de funcionamento:
Assuntos como preconceito, mi- cente romance. Em entrevista ao Cân- outros conteúdos, como poemas de Xico Segunda à sexta, das 8h30 às 20h.
litância e política racial são levantados a dido, o escritor fala sobre Rio Negro, Chaves, Laura Santos e Gil Jesse, além Sábados, das 8h30 às 13h.
partir de matérias e ensaios. A equipe do 50, ambientado no Rio de Janeiro, en- de traduções de Jair Ferreira dos Santos e
jornal ouviu críticos, autores e pesquisa- tão capital federal, na década de 1950, Alessandro Rolim Moura para poemas do
dores, que comentam diversos aspectos “período de liberação e efervescên- argentino Máximo Simpson e dos gregos Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
da literatura feita por afro-brasileiros. cia cultural que também marca a re- Mosco e Bíon, respectivamente.
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curtas da bpp

Consciência Prêmio São Paulo


Negra 1 Cristovão Tezza e Rodrigo Gar-
cia Lopes estão na fase final do Prêmio
Em novembro, a Biblio- São Paulo de Literatura 2015. Tezza
teca Pública do Paraná promo- concorre com o romance O professor;
ve programação especial em ho- Garcia Lopes está na disputa com O
menagem ao Dia da Consciência trovador. Este é o segundo prêmio em
Negra, comemorado no dia 20. que os dois autores concorrem este ano.
No Hall Térreo da BPP, a artista Seus livros já haviam sido selecionados
Fernanda Castro expõe seus tra- entre os semifinalistas do Prêmio Oce-
balhos sobre a realidade das mu- anos. Ao todo, são 21 finalistas do Prê-
lheres quilombolas no Paraná. A mio São Paulo, que distribui R$400 mil
mostra será aberta no dia 10 de aos vencedores de três categorias.
novembro e segue até dezembro.
Divulgação

Consciência Negra 2
Em parceria com o Museu da dré Klotzel (dia 05), Policarpo Quares-
Imagem e do Som do Paraná (MIS- ma, herói do Brasil, de Paulo Thiago (dia
-PR), a Biblioteca Pública do Para- 12), Macunaíma, de Joaquim Pedro de
ná exibe quatro longas-metragens na Andrade (dia 12), e Cidade de Deus, de
mostra “Escritores Afrodescendentes Fernando Meirelles (dia 26). As exibi-
no Cinema Brasileiro”. São eles: Me- ções são gratuitas e acontecem às quin-
mórias póstumas de Brás Cubas, de An- tas-feiras, às 15h.

Divulgação
Música de Câmara
Em dezembro, a Biblioteca Pú-
blica do Paraná recebe duas apresenta-
ções de música de câmara. Os eventos
fazem parte do Simpósio de Violão da
Escola de Música e Belas Artes do Pa-
raná (EMBAP), que leva concertos e
recitais de violão a espaços públicos de
Curitiba. No dia 7 de dezembro, às 17h,
o Quarteto Zenamon interpreta peças
de compositores brasileiros como Ho-
mero Pereira, Leo Brouwer, Celso Ma-
chado e Dilermando Reis. No dia 11,
Vilanova Artigas
às 17h30, o Duo Zabrocki-Lentz (foto) Até fevereiro de 2016, permanece que completaria 100 anos em 2015. A
apresenta repertório com peças de Fer- em cartaz, no Museu Oscar Niemeyer exposição traz projetos originais, dese-
dinando Carulli, Claude Debussy e (MON), a mostra “Nos pormenores um nhos artísticos do arquiteto e maquetes
Marlos Nobre, entre outros composito- universo — Centenário de Vilanova Ar- (de vários formatos e escalas), fotogra-
res. Os eventos são gratuitos e aconte- tigas”, sobre o arquiteto curitibano João fias e documentos do acervo da família.
cem no Hall Térreo da BPP. Batista Vilanova Artigas (1915-1985), Mais informações: (41) 3350-4400.
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ENTREVISTA| NEI LOPES

Divulgação

“A invisibilidade
do meu povo
me incomoda
muito”
Marcio Renato dos Santos
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N
ei Lopes, 73 anos, é um autor que, por prazer e missão, tem a afrobrasilidade
como tema. O seu mais recente romance — Rio Negro, 50 —, publicado pelo
Grupo Editorial Record neste ano, é ambientado no Rio de Janeiro, então capital
federal, na década de 1950, “período de liberação e efervescência cultural que
também marca a retomada, no Brasil, de um movimento de reconhecimento
da contribuição do negro à vida cultural brasileira”, explica o escritor, nascido no Irajá,
subúrbio carioca, atualmente vivendo em Seropédica, município do Rio de Janeiro,
localizado a 50 quilômetros da capital.
“Rio Negro, 50 é, se me permite a ousadia, um romance de tese que tem por objetivo
dizer coisas que até hoje só têm sido ditas nos livros científicos”, afirma o escritor com
dezenas de títulos publicados, entre os quais Vinte contos e uns trocados (2006) e Poétnica
(2014), também compositor e intérprete de música popular, autor de canções gravadas,
entre outros, por Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Dudu Nobre, Martinho da
Vila e Zeca Pagodinho.
Lopes concedeu entrevista ao Cândido respondendo, exclusivamente,
perguntas sobre Rio Negro, 50. Na longa narrativa ficcional, ele inventa e
batiza um bar, com o nome que dá título ao livro, onde personagens negros
se encontram e discutem, entre outros assuntos, política, música, teatro,
dança, religião, esporte, crime e racismo.
Pesquisador da temática africana e afro-originada, é autor de obras
que são referências sobre o tema, como Dicionário da antiguidade africana
(2011), Enciclopédia da diáspora africana (2011), Novo dicionário banto do
Brasil (2012) e do recém-publicado, em parceria com Luiz Antonio Simas,
Dicionário da história social do samba.
Ele afirma, por exemplo, que a abolição dos escravos não aconteceu
como de fato se comenta: “A chamada Lei Áurea só tem um artigo.
Nenhuma de suas consequências foi contemplada. Aboliu-se a escravidão e
jogou-se seus ‘problemas’ no lixo.” Lopes tem pontos de vista contundentes
sobre samba, religião, reveillon carioca e outros temas — são, enfim,
reflexões elaboradas a partir de vasta pesquisa que compõem este bate-
papo realizado por e-mail.
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ENTREVISTA| NEI LOPES

“constituiu
A movimentação cultural do Rio
de Janeiro da década de 1950 foi bem
mais ampla do que apenas, por exem-
A década de 50
plo, a bossa nova. Levando em conta o
seu romance Rio Negro, 50, o que mais
um período de
aconteceu culturalmente na então ca-
pital federal durante os anos 1950?
liberação e efervescência
A década de 1950 constituiu um
período de liberação e efervescência
cultural que também
cultural que também marca a retomada,
no Brasil, de um movimento de reco-
marca a retomada, no Crédito: Cláudia Lamego
nhecimento da contribuição do negro à
vida cultural brasileira. Por esse tempo,
Brasil, de um movimento
revivem organizações culturais e políti-
cas negras, abafadas durante o Estado
de reconhecimento da
Novo; criam-se ou se expandem orga-
nizações importantes, como o Renas-
contribuição do negro à
cença Clube e A União dos Homens de
Cor. É nesse contexto, de afirmação da
vida cultural brasileira.”
escola de samba Império Serrano, que
nascem as revolucionárias escolas de
samba Acadêmicos do Salgueiro e Mo- Na página 47 de Rio Negro, 50,
cidade Independente; que se consolida um personagem fala: “Mas parece que
o Teatro Experimental do Negro; que preto só é bom mesmo no futebol, no
se formata a dança afro, com Merce- salto e na corrida. Por que será?”. Em
des Batista; que reluzem os musicais de seguida, o diálogo entre as vozes pro-
Carlos Machado, em que o samba tem move um debate, menciona-se que na
papel importante; e em que a religio- natação não tem atletas negros, até que
sidade de base africana, pela exuberân- há uma ponderação: “Então, eles são
cia dos rituais dos candomblés, começa melhores nos esportes onde as barrei-
a ser reavaliada. ras econômicas são menores.” Uma das
linhas de força de seu livro é justamen-
Há a morte de Vargas, a derrota te discutir e questionar lugares-co-
da seleção brasileira no Maracanã na muns ditos e repetidos sobre os negros?
final de uma Copa do Mundo, entre Rio Negro, 50 é, se me permite a
outros fatos que ficaram marcados no ousadia, um romance de tese que tem
imaginário brasileiro. Então, ambien- por objetivo dizer coisas que até hoje só
tar o romance Rio Negro, 50 na década têm sido ditas nos livros científicos.
de 1950 foi um escolha decisiva, fun-
damental? Faltava alguém tratar lite- Há menção a pensadores, gen-
rariamente do período? te que gostava de conversar e discutir,
Faltava quem tratasse do ponto muitos dos quais se reuniam no bar, in-
de vista do povo negro; e é isso que eu ventado, que dá nome ao livro — pos-
tenho procurado fazer em toda a minha sivelmente inspirado em um bar que de No dia 13 de junho deste ano, Nei Lopes lançou Rio Negro, 50 no Rio de Janeiro, ao lado dos amigos Pedro Amorim (esq.)
obra ficcional. fato existiu. Aquele tempo foi o início e Ruy Castro (dir.)
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“queSoutomouumaautor
de tomada de consciência pelos negros? No romance, fala-se de uma De 1950 pra cá, houve mudan-
O bar representa isso, o espaço para a conspiração oficial contra os negros? ças e avanços para os negros no Bra-
reflexão sobre as questões do mundo? Aconteceu mesmo? sil. Racismo é crime. Mas o que ainda
Eu não vivi intelectualmente a dé- É só uma brincadeirinha. precisa avançar? Quais as conquistas
cada, pois nasci em 1942 e só tomei cons- que os negros ainda precisam ter?
ciência da questão social na década de
1960, quando ingressei na Faculdade Na-
afrobrasilidade como Em sua opinião, aconteceu de
fato abolição no Brasil?
O Brasil precisa dar o básico a
todo mundo: saúde, educação, mora-
cional de Direito. Mas logo senti o eco do
que se discutiu antes; e percebi que o bar
tema, por missão A chamada Lei Áurea só tem um
artigo. Nenhuma de suas consequências
dia digna, transporte eficiente. Este é
o primeiro passo. Depois, criar políti-
era, sim, como foi ainda por muito tem-
po, o espaço dessas trocas de ideias.
e por prazer.” foi contemplada. Aboliu-se a escravidão
e jogou-se seus “problemas” no lixo.
cas de inclusão na mídia, na propagan-
da... É bastante desconfortável, para
nós afrodescendentes, não nos vermos
O samba é um dos assuntos que As religiões de origem africanas representados nos veículos de comuni-
ganha espaço em Rio Negro, 50. Pelas ganham espaço no livro, há reflexão so- cação, nas campanhas de publicidade...
vozes dos personagens, há uma dis- bre o impacto delas no Rio de Janeiro. A Isso é a primeira coisa que os negros
cussão a respeito do que se tornou o crença do carioca passa pelos ritos afros? estrangeiros observam quando chegam
samba, dominado pelo comércio, o No atual momento, as igrejas “ele- aqui: “Onde é que está a outra metade
carnaval transformado em mercado- O que mudou foi que na Repúbli- trônicas” dominam. Mas o Rio na déca- da população?”.
ria. Desde quando o samba deixou de ca Velha havia políticas públicas com o da de 1950 via a religiosidade afro com
ser samba, deixou (deixou mesmo?) objetivo de neutralizar a influência afri- bastante interesse. E a sofisticação dos Toda a sua obra publicada dia-
de ser expressão dos negros? Desde cana e até mesmo embranquecer o Bra- candomblés, como eu já disse, atraía loga com o legado dos negros desde
quando o carnaval, o desfile das esco- sil, o que ainda ecoava na década de 1950, muita gente. Em Rio Negro, 50 ficciona- o primeiro ensaio O samba, na reali-
las de samba, perdeu a essência? Hou- época de nossa primeira lei contra dis- lizo o episódio real da primeira Festa de dade... até o Dicionário da história so-
ve uma essência? Qual? criminação racial. E da década de 1980 Iemanjá na orla da zona sul. Que se tor- cial do samba, parceria com o profes-
Na ficção, antecipei no tempo a pra cá criaram-se, bem ou mal, políticas nou um evento turístico, para depois ser sor Luiz Antonio Simas. O senhor se
discussão das questões do samba. Por- de inclusão social da população negra. O afastada para as praias ou deslocada para considera um militante ou é um autor
que as grandes transformações, no uni- que, inclusive, neste exato momento, é a véspera do dia 31. O “sagrado” do re- coerente com as origens? Como define
verso do samba, eclodiram, mesmo, na causa de muita tensão. Mas mudou. veillon carioca, hoje, é a queima de fogos. a sua atuação intelectual?
década de 1970, quando a música per- Sou um autor que tomou a afro-
deu em importância para a cenografia e Se fosse possível sintetizar uma Em Rio Negro, 50, há um comen- brasilidade como tema, por missão e por
os figurinos. E, nesse quadro, a correla- resposta, o que dizer da contribuição tário dando a entender que o pessoal da prazer. A invisibilidade do meu povo e a
ção de poder se modificou totalmente. negra para a cultura brasileira? E, ain- zona norte do Rio tem inveja apenas do inferiorização dos nossos valores me in-
Até, então, nas escolas, os compositores da, há áreas nas quais não houve, mes- mar da zona sul. É isso mesmo? comoda muito.
ainda tinham alguma força. Eu sem- mo que indiretamente, contribuição Respondo a esta pergunta, tendo
pre lembro que, no início das escolas, negra no Brasil? acabado de ler no jornal que a Prefeitura Na década de 1980, o senhor
os grande líderes eram Paulo da Porte- Esta contribuição foi decisiva. do Rio inaugurou uma praia artificial em trocou a carreira de advogado pela de
la, Cartola, Antenor Gargalhada, Mano Mas um fenômeno cruel começa a fazer Madureira, na zona suburbana. A ques- compositor de música popular. Ana-
Eloi etc, todos compositores. efeito: é a apropriação de boa parte dessa tão não é exatamente inveja: o caso é que lisando, com a percepção de 2015, foi
contribuição, principalmente no campo as praias fora da zona sul, como as da uma decisão complexa ou não? Que
Em um momento do livro, al- da cultura, por outros segmentos. Co- Ilha do Governador, de Ramos, Sepetiba advogado o senhor poderia ter sido, se
gumas personagens femininas discu- meçou na música instrumental, passou etc., não recebem os cuidados necessá- tivesse continuado, se houvesse se na
tem se há ou não racismo no Brasil e, pela capoeira... E hoje chega ao exercí- rios e aí se tornam difíceis de frequentar. História?
pela discussão, há um contraponto. cio das artes culinárias. Quando certas Se a Baía de Guanabara, principalmen- Foi a decisão mais acertada da
Quando te perguntam se há racismo atividades ganham prestigio, os afrodes- te, fosse efetivamente despoluída, o Rio minha vida. Porque deixei a advocacia
no Brasil, o que diz? De 1950 até hoje, cendentes são excluídos de seu exercício. todo teria belas praias. E ninguém teria para viver da minha criação intelectual,
o que mudou? Por razões puramente econômicas. inveja nem precisaria brigar. mas sem abandonar o Direito. g
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poemas | Máximo Simpson

Tradução: Jair Ferreira dos Santos O HOTEL MELANCÓLICO El hotel melancólico


O hotel melancólico navega El hotel melancólico em la noche
na noite rumo à morte, navega hacia la muerte,
com seus corredores escuros onde passeiam com sus pasillos negros por donde se pasean
remotos marechais do grande czar Alexandre, remotos mariscales del gran zar Alejandro,
com velhos samovares e garrafões tristes, com samovares viejos y tristes damajuanas,
e seus ladrilhos trincados, sua autocracia exausta y sus baldosas rotas, su extenuada autocracia,
e sua pátina ilustre: y su pátina ilustre:
poltronas em farrapos, sillones andrajosos,
pequena arqueologia do pensionista pobre pequeña arqueología del pensionista pobre
que conserva entre ruínas a metade de sua alma, que conserva entre ruinas la mitad de su alma,
e de outra parte a atmosfera de inverno, atmósfera de invierno de outra parte,
os pátios suspeitos e os altos ciprestes los patios sospechosos y los altos cipreses
que protegem a casa. que defienden la casa.
Tem um colecionador de seres minúsculos, Hay un coleccionista de minúsculos seres,
entomólogo suave de um musical enigma, entomólogo suave de musical enigma,
que atravessa os pátios com um presunto e um trovão; que atraviesa los patios com un jabón y un trueno;
tem um delgado junco tradutor de novelas: hay un delgado junco traductor de novelas:
todos os dias come sua ração de consolo, todos los días come su ración de consuelo,
mas tudo é inútil porque a visão pero es inútil todo porque domina su alma
de um escândalo celeste domina sua alma. la visión de un escándalo celeste.
E Maria Ivanovna cheia de lembranças: Y Maria Ivanovna com sus grandes recuerdos:
em Petrogrado, quando em Petrogrado entonces
a vida era bela nos salões. era bella la vida em los salones

O ar convalesce El aire convalece


no orgulho ferido da casa: em el golpeado orgullo de la casa:
temos aqui um raro clima de perdão, hay aqui un raro clima de perdón,
e adolescentes velhos y adolescentes viejos
como a jovem aranha de rosto milenário como la araña joven de rostro milenario,
que instalou grandes máquinas ferozes que instaló grandes máquinas feroces
no quartinho de um antigo jovem que morreu. em su pequeño cuarto de antiguo joven muerto.
Há a mulherzinha que vive nas trevas, Y está la mujercita que vive em las tinieblas,
que se veste de luto à espera do acaso, que se viste de luto por si acaso,
por apreensão com o talvez, por aprensión em tal vez,
em seu quarto imperial coberto pelo pó. em su cuarto imperial cubierto por el polvo.
E há também a viúva do rei da Tasmânia, Y está también la viuda del rey de la Tasmania,
com seu chapéu vermelho de general inglês. com su sombrero rojo de general inglês.

E aqui estou eu que escrevo isto: Y estoy yo, que esto escribo:
eu busco o equilíbrio das coisas, yo busco el equilibrio de las cosas,
e por isso navego neste hotel profundo y por eso navego em este hotel profundo
rumo a meu grande destino: hacia mi gran destino:
eu que sou feliz, sereno e apolíneo, y yo que soy feliz, sereno y apolíneo,
preparo com minha régua de cálculo com mi regla de cálculo preparo
as leis da terra. las leyes de la tierra.

(Poemas del Hotel Melancólico, 2004).


jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 9

FALA JANTO HABLA JANTO


Janto, o “corcel de pés ligeiros”, baixou a cabeça e Janto, el “corcel de ligeros pies”, bajó la cabeza y
disse: “Hoje te salvaremos, impetuoso Aquiles, mas dijo: “Hoy te salvaremos, impetuoso Aquiles, pero
está próximo o dia da tua morte.” está cercano el dia de tu muerte”.
Ilíada, Canto XIX Ilíada, Canto XIX.

Cuando el caballo habla, Cuando el caballo habla,


treme toda a casa do olvido. tiembla toda la casa del olvido.
treme toda a casa, Tiembla toda la casa,
treme todo o olvido: tiebla todo el olvido:
as portas da noite recuam. las puertas de la noche retroceden.

Quando o cavalo clama, Cuando el caballo clama,


quando o cavalo augura, profetiza, cuando el caballo augura, profetiza,
escurecem as janelas e os portões, se oscurecen ventanas y canceles,
e o homem à deriva dá um volteio y el hombre a la deriva da un rodeo,
e para, e espera. hace un alto y espera.

Cuando el caballo habla e se antecipa, Cuando el caballo habla y se anticipa,


todos se calam prontamente, todos callan de pronto,
e o pobre orgulho da espécie y el desvalido orgullo de la especie
se amontoa sobre a língua. se amontona em la lengua.
Cuando el caballo habla, Cuando el caballo habla,
o pampa sonha com o mar, la pampa sueña com el mar,
e o ginete desmonta, y el jinete desmonta,
se aventura por seus olhos adentro, se aventura por dentro de sus ojos,
se desnuda. se desnuda.

Cuando el caballo habla, Cuando el caballo habla,


quando sabe, cuando sabe,
a memória perdida se instala na existência la memoria perdida se instala em la existencia
e corrói as mais fundas certezas. y corroe las hondas certidumbres.
Quando o corcel floresce na tormenta, Cuando el corcel florece em la tormenta,
quando suas mãos se erguem para o céu, cuando su manos de alzan hacia el cielo,
quando, súbito, brinca e vaticina, cuando de pronto brinca y vaticina,
um ambíguo clarão empana os cristais, un ambiguo claror empaña los cristales,
uma chuva indecisa retorna para o alto. una lluvia indecisa retorna hacia lo alto.

Quando o cavalo sabe, Cuando el caballo sabe,


quando o ginete escuta, cuando el jinete escucha,
o sacerdote declina dos troféus. declina el sacerdote sus trofeos.

Quando el caballo habla, Cuando el caballo habla,


o homem põe os pés na terra, pone el hombre pie em tierra,
pensa nos ancestrais, medita em sus ancestros,
se prepara. se prepara.

(Antologia poética, 2004)


10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poemas | Máximo Simpson

a fonte CANCUN
É pálida, violácea, transparente, A água em flor exibe seus rinchos,
é rubra mas verde, seus cristais,
é azul mas emana rupturas de desejo. esmeraldas, turquesas, frutos brancos.

É única talvez, A areia, igualitária, isola suas dádivas.


ou é múltipla, incorpórea. O sol preside a injustiça.

Não é ausência nem olvido, (La casa y otras visiones, 1995)


e espreita de longe, de perto,
de dentro do náufrago e seu traje.
CANCúN
É o centro sem centro da dor,
a fonte inexplicável dos dias que passam. El agua em flor exhibe sus relinchos,
sus cristales,
(La casa y otras visiones, 1995) esmeraldas, turquesas, frutos blancos.

La arena igualitaria discrimina sus dones.


la fuente El Sol preside la injusticia.

Es pálida, violácea, transparente,


es roja pero es verde,
es azul pero emana rupturas del deseo.

Es única tal vez,


o es múltiple, incorpórea.

No es ausencia ni olvido,
y acecha desde lejos, desde cerca,
desde dentro del náufrago y su traje.

Es el centro sin centro del dolor,


la fuente inexplicable de los días que pasan.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 11

almas de adam smith sapatos


Oh entranhas dos números, Os sapatos que comprei outrora
oh balanço de pagamentos, sem rastro de orgulho,
Oh, madrasta sem pensar na forma ou na medida,
energia na Bolsa das frutas: usei-os de perfil, na contramão,
a alma perturbada de Adam Smith e cheguei caminhando até a minha idade,
sobrevoa campos e cidades desde a loja obscura
entoando o Te deum do pelicano ferido, que vendia sapatos,
do homem que dormita com um ábaco destinos,
partido estradas.
enquanto o marceneiro sem raízes
e o pescador sem águas nem ribeiras (Antologia poética, 2004).
atravessam nus,
levados pela mão,
o vasto cemitério dos ofícios antigos. zapatos
(Antologia poética, 2004) Los zapatos que antaño me compré
sin asomo de orgulho,
sin pensar em la forma o la medida,
EL ALMA DE ADAM SMITH los usé de perfil, a contramano,
y llegué caminando hasta mi edad,
Oh entraña de los números, desde essa tienda oscura
oh balanza de pagos, que vendía zapatos,
oh madrasta, destinos,
energia bursátil de las frutas: carreteras.
el alma perturbada de Adam Smith
sobrevuela los campos y ciudades
entonando el Tedeum del pelícano herido,
del hombre que dormita com un ábaco roto,
mientras el ebanista sin raíces,
y el pescador sin aguas ni riberas
atraviesan desnudos,
tomados de la mano,
el vasto cementerio de los viejos oficios. Máximo Simpson nasceu em Buenos Aires em 1929. Morou no México e no Brasil, onde foi
professor e jornalista. Publicou trabalhos de teoria política e comunicação, paralelamente a
quase uma dezena de livros de poesia, cuja recepção lhe concedeu prêmios importantes na
cena literária latino-americana. Vive em Buenos Aires.

Jair Ferreira dos Santos nasceu em Cornélio Procópio (PR), em 1946. É ficcionista, poeta e
ensaísta. Vive no Rio de Janeiro desde 1971. É autor do ensaio O que é pós-moderno (1985)
e da coletânea de poemas A faca serena (1983). Seu livro de contos Cybersenzala (2006) foi
finalista do prêmio Portugal Telecom.
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Na Biblioteca de Sandra m. Stroparo

A casa-biblioteca
A professora da Universidade Federal do Paraná Sandra M. Stroparo
mostra seu acervo de 7 mil livros, que está distribuído por quase
todos os cômodos de seu apartamento
Luiz Rebinski

Fotos Kraw Penas


jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 13

A
professora e tradutora Sandra M. não conheço nenhuma biblioteca, privada
Stroparo tem a vida pautada pe- ou pública, que tenha essa coleção”, diz.
los livros. Além dos títulos que a Aliás, Mallarmé faz parte do “pa-
auxiliam em seu trabalho na Uni- cote moderno” de poetas franceses da
versidade Federal do Paraná (UFPR), segunda metade do século XIX que
onde leciona desde 1998 no curso de Sandra aprecia muito. Uma das estantes
Letras, há livros sobre os mais diversos de sua biblioteca é repleta de obras, no
assuntos em sua biblioteca (de guias original, de autores como Charles Bau-
culinários a tratados sobre o ioiô). delaire, Paul Valéry e Arthur Rimbaud,
Casada com o também tradutor entre outros.
e professor Caetano W. Galindo, eles Mas o acervo vai muito além do
“juntaram as bibliotecas” em 2003, o interesse profissional da tradutora. Há
que resultou em um acervo que hoje é muitos livros sobre história da arte, li-
de aproximadamente 7 mil livros. Para teratura brasileira (em especial de po-
guardar tudo, o casal transformou o esia) e teoria da literatura. Uma biblio-
apartamento em que vivem no bair- teca interessante e diversificada, que o
ro Alto da XV, em Curitiba, em uma Cândido mostra a seguir.
grande biblioteca. Não há um cômodo
reservado aos livros. Eles estão distri-
buídos pela casa toda. Só não há pra-
teleiras no banheiro. Apesar da quan-
tidade, tudo está em seu devido lugar.
Não há pilhas de livros pelos móveis,
por exemplo.
O acúmulo de volumes e a falta
de espaço obriga Sandra a fazer do-
ações de tempos em tempos. Só no
último semestre, foram mais de 500
títulos, em geral direcionados a alu-
nos da UFPR. “Infelizmente já não
há mais espaço, mas é difícil parar de
comprar. Nos últimos anos, no entan-
to, tenho adquirido também muitos
livros digitais.”
Em 2012 Sandra concluiu dou-
torado na Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). O tema era
o poeta francês Stéphane Mallarmé
(1842-1898) e parte do trabalho con-
sistia em traduzir trechos da correspon-
dência do autor, que foi publicada na
França entre 1959 e 1985. Para conse-
guir os 11 volumes com as missivas do
escritor, a tradutora mobilizou livreiros
e amigos de diversas partes do mundo,
como Canadá e Austrália. “No Brasil,
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Na Biblioteca de Sandra m. Stroparo

Fotos Kraw Penas

Cinemateca (2008), de Eucanaã Ferraz


“O Eucanaã recupera e dá nova cara à nossa tradição poética. Algumas pessoas o criticam por isso, mas ele não
está preso ao passado, pelo contrário, consegue um resultado interessantíssimo por meio do lirismo.”

Stéphane Mallarmé, Correspondance (1959-1985), 11 Volumes


“Mallarmé morreu em 1898 e até 1959, quando suas cartas começaram a ser publicadas, a recepção crítica de
sua obra foi tortuosa. A correspondência do autor também é importante para entender vários aspectos de sua
produção, que foi essencial para o nascimento da poesia moderna.”

A história da arte (1950), de E. H. Gombrich


“Já dei aulas sobre história da arte e essa é uma área que me interessa muito. O livro do Gombrich é uma
referência que sempre indico aos meus alunos. É um ótimo resumo dos movimentos artísticos através
dos séculos.”

Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar


“Tenho vários livros em primeira edição que comprei em um sebo. Os títulos eram do crítico Temístocles
Linhares. Entre eles está Lavoura arcaica. É interessante notar, comparando com as edições mais recentes, como
o escritor mudou frases e palavras. Esta edição também traz uma posfácio em que Raduan fala das referências
que aparecem na obra.”
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 15

Fotos Kraw Penas

O Vampiro de Curitiba (1964/1965), de Dalton Trevisan


Lançado “oficialmente” em 1965 pela editora José Olympio, o livro mais famoso de Dalton Trevisan teve outra
versão, feita e distribuída pelo próprio autor, um ano antes do lançamento nacional. Sandra conseguiu seu
exemplar em um sebo de Curitiba.

Tratado dos anjos afogados (2008), de Marcelo Ariel


“O Marcelo Ariel vive na periferia de São Paulo e é sobre os problemas de uma grande metrópole que trata sua
poesia. Ou seja, fala de realidades que não cabem no mundo. E o que impressiona também é que ele tem uma
enorme leitura da tradição poética.”

Poesia e prosa (1973), de Carlos Drummond de Andrade


“Ganhei esse livro de aniversário da minha mãe quando ainda estava na graduação. Drummond é um dos meus
poetas preferidos. Acho-o fundamental para entender o século XX. Ele é o melhor resultado de nossa poesia.
Tenho uma edição igual, da editora José Aguilar, com a poesia do João Cabral de Melo Neto.”

Poésies et un poème (1947), de Stephane Mallarmé


“Esse é o primeiro livro do Mallarmé publicado no Brasil. Mas não se trata de uma tradução. Os poemas estão
em francês. O livro foi feito por uma editora brasileira, mas impresso em Roma, na Itália. Foi com esse título
que os poetas concretos — os irmãos Campos e Décio Pignatari — conheceram o poeta francês. A partir daí
começaram a disseminar a obra de Mallarmé no Brasil.”
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poema | Xico chaves

CHUVA
...... vai e
..... (interrogação pingo pingo
.... cabo ponto nem d?água
... de ponto como
.. formar guarda pingo lago
. o chuva) nos nem
barco is como salva
livre vela vira mar mar
como aberta pingo chuva n’água
a tempo reluzente grossa salve
água oral asteroide pingo chova manágua!
cai transparente sobre relampeje terra
cho parte pingo trovoe de
eira da maremoteie pau
eira raios arte raie d’água
ei vozes porta faísque
ra trovões estandarte vai água
e luzes da e pingos água
i fogos via vem de que
r pingos láctea traço fogo venha
a de ponto na mais
luz pingo faísca água
pingo no cante traço da
gota olho conte pingo solda a
que do onde pingo elétrica aqu
vai furacão cai traço aquar
lá como ponto óculos aquário
vai o cai vermelhos rio
no pingo como solda aqua
azul pra de ele solda aura
do onde água mesmo pinga arco
vento vai livre diante fogo iris
se a prisma dele espirra de
juntar chuva que e raio noite
a que vai pronto no
mais arma e azul nuvens
uma o vem ser cobalto que
e tempo no vento passam
muito oral ar eva chuva plumas
mais ? por trovão líquidas
lá arte relâmpago aquarelas
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17

chovem de brilha de
no vento o dragão
deserto chove sol muda
o gente na vira
oasis chove gota gente
a canivetes da muda
miragem chove chuva vira
um no cara
chapéu cisco ar de
de ao sol leão
água vento e
chapéu o chuva cada
de olho no gota
gelo da olho cada
chapéu serpente do uma
de o céu uma
vento olho vida
chapéu do or cada
de chuva vidente va ponto
que chove lho um
voa sòmente ponto mundo
ao de
vento chove luz chove
lágrima chove
chove vento mesmo
vem amor leva chove
a chove nuvem sem
chuva verso leva parar
chove chove papel chove
chove guarda nuvem tudo
chove chuva escura sem
chove nuvem chorar
chove palavra clara Xico Chaves é letrista, poeta e artista plástico.
chuva cara (rio,1973). Tem mais de 200 músicas gravadas por vários
artistas da MPB, entre os quais Nara Leão, Jards
Macalé, Caetano Veloso, Vinícius Cantuária, Roberto
Menescal e Elba Ramalho. Chaves participou da
Geração Mimeógrafo. Entre seus livros, destacam-
se Pássaro verde (1967), Pipa (1976), Purpurina
(1977), Urucumfumaça (1979) e Poeta clandestino
(1986). Vive no Rio de Janeiro (RJ).
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ensaio | henry milléo

CLIQUES EM CURITIBA

O paranaense Henry Milléo começou a fotografar com 17 anos


e atua há mais de duas décadas como fotojornalista. Atualmen-
te integra a equipe de repórteres fotográficos do jornal Gazeta do
Povo. Entre seus trabalhos autorais, destaca-se a série que Milléo
chama de “fotografia do ordinário”, em que retrata cidades e cida-
dãos comuns, buscando “histórias que precisam ser contadas”. Para
realizar o ensaio “Sineiros”, publicado pelo Cândido, o fotógrafo
acompanhou, durante três anos, a celebração de Corpus Christi e
o trabalho dos garotos que tocam os sinos da Catedral de Curitiba.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 19
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | Literatura Afro-brasileira

Percurso recriado
pela palavra escrita
Inicialmente apenas representados em obras de prosa e de poesia, os afro-brasileiros
passaram a escrever, a publicar e se afirmam, cada vez mais, na literatura brasileira e no
imaginário cultural do país
Marcio Renato dos Santos

Morena Madureira

I
mpossível como nunca ter tido um rosto,
o próximo, e o nono, livro de Ricar-
do Aleixo, reúne poemas escritos en-
tre 2012 e 2015, entre os quais, “Na
noite calunga do bairro Cabula”. O tex-
to poético surgiu após o poeta minei-
ro receber a notícia do assassinato de
13 jovens negros na periferia de Salva-
dor, na noite de 6 de fevereiro deste ano.
O poema começa assim: “Morri quan-
tas vezes na noite mais longa?/ Na noi-
te imóvel, a mais longa e espessa, morri
quantas vezes na noite calunga?/ A noi-
te não passa e eu dentro dela morrendo
de novo sem nome e de novo morrendo
a cada outro rombo aberto na muscula-
tura do que um dia eu fui./ Morri quan-
tas vezes na noite mais rubra?”
Apesar das origens, de todo um
percurso artístico que inclui críticas ao
racismo e diálogo com o legado cul-
tural africano, Aleixo, 55 anos, não se
considera um poeta negro. “Esse rótulo
é limitante e eu quero expandir ao má-
ximo a minha atuação, quero a liberda-
de. Sou, mais do que tudo, um poeta”,
O mineiro Ricardo Aleixo não se considera um poeta negro. “Esse rótulo é limitante. Sou, mais do que tudo, um poeta”, diz. diz o artista mineiro, comentando que,
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21

Divulgação

ao assumir a postura, amigos, colegas e ambos negros. “Alguém argumentará


militantes de movimentos negros rom- que eles são exceções que confirmam
peram relações com ele. a regra, mas, lembrando Jean-Luc Go-
Aleixo, que nasceu e vive em dard, digo que o cânone, o conven-
Belo Horizonte, participa de eventos cional, é a regra, e a arte é exceção —
culturais no Brasil em outros países. Já mesmo”, argumenta o poeta gaúcho.
esteve em território alemão, em Berlim Esse fosso, literal e real, que se-
e em Frankfurt, na Espanha e no Mé- O gaúcho Ronald Augusto lembra que alguns autores negros, como Machado de Assis e Cruz e Souza, se afirmaram como para autores brancos e negros, mencio-
xico. Em geral, é convidado para reali- artistas apesar do preconceito e de outras barreiras sociais. nado por Ronald Augusto, tem com-
zar performances. Ele se autodenomi- provação científica. A professora da
na um performador e explica o motivo: por exemplo, em relação ao racismo. Se “Minha experiência como poeta e escri- Universidade de Brasília (UnB) Regi-
“Meus textos poético são vocalizados alguém dissesse que eu não poderia fa- tor negro em Porto Alegre me ensinou na Dalcastagnè coordena o Grupo de
em voz alta. Há casos em que a musi- zer poemas, eu daria risada. Afinal, ti- a reconhecer a existência de um descon- Estudos em Literatura Brasileira Con-
calidade é tanta que agencio o corpo, o nha tudo em casa: papel, caneta, máqui- forto mútuo, isto é, às vezes represen- temporânea que, numa pesquisa envol-
gesto e a dança e, então, estou diante de na de escrever, memória, corpo e voz”, to o outro, o estranho e, de outra parte, vendo 700 romances brasileiros, apon-
algo que requer, mais do que uma leitu- comenta, completando, sem entrar em os demais escritores, que deveriam ser tou que 96% dos autores são brancos
ra, uma performance.” detalhes, que “nem tudo é tranquilo.” aquilo que chamamos ‘os [meus] iguais’, — foram consultadas longas narrativas
Dialogando com os dadaístas e formam um grupo com o qual não al- ficcionais publicadas em 3 períodos, de
com os concretistas, produziu os pri- Um espelho do mundo canço ou nem quero alcançar a menor 1965 até 1979, entre 1990 e 2004 e, fi-
meiros poemas autorais aos 17 anos O meio literário é — em certa identificação”, diz. nalmente, de 2005 a 2014.
e comenta que nem nos delírios juve- medida — a representação, embora com Felizmente, acrescenta Augusto, “Talvez, no caso da criação ar-
nis cogitou que teria o atual reconhe- suas singularidades, das imposturas e a literatura brasileira tem uma série de tística, fosse diferente, mas a literatu-
cimento: “O meu círculo de atuação é imposições raciais e econômicas da so- artistas que, para ele, servem de para- ra espelha o preconceito social e torna
restrito, mas tenho alguma visibilida- ciedade. A afirmação é de Ronald Au- digma tanto porque afrontaram, quan- a questão ainda mais visível”, observa
de.” Prefere, porém, não expor as di- gusto, autor entre outros, dos livros Cair to porque se afirmaram apesar desse Regina. E, ela acrescenta, uma vez que
ficuldades que enfrenta desde o início de costas (2012), Empresto do visitan- estado de coisas: Machado de Assis, os escritores, em geral, escrevem a res-
do seu percurso artístico. “Era ingênuo, te (2013) e Nem raro nem claro (2015). Cruz de Sousa e Oliveira Silveira — peito daquilo que conhecem, “o fato de
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | Literatura Afro-brasileira

“Em evento literário não há negros” haver poucos autores negros publicando
romance — o gênero com mais prestígio
“Os negros não conseguem visibilidade no Brasil”, afirma Paulo Lins. Dezoito anos no país — se reflete em poucos persona-
após o lançamento do romance Cidade de Deus (1997), o carioca nascido no bairro Estácio de Sá gens negros na ficção brasileira”.
Entre os 4% de autores negros
vive em São Paulo e, apesar de ter conquistado uma situação financeira mais confortável, ainda
apontados pela pesquisa da UnB, há
identifica uma mesma realidade social: “Em evento literário, congressos médicos ou encontros pelo menos duas vozes literárias com
de dentistas não há negros. Você só encontra negro nas camadas mais baixas da sociedade.” ressonância. Uma delas é a da mineira
Conceição Evaristo, autora, entre ou-
Ele é convidado para bate-papos e mesas em encontros ligados ao universo dos livros, tros títulos, de dois romances a respei-
acompanha a produção dos escritores contemporâneos, entre os quais destaca Ferréz, Ana Paula to da identidade negra, Ponciá Vicêncio
(2003) e Becos da memória (2006).
Maia, Milton Hatoum e Daniel Munduruku. “A literatura brasileira vai bem, obrigado.” No entanto, O outro destaque é o cario-
elogia — mais do que qualquer outra obra contemporânea — o romance Um defeito de cor, de Ana ca Paulo Lins, autor de Cidade de Deus
(1997), romance sobre as transforma-
Maria Gonçalves. “É uma obra-prima, um livro tão bom e complexo quanto Grande sertão: veredas,
ções de um conjunto habitacional do
do Guimarães Rosa.” Rio de Janeiro, e em alguma medida do
Colaborador de roteiro da novela I love Paraisópolis, da TV Globo, Lins diz estar, já faz próprio Brasil, sobretudo pelo impac-
to do narcotráfico. Adaptado para o ci-
alguns anos, “muito” interessado em audiovisual — escreveu roteiro para televisão e para cinema, nema em 2003 por Fernando Meirel-
entre os quais Quase dois irmãos (2004), filme de Lúcia Murat — prêmio de melhor roteiro da les — o longa-metragem homônimo
conquistou prêmios em diversos países
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2005. e foi indicado ao Oscar em quatro ca-
Reprodução tegorias. Em 2012, Lins lançou o seu
segundo romance, Desde que o samba
é samba [Leia mais sobre no autor no
BOX ao lado].

No gueto e fora dele


Desde 2006, o curitibano Celio
Jamaica, 38 anos, escreve poemas, crô-
nicas e contos, como ele mesmo diz,
levando em consideração temas uni-
versais. “Posto logo existo”, conto pu-
blicado na antologia Flupp Brasil: no-
vos autores (2014), é um exemplo: o
texto de ficção dialoga com a realida-
de contemporânea, num contexto em
que as redes sociais são onipresentes:
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 23

“Hoje pela manhã fui conferir a mi- Jamaica participa de saraus reali- e deve ir além do discurso, do questio-
nha pontuação no Lulu. Fiquei pre- zados em bairros da periferia de Curi- namento de valores e, por exemplo, da
ocupado, pois não havia nenhum co- tiba e em cidades da Região Metropo- exigência de cotas. Gosto da beleza e da
mentário e a frase matinal que havia litana, inclusive em ocupações. Nesses plástica do texto”, comenta o autor, en-
postado no Facebook tinha recebido
apenas três curtidas.”
Anteriormente, Jamaica era mais
engajado na causa negra. Não que te-
encontros, ele diz que dezenas de jovens
negros declamam textos e, na maior
parte do caso, a temática — da cha-
mada literatura hiphopiana — é quase
tre outros, dos livros Vão (2005), Morada
(2007) e Da cabula (2008).
Entre 2005 e 2009, Rosa esteve
à frente da Edições Toró, selo indepen-
“preconceito
A literatura espelha o
social e torna a
nha deixado de problematizar, por meio a mesma: famílias desestruturadas, fal- dente que viabilizou obras para 20 es-
da palavra falada e escrita, questões re- ta de educação, comida e oportunidade, critores e poetas, sobretudo, das peri- questão ainda mais visível”,
lacionadas, por exemplo, à violência entre outros problemas. ferias paulistanas. Ele chama atenção
e racismo. “É que os textos universais Já o paulistano Allan da Rosa, 39 para o fato de que, cada vez mais, au- Regina Dalcastagnè
podem atingir mais pessoas e são uma anos, acredita que dialogar apenas com a toras e autores negros escrevem e pu-
‘porta de entrada’ para, em um segundo “militância” pode ser uma ação de pouco blicam prosa e poesia no Brasil. “Acon-
momento, eu falar de temas como direi- impacto e ressonância limitada. “Além tece que o sistema cultural é excludente
tos humanos”, afirma. disso, a literatura tem de ser imprevisível e apenas alguns autores são badalados.

Kristiane Foltran Reprodução

O curitibano Celio Jamaica se vale de textos mais universais para, em um segundo momento, discutir questões urgentes O paulistano Allan da Rosa comenta que autoras e autores negros escrevem e publicam, cada vez mais, prosa e poesia no Brasil.
para ele, como direitos humanos.
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | Literatura Afro-brasileira

Reprodução

Luiz Gama é considerado o primeiro autor brasileiro a dar voz ao personagem negro que assumirá, no poema, a primeira pessoa do discurso.

E tem mais: não basta publicar. O livro convive no âmbito familiar para servir
precisa entrar em circulação, ser lido, a seus senhores”, explica a professora
discutido e o sujeito tem de participar da Universidade Federal do Rio Gran-
do circuito literário, muitas vezes con- de do Sul (UFRGS) Zilá Bernd.
quistar prêmios, para ser reconhecido
como escritor”, completa.

Eu enunciador
Autora, entre outros, de O que
é negritude? (1988), Zilá lembra que
Castro Alves (1847-1871) é conheci-
do como o poeta abolicionista, apesar
“e euEssequerorótuloexpandir
[poeta negro] é limitante
ao máximo a minha
O negro está recriado em pro- de que, em seus poemas, o negro ainda
sa e poesia desde o início da literatu- é retratado em terceira pessoa, ou seja, atuação, quero a liberdade. Sou, mais do
ra brasileira, por exemplo, nos poemas é aquele a respeito de quem se fala. A
de Gregório de Matos Guerra e, pos- estudiosa cita outro autor, Luiz Gama que tudo, um poeta”,
teriormente, nas obras dos autores do (1830-1882), filho de escrava e pai bran-
Romantismo e do Realismo. “Mas os co, como o primeiro a dar voz ao perso- Ricardo Aleixo
negros aparecem quase que confundi- nagem negro que assumirá, no poema,
dos com os móveis e demais objetos a primeira pessoa do discurso — assu-
da casa, pois, em geral, não têm voz na mindo a sua condição de negro. “Hoje
trama romanesca. Ocupam o lugar do reconhecemos sua força poética e o fato
subalterno, do escravo doméstico que de ter sido uma espécie de precursor da
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 25

Três mestres
Reprodução
A convite do Cândido, a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Zilá
Bernd comenta, brevemente, o legado de 3 autores negros, Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-
1922) e Machado de Assis (1839-1908):
Cruz e Sousa [imagem] foi equivocadamente lido, inclusive pela comunidade negra, como um autor
deslumbrado com a cor branca. É que se só se liam seus poemas simbolistas, deixando-se de lado poemas
em prosa como o “Emparedado”, texto profundamente empenhado na denúncia do racismo. Em relação a Lima
Barreto, quanto mais se lê a sua obra mais se percebe sua necessidade de denunciar o cinismo do preconceito
no Brasil que aceita o negro “desde que ele fique no seu lugar”. Isso é lindamente tematizado por ele no
romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Quanto a Machado de Assis, é preciso captar o simbolismo
de sua crítica à hierarquização das classes sociais e a tendência a deixar os escravos e seus descendentes
na periferia do sistema. Ao ler atentamente seus contos e crônicas encontramos exemplos eloquentes de sua
crítica mordaz ao preconceito e ao apagamento da comunidade negra na sociedade brasileira.

negritude, deixando emergir em seus falava em produção literária de autores No entendimento de Zilá Bernd,
poemas o ‘eu que se quer negro’ e isso brancos e de autores negros. “Como acho o critério epidérmico, ou da cor da pele,
em pleno período escravocrata, portan- os binarismos redutores e li praticamen- leva a equívocos porque um autor ne-
to, anterior a Castro Alves”, afirma. te toda a produção poética de 1960 até gro não precisa necessariamente fa-
Zilá inciou o curso doutorado na aquele momento [década de 1980], ve- lar de negritude, enquanto um autor
Universidade de São Paulo (USP) na dé- rifiquei que muitas vezes quando não branco pode ter uma memória asso-
cada de 1980. O objetivo de sua tese, de- havia uma foto do autor na capa eu não ciada à cultura afro: “O critério tex-
fendida em 1987, era comparar a produ- conseguia identificar se era obra de bran- tual, da recuperação de uma memó-
ção literária afro-brasileira com a poesia cos ou de negros. Além disso, autores ria individual ou coletiva associada
da negritude do caribe de língua france- aparentemente brancos se identificavam ao passado é mais rico, possibilitan-
sa: “Meu ponto de partida foi uma dú- como negros e vice-versa”, conta. do descobertas ligadas a temas de uma
vida. Se a música brasileira conta com a A especialista diz ter constru- comunidade que está reescrevendo o
contribuição decisiva de compositores e ído o conceito do “eu enunciador”: seu percurso por meio dos rastros me-
letristas negros, por que essa contribui- “Seria a emergência no texto ou poe- moriais. A literatura, talvez mais do
ção [dos afro-brasileiros] é, aparente- ma de um eu enunciador que assume que a História, pode reabilitar os apa-
mente, pouco expressiva na literatura?”. a identidade, a memória e os valores gamentos dessa história pontuada por
Em seguida, analisou as obras teó- a comunidade afro, o diferencial que sofrimentos e sacrifícios.” g
ricas e críticas existentes e diz ter encontra- passaria a adotar para classificar como
do, em sua maioria, o esquema binário que literatura afro-brasileira ou não.”
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Ensaio

Literatura
Reprodução

afro-brasileira,
configurações
O professor da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Eduardo de Assis Duarte analisa a produção
literária das autoras e dos autores negros no Brasil, dos
mais antigos aos contemporâneos

Abdias do Nascimento é considerado um dos maiores pensadores e expoentes da cultura negra no Brasil e no mundo.
Além de ter escrito uma série de livros sobre o assunto, fundou entidades pioneiras como o Teatro Experimental do
Negro e o Museu da Arte Negra.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 27

Reprodução

N
a segunda metade do século XX, Negrícia, no Rio de Janeiro, Palmares, em
e mais fortemente a partir da dé- Porto Alegre e Quilombhoje, em São Paulo.
cada de 1970, a literatura brasilei- Buscam a construção de uma literatura em-
ra exibe um quadro de progressi- penhada no combate ao racismo e na afir-
vo esgotamento e superação do projeto mação dos valores culturais desse segmento
modernista, em especial dos ímpetos de historicamente excluído da cidadania. Em
negação do passado e de celebração de 1978, tem início a série Cadernos Negros, com
uma brasilidade fundada na mestiça- a publicação anual (e até hoje ininterrupta)
gem e representada a partir de uma vi- de um volume coletivo, ora de ficção, ora de
são distanciada do outro. Mais do que poesia. E surgem nomes como os de Cuti
isto, salta aos olhos o vazio marcado (Luiz Silva) e Conceição Evaristo, em meio a
pela ausência de um projeto unificador, dezenas de outros, com uma produção vigo-
que reúna as diferentes formas de ex- rosa que vem se juntar a trabalhos como os de
pressão em torno, por exemplo, da afir- Lino Guedes, Carlos de Assumpção, Solano
mação de um espírito nacional uno no Trindade, Abdias Nascimento, Oswaldo de
seio de uma cultura multifacetada. Camargo, Joel Rufino dos Santos, Nei Lo-
Embora persistam em grande me- pes, Muniz Sodré e tantos mais.
dida os valores estéticos consagrados no Tais autores têm como referência
Ocidente e canonizados no “Alto Mo- a herança da literatura da diáspora ne- A relação da obra de Machado de Assis com o tema racial é controversa. Mas o pensador Octávio Ianni aponta-o,
dernismo”, de que são exemplos Guima- gra, cujo início, enquanto movimento, se juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como “fundador da literatura negra” no Brasil.
rães Rosa e Clarice Lispector; ou o que dá com a Harlem Renaissanse estaduni-
Flora Sussekind classifica como “escrita dense, na década de 1920, para chegar ao
do eu” — a marcar a poesia dos remanes- Negrismo e ao Indigenismo dos países cari-
centes da “geração mimeógrafo”; ou, ain- benhos e à França da Négritude, na década Percussores e Machado de Assis de modo impiedoso as elites escravo-
da, textos que buscam “narrar a nação”, seguinte. Este legado passa a “enegrecer” Dentre os precursores, dois exem- cratas de seu tempo. Já prevendo para
como o Viva o povo brasileiro (1984), de a escritura de inúmeros remanescentes plos brasileiros surpreendem: a mara- seus escritos o lugar marginal ocupado
João Ubaldo Ribeiro, é patente a inexis- da escravidão em diversos países, inclusive nhense Maria Firmina dos Reis e o mais tarde por outros afrodescenden-
tência do clima de movimento e, mes- no Brasil, com o início das atividades do baiano radicado em São Paulo Luiz tes, Gama afirma que seus textos se si-
mo, de geração, que marcou a recepção TEN — Teatro Experimental do Negro, Gama. Firmina publica, em 1859, o tuam nas “abas do Parnaso.”
entre nós dos caminhos apontados pelas em 1944. A estes, soma-se o repertório de romance Úrsula, primeira narrativa Todavia, nem todos os autores
vanguardas históricas do século XX. inúmeros precursores que, desde o século abolicionista de nossas letras, em que negros do passado explicitam o pon-
Resulta daí o quadro em que so- XVIII, colocaram em letra impressa seus a África surge como espaço de civili- to de vista afro-identificado, fato que
bressaem a diversidade de projetos e a versos e narrativas, de modo a inscrever o zação e o tráfico é inscrito como “bar- remete ao contexto e ao público leitor
busca de afirmação de parcelas minoritá- ponto de vista interno ao existir negro e a bárie” de origem branca e ocidental, de outras épocas, sobretudo do século
rias perante o poder cultural. Cabe então suas formas de expressão. Emerge então a partir mesmo da descrição detalha- XIX e de pelo menos metade do sécu-
ressaltar iniciativas oriundas de segmen- a memória marcada por séculos de desu- da do porão onde era amontoada a lo XX. O próprio Machado de Assis se
tos marginalizados, em que o sentimento manização e rebaixamento a mera força “mercadoria humana”. Já Luiz Gama considerava um “caramujo” a dissimu-
de comunidade se sobrepõe ao de nacio- de trabalho, tudo isto respaldado por uma traz a público, também em 1859, suas lar sua negrícia perante o leitor branco
nalidade. Nesse contexto, ganha corpo a ampla cadeia discursiva que abarcava tan- Primeiras trovas burlescas de Getuli- de seu tempo. É um capoeirista da lin-
produção literária dos afrodescendentes. to o discurso filosófico (Hegel) quanto o no, em que não apenas se apresenta guagem, como já afirmou Luiz Costa
A partir da década de 1970, escri- científico (Gobineau, Taine, entre outros), como “Orfeu de carapinha” e se re- Lima. Por trás da aparente superficia-
tores negros se organizam em coletivos, e terminava por naturalizar a inferiori- fere respeitosamente à mulher negra, lidade de muitos de seus contos e ro-
a exemplo dos grupos GENS, na Bahia, dade e a exclusão. mas também se ocupa em satirizar mances, como Helena, está a crítica ao
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Ensaio

discurso senhorial e à branquitude que articulam para dar o troco, ou que, em


busca naturalizar esse discurso como desespero, se descontrolam. Nascimento
verdadeiro. Machado é um ancestral Moraes traça um panorama realista do
que deixou inúmeras lições. Tem razão regime servil e de sua continuidade sob
Octávio Ianni quando, no ensaio “Lite- novas formas de exploração, respaldadas
ratura e consciência” (1988), aponta-o, pelo racismo, tal como previsto por Ma-
juntamente com Cruz e Sousa e Lima chado de Assis. E, muito antes de Gil-
Barreto, como “fundador da literatura berto Freyre, desconstrói o 13 de maio
negra” no Brasil, sendo, portanto, “clás- enquanto happy end apaziguador e con-
sico duas vezes”: da literatura brasileira sagrador do mito da escravidão benigna.
e da literatura negra. Ousaria dizer que
o considero três vezes clássico, pois o é Novos e novíssimas
também da literatura ocidental e, nes- A ficção mais recente reproduz es-
te ponto, concordo com Harold Bloom. tas linhas de força, em especial a recupe-
O autor de Dom Casmurro é pre- ração crítica do passado, como em O carro
cursor da literatura afro-brasileira por do êxito (1972), A descoberta do frio (1979)
diversas razões, conforme procurei de- ou Oboé (2014), de Oswaldo de Camar-
Evandro Teixeira
monstrar em Machado de Assis afrodes- go; Zumbi (1980), Crônica de indomáveis
cendente (2007). Ressalto apenas duas, a delírios (1991) ou Bichos da terra tão pe-
segunda decorrente da primeira: o pon- quenos (2010), de Joel Rufino dos Santos;
to de vista afro-identificado, não branco Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória
e não racista, apesar de toda a discrição (2006), Insubmissas lágrimas de mulheres
e compostura do “caramujo”; e o fato de (2011) ou Olhos d’água (2015), de Con-
matar o senhor de escravos em seus ro- ceição Evaristo; Vinte contos e uns trocados
mances, criando um universo ficcional (2006), Mandingas da mulata velha na ci-
que é alegoria do fim da escravidão e da dade nova (2009), Oiobomé (2010) ou Rio
decadência da classe que dela se benefi- Negro, 50 (2015), de Nei Lopes; Santugri
ciou ao longo de nossa história. (1988) ou A lei do santo (2000), de Mu-
Outro precursor é José do Nasci- niz Sodré; Cidade de Deus (1997) ou Des-
mento Moraes. Em 1915, em pleno São de que o samba é samba (2012), de Paulo
Luiz do Maranhão dominado pelas oli- Lins; além de Um defeito de cor (2006), de
garquias herdeiras do escravismo, ele pu- Ana Maria Gonçalves, ganhador do Prê-
blica o romance Vencidos e degenerados. O mio Casa de las Américas.
livro se inicia às 8 da manhã do dia 13 de Em paralelo, persiste uma linhagem
maio de 1888, algo raro na ficção brasi- contundente sem se descuidar da leveza
leira. Além de toda a agitação ali ocor- vinda do humor, a exemplo de Contos crespos
rida, traz, quase como crônica histórica, (2009), de Cuti, ou Mulher mat(r)iz (2011),
as reações provocadas pela nova situação de Miriam Alves, ou Só as mulheres sangram
na subjetividade e no comportamento de (2011), de Lia Vieira. E não se pode esque-
antigos senhores e dos agora ex-escravos. cer a produção de jovens ficcionistas, como
E o leitor se depara com cenas de vio- Cidinha da Silva, Allan da Rosa, Sacolinha,
lência até então inéditas: negros que de- Lande Onawale, Fábio Mandingo ou Cris-
volvem no rosto dos antigos senhores as tiane Sobral, todos com trabalhos de relevo,
bofetadas que sofriam diariamente; ou- sobretudo no conto. E impõe-se mencionar
Autor de uma obra vasta, Joel Rufino dos Santos ganhou o Prêmio Jabuti em duas tros que apedrejam suas mansões; ou- ainda autores que optam por edições cole-
oportunidades: em 1979, com Uma estranha aventura em Talalaie; e 2008, com O barbeiro e o tros que deixam o jantar queimando no tivas como Cadernos Negros, a exemplo de
judeu da prestação contra o Sargento da Motocicleta. fogão... E há brancos revoltados que se Márcio Barbosa e vários outros.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 29

Já na poesia, pode-se destacar, Portal da literatura afro-brasileira, con-


de início, as coletâneas Obra reunida siderável arquivo de livre acesso através Reprodução
(2012), de Oliveira Silveira e A cor da do endereço www.letras.ufmg.br/litera-
palavra (2009), de Salgado Maranhão. fro. Até o momento, o portal contém:
Além dessas, Um homem tenta ser anjo dados biográficos de 120 autores; rela-
(1959), 15 poemas negros (1961) e O es- ção de aproximadamente 2.500 obras
tranho (1984), de Oswaldo de Camargo; publicadas, entre livros e textos em an-
A cor da pele (1980) e Texturaafro (1992), tologias; indicação de mais de 1.000
de Adão Ventura; Plano de voo (1984) e fontes de consulta sobre os autores; co-
Todo o fogo da luta (1989), de Paulo Co- nexão imediata com centenas de ende-
lina; Zeozório blues (2002) e As coisas ar- reços digitais com informações sobre as
cas (2003), de Edimilson de Almeida obras relacionadas; mais de 200 artigos
Pereira; A cor da demanda (1997) e Tudo críticos sobre as obras elencadas no por-
o que está solto (2010), de Éle Semog; tal, acrescidos de ensaios teóricos e rese-
Sanga, (2002), Negroesia (2007) e Ki- nhas de obras recentes. E ainda centenas
zomba de vento e nuvem (2013), de Cuti; de textos, entre poemas, contos, crônicas
Estrelas no dedo (1985), de Miriam Al- e excertos de romances, disponibilizados
ves; Poemas de recordação e outros movi- gratuitamente. Além disso, o projeto
mentos (2008), de Conceição Evaristo; e publica a newsletter literafro novidades,
Não vou mais lavar os pratos (2010), de de periodicidade bimensal, com infor-
Cristiane Sobral, entre outros. São for- mações e resenhas de lançamentos, di-
mulações poéticas que expressam de di- vulgada por e-mail e facebook para lei-
versas formas a identidade do negro, tores do país e do exterior.
mulher ou homem, revisitam a histó- Hoje, no meio acadêmico, a li-
ria, celebram os ancestrais e as divinda- teratura afro-brasileira é um concei-
des dos cultos afro, ou denunciam, às ve- to em construção, isto é, em discussão.
zes de forma explicitamente militante, a Quando acrescentado ao texto do es-
discriminação contemporânea. Mas que critor negro, o suplemento “afro” ga-
tratam também de tópicos mais univer- nha densidade crítica a partir da exis- Ana Maria Gonçalves é autora do elogiado romance Um defeito de cor (2006), vencedor
sais, situando-os em nova perspectiva, a tência de um ponto de vista específico do Prêmio Casa de las Américas. O romance conta a história de uma africana idosa, cega
exemplo do erotismo. a conduzir a abordagem da questão, e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas.
Os nomes e textos acima arrola- seja na poesia ou na ficção. Tal pers-
dos são apenas parte do conjunto presen- pectiva permite elaborar o tema de
te na antologia Literatura e afrodescendên- modo distinto daquele predominante
cia no Brasil (2011, 4 volumes), que traz na literatura canônica. Por outro lado,
um conjunto de cem escritoras e escrito- ao verificarmos o volume de textos
res, a maioria ausente da história de nossa acumulados todo este tempo, não há
literatura. Cada autor é contemplado com como duvidar da existência desta ver-
um artigo crítico contendo dados biobi- tente de nossas letras, ao mesmo tem-
bliográficos, apresentação geral da obra, po dentro e fora da literatura brasileira, Eduardo de Assis Duarte é professor da Faculdade
fontes de consulta, e ainda um conjunto como preconiza Octávio Ianni no en- de Letras da UFMG, organizador de Machado de
de textos representativos. É um forma- saio “Literatura e consciência”. Fruto Assis afrodescendente: escritos de caramujo (2007),
to voltado para a divulgação e o estudo de uma articulação contemporânea e Literatura a afrodescendência no Brasil: antologia
introdutório destes autores, resgatando pós-nacional, o veio afro constitui um crítica (2011, 4 vol.), Literatura afro-brasileira: 100
muitos deles do esquecimento. suplemento — algo a mais que chega autores do século XVIII ao XXI (2014) e Literatura
Noutra frente de atuação, nosso para abalar a inteireza do todo, da su- afro-brasileira: abordagens na sala de aula (2014).
projeto mantém na internet o literafro — posta unicidade antes existente. g Vive em Belo Horizonte (MG).
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Artigo

Presença restrita
O cineasta Fernando Severo traça um panorama das obras
de escritores negros brasileiros que foram adaptadas para o cinema
Reprodução

torná-los aceitáveis como figuras lumi-


nares da cultura nacional.
Dentro da restrita filmografia de
longas-metragens realizados a partir
de livros escritos por afrodescendentes,
um dos filmes que mais se destacou por
suas qualidades artísticas foi Cidade de
Deus, de Fernando Meirelles, que arre-
batou 65 prêmios no exterior e foi indi-
cado a quatro Oscars. O filme, no en-
tanto, não foi uma unanimidade crítica
no Brasil. Embora adaptado de um livro
semi-autobiográfico de Paulo Lins, foi
criticado por se valer de clichês na abor-
dagem do modo de vida da população
afrodescendente da periferia carioca. Foi
alvo também de intensa polêmica quan-
do a crítica e pesquisadora carioca Ivana
Bentes cunhou a partir dele a expressão
“cosmética da fome”, em contraposição
à “estética da fome”, termo celebrizado
em manifesto de Glauber Rocha. Foi
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, é o maior sucesso do cinema brasileiro contemporâneo no exterior. O filme é uma adaptação do livro homônimo de Paulo Lins. questionado se Meirelles, cineasta bran-
co, oriundo da classe média e publicitá-
rio, seria a pessoa mais adequada para

S
e é escasso o número de escrito- um enorme preconceito racial e social, afrodescendentes. Também em peque- tratar cinematograficamente as comple-
res afrodescendentes de destaque tão intenso como o que se abateu sobre no número na cinematografia brasileira, xas relações de classe e de tensão racial
na literatura brasileira, menor ain- Cruz e Souza. Único autor contempo- nenhum desses realizadores conseguiu que propõe a obra, e criticada sua espe-
da é o número daqueles cuja obra râneo incluído nessa restrita lista, Pau- criar quantidade expressiva de filmes ou tacularização da violência e a associação
chegou às nossas telas. Para dar alguma lo Lins desfruta notoriedade principal- deixar marcas impactantes na história automática entre negritude e margina-
relevância numérica a esse fator, é ne- mente por ter escrito Cidade de Deus do cinema brasileiro. Evidentemente, lidade a que o filme pode induzir. Mais
cessário que se inclua entre eles os au- — o maior sucesso do cinema brasileiro essa presença desproporcional da cultu- de dez anos depois de sua estreia a obra
tores cuja ascendência negra foi omiti- contemporâneo no exterior — do que ra negra na literatura e no cinema bra- ainda suscita discussões acaloradas nas
da, obscurecida ou minimizada anos a por toda sua obra como escritor. sileiros reflete o racismo velado ou ex- revisões históricas da crítica e em traba-
fio, como é o caso de Machado de As- Uma questão essencial nesse pa- plícito que permeia nossa história e leva lhos de pesquisadores acadêmicos.
sis e Mário de Andrade. Neto de es- norama é o fato de que nenhum filme a acusações como as de que o meio aca- Joaquim Pedro de Andrade rea-
cravos por parte de pai e mãe, Lima adaptado a partir de obras dos escri- dêmico teria “embranquecido” Macha- lizou um dos filmes mais emblemáticos
Barreto construiu sua obra em meio a tores citados foi dirigido por cineastas do de Assis e Mário de Andrade para do Cinema Novo a partir de Macunaíma,
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 31

Reprodução

de Mário de Andrade, marco da litera-


tura modernista brasileira. Nascido ne-
gro em meio à selva, o personagem título
se transforma em branco antes de suas
aventuras na cidade, condição que no fil-
me de Joaquim Pedro se mescla aos as-
pectos surrealistas e alegóricos pelo qual
envereda essa adaptação. A questão ra-
cial não ocupa lugar de destaque na obra
de Mário de Andrade e é inexistente em
outro filme adaptado de um de seus li-
vros, Lição de amor, de Eduardo Escorel,
cuja trama se passa em meio à alta bur-
guesia paulista e foi bem recebido pela
crítica à época de seu lançamento.
Triste fim de Policarpo Quares-
ma, que no cinema foi rebatizado como
Policarpo Quaresma, herói do Brasil, é a
única obra de Lima Barreto adaptada Joaquim Pedro de Andrade realizou um dos filmes mais emblemáticos do Cinema Novo a partir de Macunaíma, obra de Mário de Andrade.
para longa-metragem, com direção do ci-
neasta carioca Paulo Thiago e resultados
pouco memoráveis. Embora a questão o livro não filmável sem perder suas tempo dá conta de informar biografica-
racial seja abordada em outros dos seus principais qualidades literárias. Cine- mente a trajetória do maior poeta sim-
livros, nenhum deles chegou ao cinema. astas importantes como Nelson Perei- bolista brasileiro e encontra equivalên-
É natural que a reputação de Ma- ra dos Santos, com Azyllo muito lou- cia poética de sua obra através do uso
chado de Assis como o mais importante co, Sérgio Bianchi, em Quanto vale ou é criativo da linguagem cinematográfica.
escritor brasileiro tenha originado mui- por quilo? e A causa secreta, Júlio Bres- A imprevisibilidade inerente ao
tas adaptações cinematográficas, tan- sane, em A erva do rato, foram melhor futuro não permite apontar se esse pa-
to de seus principais romances quanto sucedidos em suas incursões macha- norama vai ser alterado a partir das
de alguns contos. O mais famoso deles, dianas. Já Quincas Borba, de Roberto transformações sociais em curso no
Dom Casmurro chegou aos cinemas no Santos, e Brás Cubas, de André Klot- Brasil. Mas um olhar sobre as forças
período do Cinema Novo em Capitu, zel, dividiram opiniões. emergentes na literatura e no cinema
de Paulo César Saraceni, e mais recen- Uma das mais importantes adap- brasileiros aponta para o surgimento
temente, em versão transposta para os tações de um escritor negro brasileiro de artistas afrodescendentes capacita-
dias atuais, em Dom, de Moacir Góes. para o cinema é sem dúvida Cruz e Sou- dos para dotar essas áreas de um pro- Fernando Severo é cineasta e professor de cinema.
Ambos foram impiedosamente criti- za — O poeta do desterro, de Sylvio Back. tagonismo que a cultura negra já ocu- Dirigiu, entre outros filmes, o curta-metragem Visionários
cados à época de seus lançamentos, al- O cineasta adota uma estrutura narra- pa em nosso país no campo da cultura (2002) e o longa Corpos celestes (2009). Atualmente é
guns resenhistas destacaram considerar tiva bastante original que ao mesmo popular e da religiosidade. g diretor do Museu da Imagem e do Som do Paraná.
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ensaio

Laura Santos e a arte


do incontrolável desejo
C
Pouco conhecida entre os onhecida por alguns poucos curi-
tibanos, Laura Santos (1919-
publicados na Gazeta do Povo e no Diá-
rio da Tarde até a década de 1980. Esse
exasperadamente feminina. É através do
corpo que lhe chegam as sensações do
leitores paranaenses, a poeta 1981) talvez tenha sido a úni-
ca poetisa negra de Curitiba dos
material nunca foi reunido em livro.
Independente, idealista e com
mundo trazido como sentimento. É atra-
vés do corpo que ela tenta se comunicar
negra Laura Santos escreveu anos 1950. Dona de uma linguagem
sensível, Laura, a “pérola negra”, como
uma personalidade forte e à frente do
seu tempo, fez magistério e deu aulas de
com o exterior, com o outro”.
Seus poemas estão cheios de ima-
uma obra enxuta, em que a ficou conhecida, fez uma poesia com
alta carga erótica, elucidando o corpo
português e matemática. Também cursou
enfermagem, porque queria participar da
gens eróticas que “são uma espécie de
metáfora da sua relação básica com o
temática erótica se sobrepõe como objeto da sua própria linguagem.
Influenciada pela estética parna-
2° Guerra Mundial como enfermeira da
Cruz Vermelha, sonho que não conse-
mundo, relação que se traduz enquanto
impossibilidade de amar, de viver plena-
a questões como negritude so-simbolista, principalmente por Ola-
vo Bilac, criou uma poética diferenciada
guiu realizar. Depois acabou trabalhan-
do como educadora sanitária, cuja função
mente, de ser feliz”, que faz ela obceca-
da pelo “desejo de libertação”, como co-
e moderna, com traços biográficos, por era orientar a população sobre hábitos de mentou Rosse Marye.
Claudecir de O. Rocha meio dos quais elucidava a realização dos higiene — exerceu este ofício até a apo- O desejo de libertação é cons-
seus anseios, ao mesmo tempo em que sentadoria. Morreu em 1981, totalmente truído por meio de uma poesia que não
expressava um desejo de transcendência. ignorada pela imprensa local. encontra solução para seu amor por-
Laura Santos nasceu em 1919 e que, consciente de que ele não se rea-
estreou com um texto chamado “His- Obra misteriosa lizará novamente, só lhe resta pensar
tória da evolução da aviação”, em 1937 Foi a sua mais conhecida amiga, a na transcendência que contrasta com
— premiado em concurso literário local. também poeta Helena Kolody, quem pri- sua poesia carnal, de lábios, de coxas, de
Diz a lenda que escreveu seu primeiro meiro resgatou sua obra do esquecimen- seios e de pele. E, assim, Laura busca
soneto aos 13 anos. Deixou três proje- to, em 1959, numa antologia conhecida no desejo sexual encontrar a si mesma
tos de livros, todos finalizados em 1953: como Um século de poesia, organizada pelo — afinal, sozinha, no entanto, sente-se
Sangue tropical (Prêmio Academia José Centro Paranaense Feminino de Cultu- fria, incompleta, fraca nesse mundo de
de Alencar), Poemas da noite e Desejo. ra. Em 1985, Pompilia Lopes dos Santos sensações e de belezas.
Obras que seguem a mesma linha organizou uma nova antologia, chamada
temática, mesma expressão, deixando a de Sesquicentenário da poesia paranaense, Diálogos, estilo e temas
clara impressão de formar um livro só. que trazia alguns poemas de Laura. Cin- A influência de Olavo Bilac pa-
Ela buscou expressar nesses poemas o co anos depois, a Secretaria de Estado da rece ser pertinente, principalmente em
próprio corpo, alternando entre versos Cultura do Paraná (Seec) publica Poemas, relação à carnalidade que ela dá ao amor
livres e sonetos, influenciados por uma reunião dos 3 livros da autora. e ao desejo. Mas a expressão parnasiana
constante romântica que busca no sim- No prefácio dessa antologia, Ros- se mistura com o desejo simbolista de
bolismo a transmigração da alma através se Marye Bernardi, então professora da transcendência da alma, por uma busca
do amor não correspondido. Universidade Federal do Paraná (UFPR), pela natureza primordial do amor. En-
Laura também foi uma das fun- diz que os poemas de Laura “desven- tretanto, Laura Santos não deu o mes-
dadoras da Academia José de Alen- dam, num tênue fio biográfico, os so- mo tom vulgar e artificial do erotismo
car, em Curitiba, e os seus textos foram frimentos de um corpo e de uma alma bilaquiano com sua pomposa máquina
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 33

“ Laura vai se debruçar em temas comuns, pois a


maioria dos seus poemas falam sobre a saudade, o
de fazer versos, assim como seus diletos,
que pareciam buscar “um academicismo
epigônico com muita frequência tempe-
rado de anedótico e pelo emocional fá-
não se conformou com o determinismo
social e seguiu sua vida sem levantar
bandeiras sociais, pois “não encontra-
mos neles [nos seus versos] qualquer
cil”, para agradar “lavadeiras e condes- eco de negritude ou qualquer reivindi-
amor, o desejo e a natureza como parte de si.” sas”, suas “Frineias e Messalinas da Rua cação feminista”, naquela Curitiba ain-
Reprodução da Quintanda”, conforme comenta Ale- da provinciana dos anos 1950, diz Rosse
xei Bueno no seu livro Uma história da Marye Bernardi.
poesia brasileira. Helena Kolody também comenta,
Seus versos são límpidos, asso- em texto escrito, que “na obra de Laura
nantes e aliterados, revelando um ero- Santos pode-se observar a inexistência
tismo mais sensual e panteísta, reto- de qualquer atitude complexada quanto
mando certo modernismo simbolista de à sua cor, porque sempre foi recebida em
Cecília Meireles, a religiosidade sensu- pé de igualdade por outros companhei-
al de Vinicius e algo da poesia corporal ros de arte e profissão”. Outro poeta que
de Drummond. conheceu Laura, Tonicato Miranda, afir-
Laura vai se debruçar em temas mou que ela era “sem complexos, inte-
comuns, pois a maioria dos seus poemas ligente, elemento positivo e querida nos
falam sobre a saudade, o amor, o desejo ambientes onde convivia. Jamais queixa-
e a natureza como parte de si. O amor ra-se de discriminação ou de sua situa-
atravessa seus versos, resultado de uma ção econômica difícil. Nunca se queixou
paixão desenfreada por alguém que a fez das próprias dificuldades, que se presu-
conhecer o amor, o sexo e depois a aban- mia fossem muitas, dado que não conse-
donou, trocando-a por outras mulheres. guiu publicar sua obra em vida”.
Esse dilema conjugal vai ser o mote dos Queria, antes, usar a poesia como
seus poemas, que vão se tornar uma es- instrumento de libertação e, diferen-
pécie de confidente das suas ilusões temente de poetisas como Gilka Ma-
amorosas, buscando através do desejo chado, que usou erotismo para levan-
constante de reviver esse amor perdido, tar a militância feminista, Laura Santos
de reencontrar o Don Juan. transformou suas perspectivas e dese-
jos em poemas, nos quais não se res-
Descomplexada socialmente tringiu em defesas ideológicas, mas
Laura Santos deixou, para seus in- que revelam a partir de uma lingua-
terlocutores, a impressão de ter sido uma gem simples e cotidiana o próprio cor-
mulher batalhadora, que nunca recla- po. Poemas que refletem suas angústias,
Nos anos 1980, a Secretaria de Estado da Cultura do Paraná reuniu a obra poética de Laura mou de discriminação, nem da sua situ- seus medos, suas inquietações e a busca
Santos no volume Poemas. ação econômica porque, de certo modo, pela felicidade.
34 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ensaio

“ A influência de Olavo Bilac parece ser pertinente,


principalmente em relação à carnalidade que ela dá
Distante do clichê provinciano
Ela também se afasta da qualidade
estética de poetisas de cidadezinhas do
determinado fim, como se as pessoas não
sofressem os mesmos dilemas.
Laura, assim como muitos poe-
interior. Mesmo assim, muitos dos seus tas, estava mais preocupada com a pró-
ao amor e ao desejo.” versos são extremamente piegas, quase de
uma ingenuidade adolescente, mas a sua
pria expressão poética, com o desejo la-
tente de fazer arte, do que apenas ser
linguagem clara e simples, seu erotismo defensora de ideologias como querem
Reprodução latente e desejo de sublimação lhe dão alguns críticos de tendência marxista.
outro tom. Um tom límpido, quase natu- Sua poesia é feita de atitudes, na qual
ral, uma espécie de dança poética, na qual transparece a força da expressão e não
as palavras, como gestos, tentam tradu- usa do artifício para revelar essa intenção
zir os desejos do corpo e da alma, dizer o sentimental, mas da sinceridade que o
inefável. Nos seus poemas, Laura Santos erotismo possibilita.
parece retomar muitas das características Paulo Henriques Britto, no en-
do romantismo, nos quais vigora um du- saio É possível transgredir no momen-
alismo entre o amor e o pecado, o pudor to poético atual?, fala sobre os poetas da
e o desejo, a carne e o espírito e, usando “geração mimeógrafo”, dos anos 1970,
da expressão erótica, objetiva seu desejo que contrapunham às posturas constru-
de transcendência através do amor. tivistas dos poetas concretos, porque es-
Contemporaneamente, enquan- tes “defendia[m] uma arte engajada na
to ainda vigora uma crítica sociológica luta contra a opressão capitalista e jul-
e anacrônica, se orientando em classi- gava necessário sacrificar o presente in-
ficar obras de arte conforme o interesse dividual em nome do futuro da huma-
de um determinado grupo social, bus- nidade”. Essa geração de poetas que se
cando enfatizar aspectos, mesmo que se- auto-nomeava marginal, reafirmou “va-
cundários, para reafirmar uma posição lores como liberdade e subjetividade,
ideológica, e assim acentuar políticas ra- contrapondo-se ao construtivismo e ob-
ciais e feministas, Laura não parece se jetivismo dos concretos. Ao mesmo tem-
preocupar com isso, deixando de lado o po, afirmando o “desbunde, celebrando
engajamento ideológico. Daí seu afas- os pequenos prazeres do cotidiano, eles
tamento de qualquer antologia de lite- rompiam frontalmente com a sisudez
ratura negra, porque, segundo algumas ideológica da poesia participante”.
classificações, para ser um poeta da li- É nesse contexto que se encai-
teratura negra, não basta ser negro, tem xa Laura Santos, que não é propria-
que defender sua raça nos poemas, como mente uma poetisa “marginal”, nem se
Versão caseira que reúne os três breves livros que a poeta escreveu em 1953: Sangue tropical, se toda obra de arte tivesse uma obriga- utilizava do poema-piada, nem defen-
Poemas da noite e Desejo. ção social e histórica de servir para um dia a bandeira banal do anticapitalismo,
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 35

Claudecir de O. Rocha é editor e professor universitário.


Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR), atualmente é doutorado em Estudos Literários pela
mesma instituição. Também é autor dos livros de poemas,
Teatro dos mortos e Ensauro. Vive em Curitiba (PR).

Reprodução
mas que traz alguns desses valores para ela é principalmente uma poetisa, uma
sua poesia: a subjetividade, a individu- mulher que se expressa artisticamen-
alidade, a liberdade, os prazeres do co- te, sem se prender aos ecos da negritu-
tidiano, etc. Ela resgata o soneto e opta de ou do feminismo, porque construiu
também por versos livres numa lin- uma poesia desvinculada de ideologias
guagem clara e simples. Ou seja, fez o modistas, e que, se tem algum valor, é
percurso realmente marginal de mui- o da própria arte, é o do próprio desejo
tos escritores desconhecidos ou secun- de se expressar através da sua visão de
dários ao que conhecemos como câ- mundo. Não quero dizer com isso que
none literário, não se preocupando a poesia de Laura Santos não apresen-
com o reconhecimento. te traços biográficos, femininos e sensí-
veis, nem que sua poesia não tem auto-
Só poesia ria, podendo ter sido escrita por qualquer
Laura Santos está no meio do outra poetisa, branca ou negra, carioca
furacão de ideologias da geração de 45, ou curitibana.
onde alguns buscavam um engajamento Prefiro dizer que sua poesia é in-
cristão, como Murilo Mendes, Tasso de teressante simplesmente pela própria
Silveira ou Jorge de Lima. E outros, o composição e unidade, pelo aspecto esté-
engajamento político, como Drummond tico dos seus versos. Ser negro ou não, no
e Ferreira Gullar. O interessante é que caso dessa poetisa, é elemento secundá-
Jorge de Lima só vai se libertar da mo- rio, como o fato de ser curitibana, como
ral cristã com o livro Invenção de Orfeu querem alguns paranistas, principalmen-
(1952), Vinicius de Moraes com o Livro te porque, como vimos nas opiniões de
de sonetos (1957). Já Drummond se li- Helena Kolody e de Tonicato Miranda,
berta do panfletismo socialista com Sen- não havia nela nenhuma atitude com-
timento do mundo (1951). Eles mesmos plexada quanto à sua origem.
admitem que essas últimas obras são as Toda a sua sensibilidade, todo o
mais maduras da suas carreiras, mas há desejo de ser amada, transcritos nos seus
uma crítica marxista que ainda persiste versos, revelam apenas a vontade de ser
em canonizar as obras pelas defesas ide- mulher, sem medos ou receios de se ex-
ológicas que atravessam os seus discur- pressar, de amar, de perder o controle por
sos e não pela liberdade criativa que cada esse amor. E se ela merece um estudo
um acreditava. mais profundo, uma reunião completa
Então, como julgar Laura San- das suas produções poéticas dispersas
tos, já que não há categoria acadêmica nos jornais — é coisa a se pensar a fim
que pode defini-la como poetisa negra de que se possibilite um julgamento mais
A também poeta Helena Kolody foi amiga e interlocutora de Laura Santos. feminista? Preferimos a defesa de que justo da sua obra. g
36 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poemas | laura santos

PRIMEIRO POEMA

Quando, envolta em penumbra,


a meditar me ponho,
na doce exaltação deste exaltado sonho
na esplêndida mudez desta noite sem lume,
principio a sentir em tudo o teu perfume.
Levemente ao redor do meu leito flutuas,
sinto em meios seios nus as tuas faces nuas,
e o teu vulto sutil, subjetivamente,
em insano prazer,
em volúpia fremente
como serpe voraz, se enrola no meu ser.

E quando eu volto, de repente,


da fria realidade,
compreendo que é a saudade
VOLÚPIA
que me fez te sentir,
que me fez te gozar;
e, nesta noite fria, Quando desperta o sol, com seus brutais desejos,
eu encontro somente beija o meu corpo inteiro em seu delírio rubro.
a triste solidão de minha alma vazia. Na limpidez do céu, todo desfeito em beijos
um poema sensual de róseo amor descubro.

Sob este sonho ardente e de sutis harpejos,


a natureza toda é um marmóreo delubro.
Em espasmos de gozo o deus pagão sem pejos,
sorridente se impõe pelas manhãs de outubro.

Eu, toda fluido sou, e sou toda elastério,


na ondulação febril de profundo mistério
que vem na voz do vento e na luz do horizonte.

Som que cresce na chama aurífica da aurora,


que é da volúpia a voz veludínea e sonora,
e desliza em meu sangue, em coleios de fonte.

Laura Santos (1919-198) nasceu em morreu em Curitiba. Fundadora da


Academia José de Alencar, é autora de uma obra enxuta, constituída de
Sangue tropical, Poemas da noite e Desejo, todos de 1953.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 37

gil jesse | poemas

CÉU E CHÃO

Com seda e plástico,


Fez sua raia,
Pipa,
Pandorga,
Rasgando o céu,
Cortando rabiolas,
Debicando e embolando,
A linha nos fios de alta tensão,
Sabe do risco,
Mas é menino,
Vive por instinto,
Não por limitação,
Se poda alguém,
É a maior correria,
Chinelo arrebentando,
FÉ QUE MATA
Sorriso no rosto,
E mais uma pipa,
Tirada de circulação, Ditam a paz,
Que entra para a sua coleção. O livro tanto faz,
Descreditam uns aos outros,
Buscando superioridade,
Salvação,
Anseio,
Bondade,
Na real,
Pedras soltas nas calçadas,
Viram instrumento de guerra,
Mas,
Vê se me erra,
Nesse confronto divino,
Sangue virá vinho,
Onde a alta casta,
Embriaga-se,
Ironizando,
A áurea do conflito.

Gil Jesse é poeta, artista plástico e designer gráfico. Foi selecionado


para a antologia Novos autores curitibanos: crônicas, poesias, contos
(2013), lançada durante a primeira edição do Litercultura — Festival
Literário realizado na capital do Paraná. Vive em Curitiba (PR)
38 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

perfil do leitor | ciro pessoa

Divulgação

Em dia com
a rebeldia
Compositor de clássicos do rock nacional como
“Sonífera Ilha” e “Homem Primata”, o músico e
jornalista fala de seu envolvimento com poesia,
política e budismo
Omar Godoy
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 39

A
Divulgação
os 58 anos, Ciro Pessoa finalmen- daí, outros roqueiros com pegada lite-
te vai lançar seu primeiro livro. rária passaram a fazer sua cabeça, como
Relatos da existência caótica, que Lou Reed, David Bowie, Jim Morrison
sai até o fim deste mês pela edi- e Jimi Hendrix (“Sim, Hendrix foi um
tora portuguesa Chiado, reúne cinco grande poeta também”, diz).
dos 11 volumes de poesia escritos — e Seus poetas preferidos são os por-
nunca publicados — pelo músico e jor- tugueses Fernando Pessoa, Mario de Sá
nalista ao longo das últimas três déca- Carneiro e Camilo Pessanha, os france-
das. Sempre lembrado na cena roqueira ses Charles Baudelaire e Arthur Rim-
como líder da banda pós-punk Cabine baud e o norte-americano Walt Whit-
C, Pessoa também fez parte da primei- man. As correspondências de Antonin
ra formação dos Titãs (é coautor de hits Artaud, também francês, foram igual-
como “Sonífera ilha”, “Toda cor” e “Ho- mente decisivas para sua formação. “Eu
mem primata”) e até hoje desenvolve cursava duas faculdades, Jornalismo e
projetos musicais independentes. Mas, Direito, quando li uma coletânea de car-
ultimamente, vem chamando a atenção tas escritas por ele. Aquilo pirou a minha
por seu posicionamento, digamos, con- cabeça e fez com que eu largasse os dois
tundente contra o governo federal. cursos e viajasse pela França, onde fiquei
Ao lado de contemporâneos como por dois anos”, lembra.
Lobão e Roger Moreira (Ultraje a Ri- Envolvido com o budismo des-
gor), Ciro Pessoa vem praticando uma de os anos 1990, o artista também se
militância permanente de oposição na interessa pela poesia filosófica oriental.
internet. E não se importa de ser cha- “Quem se envolve com o budismo di-
mado de “reaça” por causa disso. “Sim, ficilmente se livra dele. Ele está abso-
sou um radical. Pode me chamar do que lutamente presente no meu dia a dia,
quiser. Odeio comunistas e esquerdopa- no meu comportamento e nas minhas
tas em geral”, afirma o artista. Segundo convicções”, explica. E cita alguns auto-
ele, essa indignação começou em 2010, res tibetanos, como Chögyam Trungpa,
quando lançou o disco solo Em dia com Drupka Kunley e Jetsün Milarepa. “Meu
a rebeldia e não conseguiu divulgá-lo por livro, aliás, está permeado de pensamen-
não fazer parte de uma determinada “pa- tos budistas do começo ao fim”, avisa. Quando o assunto é a produção Ainda assim, Ciro Pessoa não
nela” de artistas alinhados com a situação. No campo da prosa, Pessoa con- poética dos rock nacional oitentista, seu desiste de fazer música. No momento,
Felizmente, o assunto central fessa uma influência marcante da litera- berço artístico, Pessoa concorda com a o artista e sua banda de apoio (batiza-
desta entrevista é bem mais agradável: tura norte-americana pré e pós-beat — opinião geral de que os textos tinham da de Nu Descendo a Escada) ensaiam
a poesia, gênero que fisgou Pessoa ain- Charles Bukowski, Henry Miller, John mais força naquela época. Para ele, um set com poemas musicados, extra-
da criança, graças ao rock and roll. Mais Fante, Jack Kerouac. Ainda cita o fran- o embasamento intelectual de figu- ídos de Relatos da existência caótica. A
especificamente, por meio dos álbuns cês Louis-Ferdinand Céline e os argen- ras como Renato Russo ou de alguns ideia é estrear no evento de lançamento
Yellow Submarine (Beatles) e Os Mu- tinos Julio Cortázar, Jorge Luis Borges integrantes dos Titãs fez toda a di- e depois excursionar por outras cidades
tantes (do grupo paulista homônimo), e Adolfo Bioy Casares. Entre os brasi- ferença. “Muitos compositores des- brasileiras. Enquanto isso, ele segue co-
ambos lançados no final dos anos 1960. leiros, apenas três conseguiram cativá- se período tinham um vínculo muito laborando como freelancer para veículos
“Lembro da minha mãe traduzindo o -lo: Campos de Carvalho (“O melhor forte com a poesia e a literatura”, diz, da imprensa e já prepara um segundo
refrão da música ‘Yellow Submarine’ e de todos”), Oswald de Andrade (“Gos- para depois alfinetar a geração atual. livro, dessa vez de ficção. “É sobre uma
do meu espanto e alegria ao saber que to de algumas obras, como Serafim Ponte “Não estou vendo absolutamente nada grande história de amor, e terá uma nar-
a ficção, a imaginação, o não real, tam- Grande e João Miramar) e “o Guimarães acontecendo hoje. Acabou. Está tudo rativa com pinceladas de surrealismo”,
bém pertenciam à vida”, conta. A partir Rosa de Grande sertão: veredas”. uma merda.” adianta, por hora. g
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poema | mosco e bíon Ilustração Bianca Franco

Janelas para um certo campo


Tradução: Alessandro Rolim de Moura

Fragmento VIII Gow (citado por Estobeu


numa seção intitulada “Sobre a tranquilidade”)

As minhas cançõezinhas,
Aquelas que até agora a Musa traz,
Já me farão, se belas, glorioso.
Se nenhuma convinha,
Vou me cansar fazendo muitas mais?
Se o Cronida ou o Fado caprichoso
Um tempo para o gozo Fragmento II Gow (citado por Estobeu
Outorgara e, ao trabalho, uma outra vida, numa seção intitulada “Sobre Afrodite”)
Quem sabe se pudesse, após a lida,
Ter do bom e do nobre tão somente. Pã amava Eco, sua vizinha, e Eco amava
Mas se o deus só consente um Sátiro saltitante, e o Sátiro era louco por
Que ao mundo venha o homem uma vez, Lide.
Mesquinha e bem menor que o suficiente, Tanto quanto Eco a Pã, a Eco o Sátiro abrasava
e Lide ao Satirozinho: Eros ardia alternado.
Até quando, coitado, Pois quanto um deles odiava o amador,
Te esforçarás em obras e fadigas, tanto igualmente amando era detestado,
Sempre almejando mais ganho opulento? e sofria o que causava.
Foi por ti olvidado Esses casos conto como lições para os sem amor:
Que nasceu para a morte nossa vida queiram bem aos que amam,
E a Moira nos sorteia pouco tempo? para que, se amarem, sejam amados.

(fim do século II – início do século I a.C.) Mosco (meados do século II a.C.)

Nota do tradutor: Os poetas gregos Mosco e Bíon são representantes da tradição bucólica no período que separa os dois maiores nomes
antigos dessa espécie de poesia (Teócrito, séc. III, e Virgílio, séc. I a.C.). Os fragmentos que trago aqui são citados por Estobeu, um
compilador do final da Antiguidade, e exemplificam dois temas importantes no universo bucólico: a ênfase no amor não correspondido
e a resistência ao mundo do trabalho (ainda que as personagens típicas do gênero sejam trabalhadores rurais, mais especificamente
pastores, nessa representação poética suas experiências são, na maior parte das vezes, desvinculadas da dureza que, poderíamos supor,
deveria caracterizar as atividades diárias do cuidado com rebanhos). É possível que Estobeu tenha omitido algum contexto dramático
ou narrativo mais concreto em que as passagens apareciam, pois sua compilação tem o claro propósito de reunir excertos por seu valor
de ensinamento moral. O texto de Mosco, procurei traduzir deliberadamente em tom próximo do prosaico, apesar de o grego estar em
hexâmetros, numa evocação da Quadrilha drummondiana. Adaptei os versos de Bíon (originalmente no mesmo metro usado por Mosco)
imitando uma forma estrófica encontrada nas Éclogas de Camões. Como se trata de um fragmento, sugiro a incompletude do poema
empregando o que seria uma estrofe inteira mais o pedaço de uma outra estrofe do mesmo tipo. A edição utilizada é a de Gow.

Alessandro Rolim Moura é doutor em Letras Clássicas pela Universidade de Oxford e


mestre em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é
professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vive em Curitiba (PR).

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