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A literatura
afro-brasileira
pede passagem
O Cândido traz um panorama
da produção de autores negros
na literatura brasileira, dos precursores
até a novíssima geração
Entrevista | Nei Lopes • Perfil do leitor | Ciro Pessoa • Poema | Xico Chaves
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
editorial
Foto: Kristiane Foltran expediente
candido
Cândido é uma publicação mensal
da Biblioteca Pública do Paraná
Coordenação Editorial:
Rogério Pereira e Luiz Rebinski
Redação:
Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy
Estagiários:
Kaype Abreu e Lucas de Lavor
A
Rita Solieri Brandt | coordenação
contribuição da cultura negra para “A literatura espelha o preconcei- tomada, no Brasil, de um movimento
a formação do Brasil é inegável e to social e torna a questão ainda mais de reconhecimento da contribuição do Bianca Franco, Marília Costa, Marluce Reque
fundamental. Na literatura não é visível”, observa Regina Dalcastagnè, negro à vida cultural brasileira”, con- e Raquel Dzierva | diagramação
diferente. No mês em que se co- professora da Universidade de Brasí- forme explica Lopes.
memora o dia da Consciência Negra lia (UnB) que coordenou pesquisa en- Já o ensaio assinado pelo pro- Colaboradores desta edição:
(20 de novembro), o Cândido resgata o volvendo 700 romances brasileiros, cujo fessor Claudecir de O. Rocha resga- Alessandro Rolim Moura, Bianca Franco, Claudecir de O. Rocha, D.W.
percurso de escritores afro-descenden- resultado apontou que 96% dos autores ta a história da poeta negra curitibana Ribatski, Eduardo de Assis Duarte, Fernando Severo, Gil Jesse, Henry
Milléo, Jair Ferreira dos Santos, Kraw Penas, Laura Santos, Marília
tes em nossa história literária. são brancos. Laura Santos. Influenciada pela estética
Costa e Xico Chaves.
Dos fundamentais e clássicos Em ensaio inédito, Eduardo de parnaso-simbolista, principalmente por
Machado de Assis e Lima Barreto, pas- Assis Duarte, professor da Universida- Olavo Bilac, ela criou uma poética di-
sando por nomes menos conhecidos, de Federal de Minas Gerais (UFMG), ferenciada e moderna, com traços bio- Redação:
como Luiz Gama, até chegar a poetas analisa o percurso dos nomes mais rele- gráficos, por meio dos quais elucidava imprensa@bpp.pr.gov.br | (41) 3221-4974
e prosadores contemporâneos, como o vantes da literatura afro-brasileira, co- a realização dos seus anseios, ao mesmo
curitibano Celio Jamica (foto), a edição nhecidos ou não dos leitores do país. tempo em que expressava um desejo de
mostra como e sobre o que esses auto- Autor de mais de 20 livros, Nei transcendência. Biblioteca Pública do Paraná
res escreveram. Lopes lançou neste ano seu mais re- A 52ª edição do Cândido ainda traz Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 | Curitiba | PR.
Horário de funcionamento:
Assuntos como preconceito, mi- cente romance. Em entrevista ao Cân- outros conteúdos, como poemas de Xico Segunda à sexta, das 8h30 às 20h.
litância e política racial são levantados a dido, o escritor fala sobre Rio Negro, Chaves, Laura Santos e Gil Jesse, além Sábados, das 8h30 às 13h.
partir de matérias e ensaios. A equipe do 50, ambientado no Rio de Janeiro, en- de traduções de Jair Ferreira dos Santos e
jornal ouviu críticos, autores e pesquisa- tão capital federal, na década de 1950, Alessandro Rolim Moura para poemas do
dores, que comentam diversos aspectos “período de liberação e efervescên- argentino Máximo Simpson e dos gregos Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
da literatura feita por afro-brasileiros. cia cultural que também marca a re- Mosco e Bíon, respectivamente.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 3
curtas da bpp
Consciência Negra 2
Em parceria com o Museu da dré Klotzel (dia 05), Policarpo Quares-
Imagem e do Som do Paraná (MIS- ma, herói do Brasil, de Paulo Thiago (dia
-PR), a Biblioteca Pública do Para- 12), Macunaíma, de Joaquim Pedro de
ná exibe quatro longas-metragens na Andrade (dia 12), e Cidade de Deus, de
mostra “Escritores Afrodescendentes Fernando Meirelles (dia 26). As exibi-
no Cinema Brasileiro”. São eles: Me- ções são gratuitas e acontecem às quin-
mórias póstumas de Brás Cubas, de An- tas-feiras, às 15h.
Divulgação
Música de Câmara
Em dezembro, a Biblioteca Pú-
blica do Paraná recebe duas apresenta-
ções de música de câmara. Os eventos
fazem parte do Simpósio de Violão da
Escola de Música e Belas Artes do Pa-
raná (EMBAP), que leva concertos e
recitais de violão a espaços públicos de
Curitiba. No dia 7 de dezembro, às 17h,
o Quarteto Zenamon interpreta peças
de compositores brasileiros como Ho-
mero Pereira, Leo Brouwer, Celso Ma-
chado e Dilermando Reis. No dia 11,
Vilanova Artigas
às 17h30, o Duo Zabrocki-Lentz (foto) Até fevereiro de 2016, permanece que completaria 100 anos em 2015. A
apresenta repertório com peças de Fer- em cartaz, no Museu Oscar Niemeyer exposição traz projetos originais, dese-
dinando Carulli, Claude Debussy e (MON), a mostra “Nos pormenores um nhos artísticos do arquiteto e maquetes
Marlos Nobre, entre outros composito- universo — Centenário de Vilanova Ar- (de vários formatos e escalas), fotogra-
res. Os eventos são gratuitos e aconte- tigas”, sobre o arquiteto curitibano João fias e documentos do acervo da família.
cem no Hall Térreo da BPP. Batista Vilanova Artigas (1915-1985), Mais informações: (41) 3350-4400.
4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
Divulgação
“A invisibilidade
do meu povo
me incomoda
muito”
Marcio Renato dos Santos
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 5
N
ei Lopes, 73 anos, é um autor que, por prazer e missão, tem a afrobrasilidade
como tema. O seu mais recente romance — Rio Negro, 50 —, publicado pelo
Grupo Editorial Record neste ano, é ambientado no Rio de Janeiro, então capital
federal, na década de 1950, “período de liberação e efervescência cultural que
também marca a retomada, no Brasil, de um movimento de reconhecimento
da contribuição do negro à vida cultural brasileira”, explica o escritor, nascido no Irajá,
subúrbio carioca, atualmente vivendo em Seropédica, município do Rio de Janeiro,
localizado a 50 quilômetros da capital.
“Rio Negro, 50 é, se me permite a ousadia, um romance de tese que tem por objetivo
dizer coisas que até hoje só têm sido ditas nos livros científicos”, afirma o escritor com
dezenas de títulos publicados, entre os quais Vinte contos e uns trocados (2006) e Poétnica
(2014), também compositor e intérprete de música popular, autor de canções gravadas,
entre outros, por Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Dudu Nobre, Martinho da
Vila e Zeca Pagodinho.
Lopes concedeu entrevista ao Cândido respondendo, exclusivamente,
perguntas sobre Rio Negro, 50. Na longa narrativa ficcional, ele inventa e
batiza um bar, com o nome que dá título ao livro, onde personagens negros
se encontram e discutem, entre outros assuntos, política, música, teatro,
dança, religião, esporte, crime e racismo.
Pesquisador da temática africana e afro-originada, é autor de obras
que são referências sobre o tema, como Dicionário da antiguidade africana
(2011), Enciclopédia da diáspora africana (2011), Novo dicionário banto do
Brasil (2012) e do recém-publicado, em parceria com Luiz Antonio Simas,
Dicionário da história social do samba.
Ele afirma, por exemplo, que a abolição dos escravos não aconteceu
como de fato se comenta: “A chamada Lei Áurea só tem um artigo.
Nenhuma de suas consequências foi contemplada. Aboliu-se a escravidão e
jogou-se seus ‘problemas’ no lixo.” Lopes tem pontos de vista contundentes
sobre samba, religião, reveillon carioca e outros temas — são, enfim,
reflexões elaboradas a partir de vasta pesquisa que compõem este bate-
papo realizado por e-mail.
6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
“constituiu
A movimentação cultural do Rio
de Janeiro da década de 1950 foi bem
mais ampla do que apenas, por exem-
A década de 50
plo, a bossa nova. Levando em conta o
seu romance Rio Negro, 50, o que mais
um período de
aconteceu culturalmente na então ca-
pital federal durante os anos 1950?
liberação e efervescência
A década de 1950 constituiu um
período de liberação e efervescência
cultural que também
cultural que também marca a retomada,
no Brasil, de um movimento de reco-
marca a retomada, no Crédito: Cláudia Lamego
nhecimento da contribuição do negro à
vida cultural brasileira. Por esse tempo,
Brasil, de um movimento
revivem organizações culturais e políti-
cas negras, abafadas durante o Estado
de reconhecimento da
Novo; criam-se ou se expandem orga-
nizações importantes, como o Renas-
contribuição do negro à
cença Clube e A União dos Homens de
Cor. É nesse contexto, de afirmação da
vida cultural brasileira.”
escola de samba Império Serrano, que
nascem as revolucionárias escolas de
samba Acadêmicos do Salgueiro e Mo- Na página 47 de Rio Negro, 50,
cidade Independente; que se consolida um personagem fala: “Mas parece que
o Teatro Experimental do Negro; que preto só é bom mesmo no futebol, no
se formata a dança afro, com Merce- salto e na corrida. Por que será?”. Em
des Batista; que reluzem os musicais de seguida, o diálogo entre as vozes pro-
Carlos Machado, em que o samba tem move um debate, menciona-se que na
papel importante; e em que a religio- natação não tem atletas negros, até que
sidade de base africana, pela exuberân- há uma ponderação: “Então, eles são
cia dos rituais dos candomblés, começa melhores nos esportes onde as barrei-
a ser reavaliada. ras econômicas são menores.” Uma das
linhas de força de seu livro é justamen-
Há a morte de Vargas, a derrota te discutir e questionar lugares-co-
da seleção brasileira no Maracanã na muns ditos e repetidos sobre os negros?
final de uma Copa do Mundo, entre Rio Negro, 50 é, se me permite a
outros fatos que ficaram marcados no ousadia, um romance de tese que tem
imaginário brasileiro. Então, ambien- por objetivo dizer coisas que até hoje só
tar o romance Rio Negro, 50 na década têm sido ditas nos livros científicos.
de 1950 foi um escolha decisiva, fun-
damental? Faltava alguém tratar lite- Há menção a pensadores, gen-
rariamente do período? te que gostava de conversar e discutir,
Faltava quem tratasse do ponto muitos dos quais se reuniam no bar, in-
de vista do povo negro; e é isso que eu ventado, que dá nome ao livro — pos-
tenho procurado fazer em toda a minha sivelmente inspirado em um bar que de No dia 13 de junho deste ano, Nei Lopes lançou Rio Negro, 50 no Rio de Janeiro, ao lado dos amigos Pedro Amorim (esq.)
obra ficcional. fato existiu. Aquele tempo foi o início e Ruy Castro (dir.)
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 7
“queSoutomouumaautor
de tomada de consciência pelos negros? No romance, fala-se de uma De 1950 pra cá, houve mudan-
O bar representa isso, o espaço para a conspiração oficial contra os negros? ças e avanços para os negros no Bra-
reflexão sobre as questões do mundo? Aconteceu mesmo? sil. Racismo é crime. Mas o que ainda
Eu não vivi intelectualmente a dé- É só uma brincadeirinha. precisa avançar? Quais as conquistas
cada, pois nasci em 1942 e só tomei cons- que os negros ainda precisam ter?
ciência da questão social na década de
1960, quando ingressei na Faculdade Na-
afrobrasilidade como Em sua opinião, aconteceu de
fato abolição no Brasil?
O Brasil precisa dar o básico a
todo mundo: saúde, educação, mora-
cional de Direito. Mas logo senti o eco do
que se discutiu antes; e percebi que o bar
tema, por missão A chamada Lei Áurea só tem um
artigo. Nenhuma de suas consequências
dia digna, transporte eficiente. Este é
o primeiro passo. Depois, criar políti-
era, sim, como foi ainda por muito tem-
po, o espaço dessas trocas de ideias.
e por prazer.” foi contemplada. Aboliu-se a escravidão
e jogou-se seus “problemas” no lixo.
cas de inclusão na mídia, na propagan-
da... É bastante desconfortável, para
nós afrodescendentes, não nos vermos
O samba é um dos assuntos que As religiões de origem africanas representados nos veículos de comuni-
ganha espaço em Rio Negro, 50. Pelas ganham espaço no livro, há reflexão so- cação, nas campanhas de publicidade...
vozes dos personagens, há uma dis- bre o impacto delas no Rio de Janeiro. A Isso é a primeira coisa que os negros
cussão a respeito do que se tornou o crença do carioca passa pelos ritos afros? estrangeiros observam quando chegam
samba, dominado pelo comércio, o No atual momento, as igrejas “ele- aqui: “Onde é que está a outra metade
carnaval transformado em mercado- O que mudou foi que na Repúbli- trônicas” dominam. Mas o Rio na déca- da população?”.
ria. Desde quando o samba deixou de ca Velha havia políticas públicas com o da de 1950 via a religiosidade afro com
ser samba, deixou (deixou mesmo?) objetivo de neutralizar a influência afri- bastante interesse. E a sofisticação dos Toda a sua obra publicada dia-
de ser expressão dos negros? Desde cana e até mesmo embranquecer o Bra- candomblés, como eu já disse, atraía loga com o legado dos negros desde
quando o carnaval, o desfile das esco- sil, o que ainda ecoava na década de 1950, muita gente. Em Rio Negro, 50 ficciona- o primeiro ensaio O samba, na reali-
las de samba, perdeu a essência? Hou- época de nossa primeira lei contra dis- lizo o episódio real da primeira Festa de dade... até o Dicionário da história so-
ve uma essência? Qual? criminação racial. E da década de 1980 Iemanjá na orla da zona sul. Que se tor- cial do samba, parceria com o profes-
Na ficção, antecipei no tempo a pra cá criaram-se, bem ou mal, políticas nou um evento turístico, para depois ser sor Luiz Antonio Simas. O senhor se
discussão das questões do samba. Por- de inclusão social da população negra. O afastada para as praias ou deslocada para considera um militante ou é um autor
que as grandes transformações, no uni- que, inclusive, neste exato momento, é a véspera do dia 31. O “sagrado” do re- coerente com as origens? Como define
verso do samba, eclodiram, mesmo, na causa de muita tensão. Mas mudou. veillon carioca, hoje, é a queima de fogos. a sua atuação intelectual?
década de 1970, quando a música per- Sou um autor que tomou a afro-
deu em importância para a cenografia e Se fosse possível sintetizar uma Em Rio Negro, 50, há um comen- brasilidade como tema, por missão e por
os figurinos. E, nesse quadro, a correla- resposta, o que dizer da contribuição tário dando a entender que o pessoal da prazer. A invisibilidade do meu povo e a
ção de poder se modificou totalmente. negra para a cultura brasileira? E, ain- zona norte do Rio tem inveja apenas do inferiorização dos nossos valores me in-
Até, então, nas escolas, os compositores da, há áreas nas quais não houve, mes- mar da zona sul. É isso mesmo? comoda muito.
ainda tinham alguma força. Eu sem- mo que indiretamente, contribuição Respondo a esta pergunta, tendo
pre lembro que, no início das escolas, negra no Brasil? acabado de ler no jornal que a Prefeitura Na década de 1980, o senhor
os grande líderes eram Paulo da Porte- Esta contribuição foi decisiva. do Rio inaugurou uma praia artificial em trocou a carreira de advogado pela de
la, Cartola, Antenor Gargalhada, Mano Mas um fenômeno cruel começa a fazer Madureira, na zona suburbana. A ques- compositor de música popular. Ana-
Eloi etc, todos compositores. efeito: é a apropriação de boa parte dessa tão não é exatamente inveja: o caso é que lisando, com a percepção de 2015, foi
contribuição, principalmente no campo as praias fora da zona sul, como as da uma decisão complexa ou não? Que
Em um momento do livro, al- da cultura, por outros segmentos. Co- Ilha do Governador, de Ramos, Sepetiba advogado o senhor poderia ter sido, se
gumas personagens femininas discu- meçou na música instrumental, passou etc., não recebem os cuidados necessá- tivesse continuado, se houvesse se na
tem se há ou não racismo no Brasil e, pela capoeira... E hoje chega ao exercí- rios e aí se tornam difíceis de frequentar. História?
pela discussão, há um contraponto. cio das artes culinárias. Quando certas Se a Baía de Guanabara, principalmen- Foi a decisão mais acertada da
Quando te perguntam se há racismo atividades ganham prestigio, os afrodes- te, fosse efetivamente despoluída, o Rio minha vida. Porque deixei a advocacia
no Brasil, o que diz? De 1950 até hoje, cendentes são excluídos de seu exercício. todo teria belas praias. E ninguém teria para viver da minha criação intelectual,
o que mudou? Por razões puramente econômicas. inveja nem precisaria brigar. mas sem abandonar o Direito. g
8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
E aqui estou eu que escrevo isto: Y estoy yo, que esto escribo:
eu busco o equilíbrio das coisas, yo busco el equilibrio de las cosas,
e por isso navego neste hotel profundo y por eso navego em este hotel profundo
rumo a meu grande destino: hacia mi gran destino:
eu que sou feliz, sereno e apolíneo, y yo que soy feliz, sereno y apolíneo,
preparo com minha régua de cálculo com mi regla de cálculo preparo
as leis da terra. las leyes de la tierra.
a fonte CANCUN
É pálida, violácea, transparente, A água em flor exibe seus rinchos,
é rubra mas verde, seus cristais,
é azul mas emana rupturas de desejo. esmeraldas, turquesas, frutos brancos.
No es ausencia ni olvido,
y acecha desde lejos, desde cerca,
desde dentro del náufrago y su traje.
Jair Ferreira dos Santos nasceu em Cornélio Procópio (PR), em 1946. É ficcionista, poeta e
ensaísta. Vive no Rio de Janeiro desde 1971. É autor do ensaio O que é pós-moderno (1985)
e da coletânea de poemas A faca serena (1983). Seu livro de contos Cybersenzala (2006) foi
finalista do prêmio Portugal Telecom.
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
A casa-biblioteca
A professora da Universidade Federal do Paraná Sandra M. Stroparo
mostra seu acervo de 7 mil livros, que está distribuído por quase
todos os cômodos de seu apartamento
Luiz Rebinski
A
professora e tradutora Sandra M. não conheço nenhuma biblioteca, privada
Stroparo tem a vida pautada pe- ou pública, que tenha essa coleção”, diz.
los livros. Além dos títulos que a Aliás, Mallarmé faz parte do “pa-
auxiliam em seu trabalho na Uni- cote moderno” de poetas franceses da
versidade Federal do Paraná (UFPR), segunda metade do século XIX que
onde leciona desde 1998 no curso de Sandra aprecia muito. Uma das estantes
Letras, há livros sobre os mais diversos de sua biblioteca é repleta de obras, no
assuntos em sua biblioteca (de guias original, de autores como Charles Bau-
culinários a tratados sobre o ioiô). delaire, Paul Valéry e Arthur Rimbaud,
Casada com o também tradutor entre outros.
e professor Caetano W. Galindo, eles Mas o acervo vai muito além do
“juntaram as bibliotecas” em 2003, o interesse profissional da tradutora. Há
que resultou em um acervo que hoje é muitos livros sobre história da arte, li-
de aproximadamente 7 mil livros. Para teratura brasileira (em especial de po-
guardar tudo, o casal transformou o esia) e teoria da literatura. Uma biblio-
apartamento em que vivem no bair- teca interessante e diversificada, que o
ro Alto da XV, em Curitiba, em uma Cândido mostra a seguir.
grande biblioteca. Não há um cômodo
reservado aos livros. Eles estão distri-
buídos pela casa toda. Só não há pra-
teleiras no banheiro. Apesar da quan-
tidade, tudo está em seu devido lugar.
Não há pilhas de livros pelos móveis,
por exemplo.
O acúmulo de volumes e a falta
de espaço obriga Sandra a fazer do-
ações de tempos em tempos. Só no
último semestre, foram mais de 500
títulos, em geral direcionados a alu-
nos da UFPR. “Infelizmente já não
há mais espaço, mas é difícil parar de
comprar. Nos últimos anos, no entan-
to, tenho adquirido também muitos
livros digitais.”
Em 2012 Sandra concluiu dou-
torado na Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). O tema era
o poeta francês Stéphane Mallarmé
(1842-1898) e parte do trabalho con-
sistia em traduzir trechos da correspon-
dência do autor, que foi publicada na
França entre 1959 e 1985. Para conse-
guir os 11 volumes com as missivas do
escritor, a tradutora mobilizou livreiros
e amigos de diversas partes do mundo,
como Canadá e Austrália. “No Brasil,
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
CHUVA
...... vai e
..... (interrogação pingo pingo
.... cabo ponto nem d?água
... de ponto como
.. formar guarda pingo lago
. o chuva) nos nem
barco is como salva
livre vela vira mar mar
como aberta pingo chuva n’água
a tempo reluzente grossa salve
água oral asteroide pingo chova manágua!
cai transparente sobre relampeje terra
cho parte pingo trovoe de
eira da maremoteie pau
eira raios arte raie d’água
ei vozes porta faísque
ra trovões estandarte vai água
e luzes da e pingos água
i fogos via vem de que
r pingos láctea traço fogo venha
a de ponto na mais
luz pingo faísca água
pingo no cante traço da
gota olho conte pingo solda a
que do onde pingo elétrica aqu
vai furacão cai traço aquar
lá como ponto óculos aquário
vai o cai vermelhos rio
no pingo como solda aqua
azul pra de ele solda aura
do onde água mesmo pinga arco
vento vai livre diante fogo iris
se a prisma dele espirra de
juntar chuva que e raio noite
a que vai pronto no
mais arma e azul nuvens
uma o vem ser cobalto que
e tempo no vento passam
muito oral ar eva chuva plumas
mais ? por trovão líquidas
lá arte relâmpago aquarelas
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17
chovem de brilha de
no vento o dragão
deserto chove sol muda
o gente na vira
oasis chove gota gente
a canivetes da muda
miragem chove chuva vira
um no cara
chapéu cisco ar de
de ao sol leão
água vento e
chapéu o chuva cada
de olho no gota
gelo da olho cada
chapéu serpente do uma
de o céu uma
vento olho vida
chapéu do or cada
de chuva vidente va ponto
que chove lho um
voa sòmente ponto mundo
ao de
vento chove luz chove
lágrima chove
chove vento mesmo
vem amor leva chove
a chove nuvem sem
chuva verso leva parar
chove chove papel chove
chove guarda nuvem tudo
chove chuva escura sem
chove nuvem chorar
chove palavra clara Xico Chaves é letrista, poeta e artista plástico.
chuva cara (rio,1973). Tem mais de 200 músicas gravadas por vários
artistas da MPB, entre os quais Nara Leão, Jards
Macalé, Caetano Veloso, Vinícius Cantuária, Roberto
Menescal e Elba Ramalho. Chaves participou da
Geração Mimeógrafo. Entre seus livros, destacam-
se Pássaro verde (1967), Pipa (1976), Purpurina
(1977), Urucumfumaça (1979) e Poeta clandestino
(1986). Vive no Rio de Janeiro (RJ).
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
CLIQUES EM CURITIBA
Percurso recriado
pela palavra escrita
Inicialmente apenas representados em obras de prosa e de poesia, os afro-brasileiros
passaram a escrever, a publicar e se afirmam, cada vez mais, na literatura brasileira e no
imaginário cultural do país
Marcio Renato dos Santos
Morena Madureira
I
mpossível como nunca ter tido um rosto,
o próximo, e o nono, livro de Ricar-
do Aleixo, reúne poemas escritos en-
tre 2012 e 2015, entre os quais, “Na
noite calunga do bairro Cabula”. O tex-
to poético surgiu após o poeta minei-
ro receber a notícia do assassinato de
13 jovens negros na periferia de Salva-
dor, na noite de 6 de fevereiro deste ano.
O poema começa assim: “Morri quan-
tas vezes na noite mais longa?/ Na noi-
te imóvel, a mais longa e espessa, morri
quantas vezes na noite calunga?/ A noi-
te não passa e eu dentro dela morrendo
de novo sem nome e de novo morrendo
a cada outro rombo aberto na muscula-
tura do que um dia eu fui./ Morri quan-
tas vezes na noite mais rubra?”
Apesar das origens, de todo um
percurso artístico que inclui críticas ao
racismo e diálogo com o legado cul-
tural africano, Aleixo, 55 anos, não se
considera um poeta negro. “Esse rótulo
é limitante e eu quero expandir ao má-
ximo a minha atuação, quero a liberda-
de. Sou, mais do que tudo, um poeta”,
O mineiro Ricardo Aleixo não se considera um poeta negro. “Esse rótulo é limitante. Sou, mais do que tudo, um poeta”, diz. diz o artista mineiro, comentando que,
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21
Divulgação
“Em evento literário não há negros” haver poucos autores negros publicando
romance — o gênero com mais prestígio
“Os negros não conseguem visibilidade no Brasil”, afirma Paulo Lins. Dezoito anos no país — se reflete em poucos persona-
após o lançamento do romance Cidade de Deus (1997), o carioca nascido no bairro Estácio de Sá gens negros na ficção brasileira”.
Entre os 4% de autores negros
vive em São Paulo e, apesar de ter conquistado uma situação financeira mais confortável, ainda
apontados pela pesquisa da UnB, há
identifica uma mesma realidade social: “Em evento literário, congressos médicos ou encontros pelo menos duas vozes literárias com
de dentistas não há negros. Você só encontra negro nas camadas mais baixas da sociedade.” ressonância. Uma delas é a da mineira
Conceição Evaristo, autora, entre ou-
Ele é convidado para bate-papos e mesas em encontros ligados ao universo dos livros, tros títulos, de dois romances a respei-
acompanha a produção dos escritores contemporâneos, entre os quais destaca Ferréz, Ana Paula to da identidade negra, Ponciá Vicêncio
(2003) e Becos da memória (2006).
Maia, Milton Hatoum e Daniel Munduruku. “A literatura brasileira vai bem, obrigado.” No entanto, O outro destaque é o cario-
elogia — mais do que qualquer outra obra contemporânea — o romance Um defeito de cor, de Ana ca Paulo Lins, autor de Cidade de Deus
(1997), romance sobre as transforma-
Maria Gonçalves. “É uma obra-prima, um livro tão bom e complexo quanto Grande sertão: veredas,
ções de um conjunto habitacional do
do Guimarães Rosa.” Rio de Janeiro, e em alguma medida do
Colaborador de roteiro da novela I love Paraisópolis, da TV Globo, Lins diz estar, já faz próprio Brasil, sobretudo pelo impac-
to do narcotráfico. Adaptado para o ci-
alguns anos, “muito” interessado em audiovisual — escreveu roteiro para televisão e para cinema, nema em 2003 por Fernando Meirel-
entre os quais Quase dois irmãos (2004), filme de Lúcia Murat — prêmio de melhor roteiro da les — o longa-metragem homônimo
conquistou prêmios em diversos países
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2005. e foi indicado ao Oscar em quatro ca-
Reprodução tegorias. Em 2012, Lins lançou o seu
segundo romance, Desde que o samba
é samba [Leia mais sobre no autor no
BOX ao lado].
“Hoje pela manhã fui conferir a mi- Jamaica participa de saraus reali- e deve ir além do discurso, do questio-
nha pontuação no Lulu. Fiquei pre- zados em bairros da periferia de Curi- namento de valores e, por exemplo, da
ocupado, pois não havia nenhum co- tiba e em cidades da Região Metropo- exigência de cotas. Gosto da beleza e da
mentário e a frase matinal que havia litana, inclusive em ocupações. Nesses plástica do texto”, comenta o autor, en-
postado no Facebook tinha recebido
apenas três curtidas.”
Anteriormente, Jamaica era mais
engajado na causa negra. Não que te-
encontros, ele diz que dezenas de jovens
negros declamam textos e, na maior
parte do caso, a temática — da cha-
mada literatura hiphopiana — é quase
tre outros, dos livros Vão (2005), Morada
(2007) e Da cabula (2008).
Entre 2005 e 2009, Rosa esteve
à frente da Edições Toró, selo indepen-
“preconceito
A literatura espelha o
social e torna a
nha deixado de problematizar, por meio a mesma: famílias desestruturadas, fal- dente que viabilizou obras para 20 es-
da palavra falada e escrita, questões re- ta de educação, comida e oportunidade, critores e poetas, sobretudo, das peri- questão ainda mais visível”,
lacionadas, por exemplo, à violência entre outros problemas. ferias paulistanas. Ele chama atenção
e racismo. “É que os textos universais Já o paulistano Allan da Rosa, 39 para o fato de que, cada vez mais, au- Regina Dalcastagnè
podem atingir mais pessoas e são uma anos, acredita que dialogar apenas com a toras e autores negros escrevem e pu-
‘porta de entrada’ para, em um segundo “militância” pode ser uma ação de pouco blicam prosa e poesia no Brasil. “Acon-
momento, eu falar de temas como direi- impacto e ressonância limitada. “Além tece que o sistema cultural é excludente
tos humanos”, afirma. disso, a literatura tem de ser imprevisível e apenas alguns autores são badalados.
O curitibano Celio Jamaica se vale de textos mais universais para, em um segundo momento, discutir questões urgentes O paulistano Allan da Rosa comenta que autoras e autores negros escrevem e publicam, cada vez mais, prosa e poesia no Brasil.
para ele, como direitos humanos.
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Luiz Gama é considerado o primeiro autor brasileiro a dar voz ao personagem negro que assumirá, no poema, a primeira pessoa do discurso.
E tem mais: não basta publicar. O livro convive no âmbito familiar para servir
precisa entrar em circulação, ser lido, a seus senhores”, explica a professora
discutido e o sujeito tem de participar da Universidade Federal do Rio Gran-
do circuito literário, muitas vezes con- de do Sul (UFRGS) Zilá Bernd.
quistar prêmios, para ser reconhecido
como escritor”, completa.
Eu enunciador
Autora, entre outros, de O que
é negritude? (1988), Zilá lembra que
Castro Alves (1847-1871) é conheci-
do como o poeta abolicionista, apesar
“e euEssequerorótuloexpandir
[poeta negro] é limitante
ao máximo a minha
O negro está recriado em pro- de que, em seus poemas, o negro ainda
sa e poesia desde o início da literatu- é retratado em terceira pessoa, ou seja, atuação, quero a liberdade. Sou, mais do
ra brasileira, por exemplo, nos poemas é aquele a respeito de quem se fala. A
de Gregório de Matos Guerra e, pos- estudiosa cita outro autor, Luiz Gama que tudo, um poeta”,
teriormente, nas obras dos autores do (1830-1882), filho de escrava e pai bran-
Romantismo e do Realismo. “Mas os co, como o primeiro a dar voz ao perso- Ricardo Aleixo
negros aparecem quase que confundi- nagem negro que assumirá, no poema,
dos com os móveis e demais objetos a primeira pessoa do discurso — assu-
da casa, pois, em geral, não têm voz na mindo a sua condição de negro. “Hoje
trama romanesca. Ocupam o lugar do reconhecemos sua força poética e o fato
subalterno, do escravo doméstico que de ter sido uma espécie de precursor da
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Três mestres
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A convite do Cândido, a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Zilá
Bernd comenta, brevemente, o legado de 3 autores negros, Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-
1922) e Machado de Assis (1839-1908):
Cruz e Sousa [imagem] foi equivocadamente lido, inclusive pela comunidade negra, como um autor
deslumbrado com a cor branca. É que se só se liam seus poemas simbolistas, deixando-se de lado poemas
em prosa como o “Emparedado”, texto profundamente empenhado na denúncia do racismo. Em relação a Lima
Barreto, quanto mais se lê a sua obra mais se percebe sua necessidade de denunciar o cinismo do preconceito
no Brasil que aceita o negro “desde que ele fique no seu lugar”. Isso é lindamente tematizado por ele no
romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Quanto a Machado de Assis, é preciso captar o simbolismo
de sua crítica à hierarquização das classes sociais e a tendência a deixar os escravos e seus descendentes
na periferia do sistema. Ao ler atentamente seus contos e crônicas encontramos exemplos eloquentes de sua
crítica mordaz ao preconceito e ao apagamento da comunidade negra na sociedade brasileira.
negritude, deixando emergir em seus falava em produção literária de autores No entendimento de Zilá Bernd,
poemas o ‘eu que se quer negro’ e isso brancos e de autores negros. “Como acho o critério epidérmico, ou da cor da pele,
em pleno período escravocrata, portan- os binarismos redutores e li praticamen- leva a equívocos porque um autor ne-
to, anterior a Castro Alves”, afirma. te toda a produção poética de 1960 até gro não precisa necessariamente fa-
Zilá inciou o curso doutorado na aquele momento [década de 1980], ve- lar de negritude, enquanto um autor
Universidade de São Paulo (USP) na dé- rifiquei que muitas vezes quando não branco pode ter uma memória asso-
cada de 1980. O objetivo de sua tese, de- havia uma foto do autor na capa eu não ciada à cultura afro: “O critério tex-
fendida em 1987, era comparar a produ- conseguia identificar se era obra de bran- tual, da recuperação de uma memó-
ção literária afro-brasileira com a poesia cos ou de negros. Além disso, autores ria individual ou coletiva associada
da negritude do caribe de língua france- aparentemente brancos se identificavam ao passado é mais rico, possibilitan-
sa: “Meu ponto de partida foi uma dú- como negros e vice-versa”, conta. do descobertas ligadas a temas de uma
vida. Se a música brasileira conta com a A especialista diz ter constru- comunidade que está reescrevendo o
contribuição decisiva de compositores e ído o conceito do “eu enunciador”: seu percurso por meio dos rastros me-
letristas negros, por que essa contribui- “Seria a emergência no texto ou poe- moriais. A literatura, talvez mais do
ção [dos afro-brasileiros] é, aparente- ma de um eu enunciador que assume que a História, pode reabilitar os apa-
mente, pouco expressiva na literatura?”. a identidade, a memória e os valores gamentos dessa história pontuada por
Em seguida, analisou as obras teó- a comunidade afro, o diferencial que sofrimentos e sacrifícios.” g
ricas e críticas existentes e diz ter encontra- passaria a adotar para classificar como
do, em sua maioria, o esquema binário que literatura afro-brasileira ou não.”
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Ensaio
Literatura
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afro-brasileira,
configurações
O professor da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Eduardo de Assis Duarte analisa a produção
literária das autoras e dos autores negros no Brasil, dos
mais antigos aos contemporâneos
Abdias do Nascimento é considerado um dos maiores pensadores e expoentes da cultura negra no Brasil e no mundo.
Além de ter escrito uma série de livros sobre o assunto, fundou entidades pioneiras como o Teatro Experimental do
Negro e o Museu da Arte Negra.
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Reprodução
N
a segunda metade do século XX, Negrícia, no Rio de Janeiro, Palmares, em
e mais fortemente a partir da dé- Porto Alegre e Quilombhoje, em São Paulo.
cada de 1970, a literatura brasilei- Buscam a construção de uma literatura em-
ra exibe um quadro de progressi- penhada no combate ao racismo e na afir-
vo esgotamento e superação do projeto mação dos valores culturais desse segmento
modernista, em especial dos ímpetos de historicamente excluído da cidadania. Em
negação do passado e de celebração de 1978, tem início a série Cadernos Negros, com
uma brasilidade fundada na mestiça- a publicação anual (e até hoje ininterrupta)
gem e representada a partir de uma vi- de um volume coletivo, ora de ficção, ora de
são distanciada do outro. Mais do que poesia. E surgem nomes como os de Cuti
isto, salta aos olhos o vazio marcado (Luiz Silva) e Conceição Evaristo, em meio a
pela ausência de um projeto unificador, dezenas de outros, com uma produção vigo-
que reúna as diferentes formas de ex- rosa que vem se juntar a trabalhos como os de
pressão em torno, por exemplo, da afir- Lino Guedes, Carlos de Assumpção, Solano
mação de um espírito nacional uno no Trindade, Abdias Nascimento, Oswaldo de
seio de uma cultura multifacetada. Camargo, Joel Rufino dos Santos, Nei Lo-
Embora persistam em grande me- pes, Muniz Sodré e tantos mais.
dida os valores estéticos consagrados no Tais autores têm como referência
Ocidente e canonizados no “Alto Mo- a herança da literatura da diáspora ne- A relação da obra de Machado de Assis com o tema racial é controversa. Mas o pensador Octávio Ianni aponta-o,
dernismo”, de que são exemplos Guima- gra, cujo início, enquanto movimento, se juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como “fundador da literatura negra” no Brasil.
rães Rosa e Clarice Lispector; ou o que dá com a Harlem Renaissanse estaduni-
Flora Sussekind classifica como “escrita dense, na década de 1920, para chegar ao
do eu” — a marcar a poesia dos remanes- Negrismo e ao Indigenismo dos países cari-
centes da “geração mimeógrafo”; ou, ain- benhos e à França da Négritude, na década Percussores e Machado de Assis de modo impiedoso as elites escravo-
da, textos que buscam “narrar a nação”, seguinte. Este legado passa a “enegrecer” Dentre os precursores, dois exem- cratas de seu tempo. Já prevendo para
como o Viva o povo brasileiro (1984), de a escritura de inúmeros remanescentes plos brasileiros surpreendem: a mara- seus escritos o lugar marginal ocupado
João Ubaldo Ribeiro, é patente a inexis- da escravidão em diversos países, inclusive nhense Maria Firmina dos Reis e o mais tarde por outros afrodescenden-
tência do clima de movimento e, mes- no Brasil, com o início das atividades do baiano radicado em São Paulo Luiz tes, Gama afirma que seus textos se si-
mo, de geração, que marcou a recepção TEN — Teatro Experimental do Negro, Gama. Firmina publica, em 1859, o tuam nas “abas do Parnaso.”
entre nós dos caminhos apontados pelas em 1944. A estes, soma-se o repertório de romance Úrsula, primeira narrativa Todavia, nem todos os autores
vanguardas históricas do século XX. inúmeros precursores que, desde o século abolicionista de nossas letras, em que negros do passado explicitam o pon-
Resulta daí o quadro em que so- XVIII, colocaram em letra impressa seus a África surge como espaço de civili- to de vista afro-identificado, fato que
bressaem a diversidade de projetos e a versos e narrativas, de modo a inscrever o zação e o tráfico é inscrito como “bar- remete ao contexto e ao público leitor
busca de afirmação de parcelas minoritá- ponto de vista interno ao existir negro e a bárie” de origem branca e ocidental, de outras épocas, sobretudo do século
rias perante o poder cultural. Cabe então suas formas de expressão. Emerge então a partir mesmo da descrição detalha- XIX e de pelo menos metade do sécu-
ressaltar iniciativas oriundas de segmen- a memória marcada por séculos de desu- da do porão onde era amontoada a lo XX. O próprio Machado de Assis se
tos marginalizados, em que o sentimento manização e rebaixamento a mera força “mercadoria humana”. Já Luiz Gama considerava um “caramujo” a dissimu-
de comunidade se sobrepõe ao de nacio- de trabalho, tudo isto respaldado por uma traz a público, também em 1859, suas lar sua negrícia perante o leitor branco
nalidade. Nesse contexto, ganha corpo a ampla cadeia discursiva que abarcava tan- Primeiras trovas burlescas de Getuli- de seu tempo. É um capoeirista da lin-
produção literária dos afrodescendentes. to o discurso filosófico (Hegel) quanto o no, em que não apenas se apresenta guagem, como já afirmou Luiz Costa
A partir da década de 1970, escri- científico (Gobineau, Taine, entre outros), como “Orfeu de carapinha” e se re- Lima. Por trás da aparente superficia-
tores negros se organizam em coletivos, e terminava por naturalizar a inferiori- fere respeitosamente à mulher negra, lidade de muitos de seus contos e ro-
a exemplo dos grupos GENS, na Bahia, dade e a exclusão. mas também se ocupa em satirizar mances, como Helena, está a crítica ao
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Ensaio
Artigo
Presença restrita
O cineasta Fernando Severo traça um panorama das obras
de escritores negros brasileiros que foram adaptadas para o cinema
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S
e é escasso o número de escrito- um enorme preconceito racial e social, afrodescendentes. Também em peque- tratar cinematograficamente as comple-
res afrodescendentes de destaque tão intenso como o que se abateu sobre no número na cinematografia brasileira, xas relações de classe e de tensão racial
na literatura brasileira, menor ain- Cruz e Souza. Único autor contempo- nenhum desses realizadores conseguiu que propõe a obra, e criticada sua espe-
da é o número daqueles cuja obra râneo incluído nessa restrita lista, Pau- criar quantidade expressiva de filmes ou tacularização da violência e a associação
chegou às nossas telas. Para dar alguma lo Lins desfruta notoriedade principal- deixar marcas impactantes na história automática entre negritude e margina-
relevância numérica a esse fator, é ne- mente por ter escrito Cidade de Deus do cinema brasileiro. Evidentemente, lidade a que o filme pode induzir. Mais
cessário que se inclua entre eles os au- — o maior sucesso do cinema brasileiro essa presença desproporcional da cultu- de dez anos depois de sua estreia a obra
tores cuja ascendência negra foi omiti- contemporâneo no exterior — do que ra negra na literatura e no cinema bra- ainda suscita discussões acaloradas nas
da, obscurecida ou minimizada anos a por toda sua obra como escritor. sileiros reflete o racismo velado ou ex- revisões históricas da crítica e em traba-
fio, como é o caso de Machado de As- Uma questão essencial nesse pa- plícito que permeia nossa história e leva lhos de pesquisadores acadêmicos.
sis e Mário de Andrade. Neto de es- norama é o fato de que nenhum filme a acusações como as de que o meio aca- Joaquim Pedro de Andrade rea-
cravos por parte de pai e mãe, Lima adaptado a partir de obras dos escri- dêmico teria “embranquecido” Macha- lizou um dos filmes mais emblemáticos
Barreto construiu sua obra em meio a tores citados foi dirigido por cineastas do de Assis e Mário de Andrade para do Cinema Novo a partir de Macunaíma,
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Reprodução
ensaio
ensaio
Reprodução
mas que traz alguns desses valores para ela é principalmente uma poetisa, uma
sua poesia: a subjetividade, a individu- mulher que se expressa artisticamen-
alidade, a liberdade, os prazeres do co- te, sem se prender aos ecos da negritu-
tidiano, etc. Ela resgata o soneto e opta de ou do feminismo, porque construiu
também por versos livres numa lin- uma poesia desvinculada de ideologias
guagem clara e simples. Ou seja, fez o modistas, e que, se tem algum valor, é
percurso realmente marginal de mui- o da própria arte, é o do próprio desejo
tos escritores desconhecidos ou secun- de se expressar através da sua visão de
dários ao que conhecemos como câ- mundo. Não quero dizer com isso que
none literário, não se preocupando a poesia de Laura Santos não apresen-
com o reconhecimento. te traços biográficos, femininos e sensí-
veis, nem que sua poesia não tem auto-
Só poesia ria, podendo ter sido escrita por qualquer
Laura Santos está no meio do outra poetisa, branca ou negra, carioca
furacão de ideologias da geração de 45, ou curitibana.
onde alguns buscavam um engajamento Prefiro dizer que sua poesia é in-
cristão, como Murilo Mendes, Tasso de teressante simplesmente pela própria
Silveira ou Jorge de Lima. E outros, o composição e unidade, pelo aspecto esté-
engajamento político, como Drummond tico dos seus versos. Ser negro ou não, no
e Ferreira Gullar. O interessante é que caso dessa poetisa, é elemento secundá-
Jorge de Lima só vai se libertar da mo- rio, como o fato de ser curitibana, como
ral cristã com o livro Invenção de Orfeu querem alguns paranistas, principalmen-
(1952), Vinicius de Moraes com o Livro te porque, como vimos nas opiniões de
de sonetos (1957). Já Drummond se li- Helena Kolody e de Tonicato Miranda,
berta do panfletismo socialista com Sen- não havia nela nenhuma atitude com-
timento do mundo (1951). Eles mesmos plexada quanto à sua origem.
admitem que essas últimas obras são as Toda a sua sensibilidade, todo o
mais maduras da suas carreiras, mas há desejo de ser amada, transcritos nos seus
uma crítica marxista que ainda persiste versos, revelam apenas a vontade de ser
em canonizar as obras pelas defesas ide- mulher, sem medos ou receios de se ex-
ológicas que atravessam os seus discur- pressar, de amar, de perder o controle por
sos e não pela liberdade criativa que cada esse amor. E se ela merece um estudo
um acreditava. mais profundo, uma reunião completa
Então, como julgar Laura San- das suas produções poéticas dispersas
tos, já que não há categoria acadêmica nos jornais — é coisa a se pensar a fim
que pode defini-la como poetisa negra de que se possibilite um julgamento mais
A também poeta Helena Kolody foi amiga e interlocutora de Laura Santos. feminista? Preferimos a defesa de que justo da sua obra. g
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PRIMEIRO POEMA
CÉU E CHÃO
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Em dia com
a rebeldia
Compositor de clássicos do rock nacional como
“Sonífera Ilha” e “Homem Primata”, o músico e
jornalista fala de seu envolvimento com poesia,
política e budismo
Omar Godoy
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 39
A
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os 58 anos, Ciro Pessoa finalmen- daí, outros roqueiros com pegada lite-
te vai lançar seu primeiro livro. rária passaram a fazer sua cabeça, como
Relatos da existência caótica, que Lou Reed, David Bowie, Jim Morrison
sai até o fim deste mês pela edi- e Jimi Hendrix (“Sim, Hendrix foi um
tora portuguesa Chiado, reúne cinco grande poeta também”, diz).
dos 11 volumes de poesia escritos — e Seus poetas preferidos são os por-
nunca publicados — pelo músico e jor- tugueses Fernando Pessoa, Mario de Sá
nalista ao longo das últimas três déca- Carneiro e Camilo Pessanha, os france-
das. Sempre lembrado na cena roqueira ses Charles Baudelaire e Arthur Rim-
como líder da banda pós-punk Cabine baud e o norte-americano Walt Whit-
C, Pessoa também fez parte da primei- man. As correspondências de Antonin
ra formação dos Titãs (é coautor de hits Artaud, também francês, foram igual-
como “Sonífera ilha”, “Toda cor” e “Ho- mente decisivas para sua formação. “Eu
mem primata”) e até hoje desenvolve cursava duas faculdades, Jornalismo e
projetos musicais independentes. Mas, Direito, quando li uma coletânea de car-
ultimamente, vem chamando a atenção tas escritas por ele. Aquilo pirou a minha
por seu posicionamento, digamos, con- cabeça e fez com que eu largasse os dois
tundente contra o governo federal. cursos e viajasse pela França, onde fiquei
Ao lado de contemporâneos como por dois anos”, lembra.
Lobão e Roger Moreira (Ultraje a Ri- Envolvido com o budismo des-
gor), Ciro Pessoa vem praticando uma de os anos 1990, o artista também se
militância permanente de oposição na interessa pela poesia filosófica oriental.
internet. E não se importa de ser cha- “Quem se envolve com o budismo di-
mado de “reaça” por causa disso. “Sim, ficilmente se livra dele. Ele está abso-
sou um radical. Pode me chamar do que lutamente presente no meu dia a dia,
quiser. Odeio comunistas e esquerdopa- no meu comportamento e nas minhas
tas em geral”, afirma o artista. Segundo convicções”, explica. E cita alguns auto-
ele, essa indignação começou em 2010, res tibetanos, como Chögyam Trungpa,
quando lançou o disco solo Em dia com Drupka Kunley e Jetsün Milarepa. “Meu
a rebeldia e não conseguiu divulgá-lo por livro, aliás, está permeado de pensamen-
não fazer parte de uma determinada “pa- tos budistas do começo ao fim”, avisa. Quando o assunto é a produção Ainda assim, Ciro Pessoa não
nela” de artistas alinhados com a situação. No campo da prosa, Pessoa con- poética dos rock nacional oitentista, seu desiste de fazer música. No momento,
Felizmente, o assunto central fessa uma influência marcante da litera- berço artístico, Pessoa concorda com a o artista e sua banda de apoio (batiza-
desta entrevista é bem mais agradável: tura norte-americana pré e pós-beat — opinião geral de que os textos tinham da de Nu Descendo a Escada) ensaiam
a poesia, gênero que fisgou Pessoa ain- Charles Bukowski, Henry Miller, John mais força naquela época. Para ele, um set com poemas musicados, extra-
da criança, graças ao rock and roll. Mais Fante, Jack Kerouac. Ainda cita o fran- o embasamento intelectual de figu- ídos de Relatos da existência caótica. A
especificamente, por meio dos álbuns cês Louis-Ferdinand Céline e os argen- ras como Renato Russo ou de alguns ideia é estrear no evento de lançamento
Yellow Submarine (Beatles) e Os Mu- tinos Julio Cortázar, Jorge Luis Borges integrantes dos Titãs fez toda a di- e depois excursionar por outras cidades
tantes (do grupo paulista homônimo), e Adolfo Bioy Casares. Entre os brasi- ferença. “Muitos compositores des- brasileiras. Enquanto isso, ele segue co-
ambos lançados no final dos anos 1960. leiros, apenas três conseguiram cativá- se período tinham um vínculo muito laborando como freelancer para veículos
“Lembro da minha mãe traduzindo o -lo: Campos de Carvalho (“O melhor forte com a poesia e a literatura”, diz, da imprensa e já prepara um segundo
refrão da música ‘Yellow Submarine’ e de todos”), Oswald de Andrade (“Gos- para depois alfinetar a geração atual. livro, dessa vez de ficção. “É sobre uma
do meu espanto e alegria ao saber que to de algumas obras, como Serafim Ponte “Não estou vendo absolutamente nada grande história de amor, e terá uma nar-
a ficção, a imaginação, o não real, tam- Grande e João Miramar) e “o Guimarães acontecendo hoje. Acabou. Está tudo rativa com pinceladas de surrealismo”,
bém pertenciam à vida”, conta. A partir Rosa de Grande sertão: veredas”. uma merda.” adianta, por hora. g
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As minhas cançõezinhas,
Aquelas que até agora a Musa traz,
Já me farão, se belas, glorioso.
Se nenhuma convinha,
Vou me cansar fazendo muitas mais?
Se o Cronida ou o Fado caprichoso
Um tempo para o gozo Fragmento II Gow (citado por Estobeu
Outorgara e, ao trabalho, uma outra vida, numa seção intitulada “Sobre Afrodite”)
Quem sabe se pudesse, após a lida,
Ter do bom e do nobre tão somente. Pã amava Eco, sua vizinha, e Eco amava
Mas se o deus só consente um Sátiro saltitante, e o Sátiro era louco por
Que ao mundo venha o homem uma vez, Lide.
Mesquinha e bem menor que o suficiente, Tanto quanto Eco a Pã, a Eco o Sátiro abrasava
e Lide ao Satirozinho: Eros ardia alternado.
Até quando, coitado, Pois quanto um deles odiava o amador,
Te esforçarás em obras e fadigas, tanto igualmente amando era detestado,
Sempre almejando mais ganho opulento? e sofria o que causava.
Foi por ti olvidado Esses casos conto como lições para os sem amor:
Que nasceu para a morte nossa vida queiram bem aos que amam,
E a Moira nos sorteia pouco tempo? para que, se amarem, sejam amados.
Nota do tradutor: Os poetas gregos Mosco e Bíon são representantes da tradição bucólica no período que separa os dois maiores nomes
antigos dessa espécie de poesia (Teócrito, séc. III, e Virgílio, séc. I a.C.). Os fragmentos que trago aqui são citados por Estobeu, um
compilador do final da Antiguidade, e exemplificam dois temas importantes no universo bucólico: a ênfase no amor não correspondido
e a resistência ao mundo do trabalho (ainda que as personagens típicas do gênero sejam trabalhadores rurais, mais especificamente
pastores, nessa representação poética suas experiências são, na maior parte das vezes, desvinculadas da dureza que, poderíamos supor,
deveria caracterizar as atividades diárias do cuidado com rebanhos). É possível que Estobeu tenha omitido algum contexto dramático
ou narrativo mais concreto em que as passagens apareciam, pois sua compilação tem o claro propósito de reunir excertos por seu valor
de ensinamento moral. O texto de Mosco, procurei traduzir deliberadamente em tom próximo do prosaico, apesar de o grego estar em
hexâmetros, numa evocação da Quadrilha drummondiana. Adaptei os versos de Bíon (originalmente no mesmo metro usado por Mosco)
imitando uma forma estrófica encontrada nas Éclogas de Camões. Como se trata de um fragmento, sugiro a incompletude do poema
empregando o que seria uma estrofe inteira mais o pedaço de uma outra estrofe do mesmo tipo. A edição utilizada é a de Gow.