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“
Eu comecei a ter um complexo, E aquele cheiro, não? [Risos.] E nesse indo,
um complexo espelhar, porque indo, reproduzindo, memorizando, dominando
os melhores alunos, considerados
a língua, pouco a pouco, começa a história,
inteligentes, eram aqueles que
a história do colonizador, a história da
”
tinham facilidade de falar
a língua do colonizador. Europa, a história da própria Bélgica, o con-
flito na Europa, da África a gente não conhe-
cia nada. Não se falava da história da África,
xar por causa do problema da língua. A eu não sabia, até o fim do colégio, que o
partir de um certo momento passei a domi- continente africano teve império, principa-
nar a língua, então melhorei um pouquinho dos, monarquias, a gente não sabia absolu-
o meu rendimento na escola. No fim da tamente nada. A história que a gente conhe-
escola primária, a gente vai para o colégio cia era a dos países ocidentais dos
interno, que era colégio jesuíta, com toda a colonizadores. Mas quase no fim do processo
disciplina do jesuíta que a gente sabe. Aí é sempre tem livros que a gente começa a
que eu aprendi outra disciplina, para ler, entrar em contato, com uma certa literatura
estudar, mas tudo isso numa língua que a que entrava não sei como, através dos cole-
gente não dominava totalmente. Eram pou- gas mais velhos. Começamos a ter contato
cos os que iam para o colégio, escolhidos com livros sobre a negritude, o pan-africa-
pelos leigos, pelos padres, os jovens consi- nismo, e aí começou a abrir os nossos hori-
derados como melhores alunos, aqueles que zontes para descobrir o que era aquele sis-
têm uma boa memória, para memorizar os tema e aquela gente que integrava
textos da Bíblia, reproduzir. Inclusive eu fui automaticamente, sem nenhuma crítica, o
até coroinha, além de ouvir e decorar coisa complexo de inferioridade de negro. Tudo
de latim, que eu não entendia nada, para isso passou por um processo lento, sobre o
ajudar o padre a fazer a missa. Uma disci- qual você não tem nenhum controle. A única
plina muito dura no colégio interno. Jesuíta coisa que salvava é que, quando a gente saía
acorda às 5 horas da manhã no dormitório, para as férias, voltava para as famílias, que
ajoelhado reza e vai para a missa; reza, sai continuavam a viver suas culturas, suas reli-
e vai para o refeitório, para tomar café da giões, suas visões do mundo, não tinha nada
manhã – que café da manhã! Reza, antes a ver com o colonialismo. Os colonizadores
não viviam nas aldeias para controlar a vida próprios colonizadores. Até os missionários
dessas pessoas. Podia haver, e havia, prisão começaram a fazer isso. O colégio jesuíta
arbitrária, trabalho forçado, mas no cotidiano onde eu estudei fechou porque a gente não
esses povos continuavam a viver sua cultura, podia mais atravessar; eram dois dias de
não havia nenhuma força para mudar as trem para chegar ao colégio, mas não podia
coisas. O processo de alienação era através mais, porque os conflitos com o grupo onde
de nós, jovens que passavam pela escola, ficava o colégio com o meu grupo se acir-
mas o colonizador não estava lá no cotidiano. raram na véspera da independência. Então
Ele podia obrigar um pai: “Para seu filho eu fui obrigado, depois de três anos de colé-
ir para o colégio, você tem que se casar na gio, a ficar um ano sem estudar. Em 1961
igreja, abandonar suas outras mulheres”. O fui para a capital, Kinshasa [...], e lá não
cara casa na igreja para o filho entrar no dava para continuar no colégio porque não
colégio, mas na aldeia continua com suas tinha espaço para todo mundo. Entrei numa
mulheres, ninguém tem controle, ninguém escola técnica, nada de uma formação de
sabe o que está acontecendo [...]. Foi até um colégio regular, formação humanitária.
assim que a gente conseguiu viver entre a Mas eu consegui escapar, porque houve um
cultura da colonização e manter também a exame, chamado Exame de Maturidade, para
nossa cultura tradicional, que tem também ver se tinha alguns candidatos que podiam
alguns valores como o respeito com as pes- entrar diretamente no primeiro ano sem fazer
soas mais velhas, a solidariedade do grupo, o pré-universitário. Era preparatório, tinha
do clã, tudo isso. Então esse processo coin- 200 candidatos, foram aprovados dez. Eu
cide com as independências. Quando o Congo fui aprovado entre os dez, e fui diretamente
teve a sua independência, em 30 de junho para a faculdade, em 1964. Nota-se que a
de 1960, eu tinha 20 anos, então vivi 20 universidade oficial, a primeira Universidade
anos de colonização. Aí que começam os do Congo, foi criada em 1956, quatro anos
conflitos, porque, até então, eu não sabia a antes da independência, então eu faço parte
que etnia eu pertencia. Eu sempre soube da segunda geração de jovens que entraram
que pertencia, que era membro de uma na universidade quando o Congo, então, teve
aldeia, de uma comunidade, da minha linha- sua independência. Em 1960 existiam ape-
gem, mas a ideia de que vocês são grupos nas oito jovens com diploma universitário!
diferentes, culturas diferentes em que alguns Então você imagina um país, naquela altura,
são superiores, isso veio com a própria colo- com 24 milhões de habitantes...
nização. Introduzindo isso na véspera da
independência, eles começam a dividir, a Ligia Ferreira: Só para a gente lembrar, quando
introduzir consciência étnica: “Ah, vocês começou a colonização belga no Congo?
são balubas, vocês são mais inteligentes que
os outros, vocês são aqueles…”. É dividir Kabengele Munanga: Imediatamente depois
para dominar [...]. Evidentemente, com a da Conferência de Berlim, que começou em
política de dividir para dominar, nas vés- 1884 e terminou em fevereiro de 1885. Foi
peras da independência começam a estou- uma colonização atípica porque o Congo
rar esses conflitos étnicos, incentivados pelos era propriedade do rei dos belgas.
IEA/USP
com Vansina. Vansina dava aulas nos Esta-
dos Unidos, na Universidade de Wisconsin,
mas continuava dando aulas no país dele,
ele é belga. Por causa dos conflitos entre
os próprios belgas, ele decidiu dar a aula
dele em inglês: “Não vou dar aula nem em
francês, nem em flamengo, vou dar aula
em inglês”. Então fiz um curso de inglês
para poder ir para a Bélgica. Quando che-
gou a bolsa, outro problema: o diretor da
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faculdade era um americano, conselheiro Vi o filme de Cacá Diegues,
na Casa Branca sobre a política congolesa. e a ideia que a gente tem do
Ele confiscou minha bolsa e a deu para o Brasil é essa: um país de
democracia racial onde os
assistente dele, que trabalhava sobre a vida
negros não tinham problemas
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política do primeiro-ministro. como nos Estados Unidos.
é o crime perfeito”. Eu entendi que o senhor perspectivas possíveis. Para mim, Kabengele
estava desmistificando a democracia racial. hoje representa essa outra figura. Você é
Eu acho que toda essa sua trajetória e o que um intérprete, obviamente você já se natu-
o senhor escreveu me fazem perguntar: por ralizou brasileiro. Por isso nós queríamos
que é um crime perfeito? trazer à tona e conhecer melhor essa tra-
jetória, porque eu acho que você tem um
Kabengele Munanga: Todos os racismos olhar que não é o do estrangeiro, do brasi-
são abomináveis, são crimes, mas eu achei lianista; num certo sentido, sim, mas você
que o racismo brasileiro é um crime per- está dentro, você não está olhando o Brasil
feito partindo da ideia de um judeu prê- de fora, então eu acho que, como você disse,
mio [Nobel] da Paz que disse uma vez você acabou aprendendo com o Brasil, mas
que o carrasco mata sempre duas vezes, também o reinterpretou.
a segunda pelo silêncio, e nesse sentido
achei o racismo brasileiro um crime per- Kabengele Munanga: Olha, eu acho que
feito. É como um carrasco que você não um olhar distante ajuda muito, porque até
vê te matando, está com um capuz; você meu próprio olhar da África mudou pelo
pergunta pelo racista e você não encontra, fato de eu estar aqui. Tive um olhar dis-
ninguém se assume, mas o racismo e a dis- tante, mais crítico sobre as realidades afri-
criminação existem. Esse racismo matava canas, talvez um olhar que não teria se
duas vezes, mesmo fisicamente, a exclusão tivesse passado o resto da minha vida no
e tudo, e matava a consciência da própria continente africano. O fato também de não
vítima. A consciência de toda a sociedade ter nascido aqui me deu um olhar diferen-
brasileira em torno da questão, o silêncio, ciado sobre a realidade brasileira, sobre as
o não dito... Nesse sentido, era um crime realidades dos negros, diferente dos meus
perfeito, porque não deixava nem a forma- colegas brasileiros brancos, diferente dos
ção de consciência da própria vítima, nem a meus colegas brasileiros negros. Acho que
do resto da população através do chamado essa distância me ajudou muito na minha
mito da democracia racial. [...] visão do Brasil, na minha maneira de apre-
ender o Brasil. Eu fui e continuo a dizer
Ligia Ferreira: Tudo o que você tem rela- que fui aluno, tanto na academia como na
tado confirma um pouco mais da nossa ideia própria militância negra, mas eu soube fazer
inicial. Eu escolhi a palavra “intérprete” a minha leitura, a partir da minha própria
quando a propus para as minhas colegas intuição – sou uma pessoa muito intuitiva
porque nós todos aqui, principalmente quem –, de leituras selecionadas – tenho sorte de
for da História, e outros, estamos muito habi- fazer algumas leituras selecionadas – e, às
tuados a falar dos intérpretes do Brasil, os vezes, de coisas-chave que as pessoas não
brasileiros Gilberto Freyre, Sérgio Buarque percebem: eu aprendo com outras pessoas,
de Holanda, enfim, os grandes explicado- eu aprendo com tudo, às vezes com uma
res do Brasil, e os de fora, os brasilianistas palavra, com uma frase, às vezes com uma
europeus e norte-americanos. Mas eu acho ideia que vale mais do que ler um, dois
que a gente esquece, talvez, que há outras ou três livros. Não sei como, isso entra em
que não tem negro, não tem índio, não tem que é um problema. É inevitável, até eu já
branco, todo mundo é mestiço. Quem vai tenho mestiço na minha família, tenho neta
discriminar quem? Com isso você escamo- e neto mestiços, um filho mestiço, mas que,
teia os problemas da sociedade, você nega pela educação, se assumem como negros. Me
as desigualdades, você nega a discriminação lembro da minha neta. Perguntaram para
racial. A gente viu isso. Em pleno debate ela: “Mas você é quem? Você é mestiça?
sobre cotas, a pessoa diz: “Mas cota para Você é o quê? Sua mãe é branca?”. “Não,
quê? Não tem negro no Brasil! Cota vai tra- eu sou negra.” “E seu avô?” “Mas eu sou
zer a raça de volta, num país onde não tem negra clara, e meu avô é negro escuro.” Ela
raça, não tem racismo; teremos problemas, tem consciência disso, todos têm consciência
como os americanos não conseguiram evitar, disso, depende da educação. [...] Existem
por causa dessas coisas de cotas num país famílias que têm mestiçagem e que negam
mestiço”. Claro, os mestiços existem, mas completamente. Que não querem que os
tem mestiços que se assumem como negros filhos e netos saibam que tem mestiços na
politicamente, ideologicamente. O Brasil tem família. Faz parte de nossas histórias, por
branco, tem negro, tem mestiço, tem índio, que você vai negar isso? A gente viu no
nós não podemos negar. Se você for lá para debate sobre cotas – você deve ter acompa-
o Sul do Brasil, onde a maioria da popula- nhado –, muitas teorias. Por que o Demétrio
ção é de ascendência europeia... isso aqui é Magnoli me acusou de cara de querer supri-
história: de ascendência europeia porque a mir os mestiços? Por causa da defesa. Que
migração levou esse contingente lá. Como a poder eu tenho para suprimir, começando
tendência do ser humano é casar entre seme- com os próprios mestiços da minha família?
lhantes, então continuaram a produzir mais Não tem cabimento, é inevitável a mestiça-
brancos do que negros, nenhum problema. gem na história da humanidade, qualquer
A maioria da população americana que contexto de paz ou de guerra é inevitável,
nós chamamos de negra é mestiça, Obama mas nós não podemos a partir daí começar
é um mestiço, mas, na ideologia da pureza a negar os problemas das sociedades porque
de sangue americano, é uma pessoa negra. tem pessoas que se assumem como negras,
O problema é o que se faz ideologicamente, como mestiças, pessoas mestiças que cons-
politicamente, da mestiçagem, que é inevitá- troem a sua identidade negra, pessoas mes-
vel na história da humanidade. Então acho tiças que não querem assumir a identidade
que é esse o problema, as pessoas continuam negra, e têm razão, se elas podem construir
a bater nas mesmas teclas. Me lembro que, a sua identidade, tudo bem. Mas generalizar?
quando escrevi Rediscutindo a Mestiçagem, Você vai lá e diz para os descendentes de
fiz uma crítica ao Darcy Ribeiro, a O Povo gaúchos, italianos: “Vocês são mestiços?”.
Brasileiro, um livro que eu amei. Eu gosto Eles vão rir na sua cara, eles são brancos,
muito das ideias do Darcy, mas ele conti- não são mestiços. Por que você quer trans-
nuava com a ideia de que todo mundo é formá-los em mestiços? Esse é o problema,
mestiço no Brasil, e não tem mais negro... esse uso político-ideológico da mestiçagem
Não é negar a mestiçagem, mas o que se em nossa sociedade. Meu livro Rediscutindo
faz da mestiçagem na nossa sociedade é a Mestiçagem passa por isso, por esse uso
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Todas as sociedades humanas nesse mundo inter-racial com muita facili-
são machistas e aprendi a me dade. É claro que eu continuo com a minha
transformar em homem de formação tradicional de solidariedade e de
verdade porque a minha mulher
me ensinou que o lugar do
respeito, idade, formado numa sociedade.
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homem também é na cozinha. Todas as sociedades humanas são machistas
e aprendi a me transformar em homem de
verdade porque a minha mulher me ensinou
político da mestiçagem. [...] Você tocou numa que o lugar do homem também é na cozinha.
outra questão [...] Durante a colonização, os Então eu posso dizer que sou um homem
colonizadores diziam o seguinte: “Como o de sorte porque consegui me transformar,
negro não é inteligente como o branco, ele sair de todas as barreiras que impedem o
não vê na abstração, ele é concreto. Certas desenvolvimento de todo ser humano. Mas
áreas do conhecimento como a matemática, nem por isso eu abri mão da solidariedade.
física, não são com ele. A única coisa que Se você me pegar, hoje, e me botar numa
ele deve aprender é antropologia e sociologia, etnia em algum lugar na África, eu vivo
porque, através dessas disciplinas, ele vai como eles; se você me tirar de lá e me botar
descobrir por que ele é inferior ao branco”. numa família burguesa, eu também me viro
Diziam isso, exatamente: “Economia? Mas como eles [risos]. Então eu nasci mesmo com
os pais dele não sabem nem o que é um essa coisa entre culturas, tem a ver com a
talão de cheque, como um negro vai fazer minha trajetória de vida. Agora, os precon-
economia?”. É por isso que, quando criaram ceitos... Um dos dados: o preconceito entre
a universidade naquela região, a primeira os próprios brasileiros de ascendência euro-
coisa era simplesmente ciências sociais, e peia existe. Nordestinos também são vítimas
nada mais. E ciências sociais com a biblio- de preconceitos até na maneira de falar a
grafia selecionada, porque certas áreas do língua portuguesa, e tudo isso desenvolveu
conhecimento não poderiam ser ensinadas os mitos da preguiça nordestina. Uma das
naquelas universidades coloniais. Foi nesse minhas orientandas fez uma tese de douto-
sentido que fui fazer ciências sociais, porque rado sobre o mito da preguiça baiana. Acham
não tinha abstração. Não podia fazer mate- que os baianos são preguiçosos por natureza
mática, não podia fazer engenharia, econo- pelo fato, talvez, de serem negros, em sua
grande maioria, mas é um mito porque, se os homem que atravessou culturas e que por
baianos não estivessem trabalhando, eu acho sorte veio parar no Brasil. Nós temos a sorte
que nenhum turista iria lá, eles passariam de poder contar com a consciência do pro-
fome. Eles estão trabalhando, só que têm o fessor Kabengele, que tão generosamente tem
conceito de tempo completamente diferente ajudado o Brasil a se pensar e não ocultar
do tempo capitalista. Eles chegam atrasados, isso que é uma riqueza. Professor, eu acho
saem mais tarde, acabam por preencher a que o público que se reúne hoje aqui, no
mesma carga horária e sabem dividir suas Instituto de Estudos Avançados da USP, é
atividades. Vão à missa de manhã, à noite um retrato desse Brasil que está progredindo.
estão no terreiro de candomblé; vivem um Eu estudei na USP, não tive colegas negros,
certo pluralismo religioso, que faz parte da professor, ainda menos. Eu comecei como
vida deles. Batizam os filhos, se casam, mas professora, não só universitária, e raramente
estão no terreiro de candomblé. tive alunos negros, como tenho hoje na Uni-
fesp, por exemplo. Eu acho que preciso regis-
Ligia Ferreira: Hoje a gente teve a opor- trar isso. Muito obrigada em nome do grupo
tunidade de conhecer um pouco mais deste Diálogos Interculturais [aplausos].