Você está na página 1de 10
Clandio Esteves Reesien SPERKOVICH, p38, ‘SEATON, MADDOY, 1 The Spread of Nuclear Weapons. New York, Praeger, 1952, p44. APU PERKOVICH, Op. ct, p. 38, : “-#MIRCHANDANI, G. 6. Indfo’s Nucleor Dilemma, p. 235. Rpud: PERKOVICH, Op. et, p. 38. “ABRAAAM, Op. ci, 9.119-120, “APERKOVICH, Op. cit, p26. “ATAINS, 5, Op. cit, 59-60. PERKOVICH, Op.ct, p. 508, 16 Din Logos, Rio de Janciro/R}, n. 3, Sotemben de 2009 ‘Acompreensio da ordem social no Huminismo escocis Flévig da Silva Ribeirot Introdugdo Para esclarecer um pouco 0 propésite deste artigo, gostaria de salientar que boa parte do que serd tratado diz respeito & historia social e cultural da Escécia de fins do século XVII até a metade do século XVII, periodo em que o tluminismo se estebelece através de varias obras que terBo ressonancie nao sé na Europa, mas também nas ainda colénias americenas da Inglaterra’. Tal escolha se deu pelo fato de que além do contexto escocés ser rico em referéncias para as principais obras iluministas, seu estudo ainda passa por atualizagées e, eté onde fuicapar de pesquiser, sua bibliografia em portugués nao é vasta. Embora alguns de seus mais importantes autores, como David Hume e Adam Smith, tenham as suas principais obras traduzidas aqui e tenham sido, igualmente, objeto de rigorosos estudos em diversas dreas das ciéncias humanas, as referéncias 20 contexto cultural, para dar um exemplo, so geralmente relativas & Europa como um todo e, com uma frequléncia menor, especificam a conjuntura escocesa. Este é um trabatho em andamento, e que faz parte de uma futura pesquisa a ser aprofundada, sendo por hora uma reuniéo de notas de leituras acerca de um assunto determinado — o iluminismo escocés — que se inclina para uma proviséria direcdo: a idéia de uma ordem social espontdnea, ov a nocao dos resultados nao antecipavais das aces individuals em sociedade. Como este é um estudo ainda incompleto, algumas das informacées nele contidas devergo passar por futuras revis6es o que, espero, nao venha a comprometer 0 essencial da que seré aqui exposto. Ateorla de uma ordem espontanea da sociedade, our dos resultados no antecipaveis das aces individuais, marca uma das maiores contribuicées metodoldgicas do tluminismo escocés para as ciéncias humenas. Em uma definicao abreviada, tal teoria sugere que as estruturas sociais complexas — como a economia, as instituigGes politicas ou a propria moralidade — no so resultado de uma suposta “inteligéncia” unificadora e estritamente racional, mas de um enorme conjunto de aces individuals cuja caracteristica essencial 6 asatisfacdo de necessidadesimediatas’. Tal concepcdo, entendida em relacko a0 seu contexto ideol6gico, diferencia-se de uma nocdio de carster teoldgico segundo qual a “ordenaco” do mundo, seja ele natural ou social, adviriade um designio divino, isto 6, da inteligéncie de Deus sobre as coisas do munda 7 que, justamente por terem sua origem dada por um comando divino, existiriam para realizar determinados fins, ou que teriam em si — 0 homem incluido — determinadas caracteristicas imutaveis que poderiam ser “descobertas” segundo uma interpretacdo teolégica, baseada nz revelasio, comouma espécie de ‘lei natural’, Deve-se, porém, levar em conta que, embora uma teorla da ordem esponténea pudesse vir a contestar uma premissa teoldgica, a presenca de Deus ou de seus designios no era de forma alguma rejeitada pela maioria dos pensadores dos séculos XVII e XVIII, @ por muitas, vezes encontra-se, mesino em textos fundamentais para o pensemento historleo e politico, posicées teol6gicas que as ciénclas humanas de hoje em dia no mais incluiriam no debate cientifico. Postoisto, o objetivo deste artigo serd ode discutir parte do contexto histérico e ideclGgico no qual tat idéia se afirma como modelo explicativo da organizacdo social, mais do que seus aspectos abstratos, ou sua ascendéncia a0 longo de diversos contextos ideoldgicos. Sera considerada aqui a importancia de se compreender como alguns aspectos do iluminismo escocés se apresentam de modo significative para o entendimento de tal tearia, Um dos tragos mais marcantes do iluminismo escocés foi ¢ fato de seu aparecimento ter se dado em um pais incrivelmente pobre, caracteristicamente agrério e atrasado quase que em dois séculos em relaco a0 desenvolvimento europeut, Porém, e de uma maneira até surpreendente, ‘a compreenséo desse atraso comega a se transformar, ja desde meados do século XVII, num forte processo de andlise dos valores nacionals que resultaria, no Inicio do século XVIt}, num programa de progressiva modernizacao que ca 0 solo ao iluminismo escocés*. Para que possamos compreender um pouco melhor esse arocesso, deveros levar em conta algunas caracteristicas socials do pais durante o século XVII Desde 0 inicio do século, @ Escécia fazia parte do tmpério briténico, tendo sido, em 1603, estabelecida a unio das corves britanica e escocesa, ‘além da irlandesa, A Inglaterra, sendo o pals mais poderoso, com freaiéncia jimpuna sua politica aos demais, o que naturalmente os desagradava a ponto de gerar resisténcias. Apesar dessa subordinaggo, a Escécia ~ até mesmo por forga da distincia e dos meios de transporte e comunicago — vivia num telativo autogoverno comandado por sua nobreza®. A igreja nacional, calvinista, denominada de Kirk, foi talvez a principal instituic&o da sociedade durante boa parte do periodo, tendo no apenas influéncia nas questées politicas como também nes universidades’. Sua viséo de mundo, se no era diametralmente oposta ao progresso do conhecimento cientifico eaico, 0 percebia com alguma desconfianga ¢, em determinados momentos, agia 78 DiLoges, Rio de Janvio/R), m3, Serombro de 2009 A cormpesensio da ordem social ne Maminismo escorts contra ele de modo Intolerante*. Provavelmente, isto ocortia porque ‘enxergava nos debates da cincia natural e em suas dividas e observagdes o perigo de uma possivel interferéncia das camadias laicas da sociedade em sua doutrina e poder. Durante este periodo isso se tracuziu, muitas vezes, em perseguicdes € julgamentos pablices, nao raro com queima de livros & enforcamentos?. Seria apenas no final do século XVII, nor volta de 1690, que a Kirk se enfraqueceria, periodo este que coincide com 2 modernizacao das universidades — através do aprofundamento do ensino da ciéncia natural™ — e com o progressivo poder de nobres locais, politicos e donos de terres". Nao obstante, e verificando com um pouco mais de cautela parte das caracterfsticas da doutrina de Calvino, torna-se menos manifesta esta ‘oposicdo, embora isso nao tenha se refletido, como foi dito, numa aceitaco inteiramente livre e desinteressada dos avangos cientfficos, Segundo o francés, 9 estudo do mundo natural pela ciéncia no cleve ser considerado. como antagénico & verdadeira revelaco divina - esta sim puramente espiritual -, ‘pois, como resultado de tal estudo, poder-se-ia obter inumeravels provas da existéncia e dos atributos de Deus, E ndo era incomum que entre os religiosos calvinistas se encontrasse a percenco de que o estudo clentifico e racional fosse de algum modo 0 estudo de Deus e de seus comandos providenciais! 0 fato de os caminhos escolhidos por Deus para a Sua criagao serem Intransponivelsem sua completude 3 razaio humans ndo dirimia a pbssibilidade de que a ciéncia progressivamente fosse capaz de trazer a compreensiio do mundo que Ele havia determinado e que sustentava. Em uma tendéncia que veio ase reforgar & medida que se aproximava o fim do século XVII, 05 religiosos escoceses (e de outras partes da Europa protestante também) passaram a aceitar que a religido poderia e deveria ser racionalmente justificada, com afé ‘manifestando-se no pela destruicao da rezio, mas como uma conseaiiéncia da conviccSo nesta, transformando-se, assim, numa epologia da crenca®. Deve-se notar, também, que 0 uso do racionalismo para a religido serviu a académicos protestantes como uma forma de responder e de reforcar a sua fé perante o reavivamento do ceticismo no sécuio anterior. Outra caracteristica do calvinismo que veio a contribuir para o espirito cientifico se encontrava no valor que tal religifo reserva a este mundo, uma vez que, segundo a doutrina, o fiel deve adotar uma conduta confirmatéria de sua eleicdo parao “chamado” da verdadeira religido, conduta este que corroboraria asua salvacdo perante o onipresente olhar de Deus. Era-lhe preceituado que observasse e promovesse atitudes (tals como ordem, regularidade e pontualidade) no menos importantes para as virtudes da racionalidade ‘apitalista e que no eram nem um pouca irrelevantes para a ciéncia, Torna: se mais claro assim entender porque os agentes econémicos mais 19 livio de Siva Ribsico empreendedores, ¢ que normalmente possuiam um maior interesse técnica eclentifica, ngo.s6 eram aprovados pela religiso como também suasatividades ‘Ago eram encaradas com grandes suspelgSes®. No é, porém, pelo contexto religioso que se poderd obter um esclarecimento mais amplo do desenvolvimento cientifico e comercial da Esedcia durante os séculos XVII © XVIII, dado que o periodo de maior importéncia para tais mudangas se dé justemente quendo ocorre o enfraquecimento da Kirk. € na observa¢do do papel desempenhado por diversos agentes faicos que se vé como tal transformacao se deu paulatinamente durante 0 século XVIl, embora tenha se manifestado com forca apenas em seu fim. Uma das caracteristicas mais persistentes que se pode observar na cultura escocesa do periodo ¢ 0 seu cosmopolitismo, Num pais forte © adiantado, tal caracteristica se associa livremente ao pragresso econdmico, por ser-Ihe natural gerar a constante troca de informacties e descobertas necessdirias 20 desenvolvimento material. Dai que tais paises no 36 0 sustentam como o estimulam. Num pais pobre e atrasado, contudo, 0 cosmopolitismo acaba por revelar seus resultados apenas a conta gotas, sendo ‘econhecimento dele pracedente restrito 2 bolsbes, edificimente generalizado por todo o territério. Esta seria a realidade na Escdcia, principalmente no século XVI. Porém, neste caso, em vez de se observar um gradativo fenecimento do saber e do cosmopolitismo, vé-se sua constincla, a despelto de nao haver ainda a sua eclosdo. Tal tarefa esteve a cargo de eruditos, pesquisadores de historia e geografiae antiquarios, que coletaram, escreveram ‘etrabatharam pare preservat e compreender a historia civile naturaldia Escécia. Estudos topogréficos e cartograficos, manuscritos antigos, moedas, medalhas ¢ selos, dentre outros materiais possivels, foram produzidos e coletados. Conscienterente imitando atividaces de que tinham conhecimento emouitros palses, estes escoceses atuaram tendo em vista a dignidade e a honra do pais. que defendiam, sobretudo, da ignorancia que a pobreza engendra, £ assim como os seuss pares estrangeiros, eles estavam interessadas nas melhorias que poderiam advirdo estudo aprofundado de seu pais, estudo esse que nao {oi levaclo 2 cabo, de maneira sistemstica, até quase a fim do século XVII, Uma nocio importante, e que se refere sobremaneira historia sociale cultural escocesa, é a de patriotismo. utra iniciativa copiada de lugares com maior atividade cientifica se deu com a crlagio de clubes ou associagdes para o debate ¢ exposicio de Pesquisas. Tais espagos, que tinham por pretensio tornar mais dindrnica a propagagio e aplicaco do conhecimento cientifico, no conséguiram sobreviver por muito tempo neste primelro momento (década de 1680), 80 Din-Loges, Rio de Janelro/ Rn. 3, Serembto de 2009 A comprecnsio da ordeen social no Tuminismo excocts embore estivessem situados nos principais centros escoceses, como Edimburgo — a capital — e Glasgow. Todavia,e até pelo fato desua existéncia, demonstraram o grau de relevancia que a consciéncia da necessidade de modernizacgo do pals possuia para, ao menos entdo, uma parte da sociedade” . Uma outra face do cosmopolitismo escoos — e talvez a mals evidente para seus intelectuais — se mostrava no outro lado da fronteira, na vizinha e muito mais poderosa inglaterra, Entre 1663 e 1715 cerce de quarenta escoceses foram eleitos membros da Sociedade Real (Royal Society) de Londres, um prestiglado grupo de debates cientificos; tals personaiidades, em geral profissionais educados na propria Escécia, dela evaciam-se freqiientemente pela falta de oportunidades para 0 exercicto pleno de suas atividades, o que, em troca, tornava ainda mais aguda 2 necessidade — para ‘8 que do pafs natal mantinham contato com esses “expatriados” — de alterar asituagéo geral. Nenhuma alteracio poderia ocorrer, entretanto, sem subsidios, e € rovavel que o dinica grupo social capaz de patrociné-ia tenha sido aaristocracia ‘escovesa, Muitos de seus membros, inclusive, faziam parte da Sociedade Reet londrina, ¢ num movimento que se pode distinguir a partir da década de 1670, comegaram a patrocinar professores, clérigos {plausivelmente os mals tolerantes), oficiais, conselheiros municipais e outros membros gas classes inferiores que os procuravam em busca de oportunidaces. Jé no fim desta década, representantes de algumas dessas classes se tornaram parte da elite social e mais bem instruida de Edimburgo™. Este tipo de patrocinio {que recebe em inglés o especifico termo de patronagem) se tornaria uma referéncia para (0 desenvolvimento clentifico e modernizacto da Escécia. Nao sem antes, porém, sofrer uma transformacao — que, mesmo nao sendo profunda a onto de aiterar o jogo de classes e tampouco o sistema de dependéncia direta da patronagem, 20 menos a tornou mais eficiente e tolerante — em decorréncia de alguns fatos Importantas, dos quais pacem ser destacados dois. Para a presente exposicao, o primeiro fato, embora de relevante importdncia histérica, pode ser apenas mencionado: a revolucao de 1688 na Inglaterra (conhecida como Revolugao Gloriosa} que depés o rei James Ii, catélico por inclinagdo religiose e de pendor absolutista para os assuntos do Estado. Em conseqiiéncia de tal fato, observou-se na Inglaterra um aumento crescente do poder do parlamenta e a diminuigéo do poder da Coroa. Na Escdcia, que sob muitas aspectos costumava refletir 0 que acontecia em seu podatoso vizinho, tal evento levou a um decisivo enfraquecimento do poder clerical jé na década de 1690, enfrequecimento este que pode ser compreendido tanto porque a ascensio do parlamento no controle dos assuntos de Estado inglas trouxe consigo a percep¢o mais laica ~ e que at Flivio da Sis Ribsio tende a separar de modo mais evidente os assuntos da igreja dos do Estado ~ da toleréncia religiosa quanto pelo fato de que no contexto intelectual as concepgées das ciéncias naturals — Igualmente laicas e experimentais — se associavam com forca cada vez maior a ja interiorizada compreensio da modernidade necessaria & Escécia para escapar da pobreza. E, como acréscime aeste ultimo matiz, sea principio para o calvinismoo conhecimenta cient poderia ter setvido para ressaltar as finalidades de Deus, & medida que ‘ocorriam muciancas metodolégicas, descobertas ou se apresentavamn novas idéias, tal correlacgo apologética se via progressivamente fragilizada e desestabilizada: por volta de 1700, 0 conhecimento advineo das ciéncias naturals possufa maior credibilidade nos centros de saber, mostrando, por contraste, sua marcante distincBo do conhecimento revelado” Comose apenaseste acontecimento i nfofosse suficiente para ntroduzir uma abertura e publicidade maior para altemnativas modernizantes, aforte sombre do atraso nacional cobriria 2 Escécia em 1690 sob a forma de uma grave crise agricola que levoua morte por Inanic3o aproximacamente dez por cento de seus hhabitantes®, Esse periodo, que marca o fim co século XVllescocés, testermunhou assim transformagSes (das quais destaquei duas) que nido 56 permitiram oavango da tolerSncia religiosa e o desenvolvimento do conhecimento cientifico como ‘exigiram uma urgente série de decisées pela parte da sociedade que era capazce torné:-las prticas. A Esodcia de ento ndo possula vinculos comerciais regulares ‘com outros pafses europeus. No possula industrias sienificativas. Suas estracas, ‘que poderiam fazer avancar a comunicacio interna da produgo para os partos, teram precarias, &sse periodo, por conseguinte, testemuninou também um intenso debate nacional do qual resultaria a unigo dos parlamentas inglés e escocés, em 1707, que traria para este pais, gradativamente, vantagens econdmicas fundamentals para seu progresso ulterior, uma vez que tal unio significou a aberturangio sé domercado inglés, mas também de suas coldnias, prineipalmente asamericanas*. Esta unio, que definitivamente marca o inicio do século XVII para a Escécia, ndo foi resolvida sem que levasse a discordancias pattidticas e que, uma vez selaca, no produrisse novamente uma percencéo bastante negativa em relagdo & Inglaterra, o que teria conseqiéncias tedricas para o Numinismo. Uma das razdes para 2 pobreza generalizada da Esc6cla decorria justamente dos entraves que a Ingiaterra estzbeleceu, durante 0 século XVII, para 2 sue expansio comercial. sso pode ser explicado, em parte, pelo fato de que a unio das coroas, vigente durante o periodo, implicava a obedién a sucesso dindstica da ver, e 0 personalismo inerente & configuragso mondrquice tornava instéveis as decisbes do Estado a cada momento de crise, quando no pencia para o absolutismo, Além disso, e seguindo uma tendéncia 82 Dis-Lopos, Rio de Jncio/j, v3, Sewembro de 2008 A compresrsto da ordem soci! no Hsminisms eseacts que se evidenciou aos olhos dos escoceses, com freqiiéncia o Império procurava adestrar seus territérios adjacentes por melo da imposi¢so de suas Vontades, dentre as quais 2 obstruc&o da autonomia econémica era apenas a mais manifesta. Os escoceses possufam jé uma tradigao de viagens oceénicas, eembora seu territério no contasse com as condi¢des adequadas para um pleno desenvolvimento (tais condigSes 56 viriam a ser estabelecidas nas primeiras décadas do século XIX"), desde 1680 empreendedores comerciais vinham ‘tentando inicier um programa de tracas e de exploraco comerciais com as colénias americanas, 0 que levou 8 fundaco da Companhia da Escécia, culminando na criacdo, na provincia de Darign, no Panam, da Central American, Trading Colony", que viria 2 faléncia em 1698, segundo os escoceses, nor sabotagem da Inglaterra, para evitar a concorréncie™. Isso também contribuiu para que a relacdo entre os dois paises tivesse que, principalmente para os escoceses, ser redefinida. Pode-se notar que um variaco grupo de elementos sociais, culturais e intelectuais estava em vias de se conjugar para uma direcio determinada — a direcio do progresso. Mas isso, por sis6, nao é capaz de explicarinteiramente osentido das proposicGes filosdficas iluministas que dariam ampla publicidade 8 Escécial®. Os debates que precederam a unis (e que nio cessaram anés sua implementacio) serviram para amplificar pelo menos dois sentimentos profundamente estabelecidos neste povo: o patriotismo e a vergonha, © patriotismo em geral serve como um elementa de resistencia a excessivas interferncias estrangeiras, e se adecua, no caso apresentado, & rivalidade desigual entre uma goténcia e uma provincia”. A vergonha, porém, ‘36 vem a luz quando sucessivas derrocadas materiais séo assimiladas e podem, set comparadas desinteressadamente ao sucesso alheio, Por isso persisténcia do cosmopolitismo foi tao importante, assim como a também persistente ‘do cosmopolitismo foi t8o importante, assim como a também persistente introduedo e compreensao da ciéncia natural, com uma énfase duradoura em ua relevancia: durante todo 0 século XVil e até o infcio do XVIII os escoceses foram imitadores, e n&o inovadores*. Deste mado, estes dois sentimentas, gue neste momento especifico encontravem-se unidos, levaram @ um desdobramento intelectual que seria traduzido, enfim, por meio de um conjunto de teorias sociais ja iluministas. Ambos os sentimentos fzeram surgir uma contra imagem na Esco de ‘sua condigo periférica de provincia que corporificava uma imagem de piedade, virtude (em varias acepgbes) e regio reformads, assim como liberdade, inovarso e crescimento. Os mais entusiastas identificaram as provincias como o centro 83 Flivig da Silva Ribeiro ‘moral ec setor mais dindmico do império briténico. Por meio desta visdo de si, 05 provincianos tomaram deempréstimo varias das linguagens poltticas disponiveis ha Inglaterra maderna: a nacional, a protestante, a civica e a jurisprudencial, Unindo firmemente seus valores a umn conceito particular de lugar, os escoceses ‘foram capazes de integrar os elementos desses diversos discursos em torno de um ideal provinciano. Aqueles mais descontentes caracterizavam a autoridade metropolitana como corrupta; os presbiterianos (calvinistas} reclamavam da interferéncia civil sobre a independéncia de sua lgreje; € 0s filbsofos aplicavam nogées advindas da Lei Natural em busca da igualdade € justica exigidas pelas provincias no interior do império™. Os discursos da Lei Natural e do desenvolvimento econdmico desempenharam um papel fundamental tanto pars a consolidago de uma identidade nacional — ainda que provinciana — quanto nos dominios de idéias como liberdade, economia e moralidade. O estabelecimento de uma ‘vis8o a0 mesmo tempo critica do pasado e do desenvolvimento social serviu, como severd adiante, para deslegitimar um ideal de virtude-cléssica republicana presente na linguagem politica da época. ‘A influacia da Lei Natural (ou Direito Natural) pera 0 pensemento escocés caracteriza-se — muito mais em Hugo Grotius do que em Thomas Hobbes (dols destacados teéricos do tena) — pela premissa da sociabilidade natural humana. Tal tese estava associada a um ideal de liberdade que servia como critica a qualquer poder abusivo do Estado, no sentido de que sua soberania advém dos individuos que lhe constituem, sendo portanto 2 liberdade dos individuos anterior®liberdade do soberano ou do monarcaye é pare garantila que ele exerce as suas funcdes o que, em ultima andiise, configura a protecgo do Estado para o bem de todos. Assim, em Grotius, 0 ovo no poderia renunciar a fiberdade em nome do soberano, uma vez que 0 Estado, 0 qual representa, ndo ¢ detentor de nenhum direite que os individuos jd nao tenkam, em um outro periodo do desenvolvimento social, possufdo™. Além da sociabilidade natural e de tal aspecto de liberdade, 0 Direito Natural serd importante pera os escoveses por fundamentar ¢ lei em tum sistema que se baseava em principios auto-evidentes, isto é, que pertiam do critério da observacdo, Além disso, no Direito Natural prestava-se maior anfase a assuntos ordindcios, tals como a vida social, a politica e a econdmica, Uma figura Importante para o destaque de tals idéias foi a do filésofo & professor Gershom Carmichael, que no inicio do sécule XVil} procurou sintetizar e sistematizar varies idélas do Direito Nazural na Escécia, voltando- se para uma posicso mais empirica com elementos newtonianos. Ele representava, de fato, uma percepcao ja disseminade do desenvolvimento cientifico, e que teria impacto em todas as faculdades escocesas, B+ Die-L.ogas, Rio de Juneico/R), n. 3, Setemleo de 2008 A compscensio da ordem social ne Thuminisma escocés gradativamente, até 1720%. importante também serd o igualmente filésofo Francis Hutcheson, que em 1729 sucede Carmichael na cadeira de flosofia moral da universidade de Glasgow, sendo inclusive professor de Adam Smith. 18 pensendo de um ponto de vista empirico fiutcheson considerava que as leis do mundo natural consistem em regras que tém sua fundagao em certas disposiges humanas, sendo por isso a moralidade constituida pelos julgamentos que os homens fazem de si mesmos e dos outros, comportendo um carater empiricamente discemivel e objetivo. Sua idéia da sociedade civil & extremamente importante porque também reflete o contexto social escocés dessa primeira metade de século, Para ele, 2 sociedade civil é uma instituigso voltada para o melhoramento moral da humanidade, tendo por propésito 0 desenvolvimento cada vez maior da motivacdo & cidadania. Entretanto, pelo fato de nosso senso moral possulr limitagdes que podem interferir em nossos Julgamentos, dado que somos seres faliveis, no ha, por principio, nenhuma ‘Tegra natural ou nenhum direito inequivoce para que um possa mander nos demais. Desse modo — ¢ este € o aspecto importante contextualmente — 0 lireito na sociedade civil deve ser construido por meio do consenso de todos 08 envolvidos. Tal é, para ele, o aspecto restritive a soberania politica, e por este motivo © poder politico nfo deve set concentrado, mas sim distribuido, eos valores mais carosa sociedade civil devem ser os da tolerancig eligiosa, 0 da liberdade de opinio, de expresso, entre outros afins™, Isso teve um significado muito forte para a contra-imagem provinciana, ndo sé porque a filosofie moral de Hutcheson possuia grande influéncia em diversas cidades Provincianas, mas também porque ela compreendia ser o bem dos cidaddos superior a vontade de poder do Estado, claramente representado pela forca da metrépole inglesa; sua tendéncia geral era a de transferir 2 base dos julgamentos morais dos ditames das autoridades tradicionais direcionando- {9s para 0s sentiments coletivos préprios & reflexdio dos cidadgos, quer elas fossem provincianos, quer hebitassem na metrépole*, Enfim, sua teoria moral fundamenta-se, sobretuclo, num principio no discricionério dos direitas civis, relacionado 8 igualdade de condigdes entre as diversas partes do império. Nesse sentido, a unigo de 1707 jé caracterizara um passo importante, Porque com a integragio dos parlamentos 2 condigio escocesa parou de depender das incertezas dinasticas ¢ de seus herdeiros, baseando-se doravante na legalidade partamentar. Alérn disso, em tese, um 56 parlamento asseguraria a todos os stditos 0 acesso ao mercado inglés ultramarino. A autoridade passaria agora a estar concentrada num corpo Impessoal, que aplicaria as mesmas leis para todo 0 império, retirando assim oanterior carter arbitrério que serviu para justificar, entre outras coisas, 9 protecionismo inglés, 85 Miivio da Silva Ribeico Ecompreensivel, deste modo, que os escoceses tenham desenvolvido um discurse econdmico voltado ao desenvolvimento no qual 0 comércio provinciano — organizado através de iniciativas privadas a partir de uma condicao “periférica” em vez de ser constituido por um desenvolvimento direcionado a partir de um centro de poder — se destacava como modelo Ideal parac crescimento. Acrenca na influéncia dinmica dos fatores comercials era generalizada no século XVill entre diversos setores da sociedade, assim como era gerala antipatia pelas companhias de comeércic metropolitanas que, através do monopélio, criavam barreiras a iniciativa de pequenos erupos privados. Tais companhias eram também assocladas diretamente a corrua¢ao ‘metropolitana, e o aspecto mais relevante dessa contra-imagem provinciana encontra-se na preferéncia pela liberdade econérmica®, que sera tratade por David Hume {erm meados do século XVIII) em seus escritos sabre o tema, principaimente no ensalo Da Desconfianca no Comércio (1758), no qual se encontra uma defese da liberdade comercial que iré se onor tanto as praticas protecionistas do mercantilismo quanto & nogdo que dava as relacdes ‘comerciais posicSo secundaria para o desenvolvimento do Estado; em seu ‘centro esté a percepcgo da livre concorrancia, benéfica a todos e motor do desenvolvimento sociae”. ‘Outro aspecto do discurso econdmico que terd reflexos claros para este iluminismo estd na anélise demogréfica, que combinada 3 andlise comercial dava subsidios empiricos para a compreenso do desenvolvimento social, o que teve reflexo no interesse mais intenso pelo estudo da relagéo entre populacdo e trocas comerciais. Tal caracteristica foi ressaltada pela percepcao de que, ja em meados do século, a populaggo das provinelas crescia num ritmo mais acelerado que ada metrépole, e que tal crescimento seria um dos indicetlores mais seguros do bem-estar social, Retirada de Montesquieu, esta nogdo de melhoria encontra-se entre as preocupagées mais importantes de ‘Adam Smith no campo econdmico", relacionada a idéia de que o desenvolvimento passcu historicamente por fases detinidas através do papel representado pelos modos de subsisténcis. O que nas provincias esteve associado a uma liberdade econdmica como discurse avesso a0 monopdlio mercantil, e que servia para argumentar a favor de uma autonomia que beneficiasse o crescimento das petiferias do império®, acabou por se ‘ransformar em uma teoria critica de representacBes idealizadas do dever-ser politico © moral, articulade a idéias de transformacéo, desenvolvimento e ‘ordenacio esponténea dos grupos sociais. Mesmo néo sendo possivel explicar inteiramente todos os componentes envolvidos na elaberagéo dessa nogdo de ordem social, é 86 Din-Logos Rip de Jrnito/RI, 0.3, Seiembeo de 2008) A comprecnsia da order social no amino eseoeds possivel tornar um pouco mais nitida sua formaco, acrascentando o fate de que dois dos principais nomes a ela relacionados, David Hume e Adam Smith, rrascidos respectivamente em 1711 ¢ 1723, jé pertenciam @ uma época que marca a ascenséo de uma segunda geracdo durante o periodo de ‘modernizacio do pais, e que crescerd em melo a avancos econdmicos e socials, tendendo a uma visdo mals cosmopolita e, portanto, mais universalizada de sua propria realidade, Por volta de 1740, a vida cultural de Edimburgo, acapital, {6 estava mais proxima da realidade de outras capitais provincianas européias dotadas de uma mentalidade moderna*. Ademais, ambos pertenciam a grupos de discusséo com interesses cientificos e a essa altura 0 calvinismo era-lhes um componente residual de crenca na incerteza das coisas, mesmo assim com pouco ou nenhurr reflexo para uma percepcao jé secularizada do mundo®. Uma outra maneira de tomar tal nogdo menos obscura & contrastando-a a dots discursos correntes 4 époce do iluminismo, sendo um de maior orientaclo politica e o outro mais relativo a aspectos morais. Oprimelro delesse refere a tradi¢go do humanismo civico, retacionado & antiguidade classica (cuja Influ@ncia sobre os pensadores escoceses era bastante significativa). Trata-se de um debate moderno que emergiu na renascenga florentina (incluindo Maquiavel), tendo sido sistematizado no pensamento inglés, em meades do século XVII, por James Harrington e subseqdentemente modernizado pelos neo-harringtonianos**. Sua Importéncia para o contexto do desenvolvimento escocés estava na reflexio acerca do papel do governo — e a maneira como este deveria ser conduzido — para o desenvolvimento da ago, tendo uma infiu€ncia ideolégica nas discusses das liderangas politicas da Escécia antes da unido de 1707 com a Inglaterra. Como foi mencionado, este fol um periodo fundamental para 0 projato de modernizago nacional. Taltradicgo havia aparecido na Inglaterra em oposicSo 2 medidas mais liberalizantes do partido Whig, principalmente as que se relacionavam a expansSo do crédito publico & profissionalizagao do exército. Segundo o humanismo civico, 0s cidados deveriam constituir a classe dirigente capaz de manter a integridade do Estado, Mas nem todos eram, porém, adequados & cidadania — somente aqueles que, detendo a propriedade rural, no precisassem se envolver nos assuntos mundanos, e usassem seu tempo apenas para pensar no bem publico, no em comum, Qutra caracteristica de tal viséo era o imperativo dever do cidade de pegar em armas caso isso fosse necessario para a prote¢do da comunidade. Neste sentido, @ profissionalizacdo, do exército significava um desvio desse ideal, um alneamento voluntério dos cidadaos em relacdo & segurang comum. O oposto a esta virtude cidada a7

Você também pode gostar