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A PERVERSÃO E AS DISPOSIÇÕES SOCIAIS PELO ÓDIO

Júlio Fernandes

O que é a posição perversa?

A posição perversa, é um modo de satisfação na relação com o outro que se baseia


em um projeto deliberado, precisamente, de prejuízo à alma do outro. É somente como
personagem desse projeto, que é um “espetáculo”, que o outro tem grande importância para o
perverso. Não se trata de ignorância da realidade ou de ingenuidade, apesar de assim parecer a
muitos. Por isso essa posição é nefasta e perigosa. Na concepção perversa ele é, ao mesmo
tempo, o diretor, o ator principal e o único expectador inteligente do espetáculo da vida.

Um bom exemplo desse tipo de relação é a do Pedófilo com as crianças. É inútil


argumentar com o pedófilo sobre o absurdo de seus atos, ele é que os dirige, portanto, ele
decide, inclusive a significação que tenha. É dessa absurdidade que ele retira sua satisfação, visto
que é o ator principal das cenas que monta. Ao sofrer a indignação social é isso que o satisfaz, ao
se assistir como foco do olhar de ódio isso confirma sua superioridade ou, o que dá na mesma
para ele, sua excrecência, isto é, ele é ímpar. A satisfação perversa vai do polo masoquista ao
polo sádico com a maior fluidez. Por isso, ele se sente inacessível aos que querem condená-lo.
Ao perverso sua posição parece “inatingível” de fora de seu próprio projeto.

Como a do pedófilo essa é a posição que sustenta também a satisfação do “agressor


cruel”, do “torturador”, do “matador frio”, “do estuprador”. Também não tem a menor
importância, para o perverso, se sua disposição se torna fatos reais ou se serve apenas para fazer
alguém sofrer com a própria manifestação de sua posição. Sua vibração não vem do gol em si e
sim da fruição da imagem que cria e recria do jogo, do esforço que faz para colocar os jogadores
nas posições que ele escolhe (pouco importando o que querem os jogadores).

Não é por acaso que a atual divulgação ampla das posições perversas crie
encantamento em tanta gente que, a princípio, não tem uma posição perversa. Encanta pela
mestria em “ir deliberadamente sempre além de qualquer limite socialmente constituído”. Por
isso é muito fácil personagens perversos reais serem tomados como “vingadores”, como “heróis”,
ou, ao contrário, como “vilões” e como “anti-herói”. O problema é que para o perverso, tanto faz
figurar nesses papéis. Para ele, não há avaliação “negativa” a respeito de qualquer um desses
papeis. Basta ser olhado pelo outro que seu projeto continua “em realização”, isto é, ganhando
cada vez maior “realidade no discurso do outro”, exatamente, constituindo a estrutura do
espetáculo do qual ele se considera o proprietário.

Nem mesmo os aliados ocupam qualquer posição real de destaque. Se os aliados


têm algum projeto de sentido para o mundo, seja ele um projeto político, religioso, ou até mesmo
solidário, tanto faz. Caso seja necessário, em algum momento, o perverso tem o saber-fazer de
reduzir as alianças a pó, quando elas não são mais úteis, ou quando uma configuração favoreça
outras alianças. Seja como for, não são esses projetos de sentido que formam a economia
psicossocial do perverso e sim o prejuízo ao outro.

Não há “sujeito” na relação do perverso com o outro. Se houvesse seria o sujeito


“mortificado” desde o nascimento. O perverso não busca “legitimidade” no olhar do outro, essa
já está suposta em sua própria lei, que para ele é a única a legitimar qualquer coisa. Mas,
acreditem, a satisfação do perverso se alimenta do espetáculo que ele produz, do olhar
terrificado ou apaixonado do outro.

Por isso, é muito difícil uma união dos perversos por muito tempo. E nisso está,
talvez sua única vulnerabilidade.
A herança dos dois ódios pelo projeto perverso

O ódio é um afeto, no sentido de que “mobiliza e afeta” nossas representações mais


íntimas, subjetivas. O ódio atual é uma emoção, um sentimento extremo de repulsa mas é preciso
lembrar que ele pode não ser um “ódio novo” e sim um afeto mobilizado diretamente por nossas
próprias representações quando esta situação toca representações que, aparentemente nem nos
dizem respeito (essa é a diferença entre memória e consciência).

Por isso, podemos dizer que o sentimento real – o afeto de ódio – pode ser uma
armadilha quando precisamos analisar a realidade de forma clara. O ódio mobilizado em nosso
coração, por assim dizer, não precisa de representações verídicas para ser mobilizado. Mas, o que
é pior, a força do ódio surgido, mesmo que “injustamente” pode nos convencer da veracidade das
representações e elas passam a ser “sentidas como justas”.

É esse o mecanismo que reconhecíamos, tempos atrás, no jogo eleitoral quando


perguntávamos se o ódio dos bolsomínions era o ódio do “só eleitor”. E sabíamos que não era.

A venda de “gato por lebre” tinha sido iniciada muito tempo antes, colocando como
foco de todo o percurso de mais de cem anos de corrupção na república como autoria de apenas
um partido (aquele que se queria oferecer ao “ódio” público). Lembro de um episódio, no qual eu
discutia, numa posição de análise política (e não de defesa de partidos) essa história da corrupção
no Brasil e meu interlocutor (na verdade já cego pelo processo midiático de direcionamento do
ódio) me disse abismado: “ – então você quer dizer que o PT aprendeu a ser corrupto com a
direita? Que absurdo!”.

Não contra argumentei, mas não era bem isso que eu queria dizer, e sim que a
representação do PT como o início e o grande inventor da corrupção era uma representação
necessária para o projeto de poder nascido nos últimos anos, etc. Mas, depois, pensando no
raciocínio do meu interlocutor vi que ele tinha razão, minha frase dizia exatamente que as pessoas
do PT aprenderam a corrupção na medida em que experimentaram os mecanismos de poder aos
quais tiveram acesso por todo o percurso vivido pelo partido (ele não nasceu no poder, ao
contrário, foi por muito anos um partido democrático, na época das “tendências” em disputa).
Dizer em que porcentagem esse aprendizado se deu já é difícil normalmente, agora, então, que a
estratégia do direcionamento do ódio deu tanto certo é quase impossível, nem os próprios
integrantes do partido conseguem distinguir isso, visto a posição de ataque na qual estão
constantemente (no sentido de atacados e em ataque).

A novidade, agora, é que exatamente essa herança do ódio criado antes do projeto
perverso se tornar hegemônico (eleitoralmente) foi herdado pelos agentes perversos do projeto
perverso. Esse o gigantismo do risco – que denunciávamos à época – e que se afigura agora não
mais como possibilidade e sim como estado de coisas. Não está muito claro se os autores do já
bem consistente projeto do ódio, querem agora, mudar a titularidade de seu projeto de poder e
direcionar o antigo afeto (que, repito é sempre verdadeiro) a uma nova representação (do projeto
perverso como perverso, por exemplo). Terão de separar nesse conjunto de perversos titulares do
projeto perverso, algum que eles consigam apregoar como um “não perverso”, como um
verdadeiro herói, mas agora duplamente herói se havia sido idolatrado nas ações contra o odiado
partido, agora o terá que ser (disfarçado de “não perverso”) também herói contra o projeto
perverso. Mas, isso me assusta ainda mais, porque a sofisticação seria ainda maior. O ódio, como
único instrumento político, pode permanecer assim exatamente pela causação circular: a força do
ódio (que é verdadeira) empresta força à certeza na representação (que pode ser falsa), afastando
qualquer dúvida (qualquer suspeita de ter comprado gato por lebre). Essa certeza (ilusória)
retorna sobre o afeto aumentando-o a cada novo ciclo.

Novamente se configura outro momento de medo e incertezas. Não consigo ver


vulnerabilidades do lado dos autores do projeto de ódio. Mas temo também que os perversos do
projeto perverso o saibam e consigam ganhar a luta que já se iniciou.

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