BRENNER, Neil. Cidade aberta ou direito à cidade? In BRENER, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2018, p. 195 a 202.
Título original
BRENNER, Neil (2018) Cidade aberta ou direito à cidade?
BRENNER, Neil. Cidade aberta ou direito à cidade? In BRENER, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2018, p. 195 a 202.
BRENNER, Neil. Cidade aberta ou direito à cidade? In BRENER, Neil. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles, 2018, p. 195 a 202.
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Cidade aberta ou o direito a cidade?
m todo o mundo, arquitetos, paisagistas e urban desig.
iners progressistas € de mentalidade criativa tém se
envolvido em projetos de placemaking, propondo a criagao de
“cidades mais abertas”. Tratase do mesmo tipo de cidade que,
na formulagio sucinta de Gerald Frug (2009), habilitaria “cada
residente ¢ visitante a sentir que ele ou ela pertence & cidade [...]
independentemente da sua condicao econdmica, raca, religiio
‘ou orientagio sexual, e de qualquer outra maneira que discri-
mine as pessoas em categorias”. Embora tais iniciativas sejam
geralmente comandadas pelo Estado, bem como por promotores
imobilidrios e clientes corporativos, elas também vém surgindo,
na maioria das vezes, como resposta as lutas contra as formas
de privatizacao, gentrificacio, remogao, isolamento ¢ exclusio
socioespaciais desencadeadas no capitalismo péskeynesiano ¢
neoliberal. No contexto desta crise financeira global em curso,
na qual o fundamentalismo do mercado continua a ser a ideo-
logia politica dominante da maioria dos governos nacionais ¢
ocais, propostas para confrontar essas profundas divisoes sociais
ce espaciais das cidades do século XI sao certamente bem-vindas
por todos aqueles que se empenham em promover formas mais
justas, igualitarias, democraticas, diversas, cosmopolitas ¢ tole-
rantes de vida urbana (FAINSTEIN, 2009; SOJA, 2010).
Mas, de que modo intervengées relativamente pequenas no
desenho urbano poderiam enfrentar a tarefa monstruosamente
dificil - tal como Richard Sennett questiona - de “curaras divisoes
da sociedade em raga, classe ¢ etnia”? (SENNET, 2013). Hoje em
dia, até mesmo os designers mais radicais também se veem enre-
dados nos contextos politico-institucionais em que trabalham,
contextos esses geralmente definidos pelos imperatives naturali-
195Cidade aberta 0x o direito @ cidade
zados da politica econémica urbana orientada para o mercado €
para o crescimento “acima de tudo” € das abordagens de gover
nanga urbana nas quais os interesses corporativos ¢ de incorpo-
racio imobilidria mantém controle hegem@nico sobre os regimes
ocais de uso do solo. Na pritica, vale dizer que as propostas dos
designers em “abrirem” a cidade por meio de iniciativas baseadas
naqueles tipos de projetos contribuiram, amitide, para intenst
ficar ainda mais as proprias formas de injustica espacial as quais
pretendiam combater originalmente, pelo menos em termos
ret6ricos. Isso ocorre porque as condicdes espaciais associadas a
esse tipo de “urbanismo aberto” - a exemplo do surgimento de
freas densas de centralidade, interacio, trocas miituas, diverst-
dade e encontro espontineos ~ também geram, frequentemente,
grandes retornos econémicos na forma de lucros privados apro-
priados pelos donos de terra ou de iméveis situados no proprio
Jocal ou nos arredores contemplados por esses projetos.
Embora muitos lugares tenham se valido temporariamente
da utilizacio de instrumentos de reinvestimento comunitério,
‘com zeladores locais ¢ mecanismos de participagéo nos lucros,
nessas reas experimentais do urbanismo, a tendéncia global
predominante continua a apontélo para os interesses das
“maquinas de crescimento” - interesses frequentemente vincu-
Iados a investimentos especulativos ¢ predatérios dos recursos
financeiros globais de mercados - de modo a colher as principais
recompensas financeiras derivadas daf. Por conseguinte, essas
iniciativas do inicio do século XXI em prol da construcio de um
“bem comum urbano” também produzem reiteradamente 0 efeito
oposto: a producao de uma cidade em que as classes dominantes
continuam a reforcar seu controle rigido da producio ¢ da apro-
priagdo do espaco urbano. Por mais socialmente vibrantes ¢ este-
ticamente atraentes esses tipos de urbanismos chegam a ser, por
outro, muitas das vezes, nao oferecem mais do que um vislumbre
fagaz do que seria o modelo de urbanismo genuinamente demo-
cratico ¢ socialmente igualitério impedido de se ampliar numa
escala maior, urbana ou metropolitana, pelas forcas politico-ins-
titucionais € coalizagbes que geralmente os levam a se circuns-
196Cidade aberta ou 0 divito@ cidade
ereverem a uma escala menor, A “cidade aberta” se transforma,
assim, numa ideologia que mascara, ou que talvez simplesmente
suaviza, as abordagens top-down do planejamento urbano, a gover-
nanca orientada pelo mercado, a exclusio e as remogées em jogo
durante € apés o redesenho desses espacos supostamente “revi-
talizados”.
caso do High Line, no bairro do Chelsea, em Manha-
ttan, Nova York, exemplifica esse problema. Uma intervencio
urbana brilhante ¢ bem planejada, inicialmente liderada por uma
iniciativa comunitéria, destinou um espaco industrial até entao
inacessfvel para 0 uso puiblico, contando com grande aclamagio
Popular. Porém, ao fazélo dessa maneira, incitou um processo
de gentrificagao a partir da onda de novos investimentos orien-
tados principalmente para consumidores da elite, que acometeu
as quadras no entorno com a chegada de hotéis ¢ residéncias de
luxo, restaurantes de alta qualidade, cafés ¢ lojas que sé podem
ser desfrutados pelos moradores mais ricos e pelos turistas.
Assim, nota-se uma intervenco urbana que, embora inicialmente
orientada para expandir e ativara esfera do bem comum urbano,
acabou por estimular processos de gentrificacio, remocao, segre-
gacio ¢ exclusio na escala de bairro e do préprio espaco urbano
(LOUGHRAN, 2014; REICHL, 2016). Dessa forma, a cons-
trugio de um espaco urbano supostamente “aberto” criou novas
barreiras ao desenvolvimento de um urbanismo genuinamente
Piiblico, democratico, diverso € igualitério, no apenas no local
de imterven¢4o, mas em todo 0 tecido urbano que circunda os
edificios, quadras ¢ bairtos inteiros. Nas principais cidades do
mundo, em diferentes contextos, narrativas parecidas a do High
Line poderiam ser infelizmente elencadas tendo como referéncia
uma lista extensa de projetos proeminentes de desenho urbano,
cujos efeitos desfavordveis advieram, apesar disso, da imple-
mentacio de conceitos criativos, habilidosos ¢ ostensivamente
progressistas de design (SORKIN, 2009; FAINSTEIN, 2011).
Em que medida, ¢ de que forma, a pratica do desenho
Provoca resultados t4o retrégrados? A primeira vista, esses
problemas parecem ser menos culpa da complexidade em si das
197Gidade aberta ow o divito @ cidade
concepcdes do desenho urbano do que do sistema mais amplo
de leis, por exemplo, que rege o uso da terra, a propriedade, 0
financiamento, a tributacio, o investimento e os bens ptiblicos
na cidade, regio e territério porventura atendidos por esses
projetos. Certamente, os designers nao podem ser criticados
por condicionarem sua criatividade as restrigdes impostas por
esses regimes legislativos. Afinal, quais outras opges poderiam
escolher, uma vez que nio detém controle ou influéncia sobre
‘0s fluxos de investimento, propriedades € decisdes politicas? E,
mesmo que as condicdes de trabalho impostas pelo cliente sejam
inferiores as condicées ideais necessdrias, nado é muito melhor
ver um projeto bom, criativo ¢ imaginativo implementado do que
um mau, pouco auténtico e chato?
Do meu ponto de vista, as formulacées acima oferecem uma_
perspectiva insuficientemente critica sobre o papel dos desig-
ners ¢ das profissdes correlatas, cujas experiéncias, capacidades
criativas ¢ forga de trabalho sao recorrentemente aproveitados,
no entanto, para mascarar, naturalizar, gerenciar ou suavizar
as contradi¢ées espaciais do urbanismo neoliberal. De forma
bastante ingénua, esse posicionamento insinua que 0 desenho
urbano se trata de um produto isolado tanto como pritica profis:
sional, bem como forma de engajamento social dos contextos
politico-econémicos mais amplos em que est incorporado € que
alimenta e enquadra ativamente suas operacées cotidianas. Esses
pressupostos sao insustentaveis, tanto na perspectiva empirica €
politica, como na ética; tal como observa Edward Soja (2009),
eles envolvem um reducionismo bastante miope no qual a proble-
miatica da remodelagdo da vida urbana é reduzida a um exame
microscépico “de como ela se organiza e na qual a aparéncia do
bando de prédios e edificios que a compéem esta dissociada de
seu contexto urbano e regional maior” (p. 258).
Os designers preocupados com a justica social - isto é, com:
a cidade aberta em um sentido genuinamente democritico €
igualitério - podem e devem amadurecer, para além da visio
formal ¢ espacialmente reducionista da cidade como se fosse
constituida por um “bando de edificios construidos dentro de
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