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Prólogo

Eu não sei bem o que queria. Mas com certeza não é o que tenho. Acho que no
fundo eu vislumbro o que realmente desejo. Mas é assustador olhar para isso. Não me
acostumei à sinceridade. Ela me estranha, uma desconhecida que a muito tempo não
visito. Eu a abandonei a vários anos atrás, quando percebi que ela me mataria. O que eu
não sabia é que morreria da mesma maneira e por um caminho ainda mais penoso.
Queria voltar a ser aquela criança estranha que vagava num mundo de sonhos
esquisitos e delirantes. Que se manteve anos sozinha e sem perceber isso. Eu era um
universo em mim mesmo e não sabia. Com medo de sabe se lá o que, me afastei disso
e coloquei esse garoto para dormir o resto de sua vida no porão. Ele ficou lá, me pedindo
socorro, até desistir. Mas jamais deixou de crescer; não, isso não. E com o tempo os
pedidos de socorro se transformaram em gritos de raiva. Depois de mais um tempo,
esses gritos perderam força até não passarem de sussurros. Nesse momento, ele
começou a tramar contra mim. Deliberadamente e movido por um frio propósito,
tramou contra mim. Lentamente envenenou a água que eu bebia e a comida que eu
comia, sugando minha vida. Um processo lento, mas que agora mostra seus efeitos
irreversíveis. Se não o tirar do porão, ele me envenenará até a morte. Se ele sair, meu
corpo anêmico sucumbirá diante de suas exigências.
Enquanto continuo tentando falar, sinto a total banalidade do que vai
aparecendo nessas linhas. Confesso que me acovardei com isso durante um tempo, mas
agora não tenho alternativa. Tive que voltar. Fui arrastado para cá. Ou continuava com
isso ou aquele diabo velho no porão me mataria com um único golpe.
Mas como dói. Respiro fundo, seguro um cigarro entre os dedos, fecho os olhos,
minhas mãos tremem e eu apenas gaguejo. Promete que estará comigo até o fim? Por
favor? Preciso de você mais do que nunca. Preciso tanto de companhia que não consigo
mais me aproximar de ninguém. Tenho medo de queimar todos em volta com o meu
desespero. Tenha piedade. Uma vez tentei fazer isso bêbado, na esperança de facilitar
as coisas. Durante um tempo funcionou, mas depois se acelerou muito e eu não pude ir
tão rápido. Explodiria tudo em volta. Tenho que aprender a ser devagar.
Agora minha garganta se fecha. Aposto que está voltando para tentar me matar.
As palavras estão correndo de meus dedos. Não consigo encontrá-las.
Me desculpe amor. Eu vejo histórias bonitas nos filmes sobre personagens
quebrados terminando bem. E sempre choro no final porque sei que depois dos créditos
finais seus traumas serão maiores do que qualquer ajuda disponível. Morrerão sozinhos,
se lembrando daqueles últimos minutos antes da tela escurecer e os créditos subirem.
Talvez, em algum outro lugar, ainda estejam em praias de areia clara, de mãos dadas,
assistindo ao pôr-do-sol, se beijando carinhosamente. E depois que o sol desaparecer,
entrarão em seu carro e irão preparar um delicioso jantar. Eu gostaria de conseguir
algum espaço no banco traseiro, para acompanhá-los e poder observar enquanto
dormem e aproveitam aquele amor puro e sagrado. Levantaria um altar sagrado em
volta de seus corpos. Agora isso é tudo que posso fazer. Assistir a histórias bonitas no
cinema e tentar esquecer que sua felicidade acaba assim que os créditos sobem e a luz
se acende. Me transformei numa espécie de vampiro e agora eu os entendo. Apenas
queremos que todos vivam felizes para sempre, que amem e sejam jovens para sempre.
Queremos um final feliz definitivo. É por isso sugamos o sangue.
Você ainda está aqui amor? Me desculpe, não consigo te ver nesse escuro. O
quê? Ahh, não, nem sempre foi escuro assim. Isso vem piorando com o passar do tempo.
O lado bom é que agora ninguém percebe que sou cego. Antigamente isso era um
problema, agora não mais. Na verdade, melhorou bastante; todos eles perderam e visão
e eu finalmente, ganhei companheiros.
Aqui, segure minha mão. Não se assuste, é um pouco fria no começo, mas te
garanto que logo, logo isso será a coisa mais aquecida por aqui. Não sente o vento
gelado agitando as cortinas esfarrapadas? Ahhh, entendo. Mas você se acostuma rápido
com isso. No fim todos se acostumam. Com exceção daqueles que decidem continuar
até o fundo. Não, não. Não faço ideia do que há lá. Nunca tive de coragem de descer.
Mas sinto que em breve iriei. Por favor, você irá descer comigo? Na verdade, é por isso
que te trouxe até aqui. Sinto tanto, tanto medo meu amor.

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