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Bibliogr afia.
ISBN 85-85141-21-2
1. Compo rt amento humano 2. Medo. 3. Mo rt e - Aspectos psicoló-
gicos 4. Suicídio I. Kovács, Maria Júlia.
CDD-155.937
92-1944
Casa do Psicólogo®
Escritores
© 19 92 Casa do Psicólogo Livraria
Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta pu blicação, Rauflin Azevedo Calazans -Psiquiatra.
para qua lquer finalidade, sem autorização por escrito dos editores.
Rachel Léa Rosenberg (in memo ri
ri am) -Psicóloga, psicoterapeuta,
professora do Instituto de Psicologia da USP.
É proibida a reprodução total ou parcial desta pu blicação, Rauflin Azevedo Calazans -Psiquiatra.
para qua lquer finalidade, sem autorização por escrito dos editores.
Rachel Léa Rosenberg (in memo ri
ri am) -Psicóloga, psicoterapeuta,
professora do Instituto de Psicologia da USP.
XI
Apresentação ................................................................................ ........................
In memorianm: XV
Prefácio ..................................................................................................................
Nélson Rosamilha: Que facilitou a pesquisa acadê- Capítulo 5. Envelhecimento e Morte .................................................... 58
mica sobre o tema da morte. 90
Capítulo 6. Re fl exões sobre a Psicanálise e a Morte ............................
Rachel Rosenberg: Colega, professora, e depois ami-
ga. A sua calma e profunda sabedoria sempre me Capítulo 7. 0 Ser Humano: Entre a Vida e a M orte
Visão da Psicologia Analítica ........................................................... 11 1
i mpressionaram muito.
142
Capítulo 8. Morte Abordagem Fenomenológico-Existencial ..............
1 49
Capítulo 9. Morte, Separação, Perdas, o Processo de Luto ................
1 6 5
Capítulo 10. Comportamentos Autodestrutivos e o Suicídio ................
Capítulo 11. Paciente Terminal e a Questão da Morte .......................... 1 8 8
Capítulo 12. Atendimento Psicossocial a Pacientes de Câncer
Relato de uma Experiência .............................................................. 20 4
226
Capítulo 13. Profissionais de Saúde diante da Morte ............................
Apresentação
não era possível atingir toda a verdade,/ porque a meia pessoa que entra- Mas, tive de chorar escondido, envergonhado por ser humano.
va/ só trazia o perfil da m eia-verdade./ E sua segunda m etade/ voltava
igualmente com meio perfil,/ E os meios perfis não coincidiam./ Arreben- Muitos a n os depois me vi ensin a n do moleques, como eu era, a serem
médicos. E me lemb rei daquilo, e de muito, muito mais. De outras mor-
taram a porta./ Derrubaram a p orta./ Chegaram ao lugar luminoso/ onde
tes: da desumanização do paciente e do médico. Do conluio com a socie-
a verdade esplendia seus fogos./ Era dividida em duas metades/ diferen-
dade. Das mortes matadas pelos homens. Dos homens suicidas, suicida-
tes uma da outra./ Chegou-se a discutir qual a metade mais bela./ Nenhu-
dos. E, de um Brasil, esplendoroso de vida, mas a vida, estr an gulada,
ma das duas era totalmente bela./ E carecia optar./Cada um optou con-
sufocada, a vida não-vida: moribunda.
forme/ seu capricho, sua ilusão, sua miopia." ("Verdade")
Só quando repercebi a morte, senti de fato o amor. Primos: "Eu te amo
Maria Júlia nos abrirá, sempre gentil e contundente, as portas para a porque te amo. Não precisas ser amante,/ e nem precisas saber sê-lo./ Eu
nossa ânsia de verdade: e nos brindará com muitas verdades, sobre as te amo porque te amo. Amor é estado de graça/ e com amor não se
quais cada um pode optar. Ou, sugiro, não optar. Assim, podemos conti-
paga./ Amor é dado de graça,/ é sem eado no vento,/ na cachoeira, no
nuar com a porta aberta - sempre poderemos ver algo mais. A opção
mata o desejo, a curiosidade. O esperar o novo, o acrescentJr, o d iminuir, ec li pse. Amor foge a d icionários/ e a regulamentos vá rios./.../ Amor é
primo da morte,/ e da m orte vencedor,/ por mais que o matem (e ma -
o t r an sformar, tudo isso é ruído de vida, é música num créscendo. tam)/ a cada instante de amor." (Drummond, "As sem-razões do amor").
Mas é difícil não saber e admitir isso. Todos nós procu ramos respostas: é Amando conheci muitas pessoas, vários companheiros de estudos sobre
a mãe, é o calor, é a amante, é a imprensa. Não: é o governo, é o rei, é o os mistérios da vida e da morte. E que, curiosos, vivos, amantes, se de-
bobo, é o camponês. É Deus, é o Diabo. Somos todos e não somos bruçam sobre esses temas, com todo o vigor que o amor imprime em
nenhum. É a vida e também é a m orte. É tudo e é nada.
estado de gr aça. Maria Júlia Kovács é uma delas.
Assim eu me via quando vi o primeiro cadáver. Não senti nada, a não ser Qu an do Maria Júlia me intimou a escrever este Prefácio, o que me dei-
curiosidade, diante daquela coisa cheiran do formol. Senti o formol, não a xou num estado temeroso e feliz, fiquei pens an do o que ela mais me
morte. Depois as piadas e a "coragem" que procurávamos ter, dissecando passava. E me veio a palavra CORAGEM. Coragem, é vida. Vem de
a carne morta. Era necessária muita"vida" para conviver com a morte, ou coração. De confiar na vida.
melhor, para negá-la. Mas, não éramos desumanos. Éramos apenas jo-
vens, moleques aterrorizados, que vínhamos estudar anatomia para que Num domingo, refletindo sob o sol que me cobria, recebo um telefonema.
depois, médicos, pudéssemos combater a m orte, ficar do lado da vida. Maria Júlia se apresenta. É professora do Departamento de Psicologia da
Mas, havíamos de passar por essa iniciação: demonstrar a nós mesmos Aprendizagem, Desenvolvimento e Personalidade, do Instituto de Psico-
que desprezávamos a m orte - e, por isso, ousávamos enfrentá-la! logia da USP. Estamos em 198 5. Diz que leu um livro meu sobre Suicídio,
e que, conversando com seu orientador Dr. Nélson Rosamilha, haviam
Um dia, entre os cadáveres em que aprendíamos a salvar vidas, imit an do decidido convidar-me para a sua banca de defesa de dissertação de mes-
cirurgias, encontrei uma jovem, que atendera semanas antes, viva, em seu trado. Alertava-me: não é bem sobre Suicídio - é sobre a Morte.
leito, e que passara a um colega, melhorada. Impressionara-me sua bele-
za, beleza de moça pobre, desnutrida, beleza mais de alma, de olhar, que Impressionado com o tamanho do nome de seu Departamento, com o
de pele ou de toque. Estava bela também na morte, mas só bela para fato de pessoas tão importantes terem lido meu li vro e, mais ainda, com a
mim, que a conhecera. Para todos era apenas um monte de tecidos, de coragem dos dois em convidar um desconhecido para uma b an ca, fiquei
órgãos e matéria. Nesse dia chorei: o choro que em quatro anos havia pasmo e paralisado. Geralmente se convidam amigos, e quando os pes-
contido. quisadores são tão sérios, investigadores não inimigos para uma b an ca de
IX
XVIII
M o
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olvime
n t
o huma
no Prefácio X
mestrado ou doutorado... Nunca um desconhecido. Fiquei fascinado pelo Mais uma vez, Maria Júlia demonstra seu vigor, ao organizar este livro,
mistério e, logo que me recuperei, aceitei o convite. Precisava descobrir o onde o leitor encontrará vários autores, abordando o tema da morte sob
vários ângulos. Mais uma riqueza da investigadora: contemplar todas as
enigma.
leituras possíveis e, assim, como educadora que é, fazer o aluno (e o
E que surpresa! Era apenas coragem. Conheci a dissertação ("Um estudo leitor) refletir, comparar, duvidar, questionar, e, com tudo isso, criar.
sobre o medo da morte em universitários das áreas de saúde, humanas e Sem dogmas, que p ara mim é morte. Ao contrário: obrigando o outro a
exatas"), correta e precisa. Enfrentava-se o medo de algo temível e se pensar - e isso é vida.
desvelava. Mais importante: conheci Maria Júlia e Eda Custódio (que
Isso não quer dizer que o leitor vai encontrar respostas em relação à
assumiu como orientadora, p or ocasião do falecimento do Dr. Nélson)
morte. Talvez encontre, como diz o poeta, por "capricho, ilusão ou mio-
dois seres humanos excepcionais, como fui confirmando no decorrer dos
anos seguintes. Todos disseram o mesmo a respeito do professor Nélson pia". Mas, com certeza, poderá VIVER a riqueza de conVIVE R com
idéias, sentimentos, especulações, ricos e variados. Talvez fique frustrado,
Rosamilha, que encorajou Maria Jú lia nos primeiros passos de sua tese, e
mas, tenho a esperança de que possa viver a ausência da certeza, de
que faleceu antes de su a defesa. Mas, que de ix ou nela a sua marca.
todas as certezas, da vida e da morte. E mais uma vez Drummond nos
("... Alguém deste clã é bobo de morrer?/A conversa o restaura e faz eter-
no".... - Drummond, "Conversa") inspira:
Já me stre, Maria Júlia criou a p rimeira disciplin a de gr adua ção, num a. "Por muito tempo achei que a ausência é falta
Universidade, que tenho notícia: "Psicologia da Morte", pa ra os alunos do
E lastimava, ignorante, a falta.
Instituto de P sicologia da USP. G enerosa, convidou-me todos estes anos
para ministrar aulas ligadas à psicaná lise e ao suicídio. Saía feliz de Cam- Hoje não a lastimo.
pinas, sabendo que em Sã o Paulo iria encontrar um grupo de alunos Não há falta sem ausência.
interessadíssimos, questionadores, desafiadores, enfim, VIVOS, e de uma A ausência é um estar em mim.
vida aproveitada, vivida ou rica para se viver. Estou certo de que Maria E sinto-a branca, tão pegada, aconchegada em meus braços,
Jú lia tem mu ito a v er c om isso . que rio e danço e invento exclamações alegres,
Em 1989, ela se tornou doutora. Em sua tese "A questão da m orte e a porque a ausência, essa ausência assimilada,
formação do psicólogo", onde descreve criativamente as experiências que ninguém a rouba mais de mim "
viveu na nova disciplina, já não é ma is tão precisa como na anterior.
Abandonando os nú meros, entra mais fundo na alma dos indivíduos, dis- (Carlos Drummond de Andrade, " Ausência ")
seca-a, procura compreendê-la - é mais ciência poética que lida com
gente, do que ciência fria, rica em estatísticas. Novamente na banca, sur-
preendo-me, cada vez mais, com a coragem de Maria Júlia que, estimula- Roosevelt Moisés Smeke Cassorla
da por Eda, incursiona com desenvoltura pela pesquisa do homem, cada
Ano Novo/1992
homem como ser único, que pede para ser reconhecido como indivíduo,
compreendido, interpretado (e há tantas interpretações...)
REPRESENTAÇÕES DE MORTE
Origem da morte
" Umamulher tinha dois fil hos gêmeos, alguns dizem que eram
irmão e irmã; que desmaiara m. Possivelmente só estavam dor-
mindo. Sua mãe os deixou de madrugada e quando retornou à
noite, eles ainda estavam deitados lá. Ela notou pegada s como as
deles, e imaginou que eles tinham voltado à vida e brincado du-
rante a sua ausência. Certa vez ela chegou, inesperadamente, e
encontrou-os discutindo dentro da cab an a. Um deles dizia: `É
melhor estar morto'. O outro dizia: `É m elhor estar vivo.' Quando
a viram, pararam de falar e d esde então as pessoas morrem de
tempos em tempos, portanto, sempre há vivos e mortos. Se ela
tivesse permanecido escondida e permitido que eles encerrassem
sua discussão, um teria vencido o outro, e daí não haveria vida
ou não haveria morte." (in Meltzer, 1984)
A morte sempre inspirou poetas, músicos, artistas e todos os homens As defesas ao mesm o tempo que nos protegem do medo da morte, po-
comuns. Desde o tempo dos homens das cavernas há inúmeros registros dem nos restringir. Há momentos em que o sujeito fica tão acuado que
sobre a morte como perda, ruptura, desintegração, degeneração, mas, parece não viver. E esse não-viver, pode ser equivalente a morrer. Então
também, como fascínio, sedução, uma grande viagem, entrega, desc an so surge uma situação paradoxal, em que a pessoa "está" morta, mas "esque-
ou alivio. ceu" de morrer: temos a chamada morte em vida. Com isso estamos brin-
cando com as palavras vida e morte e com o seu entrelaçamento, mas que
Qual delas poderia ser a "nossa morte"? A forma como a vemos certa- verdades profundas essas brincadeiras nos trazem!
mente influenciará a nossa forma de ser. Entrelaçamos vida e morte, du-
rante todo o nosso processo de desenvolvimento vital. Engana-se quem A morte faz parte do desenvolvimento humano desde a mais tenra idade.
acredita que a morte só é um problema no final da vida, e que só então Nos primeiros meses de vida a criança vive a ausência da mãe, sentindo
deverá pensar nela. Podemos, é claro, tentar esquecer, ignorar ou mesmo que esta não é onipresente. Estas primeiras ausências são vividas como
" matar" a morte. Sabemos que a filosofia e o modo de viver do século XX mortes, a criança se percebe só e desamparada. Efetivamente não é ca-
pregam veementemente esta atitude, porém, com um sucesso relativo, paz de sobreviver sem a m ãe. São, no entanto, breves momentos ou, às
como veremos. N a verdade, trata-se de um grande e inútil dispêndio de vezes, períodos mais longos, porém logo alguém aparece. Mas esta pri-
energia. meira impressão fica carimbada e marca uma d as representações mais
fortes de todos os tempos que é a morte como ausência, perda, separa-
Desde todos os tempos em busca da imortalidade, o homem desafia e ção, e a conseqüente vivência de aniquilação e desamparo. A experiência
tenta vencer a morte. Nos mitos e lendas essa atitude é simbolizada pela da relação materna tão acolhedora e receptiva, também é responsável
morte do dragão ou monstro. Os heróis podem conseguir tal façanha mas por outra representação poderosa da morte, ou seja, a morte como figura
os mortais não. E o homem é um ser mortal, cuja principal característica maternal que acolhe, que dá conforto. Esta representação provavelmente
é a consciência de sua finitude - isso o diferencia dos ani mais, que não é bastante acentuada em indivíduos que tentam suicídio diante de situa-
têm essa consciência. Portanto, obnubilar, apagar essa consciência não ções insuportáveis, ou que originam impasses profundos.
seria um retrocesso?.
Não nos iludamos, pois o que buscamos não é a vida eterna e sim a À medida que a criança processa o seu desenvolvimento afetivo e emo-
ju ve nt ud e et er na co m se us pr az er es , f or ça , b el ez a e nã o a v elh ice et er na cional, porém, experiencia as mortes efetivas que a rodeiam, tent an do
com suas perdas, feiúra, dores. Quantos "heróis" perderam a vida na bus- compreender o que se passa. A tualmente, acredita-se que a criança não
ca da imortalidade! Não acreditamos em nossa própria morte, agimos sabe nada sobre a m orte e que, portanto, deve ser poupada. No entanto,
todas as crianças inadvertidamente já pisaram numa formiga e esta, es-
como se ela não existisse, fazemos planos para o futuro, criamos obras e
filhos, imaginamos que estes perpetuarão o nosso ser. Em alguns casos, magada, parou de se mex er. Diante disso, elas param e ficam observando,
isso ocorre, o homem é perpetuado pelas suas obras. Algumas vezes, entre aterrorizadas e curiosas, o que aconteceu. Toda cri a n ça já "perdeu"
um passarinho, um gato, um peixe ou qualquer bicho de estimação. Per-
estas se mostram m ais vivas depois da sua morte. Quantos foram reco-
nhecidos só depois de mortos! Van Gogh é u m exem plo destes "imortais" cebeu então que ficaram "diferentes" do que eram quando estavam vivos.
Além disso, podem m orrer bisavós, avós, pais, irmãos, amigos e, nos noti-
depois da morte.
ciários e novelas da TV, inúmeras pessoas. D iferentes dos personagens de
No entanto, não podemos viver a vida toda sob a esmagadora "presença" desenhos animados, que semp re renascem, aqueles jamais retornam. É
da m orte. Existem várias possibilidades de ocultamento, t an to culturais, uma tarefa muito difícil para a criança definir vida e morte, pois na sua
quanto psicológicas. Entre estas últimas podem ser destacados os meca- percepção a morte é não-movimento, cessação de algumas funções vitais
nismos de d efesa: negação, repressão, intelectualização, deslocamento. como a li mentação, respiração; mas na sua c oncepção a morte é reversí-
Como todos nós já vivenciamos tais desejos, em algum momento de nos-
vel, pode ser desfeita. Há diferenças entre vivos e mortos, mas os ú ltimos
sas vidas, sabemos que é inevitável a li gação da culpa com a morte do
poderão ser ressuscitados sozinhos ou com ajuda de alguém. Na realida-
de não é assim, os verdadeiros mortos não ressuscitam; como a cri an ça outro.
consegue elaborar esta contradição? A morte se faz acompanhar de uma Racionalmente os adultos reconhecem que não é assim, m as emocional-
tentativa de explicação e, por outro lado, fortes emoções assolam q uando mente é freqüente a atribuição de culpa em relação à morte do outro,
de seu acontecimento. A dor acompanha as mortes e o processo de luto muitas vezes associada à falta de cuidados, sentimentos exacerbados no
se faz necessário; a cri a n ça também processa as suas perdas, chora, se processo de luto.
desespera e depois se conforma como o adulto. Certamente não expres-
sará a sua dor, se não souber que aconteceu uma morte, entretanto a Ao construir o mundo, o adolescente deixa as idéias e os pensamentos
criança percebe que algo aconteceu pois todos estão agindo de um a for- infantis, o "faz-de-conta" é relegado como coisa de criança. Adquirir co-
ma diferente. Estes pontos serão m elhor discutidos em outros capítulos nhecimentos, tornar-se adulto, ter um corpo de homem ou mulher são
deste livro. tarefas da adolescência. A sua pa lavra-chave é desafiar, pois o adolescen-
te também é um herói como a criança havia sido, .só que um herói mais
Um dos atributos freqüentem ente associados à morte é a sua carac terísti- potente, com um corpo mais forte e uma mente mais aguçada, com todas
ca de reversibilidade, presente na fantasia de mu itos adultos, como vere- as possibilidades de criação e execu ção, sem os freios restritivos da razão
mos nos processos de luto. Em m uitas tentativas de suicídio há a fantasia e da maturidade. N as representações figurativas os heróis são jovens, be-
de "se morrer só um p ouco", para que o outro p ossa sentir a falta, ou para los, fortes, predominando, sempre, a característica da impetuosidade.
que se sinta culpado. Entretanto, a própria criança começa a compreen- Não há lugar para a morte, que representa a derrota, o fracasso. Como
der a irreversibilidade da morte pela própria experiência. podemos ver aqui está representada a visão atual da m orte: fracasso,
derrota, incompetência. Devemos admitir que somos uma civilização
Sabemos que faz parte do desenvolvimento infantil o pensamento mágico
adolescente, onipotente, forte, entretanto com p ouca ma turidade?
e a onipotência. Fica, portanto, a grande questão: se os outros m orrem,
será que morrerei também? A criança reproduz a história da humanida- Desafiar, romper limites é o grito de vida, é a identidade de um novo ser
de. Ela se representa como o herói que dur a n te o dia vence a sua fragili- que rompe barreiras, extravasa limites, para configurar os contornos da
dade e, à noite, tem os seus pesadelos, os monstros, os dragões e os própria identidade, em busca d a qual tem de ir até o fim. Experimentar
fantasmas que a ameaçam. A morte representa o desconhecido e o mal novos prazeres, sentir o li mite do possível é viver a vida nos seus extre-
mos. Estamos exagerando ao falar de um ideal adolescente de onipotên-
Nos filmes, na TV e talvez até mesmo na rua a criança começa a conviver
cia, força, impulso o "pico" da vida, sem espaço p ara a morte. Mas, esta-
com a concretude d a morte, corpos mutilados, sangue, violência, vê homi-
mos diante de uma contradição, pois neste momento em que não há lugar
cídios, assassinatos, acidentes. A morte passa a adquirir alguns dos seus
para a morte, é que ela está mais p resente, espreitando em todos os
contornos principais, o caráter de violência, repentinidade, acaso. Uma
das formas principais de proteção passa a ser a crença de que a morte só c a n tos. No desafio da vida, pode estar a morte, não só a do outro, mas a
própria. Pelo seu desenvolvimento cognitivo o adolescente sabe que a
ocorre com os outros. morte não é reversível, mas sim, defmitiva, não tem, portanto, o elemento
Outro elemento da morte que fica muito presente nesta fase da vida é o protetor da inconsciência, pelo menos do ponto de vista racional.
elemento culpa. Esta relaciona-se muito com o pensamento mágico e O adolescente pode viver várias mortes concretas, com a perda de am i-
onipotente inf a n til e com os elementos de sociabilização que levam a gos, colegas, em acidentes, overdose, assassinatos, doenças. Apesar de
desejos de morte, de tal forma que, se ocorre um a morte, é inevitável que viver a concretude dessas perdas, o pensamento adolescente conclui que
a cri an ça estabeleça uma relação entre esses desejos e a morte efetiva.
7
6 Mo rt e e desenvolvimento humano Representações de morte
a morte ocorreu por inabilidade, imperícia e que o verdadeiro herói, que inicia com o fim da adolescência, e termina com o início da velhice, mas
é ele próprio, não vai morrer. Aqui está representada a busca e o desejo os seus limites não são precisos. As exigências externas constituem um
de imortalidade do ser hu mano, o seu desejo de ser herói, forte, belo e estado íntimo que nos faz sentir adultos.
onipotente, com a grande missão de vencer o dragão da morte.
Responsabilidade em relação à comunidade e colaboração com o seu
Mas em seu íntimo, ocorre uma dúvida: será ele apenas hum an o, frágil, e desenvolvimento são tarefas próprias desta fase. Consolidar uma intimi-
terá o mesm o destino do outro? A adolescência se configura pelas ambi- dade afetiva, iniciada na fa se anterior, constituir família, criar filhos tam-
valências. Ao mesmo tempo que se sen te todo-poderoso, o adolescente bém fazem parte deste período. Muita energia é dispendida na constru-
também "borra as calças", só que dificilmente exterioriza essas fraquezas. ção de todos estes pilares. O espaço da morte na consciência ainda pode
Assim, o herói tem os seus momentos de dúvida e insegurança. estar muito distante. O impulso e os arroubos da adolescência tendem a
diminuir e, em geral, a pessoa se torna mais ponderada e calma, pois, se
A morte espreita no pico da vida. É que para viver os grandes êxtases permanecesse no ritmo da fase anterior, poderia adoecer.
que a vida promete, a m orte pode ocorrer como acidente ou busca.
Como o número de tentativas de suicídio e acidentes é muito grande Entre as doenças comuns desta época estão os ataques cardíacos fulmi-
nesta etapa da vida, resta saber se ocorrem por acidente ou por motiva- nantes que ceifam a vida. Mais uma vez, é a morte rondando no p ico da
cão intencional. Se são atos deliberados o que buscaria o sujeito: uma
vida melhor, mais amor, mais valorização, vingança, castigo? Este enigma vida.
será aprofundado no ca pítulo referente ao suicídio. Esta fase constituiria o que Jung cham ou de metanóia ou metade da vida.
A adolescência também é o tempo da descoberta do amor. Durante o É quando fazemos um balanço do que foi a nossa existência até aquele
Romantismo as pessoas se matavam por amor, quando estavam muito momento. Em princípio, quase tudo o que se almejava como realização
apaixonadas, o que deu origem à expressão popular "morrer de amor". de vida foi conseguido. Houve alegrias e vitórias, mas, também, tristezas e
De novo, no pico da vida ronda a morte. Os temas de sedução, conquista, decepções. Fatos concretos, porém, permitem avaliar o que se alcançou
amor e morte fazem parte do enredo de óperas, poemas, romances e em relação à profissão, às posses, à família, aos filhos, ou a quaisquer
novelas e freqüentemente a culminância destes enredos se configura com outros pontos considerados vitais. Quando se chega ao topo da montanha
um grande amor e uma grande morte. Uma das representações mais for- e se admira a paisagem à volta, a descida parece obrigatória. Não dá para
tes da morte está ligada ao seu caráter de sedução, presente nas figuras ficar todo o tempo no topo, nem que se queira, sob o risco de estancar o
de sereias, botos, arlequins. Por outro lado, o ponto culminante do amor processo, com conseqüências. A subida remeteu a um esforço, como vi-
é o orgasmo também chamado de "pequena morte". mos, o mesmo ocorrerá com a descida. Ela representa a segunda metade
da vida, potencialmente tão criativa quanto a primeira, só que de num
O uso d e drogas pode ter como objetivo elevar o "pico" da vida ou servir outro ângulo. Temos toda a experiência do na scimento, da infância, da
como elemento de alteração da consciência. Sabemos que o número de adolescência e da primeira fase adulta. Ao fazer um balanço dessa expe-
mortes concretas associadas às drogas é m uito alto, envolvendo aciden- riência, uma grande transformação interna se processa em nós e a morte
tes, doenças. No entanto a droga traz a representação da morte ligada às não se configura mais como algo que acontece somente aos outros, mas
grandes viagens, à percepção diferente do m undo, a um estado alterado que pode acontecer conosco também. Surge, então, a possibilidade da
de consciência. minha morte e isto traz um novo significado para a vida. Esta pa ssa a ser
Já a f as e a du lta , m ui ta s v ez es in de fin id a, po de ser co ns ide ra da um pe río - definida e ressignificada pela possibilidade da morte. Não temos mais
do de desenvolvimento do qual nos temp os atuais da sociedade cap italis- todo o tempo do mundo, o limite não está lá para ser extrapolado e sim
ta, não temos clareza sob& seu início e seu término Aparentemente se para ser conhecido e adm itido.
Representações de m o rt e 9
4. Experiência extracorpórea, em que o indivíduo se vê acima do seu Como afirmamos, neste livro trataremos da morte do ponto de vista psi-
corpo. Algumas pessoas relatam que gostariam de voltar ao corpo, cológico, ou seja a morte como representada pelo ser humano. A questão
mas não sabem como, tentam falar, mas ninguém escuta. da vida após a m orte sempre foi uma preocupação universal do ser hu-
mano e, de alguma forma, determina a maneira como o homem reagiu
5. Encontro com outras pessoas, que podem assumir a forma de paren- di an te da morte durante toda a História. Essa questão será abordada em à
tes ou amigos já falecidos ou de pessoas que ajudaram no m omento alguns trechos do li vro, mais particularmente no capítulo 7 referente
da transição. abordagem junguiana.
6. Encontro com um "Ser Iluminado", muitas vezes identificado com Neste li vro a questão religiosa é somente tangenciada. Não se trata de
uma figura divina, cuja imagem está relacionada com a história reli- nosso enfoque no momento, embora saibamos que as religiões tiveram e
giosa da pessoa. Esta figura pode exercer uma atração irresistível e têm grande função na explicação dos mistérios da vida e da morte, atra-
transcendental. vés da fé e da crença. Acreditamos que este tema por si mereceria um
livro. Abordaremos brevemente a função social e psicológica da religião,
7. Sensação de retrocesso, onde ocorre uma visão panorâmica da vida a sua função transcendente, a sua dimensão cósmica. Discutiremos, tam-
do sujeito, normalmente relatada cont sendo muito rápida e e m or- bém, como a questão da continuaçã o da vida sempre foi um d esejo do
dem seqüencial de trás para a frente, com imagens rápidas, vívidas e homem durante todos os tempos. A segurança de uma vida após a morte
reais. parece aplacar o terror, que a finitude árida e drástica introduz.
10. Algumas pessoas se recusam a contar essas experiências com m edo MOODY, R. - Life after life. New York, Bantam Books, 1975.
do descrédito.
MORIN, E. - O homem e a morte. Lisboa, Publicações Europa-Améri-
11. Outros relataram que essa experiência foi extremamente impactante ca, 19 70.
e provocou mudanças na sua forma de encarar a morte, diminuindo,
ZIEGLER, J. - Os vivos e a m orte. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
inclusive, o medo de morrer.
É difícil diferenciar entre medo e ansiedade. De uma maneira geral, a Kastenbaum (19 83) relacionou as seguintes variáveis segundo as quais se
ansiedade é associada a um sentimento difuso, sem uma causa aparente- deve estudar o medo da m orte:
mente definida. Já o medo é geralmente ligado a uma causa mais especí-
fica. No caso da morte, porém, esta experiência é tão ampla e universal 1. Temp o: Quando está prevista a ocorrência da morte? Está próxima ou
que se poderia pensar em ansiedade e medo de forma similar. Segundo distante temporalmente? Qual é a velocidade de sua aproximação e a
Hoelter (1979) a ansiedade pode ser d efinida como um estado geral que possibilidade de estancar o seu processo?
precede uma preocupação mais específica do homem com a morte. Veri- 2. Espaço: O perigo da morte é encarado como ameaça interna, ou
ficou-se, então, que pessoas que têm um nível maior de ansiedade apre- como algo projetado no ambiente externo.
sentam mais medo da morte, ou seja, o medo da morte evoca ansiedade.
3. Probabilidade: O indivíduo percebe que tem alta probabilidade de
Cada pessoa teme mais um certo as pecto da morte. Em função disso, Kas- morrer real ou simbolicamente.
tenbaum (1983) afirma que deve-se considerar a morte sob du as co nce pções:
1 6 Mo rt e e desenvolvimento humano Medo da mo rt e 17
Hoelter (1979) realizou um estudo fatorial determin an do oito dimensões tão da crença em Deus. (Exemplo: Tenho medo de que não haja vida
após a morte.) - 5 itens.
do medo da morte, a Multidimensional Fear of Death Scale. A autora
deste livro (Kovács, 1985 ) realizou uma pesquisa no Brasil com essa esca-
6. Medo da morte consciente: Esta dimensão lida com o medo dos proces-
la, que após a tradução recebeu o nome de Escala Multidimensional para sos subjacentes à morte e com o temor de se estar consciente nessa hora.
Medir o Medo da M orte (EMMM). Escalas multidimensionais permitem (Exemplo: Tenho medo de que muitas pessoas, consideradas mortas, ain-
que, além do escore geral, se obtenha um escore parcial para cada dimen- da estejam vivas.) - 5 itens.
são considerada, trazendo uma riqueza de dados para pesquisas. Esta
escala é composta por uma abrang ência de itens que englobam as dimen- 7. Medo do corpo após a morte: Esta dimensão lida com a preocupação da
sões do medo da m orte. Foram efetuados estudos que comprovam a sua qualidade do corpo após a morte. (Exemplo: Tenho medo de que meu
validade de constructo e precisão. O medo da morte foi defmido pelo corpo fique desfigurado quando eu m orrer.) - 4 itens.
autor como uma reação emocional envolvendo sentimentos subjetivos de
desagrado, e a preocupação, contemplação ou antecipação de quaisquer 8. Medo da mo rt e prematura: Esta dimensão é baseada no elemento tem-
das várias facetas relacionadas com a morte, supondo-se que estes senti- poral da vida e na frustração por não ser possível atingir os objetivos, ou
mentos possam ser conscientes. por não viver certas experiências antes de morrer. (Exemplo: Tenho medo
de não realizar os meu s objetivos até morrer.) - 4 itens.
Esta escala compõe-se de 4 2 itens, divididos em oito dimensões, submeti-
das à análise fatorial pelo autor, na qual as saturações dos fatores foram Os itens da escala foram traduzidos e foi pedido a juízes que verificassem
operacionalmente definidas (Hoelter, 1979). a fidedignidade da tradução e a melhor redação em português . 1
As definições das oito dimensões são as seguintes: Quais as variáveis que influenciam o medo da morte?
1. Medo de morrer: Esta dimensão lida mais com o processo específico de Mc Mordie(1981) estudou as crenças religiosas e o medo da morte e
morrer, do que com quaisquer conseqüências que acompanhem este pro- verificou que esse medo diminui nas pessoas mais religiosas. O que tem
cesso. (Exemplo: Tenho medo de morrer de câncer.) - 6 itens. mais relação com o medo da morte é o grau de incerteza/certeza, ou seja,
o grau de envolvimento religioso de cada um. Os religiosos e os ateus
2. Medo dos mortos: Esta dimensão mede a reação das pessoas com ani- convictos têm m enos medo da morte que os m edianamente envolvidos. A
mais ou pessoas mortas (Exemplo: Seria uma experiência horrível encon- certeza aumenta a percepção de controle e previsibilidade. Miran-
trar um cadáver) - 6 itens. da(1979) e Kovács (1985) p esquisaram e observaram esta mesma tendên-
cia em nosso meio. Miranda, estudando grupos de várias religiões, verifi-
3. Medo de ser destruído: Esta dimensão lida com a d estruição do corpo cou que o grupo dos evangélicos considerado como muito religioso, tinha
i mediatamente após a morte. (Exemplo: Não quero que estudantes de menor nível de ansiedade ligada à morte do que os demais, pois a fé
medicina usem meu corpo p ara treinamento.) - 4 itens.
ajuda a superar a ansiedade. O grupo católico, mais heterogêneo, consi-
4. Medo da perda de pessoas significativas: Esta dimensão se relaciona derado de médio envolvimento religioso, apresentou um nível de ansieda-
com o medo da perda de ssas pessoas, bem. como com os efeitos que a de mais elevado, tendo a incerteza contribuído para este fator. Em nossa
própria morte pode causar nas pessoas importantes. (Exemplo: Tenho 1 Para
conhecimento da versão definitiva da escala em portugu@s, a listagem dos itens por
medo de que pessoas da m inha família morram.) - 6 itens. dimensão, e a forma de atribuição dos escores consultar a obra de Kovács, M. J. Um
estudo multidimensional sobre o medo da morte em estudantes das áreas de saúde,
humanas e exatas, São Paulo, Disse rt ação de Mestrado, 1985, Biblioteca do Instituto de
5. Medo do desconhecido: Esta dimensão lida com a questão última da Psicologia da USP.
existência e da dúvida acerca do que virá após a morte, incluindo a ques-
Medo da mo rt e 21
20 Morte e desenvolvimento humano
pesquisa com universitários verificamos que os indivíduos que declararam Em nossa pesquisa (Kovács, 1985) usando a EMMM, verificamos que
maior envolvimento religioso apresentaram menores escores de m edo da não houve correlação entre o medo da morte e a escolha profissional,
morte na EMMM, e os que dec lararam m édio envolvimento religioso ti- baseadas nas duas hipóteses contrárias, a saber, que o sujeito com mais
veram os escores ma is altos, ficando os ateus com os escores intermediá- medo da morte não escolheria medicina, e a hipótese de que as pessoas
com mais medo da morte poderiam escolher a medicina como forma de
rios.
poder adquirir controle e domínio sobre ela. No estudo das oito di-
Kastenbaum (19 83) realizou uma pesquisa para verificar se havia diferen- mensões do medo da morte, na área de saúde, verificou-se que a cate-
ças significativas entre pessoas normais, neuróticos e psicóticos em rela- goria medo da m orte prematura obteve os escores mais altos e a catego-
ção ao medo da morte. Não foram encontradas diferenças significativas ria medo dos mortos, os escores mais baixos. Entre os cursos da área de
relacionadas à variável pesquisada. Como tendência, porém, foi verificado saúde (medicina, psicologia e enfermagem), as alunas do curso de psi-
que os pacientes com problemas mentais tendiam a negar mais veemente- cologia apresentaram escores significantemente mais altos de medo da
mente a morte, temendo, sobretudo, a morte violenta. Nos esquizofrêni- morte. Aliás, estes dados foram coincidentes nas outras áreas conside-
cos pôde-se observar que a sua expressão era de como se não estivessem radas, ou seja, nas áreas de humanas e de exatas. Em relação às dimen-
vivos, como uma defesa contra o medo da morte. sões específicas verificaram-se diferenças significantes nas que se se-
guem: medo dos mortos, medo da perda de pessoas significativas e
Segundo Hoelter (1979) as variáveis intervenientes nesse medo são: a ex- medo da morte consciente, tendo as a lunas de psicologia obtido os es-
posição à morte do outro, influência do 'tipo de morte que ocorreu (suicí- cores mais altos da área de saúde. Os alunos de medicina tiveram esco-
dio, homicídio, morte natural), o desenvolvimento emocional da pessoa, a res significantemente mais baixos nas dimensões: medo dos mortos e
duração de uma doença gr ave, a idade do moribundo ou da pessoa que se medo da morte consciente. Nossa hipótese é a de que os alunos de
perdeu. O autor verificou que o contato direto com a morte tem influên- medicina já respondem de acordo com o que é esperado dos médicos,
cia sobre o medo consciente, o medo do processo de morrer e o medo da os que não temem a morte e estão aí como os heróis a desafiá-la. As
morte prematura. alunas de psicologia já respondem também com o que é esperado dos
psicólogos, ou seja, estar em contato com os sentimentos, tendo a auto-
Conte, Weiner e Plutchik (1982), verificaram em seus estudos que a idade
rização para manifestá-los.
não era uma variável relevante em relação ao medo da morte. As variá-
veis relevantes foram a experiência de vida e as características da perso-
nalidade. Foi encontrada uma correlação entre o medo da morte, a de- Numa abordagem mais qualitativa, Ernest Becker (1976) faz um a análi-
pressão, a ansiedade em geral, com excessivas preocupações somáticas. se interessante sobre o espaço da morte em nossa cultura, revendo al-
guns aspectos da teoria psicanalítica e da abordagem existencial. Come-
Feifel e Nagy (1981) verificaram que as pessoas com mais medo da m orte, ça dizendo que o medo da morte é universal na condição humana. Esta-
em escalas padronizadas, foram aquelas que a perceberam com imagens belece a infância como o início da manifestação desse m edo. Não nas-
mais negativas. Entre as imagens negativas, oferecidas pelos autores, esta- cemos com o m edo da morte, a criança entra em contato gradativamen-
vam a morte como: um lar abandonado, um cavalo fugitivo, uma rua sem te com ela, em seu desenvolvimento, em parte atra vés das experiências
saída, um tigre devorador, uma neblina gr ossa, um espaço sem sonhos. com seus pais.
Estes indivíduos estavam mais freqüentemente preocup ados com a morte,
eram menos religiosos e evitavam a participação em ritos funerários. Este No início o mundo da criança é o mundo da m ãe que garante a sua
estudo é importante porque levou em conta a avaliação do medo da mor- sobrevivência. Gradativamente a criança tem de se libertar da mãe, usa n-
te no nível consciente e no nível imagético. É difícil considerar a subjetivi- do seus impulsos a gr essivos. É neste momento que surge a ambivalência,
dade quando se trabalha somente com dados estatísticos.
Mo rt e e desenvolvimento humano Medo da morte 23
22
pois ao mesmo tempo qu e a mãe é fonte de satisfação e prazer, a criança criança que é e se sente mais frágil. Muitas vezes, ela sente culpa após a
morte de um a pessoa, pois se acredita responsável por ela.
necessita se libertar dela.
O temor da morte pode ser ampliado quando os pais negam e hostilizam A criança bem amada e cuidada se vê forte e poderosa, com um senti-
os impulsos vitais infantis. Neste sentido o medo da morte é algo que a mento de invulnerabilidade e apoio, que colaboram para o estabeleci-
sociedade cria e utiliza contra a pessoa para mantê-la subm issa. As crian- mento da individualidade. O medo da morte, portanto, depende da na-
ças que tiveram experiências negativas, provavelmente, apresentarão mais tureza e das vicissitudes próprias do p rocesso de crescimento.
angústia de morte. Como vimos, embora o medo da morte não seja inato ele é inerente ao
Segundo Wahl (1959) o medo da morte está muitas vezes relacionado ao processo de desenvolvimento e está presente em todos os seres hum an o s .
medo da castração. Antigamente se imaginou que a criança não tivesse É um m edo básico, que influi em todos os outros e do qual ninguém fica
medo da morte, por não conhecê-la. Entretanto, o medo da castração que i mune, por mais que possa estar disfarçado. Becker cita Zilboorg, que
afirma que a maioria das pessoas pensa que o medo da morte está ausen-
surge após o período edipiano está relacionado com o medo da morte.
Aparece ligado à culpa e aos desejos destrutivos, vinculados à raiva e à
te, porque ele raramente mostra a sua verdadeira fisionomia, mas sob as
frustração, em relação aos pais, que não atendem a todos os seus desejos. aparências pode-se notar o seu espectro. Ele cita alguns exem plos como,
O processo de socialização para todas as crianças tem aspectos dolorosos a sensação de insegurança di an te do perigo, o medo básico por trás do
e frustradores, por isso elas têm, em alguns m omentos, desejos de m orte sentimento de desencorajamento e depressão, o medo que sofre as m ais
contra as pessoas que sãò responsáveis pela sua educação. Todos nós já complexas elaborações e se manifesta das mais variadas formas. O medo
sentimos esses desejos, mesmo que não estivéssemos conscientes deles. da morte pode estar ligado à morte concreta, à finitude, à extinção e
Ao mesmo tempo que a criança os m anifesta, porém, sente culpa e medo também aos seus equivalentes, como o medo do abandono, da vingança e
de que tais desejos possam se realizar. Nestes períodos são freqüentes de outras forças destrutivas.
pesadelos, fobias, terrores noturnos e o medo da retaliação. A criança se O m edo da morte tem um lado vital e por isso precisa estar presente em
crê em certas circunstâncias onipotente, com uma força que empresta dos
certa medida. Ele é a expressão do instinto de autoconservação, uma
pais. Essa invulnerabilidade é vivida também pelo adulto, quando acredita forma de proteção à vida e um a possibilidade de sup erar os instintos
que a morte só acontece com os outros. destrutivos. A própria palavra au toconservação implica um esforço
A criança tem medo da morte, mas acredita na sua reversibilidade e no contra as forças de desintegração, um estímulo para o funcionamento
seu poder de de sfazê-la, e isto faz parte do desenvolvimento infantil biológico normal.
normal. À medida que a criança compreende que a morte é irreversível,
Uma das coisas que impulsiona o homem, a sua criação e frenética
passa a temer ainda mais os seus impulsos destrutivos, principalmente
atividade é o terror diante da morte. O heroísmo pode refletir esse
em relação às pessoas mais próximas. Seus desejos de morte se tornam
medo, uma form a de ação que funciona como se ele não existisse, o que
aterrorizastes, pois ao mesmo tempo que os expressa teme pela sua
Becker chama de "mentira vital". Se estivéssemos conscientes o tempo
ocorrência. Pela Lei de Talião, imagina que o mesm o que deseja para o
todo de nossa morte e do nosso terror seríamos incapazes de agir nor-
outro (normalmente, pais, irmãos, professores), possa acontecer com malmente, ficaríam os paralisados. Agimos como se fôssemos imortais,
ela. acreditamos que nossas ações são perenes, pois este é o nosso desejo
A morte do adulto é temida como abandono e, por isso, além de poder supremo, e temos ilusões de que deixaremos obras gar an tindo nosso
incitar a raiva e a frustração, causa u m sério abalo na onipotência infan- não-esquecimento. A repressão e a negação como mecanismos de defe-
til. Se o adulto forte e poderoso não consegue evitá-la o que d irá a sa, são as grandes dádivas que nos protegem contra esse medo. Mas é
Mo rt e e desenvolvimento humano Medo da morte 25
importante ressaltar que essas defesas têm um caráter tran sitório, não não conseguirá viver. Segundo Lowen, toda tensão crônica no corpo de-
corre de um medo da vida, um medo de se soltar, um medo de ser.
eliminam a morte, o homem não poderá de i x ar de encárá-las em vá rias
etapas de seu d esenvolvimento. Não podemos olhar diretamente para a Quando o sujeito vai recuperando a sua vitalidade no processo psicoterá-
morte, o tempo todo, mas também não podemos ignorá-la, pois ela pico, abre o caminho para o estado de dor que havia suprimido. Ativa-se
i mpõe a sua presença. o caminho da sensação de morte, mas também se está a caminho da vida.
Há algo que caracteriza o ser humano como tal e o diferencia dos Por outro lado, o medo do sucesso, segund o Lowen, pode relacionar-se
animais, é a consciência da sua morte e finitude. Ele tem um nome, com o medo da castração, da destruição, suscitando a inveja. O poder
uma história, tem o status de um pequeno deus em relação à natureza. conduz ao medo e não ao amor. Quanto m ais alta a expectativa, maior a
Por outro lado, possui um corpo que sente dor, adoece, e nvelhece e excitação, maior o perigo.
morre. O homem está b ipartido: ao mesmo tempo que sabe de sua
originalidade e poder de criação, reconhece sua finitude d e forma ra- A excitação sexual també m pode evocar o medo da morte. De certa
cional e consciente. Vive toda a sua existência com a morte presente forma, o orgasmo é experimentado como uma morte. A ansiedade rela-
em seus sonhos, fantasias. Durante toda a sua existência, o ser humano cionada ao orgasmo é a da dissolução do ego, vivido como m orte.
tenta driblar esse sa ber, essa consciência e age como se fosse imortal.
A maior parte das doenças psicológicas está vinculada ao temor diante
Becker fala então do caráter c omo uma forma de proteção contra esse
do conhecimento de si mesmo, das emoções, dos impulsos, das lem-
terror, uma aparência externa forte que esconde uma fragilidade inte-
branças, das capacidades, das potencialidades ligadas ao próprio desti-
rior. Mas o corpo não deixa que o esquec imento se torne perene. O
no. Tememos quaisquer conhecimentos que denunciem nossa fragilida-
homem pode se sentir pequeno diante da grandeza da criação, que
de, reprimimos funções corporais que expressem a nossa mortalidade.
expõe a sua pequenez e fragilidade. Segundo o autor, a grande dádiva A tragédia do homem tem origem na percepção de sua finitude, no
da repressão é tornar possível viver em um m undo miraculoso e incom- pavor diante da morte e da enormidade da vida, por isso ele cria uma
preensível, um mundo de beleza e terror. O homem precisa dessas de-
couraça e, arrebentá-la, pode expor o indivíduo à loucura. O grande
fesas contlra a plena percepção do mundo externo. Assim, ao mesmo
terror da psicose é o da perda de controle, conseqüência de uma ruptu-
tempo, que temos acesso a toda a criação, e n os sentimos potencial-
ra interna do sujeito com a perd a do eixo. O esquizofrênico não conse-
mente capazes, somos como vermes, com um corpo que tem manifesta-
gue se defender de doses extras de angústia, desamparo e culpa, acen-
ções animais Eis o grande paradoxo humano. tuadas pela incapacidade de projetar uma parte desse terror para fora.
Na verdade, o ser humano possui dois grandes medos: o medo da vida e Uma outra forma de defesa contra a grandiosidade da vida e o terror
o medo da morte. O medo da vida se vincula ao medo da realização, da diante da morte é a depressão; através da auto-recriminação, da auto-
individualização e, portanto, está propenso à destruição. Por isso, o indi- desvalorização e paralisação, a pessoa não vive, morre em vida, embora
(
víduo se torna vulnerável a acidentes e deslizes. seu corpo sobreviva. Muitas vezes, quando o sujeito sente que não tem
controle sobre a sua vida, ocorre o desamparo, que evolui para a de-
Lowen (1980) estabelece uma relação entre o medo de viver e o de mor- pressão, sintoma que está na gênese de vários quadros somáticos.
rer. Se a vida é ser, por que temos tanto medo dela? N o relato dos casos
que menciona em seu livro, observamos um paradoxo, ou seja, quando o Buscam-se relações simbióticas como forma de adqu irir segurança, as-
indivíduo está mais cheio de vida, fica mais consciente da morte e do pecto presente no desenvolvimento normal de bebês, mas considerado
desejo de morrer. Viver plenamente com as emoções é se arriscar. Para patológico no caso de adultos. Podem-se desejar figuras de autoridade,
não sofrer, a pessoa pode se "amortecer", não sentir mais, mas também representantes paternos que exigem, eliminando o livre-arbítrio, a ne-
Medo da m orte 27
Mo rt e e desenvolvimento humano
26
cessidade de tomar decisões, ou fazer escolhas, que poderiam elevar o CONTE, H.; WEINER , M.; PLUTCHIK, R. - Measuring death anxiety.
sentimento de culpa. Nesse caso, a culpa p elo seu caráter restritivò, Concept, psychometric and factor analytic aspects. Journal of Personal
and Social Psychology, 1982, 43(2): 775-785.
acaba tendo um caráter punitivo, que protege também da possível reta-
liação. FEIFEL, H.; NAGY, V. T. - Another look at fear of death. Journal of
O medo da vida e da morte podem estar presentes também em várias Clinical and Consulting Psychology, 1981, 49 (2): 278-286.
doenças. Muitos dos sintomas neuróticos servem p ara reduzir e estrei-
HOELTER , J. - Multidimensional treatment of fear of death. Journal
tar a qua li dade de vida, evitando situações de morte. A neurose, no seu of Consulting and Clinical Psychology, 1 9 7 9 , 47 (5): 996-999.
processo de evitamento da morte, faz com que o indivíduo acabe se
matando simbo li camente, diminuindo a sua ação, isolando-se das pes- KASTENBAUM, R.; AISENBERG, R. - Psicologia da morte. São Paulo,
soas, vivendo como se estivesse morto. A abstenção das experiências Pioneira, 1983 .
vitais elimina o medo da morte e, consigo, a própria vida.
KOVA CS, M. J. - Um estudo multidimensional sobre o medo da mo rt e
Para Becker o m asoquismo, como um sofrimento permeado de certo em estudantes universitários das áreas de saúde, humana s e exatas. Sã o
prazer, pode ser considerado um meio de afastar a angústia de vida e Paulo, Dissertação de mestrado. Instituto de Psicologia da USP, 1985 .
de morte. Pode também ser a forma encontrada de pegar o terror da
existência e congelá-lo numa pequena dose, o que seria um sacrifício LOWEN, A. - Medo da vida. São Paulo, Summus, 1980.
menor, um castigo mais leve, um meio de apaziguamento.
MC MORDIE, W. - Religiosity and fear of death. Psychological Reports,
Depois de todas estas colocações, podemos ver novamente o entrelaça- 19 81, 4 9 : 9 21-9 22.
mento entre vida e morte. O m edo da morte tem um lado vital, que nos
protege, permite que continuemos nossa obras, nos salva de riscos des- MIRANDA, R. A. - Crenças religiosas, ansiedade e avaliação de conceitos
trutivos e autodestrutivos. Esse mesmo medo pode ser mortal, na medi- em universitários. São Paulo, Dissertação de mestrado, Instituto de
da em que se torna tão potente e restritivo que, simplesmente, a pessoa Psicologia da USP, 1979.
de ix a de viver para não m orrer, mas, se observarmos mais atentamente MURPHY, G. - Discussion. In: FEIFEL, H. - The meaning of death.
teremos um morto diante de n ós que se esqueceu d e morrer. Todo ser
humano é obrigado a se confrontar com esse dilema, como o viverá, New York, McGraw-H ill, 1959.
porém, vai depender em parte de sua história de vida, da s característi-
SELIGMAN, M. - Depressão, desenvolvimento e morte. São Paulo, Huci-
cas de sua personalidade, mas também de seu esforço pessoal para
tec/Edusp, 1 977.
enfrentar essas qu estões. Podemos concluir, portanto, que o homem é
responsável pela sua vida e pela sua morte. TEMPLER, D. - The con struct ion and valida tion of a dea th an xiety sca -
le. Journal of Genetic Psychology, 1970, 82: 16 5 -177 .
Referências Bibliográficas WAHL, C. - The fear of death. In: FEIFEL, H. - The meaning of death.
New York, McGraw-H ill, 1959.
BECKER, E. - A negação da morte. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1976.
COLLETT, L.; LESTE R, B. - The fear of death and the fear of dying.
Journal of Psychology, 1 9 6 9 , 72 : 1 79 -1 81 .
Atitudes diante da morte... 29
Morin faz uma interess an te análise do lugar das crenças dos ritos e ma-
ATITUDES DIANTE DA MORTE gias em relação à m orte. O papel da religião é em parte o de socializar e
dirigir os ritos de morte, como forma de lidar com o terror. Os ritos,
VISÃO HISTÓRICA, SOCIAL E CULTURAL práticas e crenças referentes a ela con tinuam a ser o setor mais prim itivo
de nossa civilização. O sacrifício favorece a ligação entre vida e morte,
Maria Júlia Kovács sendo a força da vida resultante dos aspectos fecundantes da morte.
Quando se sacrifica um an i mal para beber o sangue, ou mesmo no cani-
balismo, existe a idéia de incorporação dos elementos vitais d o morto.
"A arte de morrer é tão importante como a arte de viver, o Nos ritos de iniciação, chega-se a uma vida nova passando pela morte e
futuro do ser depende talvez inteiramente de uma m orte corre- separação. Começa com isolamento, torturas, rituais traumatizantes, auto-
tamente controlada." (O livro dos mo rt os tibetano, Prefácio à mutilação, sofrimento físico e psíquico, para depois ocorrer um "renasci-
Segunda Edição) mento" e uma reinte gr ação na sociedade.
A consciência da própria morte é um a importante conquista constitutiva
do homem. O homem é d eterminado pela consciência objetiva de sua Os ritos estão muito associados às representações de morte. Uma repre-
sentação de mo rt e muito presente em mitos, fábulas e folclore de várias
morta li dade e por uma subjetividade que busca a imortalidade.
épocas, é o da morte maternal o desejo de ter a figura materna quand o
Segundo Morin (1970) é nas atitudes e crenç as diante da morte que o di a n te do pe ri go da mo rt e, não se separar da m ãe, a idéia de re gr esso ao
homem exprime o que a vida tem de mais fundamental. A sociedade útero materno. Há elementos da natureza que simbolizam esta idéia, como
funciona apesar da morte, contra ela, mas só existe, enquanto org a n izada a terra e o mar. U m exemp lo disso é a pátria, muitas vezes relacionada à
pela morte, com a morte e na morte. Para a espécie hum an a, a morte está figura materna: a pát ri a-mãe, ou terra natal. Soldados que servem na guerra
presente durante a vida toda e se faz a companhar de ritos. Desde o ho- manifestam, fr eqüentemente, o desejo de voltar à família e à p átria.
mem de Neanderthal são dadas sepulturas aos mortos. A morte faz parte
do cotidiano, é concreta e fundamental. Qualquer gr upo, mesmo os mais Outros lugares muito associados à representação materna são as caver-
primitivos, não abandonam os seus mortos. A crença na imortalidade nas, como cavidades ventrais da terra, que são obscura s, continentes, iso-
sempre acompanhou o homem. ladas e tranqüilas, e que mantêm uma analogia com o útero. Muitos ri-
tuais de morte são realizados em gr utas e cavernas. A casa também costu-
Segundo Meltzer (1984), a morte é o inimigo que os vivos passa m suas
ma estar sempre associada à mãe, o que exp li ca o gr ande desejo do ho-
vidas tentando superar e derrotar para sempre, sem idéia da conseqüên-
mem de morrer em casa. Na verdade, muitos rituais são realizados na
cia disso. Todas as culturas personificam a morte de forma diferente, e
casa materna, lugar fam iliar e de proteção.
elaboram variadas magias contra a sua intrusão. Combatemos a morte
com a nossa linguagem, com am uletos e talismãs, transcrevemos nossos
sinais e símbolos em diversos materiais, juntamo-nos em cerimônias for- Ainda ligada à representação materna da morte é a sua ligação com a
água. A água simboliza o útero que recebe e contém, daí a ocorrência
mais para romper as suas redes. Quando dançam os e cada parte de nosso
freqüente de suicídios por afogamento, represent an do o desejo de voltar
corpo tem sua função no rito, nos escondemos sob máscaras e vestimen-
ao útero materno. Além disso, existe a idéia de renascimento, pois a
tas de poder contra a m orte, reunimos substâncias sa gr adas para criar
30 Morte e desenvolvimento humano Atitudes diante da morte... 31
água está li gada ao simbolismo do batismo, da pu rificação, de um novo Ph i lippe A ries (1977), o grande historiador francês, escreveu duas obras
nascimento. fundamentais para quem deseja aprofundar-se na questão do homem e a
morte: A história da morte no ocidente e O homem diante da morte. Fo -
Existem m a n obras criativas con tr a a mo rt e, em favor da imo rt alidade: néc- ram quinze a n os de pesquisa em q ue ele estudou a relação entre atitudes
tares, ambrosia, o completo menu dos deuses, cuja vida eterna nos int riga e di an te da morte, no que esta tem de m ais geral e comum, e n o que
que desafia os mo rt ais. Competimos com nossa invenção de perfeição, que- concerne ao nosso destino individual e coletivo Analisou milhares de
remos ser o que imaginamos, buscamos remédios e fórmulas raras, raízes e documentos, testamentos, iconografias, obras de arte, túmulos, cemité-
ervas extraordinárias, animais míticos, a Fonte da Juventude, o elixir vital, a rios, entre outros docum entos.
Flor de Ouro, as aventuras intelectuais e espirituais que progrediram a
pa rt ir da alquimia, a visão de Paracelso da cura, a matéria médica e as Segundo Vovelle (1985), as menta li dades integram o que ainda não está
extraordinárias visões da genética e da microbiologia. formulado, o que está encoberto no nível das motivações inconscientes,
envolvendo o imaginário coletivo. A m orte representa uma invariante
Por outro lado, os ritos destinados aos mortos sempre estiveram vincula- essencial na experiência humana, mas também é relativa, tendo em vista
dos ao medo de que eles pudessem importunar e atemorizar os vivos. que as relações do homem se alteraram pela maneira como ela os atin-
Existe também o m edo do contágio, da decomposição e das doenças, por ge. Assim, todas as representações de morte estão imersas num contexto
isso foram desenvolvidas técnicas de conservação dos corpos, como o cultural.
embalsamamento ou a destruição dos elementos corporais, como na cre-
mação. O luto é uma forma de purificar a impureza dos sobreviventes. Baseados nas pu blicações de A ries, apresentaremos algumas das repre-
Estes rituais destinam-se a proteger os vivos dos mortos e vice-versa. Os sentações de morte que ap arecem em sua obra e que caracterizam atitu-
rituais de morte buscam favorecer essa grande viagem, as orações facili- des do homem di an te dela. Os títulos constam de seus li vros. Cabe ressal-
tam a superação dos obstáculos, bem como servem de orientação aos tar que as representações são mais típicas de uma certa época ou mo-
mortos em sua pere gr inação. O temor dos m ortos, que Morin chama de mento histórico, mas algumas dessas manifestações podem ocorrer em
"duplos", personificados pelos espíritos, fantasmas, é associado àquelas qualquer tempo.
pessoas que morreram mal, que estão privadas de sepultura e vagueiam,
aterrorizando os vivos. Uma série de rituais constitui os elementos de A. A morte domada
proteção contra estes seres, como colocar sal, virar um espelho, acender
velas. Por isso os mortos têm de ser cuidados, lisongeados, para que não A morte domada é a morte típica da época medieval. O homem sabe
se enfureçam. Eles podem ser muito mais temidos que a própria morte. quando vai morrer, por certos avisos, signos naturais ou por uma convic-
Algumas culturas desenvolveram formas de comunicação com os mortos, ção interna. Os homen s daquela época eram observadores de signos e,
como possibilidade de saber o que acontece no além. antes de mais nada, de si mesmos. Eles morriam na guerra ou de doenças
e, portanto, conheciam a trajetória de sua m orte.
A pertinência a um gr upo inibe ou adormece a consciência de horror
São os seguintes os atos dedicados ao cerimonial do moribundo:
ligada à morte, enquanto que os rituais realizados em conjunto faci li tam
a sua elaboração. O medo da morte é menor em sociedades primitivas, 1. 0 primeiro ato é o lamento da vida, a evocação triste, mas discreta
ou altamente a gr egadas, porque o gr upo dá continência às necessidades do seres, das coisas amadas.
individuais. No entanto, algumas mortes podem ser impostas socialmente,
por infração de normas. Durkheim refere-se a esta questão quando fala 2. O segundo ato é o perdão dos companheiros que rodeiam o leito do
no suicídio altruísta (ver capítulo 11). moribundo.
32 Mo rt e e desenvolvimento humano Atitudes diante da mo rt e... 33
3. 0 terceiro ato é a absolvição sacramental. épocas de grande morta li dade por epidemias ou guerras, eram destina-
das as valas coletivas.
Da análise dos documentos dessa época, podem-se perceber algumas ca-
racterísticas típicas. A morte era esp erada no leito, numa espécie de ceri- B. A morte de si mesmo
mônia pública organizada pelo próprio m oribundo. Todos podiam entrar
no quarto, parentes, amigos, vizinhos e, inclusive, as cri an ças. Os rituais Num dado momento, o homem passa a se preocupar com o que aconte-
de morte eram cumpridos com m a n ifestações de tristeza e dor, que eram cerá depois de sua morte. Ocorre o medo do julgamento da alma, com a
aceitas pelos membros daquela comunidade. O m aior temor era morrer sua ida para o inferno ou o paraíso. A alma que está sendo pesada é a
repentinamente, anonimamente, sem as hom enagens cabidas. representação dessa espera inquietante sobre o seu destino. O medo fun-
Foi as sim durante séculos. Uma atitude familiar e próxima com a m orte, damental do homem, nessa época, relacionava-se com o que viria após a
por isso chamada de "morte domada". Mas apesar dessa fami liaridade, os morte, a condenação ao inferno, ao castigo eterno. Era o momento final,
homens temiam a proximidade dos m ortos e os mantinham à distância. como mostram as "Ars Moriendi", tratados sobre a preparação e a arte
Muitas das práticas ritua is tinham como objetivo separar os vivos dos de morrer e renascer na época medieval. A cena, tantas vezes retratada
mortos, facilitar o percurso dos mortos até os céus e evitar a contamina- em obras de arte, mostra o m oribundo no quarto, cercado pelos familia-
cão por eles, tanto física ligada à decomposição dos corpos, qu an to psí- res, e um á rbitro constata como o indivíduo passou os seus últimos mo-
quica, através da visita dos mortos como fantasmas, espíritos, almas pena- mentos, como numa p rova, ou no Juízo Final. As grandes tentações, en-
das. Podemos perceber elementos oriundos desses rituais e dessa forma tão são o apego às coisas terrestres: família, objetos materiais. Esse apego
de encarar a questão até em nossos dias, mesmo nas grandes metrópoles. é chamado de "A varitia" e é condenado pela Igreja, pois leva a um afasta-
mento de Deus. O homem b uscava garantias para o além, através de ritos
O local da sepultura na Idade Média era nas igrejas, perto dos s an tos, o de absolvição como: orações aos mortos, donativos, missas, ex-votos e
que se configurava como uma forma de proteção. Posteriormente, o en- principalmente através dos testamentos.
terro nas igrejas e basílicas foi destinado a pessoas d e prestígio, sendo
que o lugar mais valorizado ficava próximo aos altares As pesso a s mais Os testamentos a n tigos constavam de du as partes, uma com as fórmulas
pobres eram afastadas deles, deslocadas para os pátios das igrejas, os piedosas e a outra com a distribuição das fortunas. Testar era um dever
churchyards, nome original dos cemitérios. Normalmente as igrejas fica- de consciência. Os testamentos antigos constavam de um a profissão de
vam no centro da cidade, e o cemitério também, como ainda pode-se ver fé, confissão dos pecados, recomendação da alma, escolha da sep ultura, e
nas pequenas cidades. transmissão dos desejos em relação aos sobreviventes. Na segunda parte,
os testamentos regulamentavam a transmissão dos bens, deixavam em or-
Com o crescimento das cidades e da população e por razões de salubri- dem as coisas temporais - nessa época era muito importante doar as
dade, os cemitérios passaram a ser deslocados para fora das cidades.
riquezas à i gr eja e, portanto, garantir a salvação para a.vida eterna, já que
Foram construídos em parques, tornando-se além de locais de enterro, o reino dos céus era dos pobres e bem-aventurados de espírito. Os testa-
também lugares de passeio, descanso e oração. Até hoje muitos cemité- mentos são fontes reveladoras da mentalidade dos séculos XIV/XV, pelos
rios compõem parques mu ito bonitos. Houve um reesta belecimento do seus vários gêneros e modelos.
convívio entre vivos e mortos.
Nessa época não existia igualdade entre vivos e mortos, nem mesmo na O c orpo morto passa a ser escondido, pois é insuportável para os olhos.
hora da morte. Havia diferenç as impressionantes entre os lugares nos Os caixões são usados para esconder o corpo. O embalsamamento, ritual
cemitérios e na imponência dos túmulos. Às pessoas mais simples ca- tão antigo continua a ser usado com o forma de conservar viva a imagem
biam túmulos menores, em lugares menos nobres. Aos indigentes, em do morto, sem dúvida uma forma de negar a morte.
34 Mo rt e e desenvolvimento humano Atitudes diante da mo rt e ... 35
Os rituais de luto sempre e xi stiram, consistindo na manifestação mais Os túmulos marcam o lugar onde fica o corpo do morto, e podem trazer
aberta ou mais contida da tristeza. Há uma série de procedimentos e recordações sobre a imagem física dele, que pode ser representada por
atitudes que se espera neste período. uma escultura e, atualmente, através de fotos. Há vários tipos de túmu-
los: horizontais, verticais, com dois andares e com figura s jacentes ou
Meltzer, em sua coletânea, faz uma interessante análise do uso da cor em posição de oração. Esses elementos nos relembram a importância
preta como simbolização do luto. que os vivos sempre deram para a morte e principalmente para os mor-
tos. Não deixam de ser uma forma de honraria, e também de temor da
No Ocidente, usa-se preto num costume que data do pag an ismo. Na sua morte.
origem, não tinha nada a ver com p iedade, ou forma de demonstrar triste-
za, era uma m aneira de expressar medo. Relacionava-se, não com o res- Os temas m acabros eram muito freqüentes na Idade Média, como ates-
peito e sim com o horror dos mortos. O preto era um disfarce, assim o tam as obras de arte e ilustrações da época. Aparecem as repre-
f an tasma do morto não reconheceria o vivente para caçá-lo. O uso de sentações realistas do corpo hum a n o decomposto, os esqueletos. A arte
preto incluía o véu, pois acreditava-se ser uma forma de proteção contra macabra mostra o que não se vê, p or exemplo, o que acontece embaixo
a própria morte. Essa cor era designada para c onfundir o próprio demô- da terra, como a decomposição do corpo. Esta representação traz ilu-
nio, que estava caçando outras vidas. Algumas raças usavam a pintura da são e temor.
face em branco ou preto, como uma forma de eng an ar o morto, que
acreditava que os enlutados também eram fantasmas e nã o criaturas vivas,
que poderiam ser invejadas por ele.
C. Vida no cadáver, vida na morte
Não há diferença de intenção entre o uso de roupas pretas e outras práti- Este é o tema que configura a vida na morte. O cadáver tem os segre-
cas mais primitivas, como dilacerar a carne e rasgar as roupas. dos da vida é da m orte. Mantém uma c erta sensibilidade, um resíduo de
vida, pêlos e unhas crescem, há secreções. Segundo Meltzer, cadáveres
O preto também contém o simbolismo da noite e a ausência de cor para providenciam matéria-prima para alguns remédios de forma muito efe-
expressar o abandono e a tristeza. Esta cor facilita a lembran ça de que tiva. Por exemplo, o suor dos cadáveres pode ser bom para hemorrói-
ocorreu uma perda. Tam bém poderia sugerir às outras pessoas, que tives- das, tumores, e a mão de um cadáver que toque numa área doente pode
sem uma atitude especial em relação à pessoa enlutada e evitassem falar curá-la. Isto explica por que anatomistas sempre têm mãos saudáveis. O
de coisas que poderiam magoá-la. A cor não só demonstrava a tristeza, crânio dissecado alivia epilépticos, e os ossos são ingeridos em forma
mas também criava uma paz e serenidade interiores. de pó. Estes remédios são determinados pela a plicação do princípio da
simpatia e antipatia, de que há um remanescente de vida em corpos
Entretanto, o preto não é a única c or de luto. Usa-se o branc o, amarelo e
mortos. Um homem ferido poderia ser curado se comesse a carne de
o violeta. Em algumas partes da China a cor tradicional é o púrpura. Um
um animal m orto com a arma que o feriu. Os ossos têm o poder de
fato irônico nos EUA , quando a cor da em balagem de chicletes passou a
prevenir doenças, recomendando-se, portanto, que sejam usados no
ser o roxo e a sua venda diminuiu entre os chineses, que acreditavam que
pescoço, como amuletos. A morte também fertiliza a terra, aceler an do
a goma só deveria ser mascada em funerais.
o crescimento de plantas, sendo fonte de vida. Entre outros aspectos
Outras formas de buscar esta proteção para o além, eram as missas que benéficos, está o lado afrodisíaco, através de uma poção feita com os
encomendavam a alma do m orto, as conhecidas missas de corpo presente. ossos de recém-casados. Podem ser feitas poções com partes do corpo
Os donativos também representavam um a possibilidade de perdão para de pessoas que morreram repentinamen te e oferecê-las para moribun-
os atos terrenos, e para o acúmulo de bens. dos, como forma de transmitir vida.
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Atitudes diante da mo rt e... 37
Este é um argumento para a imortalidade da alma. A superstição popular objetivo da pedra tumular é o de ser um lugar de repouso para a alma.
indica que o corpo depois da morte ainda ouve e lembra. Fica difícil A pedra é branca para combinar com os ossos.
separar o natural do sob renatural, o uso de amu letos feitos de ossos tor-
na-se popular, sendo uma forma de proteção. Ainda com relação à vida na m orte, observa-se a ligação entre pra-
zer/sexo e morte (Eros e Thánatos). As representações artísticas dos sé-
A morte aparente faz surgir o grande medo dos séculos XVII e XVIII, culos XIV, XV e XVI nos trazem ilustrações das dança s macabras onde
o medo de ser enterrado vivo. E a confusão entre vida e morte. O se misturam prazer, sofrimento e morte. A necrofilia, ou seja a cópula
com os mortos, traz à tona estes temas.
pânico passa a ser a possibilidade de d espertar dentro do túmulo. Sur-
gem vários ritos e cerimônias para atrasar os enterros, como os velórios,
que inicialmente podiam durar 4 8 horas, de modo a garantir que a mor- D. A morte do outro
te era definitiva. Portanto, ela só se mostrava real quando começava a
decomposição. No entanto, alguns costumes contestam esta prática A morte, no século XIX é a morte romântica. E considerada bela, subli-
como por exem plo o ritual hassídico. Exceto nos sábados os mortos são me repouso, eternidade e possibilidade de uma reunião com o ser ama-
enterrados logo após a sua morte. Não se esperam alguns dias para do. A m orte passa a ser desejada. A morte nesse período traz a p ossibili-
saber se está realmente morto. Coloca-se uma pena na narina do morto, dade de evasão, liberação, fuga para o além, m as, também, a ruptura
e se não for observado nenhum movimento é porque o sujeito está real- insuportável e a separação. Representa a possibilidade de reencontro no
mente morto, então deve ser enterrado sem demora porque um corpo além de todos os que se amavam. Prevalecia então uma crença forte na
morto sem ser enterrado sofre muito. Se houve uma alimentação corre- vida futura.
ta durante a vida, não é preciso temer a putrefação após a morte. Não
se usa túm ulo, deixa-se o morto em contato direto com a terra, voltando O século XIX marca, também, o surgimento do espiritismo, ligado a essa
ao pó. O cadáver é protegido com algumas tábuas, para evitar que al- expectativa de vida futura, como a possibilidade de urna intermediação
gum torrão de terra possa machucar um homem santo. Não se enterra o entre vivos e mortos, a comunicação com os espíritos e o retorno do
corpo com nenhum objeto material, nem com o manto de reza, que corpo. Na França os estudos começam com A llan Kardec e Flammarion,
deve ser rasgado para evitar que alguém o use. em 1854. Em 1882, surge no Estad os Unidos "The Society for Physical
Research", estimuland o o estudo científico da questão da morte, e dos
fenômenos sobrenaturais.
A alma do morto, no princípio, fica como paralisada, não se libera do
corpo imediatamente. Nos primeiros sete dias após a morte ela fica
O m edo predominante, neste período, relaciona-se com as almas do
alternadamente no túmulo e na casa onde a pessoa faleceu. Esta é a
outro mundo, que vêm molestar os vivos, provocando todo o tipo de
razão pela qual, nestes sete dias, dez homens vão à casa do morto e se
superstições, por isso são criados rituais para afastar esses seres. Entre
junt am à re za f eita pelos enlu tados . A a lma se reg ozija por ou vir as
esses rituais populares podem ser citados os seguintes: abrir uma janela
preces familiares. Uma lamparina é mantida acesa e p erto dela fica um
ou porta logo depois da morte para facilitar a saída da alma, senão
copo de água e uma toalha. A alma se lava com a água e se seca com a
volta para incomodar, relógios são pa rados, cobrem-se os espelhos, os
toalha. Depois de sete dias, a alma abandona a casa definitivamente.
sinos são silenciados, joga-se sal, acendem-se velas.
Durante o primeiro ano, ela se transporta do túmulo para o céu e vice-
versa. Somente depois do primeiro ano, ela se estabelece definitivamen-
Nessa época, a preocupação com a insalubridade dos cemitérios era
te no céu. Há, entretant o, períodos de volta em festividades religiosas,
grande, devido ao grande número de epidem ias. Vários decretos foram
com a lua nova ou quando amigos e conhecidos se reúnem para orar. O
criados para a realização das inumações, orientando quanto ao espaço e
Mo rt e e desenvolvimento humano Atitudes diante da mo rt e . . . 39
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seja porque se "viram para a parede", dão as costas à vida, desistem de
à profundidade das covas. Tratava-se de um a tentativa nova de separar os viver, ou melhor, de morrer aos poucos.
vivos dos mortos.
No século XX há uma supressão do luto, escondendo-se a manifestação
E. A morte invertida ou até mesmo a vivência da dor. Há uma exigência de controle, pois a
sociedade não suporta enfrentar os sinais da morte.
O século XX traz a morte que se esconde, a morte vergonhosa, como
fora o sexo na era vitori a n a. A m orte não pertence mais à pessoa, tira-se O tempo da m orte se modifica, não é mais o momento de separação do
a sua responsabilidade e depois a sua consciência. A sociedade atual corpo e da alma. N os tempos atuais, esse tempo se prolonga indefinida-
expulsou a morte para proteger a vida. Não há mais sinais de que uma mente. A m orte foi dividida em cerebral, biológica e celular. Sãa vár ios os
morte ocorreu. O grande valor do século atual é o de dar a impressão de aparelhos destinados a medir e prolongar a vida. O momento da morte é
que "nada mudou", a morte não deve ser percebida. A boa m orte atual é muita vezes um ac ordo feito entre a família e o médico.
a que era mais temida na Antiguidade, a morte repentina, não percebida.
Outra instituição deste século no Ocidente, que ainda não chegou ao B ra-
A morte "boa" é aqu ela em que não se sabe se o su jeito morreu ou não.
sil, mas que funciona plenamente nos EUA , são as "Funeral Homes", onde
Uma ilustração típica das atitud es do século XX, encontra-se no conto os mortos passam por um processo de prepara ção e embelezamento, para
se criar a ilusão de que a morte não ocorreu. Os fun eral dire ctor s são
de Leon Tolstói, A mo rt e de Ivan Illitch. Este conto fala sobre um doente,
e o que reina à sua volta é o silêncio, não se fala sobre a morte, i gn ora-se empresários que cuidam dos serviços funerários, encarregando-se de todo
o seu fim próximo. A presenta-se a medicalização da morte, onde reina a o cerimonial, afastando ainda ma is a família e o indivíduo do processo de
mentira e a solidão do doente. morte.
A morte não é mais considerada um fenômeno natural, e sim fracasso, A sociedade ocidental insiste no caráter acidental da morte: acidentes,
impotência ou imperícia, por isso deve ser ocultada. O triunfo da medica- doenças, infecções, velhice adiantada. A morte fica despojada do caráter
lização está, justamente, em manter a doença e a morte na ignorância e de necessidade em termos do processo vital. É sempre um assombro. O
traumatismo provocado pela morte é sempre uma irrupçã o no real. No
no silêncio.
inconsciente estamos todos persuadidos da nossa imortalidade, sem regis-
O conto de Tolstói nos apresenta também a morte suja e inconveniente. tro da morte, como o animal cego.
A decomposição que ocorria antigamente ap ós a morte, passa a ocorrer
Ziegler (1977) discute a tese acerca da igualdade ou não na morte, con-
an tes dela, por causa das doenças longas, intermináveis e degenerativas. testando a afirmação de que ao morrer todos os homens são iguais. Afir-
O local da morte é transferido do lar para o hospital. Tudo isso torna ma que numa sociedade de classes não se permite que se estabeleça uma
consciência igualitária da morte. Ela chega a todos os homens, de todas
difícil suportar a pro x i midade com a doença. No século XX a maioria das
pessoas não vê os parentes morrerem.'0 hospital é conveniente pois es- as classes e nações, mas ocorre em situações sociais específicas. Segundo
conde a repugnância e os aspectos sórdidos ligados à doença. A fam ília a autor, as classes dominantes impõem sua forma de morrer. A indústria
também fica afastada para não incomodar o silêncio dos hospitais. Dessa funerária e as pompas fúnebres imp õem valores que ninguém pensa em
forma, não atrapalha o trabalho dos m édicos e não torna visível a presen- questionar, são as p ráxis da cultura ocidental capitalista.
ça da morte, através de lamentações, choros ou questionamentos. Literalmente falando, a sociedade ocidental não sabe o que fazer c om os
Os pacientes terminais incomodam os vivos e principalmente os profissio- seus mortos, com esses estranhos corpos que deixaram de produzir. Esse
nais de saúde p elas suas atitudes, seja de revolta, de dor ou de ex igências, acontecimento natural, torna-se clandestino e é empurrado para o fundo
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própria morte. Mesmo com todo o poder na m ão do médico e o paciente
da consciência, pois as pessoas m orrem escondidas. A preocupação sem nenhum, ele continua sendo o sujeito epistêmico de sua morte.
maior é com o valor dos terrenos, e a loca li zação dos cemitérios. Espe-
cialistas são contratados para cuidarem dos mortos, empresas encarre- Conclui-se que o moribundo não tem status social, e se não se amoldar à
gam-se desses aspectos e a morte se torna um comércio, como já vimos. linguagem dominante do hospital é declarado patológico, os cuidados
Verifica-se como é caro morrer, pois são cobradas taxas municipais, o mudam de natureza e o paciente pode ser punido pelo seu comporta-
caixão, o velório, o local no cemitério, o enterro, o que comprova que mento.
evidentemente não há igualdade na hora da m orte.
Ziegler apresenta em seu li vro depoimentos extremamente dramáticos de
Ta mb ém nã o h á ig ua lda de se co ns ide ra rm os qu e a mo rt e s e a dia nta ou se alguns pacientes. Muitas vezes a família não é admitida no hospital, ale-
atrasa segundo relógios que se chamam condições sociais, econômicas e gando-se receio de contaminação e a necessidade de repouso do pacien-
políticas. Operários e pessoas que vivem em condições insalubres têm te. Sob o p retexto de respeitar a vida, prolongam-se os dias do moribun-
menos tempo de vida, e em nosso país podemos relembrar os desnutri- do ao preço de sofrimentos suplementares, sem esperanças de milagres e
dos. Ao mesmo tempo, tenta-se inutilment e prolongar a vida de certos contra o desejo do interessado. Será melhor pa ra ele passar os seus últi-
pacientes moribundos, envolvendo gastos altíssimos, garantindo um au- mos momentos sozinho, ligadd a tubos e máquinas? Se o repouso é a
mento de sobrevida para algo que não se sabe se é realmente vida. Zie-
coisa mais import a n te para a cura, certamente não o é para o paciente
gler recorre à imagem do moribundo arrancando os fios e os tubos num hospitalizado, que é continuamente interrompido em função de todo tipo
surdo grito, expressando que o estão privando da p rópria morte.
de intervenções.
Procuramos determinar qual é o momento da morte somática, quando as
O depoimento de um a enfermeira revela o seu m edo diante de suas cole-
funções de um ser vivo cessam e não há m ais possibilidade de reverter o
gas. Ela afirma que a ú nica coisa de que precisa é de alguém p ara segu-
processo. O instante da m orte é uma qu estão de fato, não de direito, e só
rar-lhe a mão. Diz: "Para vocês a morte faz parte da rotina, mas para
o médico pode defini-lo, através do atestado de óbito. Portanto, só ao
médico cabe confirmar o momento da m orte, constatando como definiti- mim, não."
va e irreversível, bem como, determinando a sua causa. Ou seja o próprio O autor expõe a questão da eutanásia, o apressamento da morte e os
ser humano não pode ratificar a sua morte. transplantes, vinculando ao problema econômico. Como vemos, um dos
O autor afirma que certos parâmetros, como a não-reação a estímulos, grandes pontos de definição da dur ação da vida relaciona-se ao dinheiro.
ausência de movimentos respiratórios, ausência de reflexos e EEG pla- Prolongar a vida de pessoas ricas, envolve custos altos. Por outro lado, a
no, organizam a questão, mas também fazem surgir um novo imperialis- venda de órgãos também rende economicamente. Vemos, assim, que o
mo médico, pois é este profissional quem define a questão da vida e da poder é transferido da Igreja para a Medicina, que acaba forç a n do a
doação dos bens materiais em vida.
morte.
Chamando o médico de tanatocrata, Ziegler diz que ele não só constata a O doente tem direito de renunciar a certas terapêuticas, que lhe pareçam
morte, mas também a provoca, é o seu senhor. Não registra mais a hora demasiado onerosas e que só sirvam para prolongar um a vida vegetativa
final de uma vida, fixa-a segundo a sua escolha. privada de quali dades human as. Para o religioso a vida terrestre não é
tudo, e a morte é só uma passagem. O autor conclui que existem não-in-
A sociedade mercantil cria um sistema de imortalidade das pessoas, ne- tervenções que podem ser consideradas homicidas, pois ainda se poderia
gando qualquer status aos mortos, e carrega o momento da morte de fazer alguma coisa para salvar- o paciente, mas, em outros casos, a inter-
todas as qualificações pejorativas que se possa im aginar, esvazia, oculta, venção é que pareceria homicida, dado o grau de sofrimento a que o
nega a morte. É um sistema que aliena a quem m orre, priv
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paciente fica submetido. A igreja católica apóia o encerramento da vida rotina só que não volta. Preferencialmente as mortes são transferidas
quando esta se torna insuportável. para a m adrugada, quand o o movimento e a visibilidade são menores.
Existem documentos que podem ser registrados em cartório sobre o de- Hoje S0% das pessoas morre no hospital, primeiro porque é mais efi-
sejo de não ser subm etido a medidas heróicas. A decisão entre deixar de caz e escondido do que em casa, além disto os seguros pagam as hospi-
tomar certas medidas e matar um homem é bast a n te complicada. talizações.
Ziegler levanta uma questão importante a ser considerada: a morte m ais
Alguns filmes têm procurado discutir essa questão, sobre a possibilidade
desejada é a m orte repentina, como por exemplo a que resulta de um
de decidir entre a vida e a morte. O filme De quem é a vida afinal? trata
ataque cardíaco. Só que esta dificilmente ocorre num hospital, pois medi-
desse tema, com tiradas de humor e com muita sensibilidade. Um escul-
tor fica tetraplégico após um acidente e, para lisado até a cabeça, perde
das de intervenção são rapidamente colocadas em prática para salvar o
todas as possibilidades de realização como pessoa, como homem, com o paciente.
artista, mas não perde a lucidez e o raciocínio. A vida que lhe resta é a O autor fala de um a outra tragédia, própria da sociedade mercantil, que
vida hospitalar, sendo alimentado na boca, tendo a sua privacidade cor- ele chama de agonia da s pessoas idosas, que são os asilos. Alguns idosos
poral totalmente devassada. O filme trata o tempo todo de definir o que tentam se livrar da vida "esquecendo" algumas recomendações importan-
é a vida e a morte para cada um dos personagens, que, em alguns mo- tes, como: tomar os remédios corretamente, nem a m ais nem a m enos,
mentos, pensam de maneira mu ito parecida, quando se trata da própria evitar beber e fumar, alimentar-se adequa damente, evitar correntes de ar,
pessoa e muito diferente, quando se trata de um médico e de um pacien- não fazer coisas que sabe que não agüenta mais. Apresentam tam bém um
te. Alguns profissionais vão-se sensibilizando com a questão, sendo capa - desleixo em relação ao próprio corpo.
zes de ouvir o paciente, outros permanecem insensíveis, muito aferrados
ao seu juramento profissional. A grande questão discutida é de quem é a Embora o hom em seja o único ser consciente de sua m ortalidade e finitu-
vida, afinal. Trata-se de um filme extremamente sensível na sua discussão de, a sociedade ocidental com toda a sua tecnologia está tornando o
sobre a eutanásia que, neste caso, não é o que chamam os de eutanásia homem inconsciente e privado de sua próp ria morte.
ativa e sim o fato de deixar de tomar algumas medidas, o que certamente
levará o paciente à morte. Os conflitos vinculados a esta situação são Atualmente, em nosso ponto de vista, tem ocorrido um clamor no senti-
abordados no filme, sendo um retrato fiel de nosso tempo. do de uma modificação destas atitudes, procurando resgatar a participa-
ção do paciente em seu processo de morte, cuja expoente máxima é
O hospital é um microcosmos, onde se resumem com muita clareza os Elizabeth Kub ler-Ross. Falaremos mais sobre as suas p ropostas nos ca-
conflitos constitutivos da sociedade mercantil. pítulos 13 e 14.
Há uma identificação entre o médico e o paciente, junto ao leito do Numa visão diametralmente oposta, trazemos uma outra perspectiva da
hospital. Na sociedade mercantil, muitas vezes o paciente não sabe como morte, presente na sociedade oriental. Para isso nos baseamos em alguns
morrer e o médico é incap az de lhe explicar o sentido da morte. trechos de O livro dos mo rt os tibetano, conhecido como Bardo Thódol,
organizado por Evans Wentz. Não pretendemos esgotar o assunto, mas
Sudnow (1971) explica como se desenvolve o-ocultamento da morte. Por- somente fazer a contrap osição de mentalidades tão diferentes.
tanto, não deve ocorrer nenhum destaque relativo ao acontecimento. Os
pacientes devem supor que nenhuma m orte ocorre no hospital, as corti- Este tratado oferece orientação segura para o mom ento da morte e para
nas são encerradas, são feitos pacotes com os mortos, de modo que não o estado do pós morte através do qual todo o ser humano deve pa ssar. A
se perceba o seu conteúdo. Parece que o morto vai para os exames de exploração do homem, o desconhecido de uma maneira verdadeiramente
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dieval cristã sobre a Arte de Morrer, entre os quais se encontra o Ars
científica e ióguica, como este livro sugere, são mais importantes do que a
Morriendi ("Arte de morrer").
exploração exterior, tão enfatizada no Ocidente. As perguntas básicas
são: "Quem ou que sou eu? Porque estou aqui encarnado? A que estou Segundo as declarações dos mestre iogues, quando a humanidade houver
destinado? Por que há nascimento e por que há morte?" Há no Ocidente amadurecido e fortalecido espiritualmente, a morte será vivida extatica-
a falta de um correto conhecimento no que tange ao problema supremo mente, num estado conhecido pelos orientais como "samadhi". Através da
da humanidade, o problema do nascimento e da morte. correta prática de uma fidedigna Arte de Morrer, a morte terá então
perdido o seu estado negativo e redundará em vitória.
Este tratad o tibetano sobre a Ciência da Morte e do Renascimento, foi
organizado por Evans Wentz para ser compreendido pelos ocidentais. Ele Ta nt o o s b ud ist as qu a n to os hindus acreditam que o derradeiro pensa-
revela aos povos do Ocidente uma C iência da Morte e do Renascimento, mento que ocorre no momento da m orte determina o caráter da p róxima
tal como era conhecida som ente pelos povos orientais, até hoje. O Lama encarnação. Assim como o Bardo Thõdol ensina, da mesma forma os
Govinda relata que, os antigos mistérios e os " Upanishads" declaram que antigos sábios da Índia ensinaram que o processo de p ensamento de uma
os não-iluminados encontram um a morte após a outra incessantemente; pessoa moribunda deve ser corretamente orientado, de preferência por
apenas os iluminados recordam suas inúmeras mortes e nascimentos. Se- ela mesma, com o se ela tivesse sido iniciada ou psiquicamente treinada
gundo os druidas da Europa é só atravessando os ciclos de mortes e de para encontrar a morte, como se tivesse sido orientada por um guru,
nascimentos que o homem atinge na esfera psíquica e espiritual, a perfei- amigo ou parente na ciência da morte.
ção a que está destinado, portanto, há um alerta para que não desperdi-
cemos com coisas triviais esta possibilidade de nascime nto que nos foi Os tibetanos dizem que não há nenhum ser humano qu e não tenha retor-
oferecida. Cabe refletir profundamente sobre esta colocação. nado da morte. De fato, todos nós morremos várias mortes antes de vir-
mos para esta encarnação. Aquilo que chamamos de nascimento é ape-
Segundo ensina 0 livro dos mortos tibetano aquele que está para morrer nas o lado inverso da morte. O Bardo Thõdol que p roporciona libertação
deverá enfrentar a morte não só lúcida, calma e heroicamente, mas com o do estado intermediário entre a vida e o renascimento, estado que o
intelecto corretamente treinado e dirigido, transcendendo m entalmente, homem chama de "morte", foi descrito em linguagem simbólica, para que
se for necessário, os sofrimentos e enfermidades do corp o, como se tives- não possa ser m al interpretado pelos não iniciados. Segundo o Lama
se praticado eficientemente a arte de viver. Anagarika Govinda o Bardo Thõdol é uma chave para penetrar na região
mais recôndita da mente e um guia para iniciados, e é usado no Tibete
No Ocidente onde a Arte de Morrer é pouco conhecida e raram ente como um breviário lido ou recitado na ocasião da morte, e foi concebido
praticada, pelo contrário, há uma relutância comum em morrer, a qual, para ser um guia não só para os mortos, mas também para os vivos. O
conforme explica o ritual do Bardo, produz resultados desfavoráveis. conteúdo do livro só tem valor para aqueles que praticam e compreen-
dem os seus ensinamentos durante a vida. Não é suficiente apenas ler ou
Da mesma forma que o resultado do processo de nascimento pode ser
recitar o Bardo Thádol na hora da mor te para que a libertação se efetive.
abortado, o mesmo pode ocorrer com o processo da morte. O Bardo,
O ser humano tem de passar pela experiência da morte antes que ele
segundo os lamas tibetanos, é o estado intermediário entre a vida e a
possa nascer espiritualmente. Simbolicamente falando, deve morrer para
morte. O livro dos mortos tibetano ou Bardo Thõdol significa "Libertação o seu passado e ego, antes que possa tomar o lugar na nova vida espiri-
pela Audição no Plano do Pós Morte", e Cu m método iogue de se chegar
tual. Durante a vida tem de cultivar pensam entos e ações, preparar-se
à Libertação Nirvânica, para além do Ciclo do Nascimento e da Morte. mentalmente para que esse processo possa influenciar no momento da
Tan to este livro, como O livro dos mo rt os do Antigo Egito incutem uma
morte e pós-morte. Fenômenos de nascimento e morte ocorrem várias
arte de morrer e sair para um a nova vida, porém de maneira simbólica e
esotericamente mais profunda do que faziam os tratados da Europa me- vezes, pois sempre há algo que nasce e m orre dentro de nós. Segundo o
4 6 Morte e desenvolvimento humano Atitudes diante da morte... 47
Lama, a escu ta, a reflexão e a meditação são os três estágios do discipula- Pessoalmente embora tenha nascido no Ocidente e esteja banh ada por
do. O li vro nos ensina a nos identificarmos com o Eterno, com o Dharm a, este tecido cultural, sinto um profundo respeito e admiração pela forma
com a Imperecível Luz do Esta do de Buda, entã o, os temores da morte de ver a morte dos orientais. Faz sentido compreendê-la como tr an sição,
são dissipados como uma nuvem diante do sol n a s cente. Ele sabe que como possibilidade de evolução. Sabe-se, entret a n to, que a assimilação
tudo qu an to possa ver, ouvir ou sentir na hora de sua partida desta vida de valores de uma outra cultura não é fácil e nem pode ser realizada
de seu próp rio conteúdo mental consciente e sub-
não é senão o reflexo - repentinamente. Um ocidental nunca será um oriental, sob o risco de
consciente. ficar absolutamente sem identidade, pois abdica da sua e não consegue
assimilar inteiramente a outra. Muitos relatos atestam que ocidentais en-
Segundo a visão dos b udistas a vida consiste numa série de estados suces-
louqueceram diante da imensidão e comp leta transformação de valores e
sivos de consciência. O primeiro é a Consciência do Nascimento, o ú lti-
idéias de uma outra cultura. Porém acredito que uma reflexão e uma
mo é a consciência existente no momento da morte ou Consciência da
compreensão desta mentalidade que norteia, por exemplo, as práticas
Morte. Entre os dois estados de consciência, ocorre o "Bardo" ou estado
budistas, podem ser extremamente válidas, para que possamos rever al-
intermediário dividido em três estágios chamados de "Chikhai", "Chonyd"
guns dos nossos postulados em relação a morte, inclusive a possibilidade
e "Sidpa", são 49 dias de "Bardo", o quadrado do número 7 sagrado. Ju ng
de aceitá-la como parte d o desenvolvimento humano, e como forma de
tece um comentário sobre esta obra, que será apresentado no capítulo 7.
preparação para esse momento.
A morte é, portanto, apenas uma iniciação numa outra forma de vida
além daquela cujo fim representa.
Referências Bibliográficas
O m omento da morte deve ser vivido com um grau de consciência focali-
zada sendo usados procedimentos para facilitar isso. A natureza da
Consciência da Morte determina o estado futuro do "comp lexo da alma", ARIES, P. - A história da morte no Ocidente. Rio de Janeiro, Francisco
sendo a i existência uma transformação contínua de um estado de cons- Alves, 1977.
ciência a outro.
EVANS WENTZ, W. Y. (Org.) -BARDO THODOL. O livro tibetano dos
-
As instruções, precisas e detalhadas, mostram como devem estar o reci- mortos. São Paulo, Pensamento, 1960.
tante e o moribundo. E para cada estágio há recomendações claras e
específicas, inclusive para cada dia após a morte. Há uma descrição do MELTZER, D. (ED) DEATH: An anthology of ancient texts, songs,
-
que o sujeito pode estar vendo, quais as tentações, temores e ilusões que pra ye rs a nd sto rie s. San Francisco, North Point Press, 1984.
poderão estar ocorrendo e que instruções devem então ser dadas para
MORIN, E. - O homem e a mo rt e. Lisboa, Publicações Europa-Améri-
facilitar a transição.
ca, 1970.
Como podemos ver, as visões da morte no Ocidente e no Oriente são
absolutamente diversas, com uma série de ritua is que correspondem a SUDNOW, D. - La organización social de la muerte. Buenos Aires,
essas diferentes formas de entender o nascimento e a morte. Se no Oci- Edit. Tiempo Contemporaneo, 1 9 7 1 .
dente a morte é vista como fim, ruptura, fracasso, como interdita, oculta
ZIEGLER, J. - Os vivos e a mo rt e. Rio de Janeiro, Zahar, 1 9 7 7 .
vergonhosa, os rituais corresponderão a esta forma de encarar a morte.
São procedimentos de ocultamento, vergonha, raiva, temor. Na visão
oriental, a morte surge fundamentalmente, como um estado de tr a n sição
e principalmente de evolução, para o qual deve haver um preparo.
Morte no processo do desenvolvimento humano... 49
c. Percebe a morte dos seres queridos, mesmo quando este fato é omitido
Maria Júlia Kovács e negado?
ças não negam a m orte, mas é difícil separá-la da vida, atribuem a fatores vida. Este s dados fazem supor que uma das hipóteses para explicar o
externos a impossibilidade de viver. Não percebem a morte como definiti- comportamento suicida em crianças, é a sua crença de que a morte é
va e irreversível. reversível. Estes autores verificaram uma ligação entre comportamento
suicida e o conceito imaturo de morte. Uma forma de lidar defensiva-
b. Período das operações concretas -As crianças distinguem entre seres mente com ela é considerá-la reversível. A discussão sobre o significado
animados e inanimados, mas não dão resp ostas lógico-categoriais de cau- da morte, das suas dim ensões como a irreversibilidade, deveria ser parte
salidade da morte, buscam aspectos perceptivos como a imobilidade para
i mportante do tratamento de crianças suicidas.
defini-la, mas ela já é perceb ida como irreversível.
O adolescente tem a possibilidade cognitiva de perceber as característi-
c. Período das operações formais -As crianças reconhecem a morte como cas essenciais da morte, como a sua irreversibilidade, universa li dade e
um p rocesso interno, implicando em parada de atividades do corpo. Per- pode dar respostas lógicas formais. Levanta hipóteses e discute esse tema
cebem-na como universal, podendo dar explicações lógico-categoriais e tão complexo. Porém, emocionalmente, pode estar muito distante da
de causalidade. A m orte é definida como parte da vida. Esta relação morte, como discutiremos a seguir.
entre os estágios de desenvolvimento cognitivo e o conceito de morte não
foi observada com tanta clareza. Speece e Brent (1984) verificaram que as A adolescência sempre foi considerada um período do desenvolvimento
relações entre o d esenvolvimento cognitivo e as conceptualizações de com grandes transformações. Algumas muito evidentes, como as mudan-
morte podem ser ambíguas. Entretanto, se não se considerar o desenvol- ças corporais que são iniciadas na puberdade. Segundo Aberastury e
vimento cognitivo como um todo, e sim algumas habilidades específicas, Knobel (1973), as m anifestações que ocorrem na adolescência e, portan-
como a conservação e conceitos de tempo, esta relação parece m ais cla- to, normais neste período, seriam consideradas patológicas em qualquer
ra. Em seus estudos, constatou que a m aioria das crianças de 7 anos já outra etapa do desenvolvimento. Entre estas manifestações ocorrem in-
havia assimilado os principais atributos ligados à morte como, irre- tensas expressões de sentimentos, labilidade emocional e uma exagerada
versibilidade, não-funcionalidade e universalidade. necessidade de auto-afirmação.
Estas pesquisas sobre a aquisição do conceito de morte em crianças são A adolescência é uma fase de transição como qualquer fase do desenvol-
muito importantes, quando se considera a necessidade de falar com elas vimento. E um período de lutos, segundo os autores acima mencionados,
sobre a morte. Neste caso, podem-se usar palavras e experiências que pois o adolescente tem de realizar a perda do seu corpo infantil, da sua
sejam compreendidas pela criança. N ão se trata de evitar o tema e sim, de identidade como criança e precisa elaborar a perd a dos pais infantis. A
trazê-lo para uma dimensão que possa ser assimilada pela criança, de grande tarefa da adolescência é a aquisição da identidade, segundo Erik-
acordo com o seu nível de desenvolvimento. son (1972), quando o indivíduo se define como p essoa. Para realizar esta
definição, o adolescente tem de romper limites e desafiar o mu ndo. É um
Pela carga emocional do tema, a spectos afetivos e em ocionais podem período de grandes aquisições, desde um corpo novo e altamente poten-
interferir na elaboração cognitiva d o conceito de morte. Tal asp ecto foi te, até uma capacidade cognitiva que lhe permite conquistar a ciência,
demonstrado no estudo de Orbach e Glaubm an (1979), que verificaram descobrir e inventar coisas novas, participar da conversa dos adultos com
se a distorção apresentada no conc eito de morte seria devida a limitações idéias e com a possibilidade de discordância, agora pautada em conheci-
cognitivas ou à defesa contra a ansiedade, provocada pelo tema. O bserva- mentos e capacidade de elaboração.
ram que nã o houve relação significante entre o desenvolvimento cognitivo
e o conceito de morte. Crianças suicidas apresentavam ma ior distorção O adolescente tem sonhos e ilusões, ma s bem diferentes dos da infância,
no seu conceito, do que crianças-controle da mesma faixa d e idade e os quais são considerados infantis e bobos. Agora tem sonhos e ideais e
nível cognitivo, e não apresentavam as mesm as distorções no conceito de vai atrás deles. Em muitas sociedades, como aponta Erikson, o adoles
5 5
5 4
cente tem de aprender e pôr em p rática as atividades para subsistência O adolescente está caminh an do para o auge da vida, tem todas as poten-
cialidades corporais e p síquicas, como vimos, e a morte está dist an te
da comunidade. São importantes os ritos iniciáticos da ad olescência,
como possibilidade pessoal. Como se explica, entã o, que o período em
onde o jovem precisa abandonar as suas atividades e objetos infantis,
que o indivíduo está no auge da vida seja também um período de alto
separar-se do lar materno e iniciar-se nas atividades dos adultos. Estes
risco para que ocorram mortes inesperadas. Para se ter um a idéia disso, é
ritos são acompanhados de med o e solidão. Entretanto, em sociedades
na adolescência que ocorre o maior número de suicídios, só superad o,
primitivas observa-se uma nítida divisão entre o período infantil, com
suas características, e a responsabilidade que é incutida ao adolescente, atualmente, entre os idosos.
quando deve entrar na fase adulta. Uma tentativa de explicação é qu e no processo de aqu isição da identida-
Na sociedade ocidental e capitalista, estes ritos de adolescência não são de o adolescente testa e aca ba por extrapolar muito os seus li mites. O
mais tão definidos, ficando caracterizado o início da fase com as mudan- herói não conhece o medo nem a derrota, e se sente medo este é escondi-
ças da puberdade, entretanto o final da adolescência e a entrada no do, mas não é admitido publicamente. O adolescente tem de se manter
mundo adulto estão cada vez mais diluídos, o que torna muito difícil a corajoso diante de todos. Ao fazer estas colocações, estamos traçando
uma caricatura, que de alguma forma traz as características peculiares
confirmação da identidade como pessoa e a definição do seu lugar na
sociedade. deste período.
Referências Bibliográficas
Não tive outro jeito. Fui buscar em mim mesma, no privado de minha
ENVELHECIMENTO E MORTE própria experiência, uma forma de apresentar a pessoa que suavemente
me introduziu na significação do contato com o si-mesmo, na congruênc ia
com a exp eriência interior. E aí encontrei a falta da pessoa e a dor de sua
ausência ainda presente. Mas esse contato, embora doloroso possibilitou
Rachel Léa Rosenberg (IN MEMORIAM)
encontrar um caminho: sua presença no m eu privado permite aceitar o
pedido e o resgate, na intenção de uma apresentação: criar condições
Este capítulo representa a aula que foi dada pela Dra. Rachel Léa para a permanência de um a pessoa, para uma existência que não pode ter
Rosenberg, e como tal será mantida para que se tenh a a íntegra da sua o privilégio de permanecer concretamente ao longo do tempo, como o
forma de ser. tem uma obra de arte. Condição de se ser humano, pessoa e não obra.
representaria o que para ela significava viver, ser e a significância que rio, estabelece a p ossibilidade de ampliação do tema com a simp li cidade
e sabedoria de articular e oferecer todos os recursos p ossíveis para poder
atribuía à experiência humana. transmitir, sem arrogância, um conhecimento e criar um clima para
Finalmente, encontrei um significado por ter sido procurada com a soli- aprendizagem significativa. Artesã primorosa.
citação para uma apresentação de Rachel Rosenberg - significava intro- Por muito ter convivido com ela e conhecê-la, temi que somente a leitura
duzir a pessoa com seus coloridos, a inventora de várias invenções, como do texto pudesse não ser suficientemente expressiva e si gn ificativa para
textos, li vros, serviços, projetos, grupos e principalmente introduzir a su a quem não teve o privilégio de ouvir Rachel. Dessa forma, optei por intro-
própria apresentação na forma de transcrição de uma aula gr avada. Por- duzir-me ao texto transcrito e não ouvir as fitas. Buscava perceber se
que nada m elhor do que participar com ela e assim conhecê-la, do que poderia sentir e reconhecer a Rachel que conheci naquilo que lia. E com
acompanhá-la da m aneira como ela se oferece para ser conhecida, atra- satisfação constatei ser possível encontrá-la em sua fala. C onfirmou-se o
vés de sua espontaneidade, sensibilidade, intelectualidade, especialidade poder da inventora e não da invençã o. O que li era muito mais que um
competente Enfim, acompanhar sua sabedoria de vida para apresentar- texto. A pessoa transparece com seu poder pessoal. Ainda que não fosse
se e apresenta r seu texto através de seu próprio jeito de ser. No que se totalmente possível para mim não "ouvi-la" em sua entonação característi-
segue como texto após esta introdução, há muito m ais do que só idéias. ca, dado nosso grande contato, percebi a vantagem da leitura da transcri-
Há um a pessoa apresentando-se e dando-se a conhecer, enquanto apre- ção de uma fala e não a leitura de um texto diretamente escrito. O que a
senta e discute um tema. Qualquer coisa que dela se possa dizer está princípio poderia ser uma desvantagem (não poder ouvir a gr avação ori-
muito aquém daquilo que ela própria revela de si, do tema, de cada um ginal) aparecia agora como uma vantagem sobre um texto corrido. Uma
de nós. Esta era outra de suas habilidades - como um a romancista mo- transcrição de diálogo como uma aula, desde que mantida a fidedignida-
derna conseguia falar de tudo e de todos ao falar de suas próprias expe- de e a íntegra da apresentação sem cortes, oferecia um a possibilidade de
riências. Eis a Rachel fenomenologicamente artista, que transitava ná sonorização ao texto. Além disso, representaria m uito mais o contexto de
intersubjetividade. Expressando-se, ela comunicava, suavemente a arte vida de Ra chel - o encontro e diálogo entre pessoas e com ela. Dessa
de genuinamente ser, cultivada com cuidado por ela e buscada por todos forma, descobri ser o texto "sonoro", a ponto de poder ser apreendida a
nós. Sua p rópria apresentação revela muito mais. Revela a pessoa cons- tonalidade da voz de Rachel, sua forma de ir articulando sentimentos e
tantemente curiosa, preocupada, atormentada, mas sem pre apaixonada idéias, as quebras de p ensamento e desvios revelando seu processo criati-
pela investigação dos mistérios da existência humana e seu significado vo tão especial e sua m arca registrada. A autenticidade de sua fala é tão
para quem vive essa experiência. pungente que pode ser ouvida por quem a lê.
Sua exp eriência permite o descortinamento de alguém qu e se arriscava a O m ais surpreendente é como ela se de ix a conduzir por um fio de sinto-
comunicar o seu mundo privado e oferecê-lo como matéria-prima pública nia que a leva adiante, bem como, aos seu s ouvintes, leitores, sem contu-
para novas criações de experiências no outro, ou outros que se dispuses- do dirigi-los ou moldá-los a uma perspectiva única. Esplendorosa compe-
sem a ouvi-la. Rachel era naturalmente uma facilitadora de aprendiza- tência e respeito à liberdade e compromisso responsável para com a
gens si gn ificativas, além de professora e pesquisadora. Vai construindo o competência do "outro" respeitável. Nesse sentido, Rachel surge como
tema pela exp eriência pessoal e profissional, revelando uma atitude clíni- uma p essoa com valores bem definidos e determinados.
ca fenomenológica. Propicia o despertar do interesse n o aluno, e cria
Lendo ou ouvindo Ra chel, torna-se fortemente evidente sua sensibilidade
condições para a expressão pessoal dos participantes, t a n to em conteú-
dos específicos quanto em questionamentos teórico-práticos, e experiên- e capacidade comunicativa envolvente, tanto ao ouvinte presente, quanto
cias vividas, com sua forma de ser admiravelmente natural e brilhante ao leitor participante. Ela está sempre oferecendo sua narração recorda-
tiva para aprendizagens recriativas. Se, como aponta Ecléa Bosi (1979), a
intelectualmente. Ela não seleciona nem recorta elementos. 'Pe lo contrá-
63
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memória revive um trabalho realizado com paixão, a memória-trabalho de contro de histórias pessoais e de histórias de trabalho, partilhado por
Rachel revela a fusão de sua atitude diante da vida com a quilo que faz, ao an os, onde experiências se mesclam, mas conduzem adi an te para novos
mesmo tempo que, recordando, "deseja repetir o gesto e ensinar a arte" caminhos de desenvolvimento, quando as pessoas partilham valores e ati-
(Bosi, 1979, p. 399 ) do que para ela representa o atendimento em aconse- tudes que possibi li tam a realização de p rojetos e atividades, como o Ser-
lhamento psicológico ou em psicoterapia, seja em instituições ou em con- viço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP e
sultório, segundo o enfoque centrado na pessoa e na psicologia humanis- o desenvolvimento da Abordagem Centrada na Pessoa no Br a s il, expe-
ta. Nesse sentido, seus gestos públicos e suas ações sempre estiveram riências profissionais, com profundo cunho pessoal, que compartilhei
voltados ao desenvolvimento das pessoas e à criação de situações facilita- com Rachel. Impossível perceber, neste momento e diferenciar o quanto
doras para a sua ocorrência. O consultório, a Universidade, os grupos de são minhas ou dela as nossas aprendizagens e crescimento. Quem, de
trabalho, os encontros de comunidade, as reuniões sociais, tudo o que lhe fato, pertence à memória dos fatos a serem relatados. Numa sinfônica
fosse apresentado era m otivo para indagações, questionamentos. Profis- sintonia de experiências de anos de am izade e trabalho, onde pessoal e
sional clínica, sua pessoa humana era uma pesquisadora incansável que profissional se imbricam, onde valores são partilhados, como diferenciar
explorava a vida e suas circunstâncias como um laboratório para expandir a autoria de pensamentos e sentimentos de significativas presenças au-
sua curiosidade sempre em desenvolvimento. Era uma aprendiz por exce- sentes, que possibilitaram a substância de nossas vidas? É aux iliada pelo
significado de memória-interação que prossigo o relato. São fatos coleti-
lência.
vos, recordados por um indivíduo, conforme impressos em sua subjetivi-
Ocorre-me, agora, que talvez realmente o narrador tenha um papel cultu- dade, que sofre transformações pessoais e outros, resultantes da intera-
ral importante, pois é através d ele que se viabiliza a possibilidade de ção com pessoas ou grupos.
permanência de pessoas, valores, atitudes, memória e tradições, de gestos
públicos, de existências e culturas. A realidade do narrador, segundo Rachel sempre mostrou ser uma imbatível pessoa de risco, aberta a toda
Benjamin (1985) e Régis (1988) é a daquele ser "investido com o poder de e qualquer experiência. Pessoa de risco porque jamais desistiu de nortear
uma voz que a comunidade lhe dá para relatar a evolução de sua aprendi- sua vida pessoal e profissional pelos valores e crenças em que confiava,
zagem" (Régis, 1988, p. 5). Seu papel é "registrar a s vivências dos seus como significantes para sua existência e presentes na existência de todo
contemporâneos para que não caiam no esquecimento, apoiá-los nas suas ser hum an o. Essa vita li dade e disposição se faziam sentir nos mais varia-
necessidades de muda nça, falar pelos que estão emudecidos" (Régis, dos momentos vividos por ela, em sua vida pessoal ou profissional. Ela
1988 , p. 5 ), transmitindo a atualidade dos fatos e a dimensão do vivido e era, se é possível dizer, a pessoa plenamente funcionante como Rogers
viva da história. (1983) apresentava a p essoa vista pela Psicologia Hum an ista e pela Abor-
dagem Centrada na Pessoa. Ao mesmo tempo, criança-adolescente-adul-
Neste momento, permito-me resgatar como uma narradora lapidando ta, insistia em resgatar em cada experiência vivida o prazer da descober-
suas experiências, para registrar o púb lico e algum privado de uma exis- ta, da novidade e revelava, assim, a sabedoria anciã de crescer e aprender
tência emudecida, mas presente na memó ria e por isso recriada. Desejo enquanto envelhecia. Os inúmeros projetos em que se envolveu ou aju-
partilhar um pouco do privado da Rachel, que é meu particular, e de seus dou a criar expressam a abrangência de seus interesses: o grupo de psico-
gestos públicos que através da minha mem ória-interação, pois fruto de logia humanista, a abordagem centrada na pessoa, o Serviço de Aconse-
um trabalho conjunto, podem contribuir e revelar um jeito de permanên- lhamento Psicológico, o grupo de executivos do Centro Empresarial de
cia para essa existência. Afinal é na memória - interação com ouvin- São Paulo, os grupos nas escolas Lourenço Castanho e Vera Cruz, a vinda
tes/narradores - que a lembrança dos velhos se revela e revive o colorido de Rogers e seu grupo em 1977 ao Brasil em Arcozelo - Rio de J a n eiro e
de seus projetos de vida (Bosi, 1979), resgatando o lugar e a p ertença de em São P aulo, a Televisão Cultura de São Pau lo, os grupos de encontro,
seu ser. 0 trabalho de memória-integração descortina um pacto de en- workshops e grupos de comunidad e, o Centro de Desenvolvimento da
Envelhecimento e m o rt e 65
Pessoa no Sedes, os superdotados, os cursos de especialização em A con- constrangimentos, numa relação de ajuda mútua e comunicação verda-
selhamento Psicológico, pioneiros no IPUS P e em outras instituições uni- deira. Foi um momento decisivo e transformador inesquecível.
versitárias, os grupos de espera (sua tese de doutorado), o plantão psico-
É assim que, hoje posso relembrar momentos pessoais meus e movimen-
lógico, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, os cursos avan- tos pessoais de Rachel, deliciosamente por nós partilhados e agora ouvi-
çados de formação de terapeutas na Abordagem Centrada na Pessoa, o dos com um novo significado. Como aquele d ia magnífico de julho, em
Centro de Psicologia da Pessoa no Rio de Janeiro, o Cen tr o de Geronto- Pirassununga, um sol brilhante, mas intenso e frio, quando ela sorridente
logia do Sedes Sapientiae, os I e II Encontros da Abordagem Centrada na e feliz como uma criança marota, comentou comigo quão fascin a n te era a
com Rogers, o Encontro com Ro-
Pessoa, o livro A pessoa como cent ro experiência da águ a escorrendo pelo corpo frio, num banho demorado,
gers, em B rasilia, o Workshop com Rogers na Hungria, os I, II, e III En-
que parecia estar lav a n do até a alma e aq uecendo-a. Desde então, quan-
contros Latino-Americanos na Abordagem Centrada na Pessoa, no Rio, do me sinto extenuada e busco um banho confort an te, fico atentando e
Buenos Aires e S ão Paulo, os I e II Fóruns Internacionais na Abordagem descobrindo as alegrias da água quente a escorrer pelo corpo frio. É
Centrada na Pessoa, no México e na Inglaterra, os grupos de comunidade realmente fascinante e apaixonante.
no Instituto de Psicologia da USP, a P sicologia Transpessoal e Holística, o
Simpósio: Vivência Acadêmica no IPUSP, os Grupos d e Famlia, o Acon- Naquele dia, quando voltava de sua viagem ao Egito, Israel e Grécia,
selhamento Psicológico Centrado na Pessoa, que resultou num livro de num momento antes da reunião com a equipe de trabalho, Rachel co-
uma equipe de trabalhb, o consultório e os clientes. mentava as belezas de Luxor e seus templos, das pirâmides, do Oceano-
gráfico Israelense. Era uma criança deslumbrada, olhos brilhantes, como
Nesta vastidão de atividades empreendidas, contudo, jamais Rachel dei- que revivendo a história dos faraós, nos barcos, através do Nilo. E eu a
xou de pautar-se nos valores mais significativos para ela: a crença e o i maginar no compasso do seu relato, escravos arrastando, dóceis e
profundo respeito pelo ser humano e seu potencial de desenvolvimento. exaustos, pedras para u ma construção interminável e de significado ina-
Sua ex istência foi rigorosamente ética, nesse sentido, e fiel à sua filosofia tingível, mas absolutamente felizes por se saberem particip a n tes no tra-
de vida. Paixão e estética a moviam em direção às pessoas, ao mundo e à balho de um a obra bonita. Eu im aginava, revivendo extasiada a f a n tasia
vida. Onde pudesse aprender e d escobrir ainda mais sobre o fenômeno de 20.000 léguas submarinas e das profundezas aquáticas do Mar Morto
humano, Rachel deixava-se fascinar e punha seu ser em risco, em m ovi- com a descrição de Rachel.
mento. Principalmente, em mom entos íntimos de relação.
Mas, sobretudo, resgatando a impressão da amiga e comp anheira Maria
Pude viver essa experiência intensamente em nosso contato, num grande Luísa Schmidt, que também partilhou desse delicioso relato de Rachel, o
grupo de comunidade de aprendizagem. Ainda indecisa qu an to a certas ponto alto da viagem para Rachel fora o seu passeio pelas ilhas gr egas,
elaborações pessoais, foi a presença significativamente acolhedora e seu encontro e risos com uma amiga brasileira que encontrara por acaso,
compreensiva de Rachel, que me ajudou a conquistar uma das transfor- tão longe. Em especial, foi a indescritível transmissão de um m omento de
mações mais import a n tes de m inha vida, tanto no plano pessoal quanto prazer, paz, beleza, pa ix ão e liberdade, quando ela, Rac hel, solitária esta-
profissional. Numa analogia muito carinhosa, posso dizer que Rachel va sentada no terraço de um bar, que ficava no alto de uma escarpa e que
participou facilitadoramente para um renascimento. E dolorosamente acabava no mar Egeu, tomando uma cerveja; e então, olhando o azul das
bom poder, neste momento, reconhecer o gr ande privilégio que tive por águas onde brilhava um sol magnífico, quis perpetuar a possibilidade da-
ela estar por perto e eu dispor-me a ouvi-la como nunca antes havia quele cenário deslumbrante e perguntou-se "É p reciso voltar? Nã o pode-
feito, apesar da longa convivência. E com o ela partilhou comigo também ria ficar aqui? O que de fato me impede de ficar?" Foi uma sensação
incertezas, fantasias e inquietações. Uma surpreendendo a outra sem
única de liberdade, nesse instante, que ela ex perimentou como num vôo
66
Morte e desenvolvimento humano Envelhecimento e morte 67
rasante. E como essa emoção evocada tã o pura se descortinou que fez tadora de processos de criação, pois ao ser, expressava o qu an to perten-
eco em todos nós, ouvintes co-participantes do seu relato! cia e permitia a ocorrência desse mesmo processo nos que se dispunham
a estar com ela e ouvi-la.
Essas memórias resgatam os valores priorizados por Rachel - beleza, pai-
xão, despreendimento, li berdade para emoções e experiências consigo Infelizmente, nem todos no Instituto de Psicologia da USP dispuseram-se
própria e com a natureza, a cultura e a história. Esses mesmos valores a participar com ela e crescer nos oferecimentos que ela propiciava nas
nortearam sua conduta política. Rachel era uma pessoa engajada e com- atividades de aprendizagem em comunidade. "Apesar d e tudo, ainda se
promissada com questões de justiça e processo social, por ideais de po- encontram algumas flores tênues por esta avenida", diria Rachel em mo-
der pessoal e ação responsável no mundo. Era uma revolucionária e bata- mento de desapontamento esperançoso. Indubitavelmente correto, já que
lhadora por modificações mais justas para o ser hum ano Rachel lutava individualmente muitos se privilegiaram de contatos com ela e sempre se
contra situações opressoras às liberdades do indivíduo e da sociedade. recordam dela com respeito, admiração, carinho e gratidão, marcados
significativamente que foram pelos momentos de encontro. Rachel, a
Envolvida como era em sua vida pessoal com valores como paixão, bele-
dama inglesa, como alguns a representavam pelo porte, postura, austeri-
za, liberdade, era com esses mesmos valores que envolvia sua relação
profissional-pessoal conosco, no Serviço de Aconselhamento Psicológico. dade e finesse. Mas, na realidade, a lady belga que cedo emigrou e como
tradutora iniciou seus primeiros passos p rofissionais, depois de ter tenta-
Éramos um g rupo de trabalho com o qual ela mantinha essa mesma rela-
do ser vendedora de uma renomada firma de jóias para estrangeiros.
ção com que vivia a sua vida, baseada em confiança, respeito e amor com
Rachel brilhava e buscava preciosidades. Sem dúvida, uma dama.
envolvimento, como num pacto familiar
Nossa equipe não é simplesmente um grupo de trabalho descaracterizado Com tudo isso e por tudo isso não julgo ser esta a ap resentação de Ra-
em identidade e mantido enquanto grupo somente por necessidades fun- chel. Não posso torná-la mais presente do que a mim ela se apresenta.
cionais. E nessa condição há muito da pessoa Rachel. Suas atitudes au- Assim, só posso introduzi-la. Isto se considerar que introduzi-la significa
tênticas, aceitadoras e compreensivas foram pontuando nosso crescimen- partir de dentro de minha própria experiência no contato com ela, a fim
to como pessoas, separadas e distintas, ao mesmo tempo em que ia nos de conduzir para diante o que se segue - sua própria apresentação em
ajudando a formar a nossa própria identidade, enquanto membros per- presença.
tencentes a um grupo - a equipe do S erviço de Aconselhamento Psicoló-
gico - distinto dos demais grupos de trabalho do IPU SP. Rachel transmi- Ironicamente, o tema abordado no texto inclui a morte. Capítulo presente
tia sua crença e amor a esse nosso espaço/lugar partilhado com tanta apresentando uma de suas últimas aulas. Rachel morreria alguns meses
energia e isso nos ajudava com uma exp eriência única de aprendizagem: depois. Não seria mais uma presença concreta inevitável a presentear
nosso próprio crescimento e desenvolvimento enquanto pessoas e en- (outro significado para praes entare ) as salas e os corredores do IPUSP (e
quanto um grupo com atividades comuns e individua is, pactuando um as casas dos am igos), como foi colocado no fim da apresentação. Contu-
conjunto de valores. Ela, simplesmente, oferecia-se e, com isso, trocas do, permanece como inevitável a presença ausente em cada um de nós
significativas tanto pessoais quanto profissionais, iam ocorrendo, trans- que tivemos o privilégio de conhecê-la ou conviver com sua cativ an te
formando-nos e expandindo nosso empenho e projetos, além de m odifi- pessoa. "Falando em categoria, honrados nos sentimos nós", disseram a
car nossa forma de comunicação. Foi e vem sendo um processo de anos ela os alunos ao término da aula, após seu agradecimento por ter sido
de mudança, com fusões e desmemb ramentos, com rupturas e encontros, convidada para o curso com tantos conferencistas de categoria. E nesta
desencontros e re-encontros. Enfim, um processo de aprendizagem e de situação, diante do pedido para escrever um texto como apresentação de
vida que Rachel e nossa equipe empreendiam. E dessa convivência e Rachel Rosenberg, só me resta parafrasear os alunos - honrada sinto-me
experiência nasceu um livro a seis cabeças e doze mãos. Eis Rachel facili- eu por ter tido a oportunidade de introduzi-la a vocês.
Envelhecimento e mo rt e 69
Eu colocaria o seguinte, para começar, que vida e morte, para mim, não tos individuais da sua vida, têm um grau diferente de medo da morte. A
são duas coisas separadas; elas fazem parte do mesmo processo. A gente gente também tem uma idéia de qu anto mais velho a gente é, mais infeliz
começa a morrer no instante em que nasce. Fal a n do algumas coisas que é, porque a gente vai perden do muita coisa com o envelhecimento. Não
vocês já devem ter ouvido. As células envelhecem e morrem, o tempo tem dúvida, que a gente perle; a gente perde uma série de capacidades
todo, e o processo de pequenas mortes também acontece o tempo todo, físicas, oportunidades sociais, possibilidades de realização de projetos.
na medida em que a gente vai perdendo coisas através da vida. Então, Então a nossa lógica cartesiana diz: "Puxa, então os velhos devem ser
por que a gente fala com tanta angústia do fenômeno da morte? Por que muito infelizes." `t eu estive relendo um capítulo, para a aula de hoje,
a gente pinta a morte como aquela caveira, de modo a assustar mesmo as escrito pelo Carl Rogers (que é a pessoa dentro da psicologia, cujo traba-
criancinhas? Por que as criancinhas se assustam com aquela visão que lho eu sigo mais de perto, pessoalmente) e que n um livro chamado Um
associamos à morte? Eu acho que uma das colocações que a gente pode- jeito de ser , publica um trabalho que ele escreveu aqui no Brasil, em 1977 ,
ria fazer e que fa z parte do próprio conceito de vida é refutar a morte
. ,
e que se chama "Crescer ou Envelhecer", fazendo um trocad ilho com a
Quer dizer, é inevitável que se você está vivo, você vai enfrentar a morte, língua inglesa, porque em inglês seria "Growing Older•' (tornar-se mais
embora sejam partes do mesmo processo. velho) e que ele põe "Older Growing" (mais velho crescendo) 2 E nesse
capítulo onde se refere à experiência dele, ele escreve quando tem 75
Quando eu estava fal a n do dessa vida como uma parte do processo que anos e fala da última década de sua vida dos 65 aos 75 anos, como é que
refuta a morte, que faz parte do mesmo processo, eu nem estava falando tem sido a vida dele. E ele conta em vários aspectos com o tem sido a vida
de uma elaboração consciente. Eu estava falando de um a coisa mais
afetiva, a vida de produção intelectual, a vida de trabalho, de amizades e
cósmica, muito mais primitiva, que você vai encontrar na própria célula conclui dizendo que esta foi a década mais feliz da vida dele, dos 65 aos
que para se a firmar viva, precisa refutar a m orte, seria mais ou menos 75. E tem uma -sem elhança com a terceira década da vida dele, quando
por aí. E esse conceito de morte poderia ser retomado no seguinte nível, estava na Universidade de Chicago, onde eles fizeram uma série de traba-
quando você como indíviduo morre, isso não significa necessariamente
lhos muito interessantes, mas onde ele vivia também muito angustiado e
morte dentro do cosmos, dentro do un iverso. Você se transforma, assim
sentia que essa época tinha sido não só muito produtiva, em termos do
como a célula se tran sforma, e mesmo assim você continua vivo; o fato
que ele põe para fora, mas muito rica em termos de aprendizagem e
de você se transformar não significa m orte no nível da natureza, significa
crescimento, que é justamen te o que ele descreve. E ele mesm o coloca
morte no nível da sua individualidade. En tão, nesse sentido é que, em-
que ele é uma pessoa privilegiada, não pode generalizar essa exp eriência
.
bora a m orte seja inevitável, nós não caminhamos p ara ela calmamente,
dele dizendo que todas as pessoas, nessa década, têm o seu momento
porque isso significaria negar a vida. Então é quase uma impossibilida-
mais feliz da vida. Ele se sente muito privilegiado por isso. Mas quando
de, você realmente aceitar a morte tranqüilamente, a não ser através de
ele termina o capítulo, eu me lembro que (e eu conheço m uitas pessoas
uma elaboração.
com 75 , 85 que poderiam dizer uma coisa semelhante) é muito diferente
O que acontece com o envelhecimento? A gente tem um a expectativa de do que nós geralmente pensamos da velhice, e que também é muito dife-
que as pessoas quanto m ais velhas, mais medo vão ter da morte. A m inha rente, do que, em geral, nós vemos da velhice. A maior parte dos nossos
;experiência e das outras pessoas mostram que não é assim. Nosso medo velhos estão relegados a um segundo plano, dentro da sociedade que os
da morte não caminha linearmente com a nossa idade. A probabi li dade persegue, os discrimina.
da morte, sim, é mu ito mais provável se você tem 70 anos e morrer do
Vocês já experimentaram ver o que acontece com alguém com 50 anos,
que se você tem 20; a probabilidade estatística da morte aum enta; mas
que quer procurar um emp rego? Vocês sabem que na USP não se pode
não o medo da morte. Pessoas com 20 anos podem ter muito mais medo
da morte do que p essoas de 70. E p essoas individualmente, em momen- 20 título atual é C re scer envelhecendo ou envelhecer crescendo.
72 Morte e desenvolvimento humano Envelhecimento e morte 73
entrar com mais d e 55 a n os? Vocês acreditam que uma pessoa com 55 go de infância que também está viúvo, e com quem ela está namor an do. A
an os produz mais intelectualmente? Ou academicamente? Então, real- família fica irritadíssima, vocês querem coisa m ais convencional do que
mente é uma camada da sociedade que está saindo por aí, agora, com ela reencontrar um amigo de infância, que tem a idade dela e está viúvo
movimentos pró-idosos, leis, sociedades de gerontologia, etc., para defen- também! Vocês conhecem alguma coisa mais certinha?! A família está
der seus direitos, porque tem sido muito relegada.
i mp li c an do, acha ridículo ela estar saindo para j a n tar fora com ele, quan-
do ela diz que não quer casar, quer ver se dá certo, se combina, a família
Mas mesmo que em nível estatal, ou social, essas pessoas ma is velhas
acha que ela não está na idade d e fazer esse papel. Estou mostrando
possam ser mais bem aceitas, a verdade é que a maioria delas é vista
como esses preconceitos estão arraigados em nós. Como a gente acaba
como muito diminuída na sua capacida de ou no seu potencial. E o que
acaba acontecendo é que o próp rio velho acaba se vendo assim. Eu que- achando certas essas coisas, porque elas nos foram ensinad a s dessa ma-
ria perguntar algo para vocês. Pensem um pouquinho se vocês têm na neira. Existe um livro da Simone de Beauvoir chamado A velhice, se a
família, ou se vocês conhecem alguém com, entre 65 e 75 anos, e que tem gente tiver uma tendência suicida ela ajuda, não dá vontade de virar ve-
um com portamento inadequado para a sua idade. Quantos de vocês co- lho. Ela mostra com a luz mais cru a, o que pode ser o estado de idade
nhecem pessoas que reclamam porque a m ãe mais velha, ou um tio, tia av an çada dentro de nossa socidade; qu e isso não é biológico, não é nec es-
ou avô, está se comportando de uma maneira ridícula, querendo namorar, sariamente assim.
querendo sair para dançar, querendo se vestir de determinada m a n eira,
querendo participar da conversa dos jovens. Nenhum de vocês têm essa Eu poderia argumentar mostrando como é que tem sido, pelo menos até
experiência de conhecer alguém assim? Vocês nunca viram isso? De qu e recentemente, o tratamento de velhos nas sociedades orientais, ou nas
não fica bem para uma pessoa, a partir de uma certa idade apresentar sociedades primitivas. Vocês viram A Balada de Narayama? Neste filme
determinados comportamentos. Como se não ficasse bem para a pessoa, se aponta que coisa cruel é m a n dar os velhos irem embora para morre-
não propriamente o comportamento, que nã o ficasse bem o desejo que rem. Mas existe todo um respeito, toda uma forma de terminar que é
ela tem de p articipar de determinado tipo de atividade. Bem, esse tipo de considerada natural; é uma volta à natureza, existe todo um respeito pelo
discriminação é o que eu chamo de uma das pequenas m ortes do velho, conhecimento, pela sabedoria, pela capacidade daquele velho. E em so-
na medida em que ele é enterrado vivo, nesse sentido recusam-lhe essa ciedades primitivas é assim também. Então, isso mostra que não foi sem-
possibilidade. pre assim; o que houve foi uma mudança muito gr an de dentro de nossa
sociedade. Estou falando mais da velhice do que da m orte. O que perce-
Você acaba achando adequado ou inadequado aquilo que é determinado bo é que existem determinantes sócio-econômicos fortíssimos para mudar
pela cultura, como, por exemplo, um casamento entre uma pessoa com 40 a nossa visão filosófica, política e humana das p essoas. Até o fim do sécu-
anos e uma de 2 0, na nossa sociedade, ainda é aceito, se o homem é de 40 lo passado, até a Revolução Industrial, pelo menos, e até hoje, em lug ares
e a mulher de 20, mas se a mulher é de 40 e o homem de 20, então é como o interior do Brasil, o poder econômico era detido e mantido pelo
inadequado. Isso não tem razão nenhuma, então quando você diz que é mais velho da família no sistema patriarcal, qu er dizer, a pessoa era dona
adequado, culturalmente, eu coloco que isso é uma imposição e uma res- daquela terra, era dona do poder econômico da família e os filhos traba-
trição na liberdade do ser humano. Dele, por exemplo, se ligar numa lhavam para ou com o seu pai, e a partir da morte deste é que eles
outra pessoa que pode se ligar a ele, sem receber a sanção do que é adquiriam este status. Então o pai tinha de ser muito respeitado. Também
adequado ou não. Acho que um a segunda coisa que eu teria para colocar os políticos só alc an çavam algum poder dentro do governo a partir de
aí é o seguinte. Uma cliente minha de 63 anos, cujo marido morreu há uma certa idade. Vocês olham para aquelas figuras de senadores e de
alguns anos e ela é uma senhora adequada, toda certinha, num sentido ministros do século passado; eram todos homens de 50, 60 para cima, que
bem convencional, usa umas roupas certinhas. Ela reencontrou um ami- na época eram inclusive mais velhos do que hoje.
7 4 Mo rt e e desenvolvimento humano
esse conceito físico também é discutível. O conceito de velhice muda de
A nossa m édia de idade subiu, enquanto que temos hoje toda uma civili-
acordo com uma série de condições.
zação quase só de jovens, existe o culto à juventude. Um exemplo, que eu
repito sempre (quem já ouviu que me perdoe, mas eu acho característi- Então, a relação com a morte também muda segundo um a série da fato-
co). Vocês já viram algum anúncio com um velhinho sentado numa cadei- res. O que resumiria as coisas, que eu percebo atualmente, seria uma
ra de balanço fumando o seu cigarrinho? E há quem fum e o seu cigarri- frase mais ou menos assim: qu an to melhor você vive, menos você teme a
nho com mais prazer do que o velhinho, depois do café? Vocês já viram morte. Isso para o velho fica mais c laro ainda. Qu an to mais satisfatória a
um anúncio deste? Não!! Quem é que fuma Marlboro, gente? E aliás se sua vida, menos você se preocupa com a sua morte; menos você teme a
você fuma Marlboro fica igualzinho. Quem é que usa roupas, quem é que morte. Quanto mais insatisfatória é a sua vida, mais você se agarra a essa
tem poder econômico maior no mundo inteiro? São as pessoas de 40 , 50
vida. O que é um conceito paradoxal, porque você esperaria encontrar,
anos, mas a moda é feita para os de 20 anos. ou você ouve as pessoas falarem de sua depressão. Falar da depressão
dos velhos, porque estão insatisfeitos. Mas na verdade, se for olhar o que
Bem, como é que isso entra dentro da idéia de morte? Por que é que o acontece com essas pessoas, por exemplo, quando estão doentes, ou
velho não se preocupa m uito com a morte? Porque sabemos, estatistica- quando têm uma vida horrível e a gente se pergunta: "Meu Deus, o que é
mente, que a probabilidade de morte é m aior quanto mais velho se fica. que mantém essas pessoas vivas? O que faz com que elas lutem de uma
E você tem que ver quando é que o velho se considera velho. Quantos maneira tão encarniçada para c onservarem esse restinho de vida, tão sem
anos têm as pessoas velhas? Com que idade vem a velhice para vocês? Se
perspectiva, sem gratificação, sem amor?" A gente vê duas coisas: Uma
você perguntar para um grupo de 5 0 anos, eles vão dizer com 60, mas se delas é que quanto mais a pessoa está ligada à sua vida, menos está ligada
você perguntar para um grupo de 60 anos, o resultado vai ser diferente, à sua morte. Roger s estava descrevendo no livro citado como ele continua
vai ser de 70 a n os. Ou seja velho é alguém que tem 10 an os a mais (risos). agora que são 10 anos a mais, ele vai dizer provavelmente que essa déca-
Para a maioria aqui 40 já não está velho? Eu quando tinha 20 anos, acha- da foi melhor que a anterior; e pelo que eu ten ho observado, é mesmo.
va que aos 40 ia me suicidar, porque eu não ia querer viver, devia ser Então quanto mais as pessoas estão com ele, com Maslow e outros que
horrível ter 40, nunca mais mudar nada, estar com tudo certo já na vida, conhecemos, e entre parênteses não precisam ser intelectuais ou de clas-
profissão, família, etc. Não queria continuar a viver depois dos 40. Quan- se média alta, eu conheço gente com esse "pique" que tem condições de
do cheguei aos 40: "Nossa, eu estou superjovem, quando eu tiver 50 vai vida sócio-econômicas, culturais e familiares muito mais reduzidas e tem
ser um desastre." Bom, aos 50 fiz a maior festa de aniversário da minha essa mesma diponibilidade para a vida. Conheço pessoas que têm m ais
vida. Fiquei eufórica de descobrir que ter 50 anos poderia ser superlegal. condições objetivas e que têm muito menos disponibilidade. M as qu a n to
Mas 60, gente, eu ainda não cheguei lá, mas estou achando que 60 vai ser mais a pessoa está ligada à vida, menos ela se importa com o que vai
meio fogo, vou estar bem mais , vai se r um horror! (risos). Então eu acontecer depois; mais ela vive no presente, m ais ela vive intensamente.
acredito nesta coisa, e ao mesmo tempo eu me p ercebo a cada dia, muito
mais velha do que um ano atrás, quer dizer do que ficou para trás. Há um
ano acho que era m uito mais jovem, há três anos podia fazer muitas O outro fator é o fator espiritual. Nós, na psicologia, temos nos ocupado
muito da saúde psicológica do ser humano. Nas últimas décadas, temos
outras coisas que hoje eu não posso fazer, já não me sinto bem fazendo.
dado mais atenção ao ser hum ano como um todo, incluindo o orgânico,
recusando um pouco mais essa dicotomia artificial do que é psicológico,
Então a velhice não é essencialmente um _conceito cronológico. Você
pode dizer que a partir dos 60 anos, as pessoas estão velhas. Você pode do que é biológico, quer dizer juntamos essas duas coisas como partes de
dizer que fisicamente uma pessoa decai aos 60, mas eu conheço pesso a s
um m esmo processo. E mais recentemente, dentro da psicologia huma-
de 80 anos que têm uma vitalidade, uma saúde, quer dizer, uma saúd e nista, a partir da psicologia e xi stencial, e mais recentemente da p sicologia
transpessoal, nós temos nos dado conta de que as dimen sões hum an as
muito melhor do que a maioria das pessoas de 50 que conheço. Então
76 Mo rt e e desenvolvimento humano Envelhecimento e morte 77
precisam incluir a dimensão espiritual . , Não necessariamente uma dimen- do ser humano reconhecer-se dentro do universo, encon tr ar uma explica-
são re li giosa, vejam bem , ou partidária, mas uma exp li cação para o ser ção para a sua própria existência.
hum an o, a que ele veio: o que está fazendo aqui neste Universo? Quer
dizer uma necessidade de se perceber pertencente a algo mais amplo do Vocês têm ouvido falar de um sistema de terapia, chamado de logotera-
que o simples cotidi a n o. Qu a n to mais satisfatória for a resposta que o pia, de Vitor Frankl. É um psiquiatra austríaco que desenvolveu um siste-
indivíduo tem a essa busca espiritual que ele vai desenvolvendo, mais ma de psicoterapia na década de 40 ou 50. Ele já era um psiquiatra
tranqüilamente ele enfrenta a morte. Nós sabemos, evidentemente, que e xi stencial famoso, mas a logoterapia foi algo que ele desenvolveu depois
quem acredita numa vida depois da morte, aceita essa morte ma is facil- da Segunda Guerra Mundial, propondo que a busca do Homem é a bus-
mente, mas que também não é necessariamente esta a saída. Não é ver- ca de um sentido para a sua vida. Em vez de falar de neuroses, de sub-
dade que todas as pessoas que acreditam numa vida após a morte, acei- consciente, de patologia, Frankl diz que todas as neuroses podem ser
tam a m orte facilmente, embora tendam a aceitar mais facilmente. Tam- vistas como decorrentes de uma falta de percepção de um sentido, de um
bém não é verdade que só as pessoas que acreditam numa vida após a significado para a vida do indivíduo. E é muito interess an te verificar que
morte, aceitem bem o fenômeno da morte. todos esses cientistas, Freud inclusive, desenvolveram suas teorias, não
em cima de uma mesa com lápis e papel, mas a partir de sua própria
Deixa eu voltar um pouquinho para trás. Cada um de nós tem tarefas de vivência, a p artir das buscas que eles próprios empreenderam dentro da
desenvolvimento. É u m conceito mu ito conhecido den tr o da psicologia, um sua existência. E Fra nkl não é exceção. Ele desenvolveu essa teoria, a
conceito da década de 40 e 50, de que qualquer que seja a cultura a que partir das suas próprias experiências num campo de concentração, onde
pertença o indivíduo, qualquer qu e seja o sistema de valores, ou de idios- ele sobreviveu, embora tenha perdido a sua família, ele p rocurou como
sincrasias, ou de traços individuais, cada um de nós tem de passar por uma médico ajudar aos pa res dentro do campo de concentração. Ele ficou
seqüência de tarefas de desenvolvimento. Não é uma tarefa dos 15 an os ter muito impressionado tentando descobrir porque é que algumas pessoas
filhos, mas é dos 20 ou 30 , um pouco an tes ou depois. É uma tarefa do sobreviviam e outras não. Porque algumas pessoas se ab an donavam intei-
desenvolvimento você procriar, como é uma tarefa do desenvolvimento a n ramente dentro daquelas circunstâncias extremas de desesperança, diga-
tr e 1 e 2 an os, ou adquirir habi lidades sociais entre os 5 e 6 an os . mos, do que é vida hum an a, e outras pessoas conseguiam encon tr ar uma
Mesmo que as faixas cronológicas sejam amplas, e e xi sta uma medi a n a, força dentro de si mesmas, embora também absolutamente esquecidas do
existe uma época mais comum . Essas são as tarefas que um indivíduo bem resto do mundo, sem nome, só com um número e sem nenhum a razão
ajustado ao social deve executar. Se você não cu mprir essas tarefas, por aparente para viver e conseguiam se manter. E ele percebeu que todas as
exemplo não aprender uma linguagem comum ao gru po no qual você vive, pessoas que se mantinham, acreditavam em alguma c oisa além de si mes-
você vai ter problemas. Não é uma tarefa do desenvolvimento, aos 60 an o s, mas, acreditavam que a sua vida tinha sentido, mesmo que ninguém mais
você pensar em encon tr ar um companheiro e ter filhos, ou mesmo c ri ar soubesse que elas estavam vivas. E a partir desses estudos ele desenvol-
uma família (não estou nem falando da coisa biológica). Não é comum você veu a Logoterapia, ela foi um marco nessa neutralidade do psicólogo em
esperar, aos 60 anos, que uma pessoa se junte pela primeira vez, arr an je um relação ao valor espiritual da vida, onde a gente aprendia que não temos
parceiro e adote uma porção de filhinhos M a s é comum que se faça en tr e nada a ver com isso e quando o paciente que nós atendíamos se preocu-
os 20, 30 ou 40 a n os. O que estamos p ercebendo hoje é que a psicologia pava: "Afinal qual é o sentido da vida?", o psicólogo dizia: "Isso você não
não está cumprindo uma d as s u as taref as de desenvolvimento, que é cuidar trata aqui, você vai procurar um padre, um filósofo, mas isto não é um
da dimensão espi ri tual. A psicologia tem dito: "Olha, tudo o que é espiri- assunto para cá." Era esta proposta da psicologia que Frankl reverteu.
tual, não tem a ver com p sicologia; são valores filosóficos, teosóficos, reli-
giosos e a psicologia não se mete com isto." Percebemos que é bobagem Esta busca de um sentido para a vida é uma busca que se torna privilegia-
porque é uma dimensão humana com o outra qualquer. É uma necessidade da a partir de um a determinada fase da vida, que é essa que a gente
7 8 Morte e desenvolvimento humano Envelhecimento e mo rt e 79
e tinha uma orquestra tocando músicas das décadas de 40, 50, e g ente psicoterapia. A mãe não deixava ela sair sozinha a não ser para a psicotera-
dançando. Estava apinhado de gente dançando. Eu era a mais caçulinha, a pia. Então, eu sempre tive essa curiosidade de saber o que realmente a
não ser o pessoal do SESC que é jovem mesmo. O pessoal tinha mais de 70, psicoterapia faz. E atender p essoas de mais idade é "barra", nesse sentido, é
animadíssimo, danç an do. No dia seguinte o papo da Marta Suplicy foi so- uma situação de laboratório, porque não acontece nada na vida dessas
bre sexo, com essas pessoas. Estou contando isso para mostrar como todos pessoas a não ser na psicoterapia. Você atende pessoas que levam aquela
nós, e eu me incluo aí, temos uma percepção de velhos, que nos foi passa- vida de rotina, que estão com tudo parado, que estão profundamente depri-
da, do velho como mu ito diferente da gente. Como se a gente, de repente, midas, angustiadas, desinteressadas da vida. E é impression a n te, pelo fato
mudasse m uito; como se o velho não tivesse desejo, malícia, não tivesse de elas terem uma única p essoa no mundo que possa ouvi-las como pessoas
medo de rejeição, insegurança, só porque envelheceu. Então no B rasil essas capazes de crescer, de pensar, de querer alguma coisa. Pode trazer uma
pessoas pertencem a classe média e média baixa, não tinha muita gente de possibilidade de mudança. A possibilidade de reassumirem o poder sobre
classe média alta e alta. O SESC é mais fr eqüentado pelos comerciários e si, a coragem de enfrentar. E fica muito claro que, na terapia, essas pessoas
pelas suas familias. Pessoas animadíssimas e cheias de projetos de vida, começam fal an do muito na morte, na aproximação da morte, começam fre-
muito interessadas. Esse papo começou e foi parar numa coisa muito mais qüentemente dizendo que não vale à pena, que o negócio é esperar a m orte
espiri tual. É aí que eu vejo a possibi li dade dos psicólogos mudarem em mesmo, porque a velhice é a sala de espera da morte. Muito medo, não da'
relação ao atendimento aos idosos. morte, mas de doenças muito prolongadas, com muito sof ri mento. Embora
eu tenha dito que essas pessoas se agarram muito à vida, agora estou falan-
Maslow foi um dos fundadores da terceira força em psicologia, que reu- do do discurso delas. O discurso é: "É isso mesmo, eu estou aqui pa ra
niu um gr upo de psicólogos que achavam que a psicologia não era de um morrer", mas não faz muito para m orrer. "Eu vou me suicidar", mas não se
lado a psicanálise e do outro lado, o behaviorismo, que traziam de volta a suicida, ou o faz, sem querer, como forma de cham ar a atenção, e acaba
concepção do homem como um ser livre e responsável. A psicologia po- morrendo. O suicídio do velho, algum a s pesquisas mos tr am, é uma tentativa
dia parar de se dirigir para as instituições, para adeq uar o homem ao seu de não ser be m-sucedido, é um g ri to de desespero muito gran de. E na
social, ela poderia parar de se preocupar com a produção do aluno ou do terapia o que se verifica é que as pesso as têm menos medo da morte, à
operário, e voltar-se mais p ara aquilo que o próprio homem sente ou medida que vão retom an do a sua própria vida.
quer. Maslow tem alguns li vros traduzidos para o português que são mui-
to interessantes. Aó morrer, com 80 anos, fez um pronunciamento de Na literatura se vai encontrar uma série de propost a s de trabalho com ido-
que, até o último momento d a vida dele, estava aprendendo. É a minha so. Cada idoso é uma pessoa. Qu a n do você fala de pessoas mais velhas,
experiência que me diz isso. Que todos nós somos capazes de mud ar e pode estar falando de pessoas de 55 ou 60 anos, que estão em profunda
aprender enquanto estamos vivos. Não só isso, mas também que temos depressão, porque não sabem o que fazer com a sua a posentadoria que
uma tendência, em nós, p ara buscar essa mundança. tanto desejaram, e agora estão aí, sem projeto de vida. Ou você pode estar
Eu gosto muito de atender p essoas de idade, e meu interesse de pesqu isa falando de uma pessoa de 85 anos, que já está com arterioesclerose ou tem
uma dificuldade física muito gr ande. São dois c as os completamente dife-
é g r ande. Porque a gente como psicoterapeuta tem muitos questionamen-
rentes. Existem fórmulas específicas de terapia para p essoas que perderam
tos do tipo: "Bom, as pessoas estão mud a n do, mas será que as pessoas
certas capacidades. São terapias que trabalham especificamente com o
não mudariam fora da psicoterapia, também?"
fazer lembrar, com a recuperação ou manutenção de certas capacidades.
Eu tinha um professor que costumava contar que uma adolescente insistia Mas estou falando de terap ia existencial, no sentido de que a própria pes-
em vir ao consultó ri o dele e ele não Via nenhum pro gr esso nela, m as a mãe soa está se sentindo infeliz por alguma razão. Muitas vezes, o qu e se traba-
dizia que ela vinha sempre tão m otivada. Até que ele descobriu que era o lha é o seguinte: o velho não é preparado para envelhecer, e envelhece
único jeito dela se encon tr ar com o namorado, era quando ela vinha n a dentro de uma sociedade que não lhe dá a menor condição. Por isso que o
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tr abalho do SESC é tão importante, tr abalha com o preparo do envelhecer. isso, não sabe. Está se sentindo inútil. E quem é que vai trabalhar com esse
Muitas vezes, a pessoa não sa be o que fazer com ela mesma, não basta dar sentimento de inutilidade? A pessoa p recisa de psicoterapia, porque a sua
a informação. Não basta você dizer: "Olha, tem t a n ta coisa que você pode vida não está satisfatória. Em geral, as pessoas que vêm para a psicoterapia
fazer, ou que gostaria de fazer. " Você pode fazer uma orientação vocacio- tr azem coisas muito antigas, que não foram resolvidas até agora, que foram
nal, mas não só com a informação, não adi an ta dizer a uma pessoa que está tr azendo, capeng an do pela vida afora, porque tinham mesmo de cuidar das
profundamente angustiada, isolada do contato com o mundo, que há pro- crianças ou tinham de tr abalhar. E naquele temp o, a gente tinha amigos e.
gramas interess an tes no SESC, teatro, curso de redação, marcenaria, assim esperança de que as coisas iam mudar, agora está um desastre.
por di a n te. Ela não tem ânimo de se di ri gir ao SESC. Ela diz: "Deus me
li vre, fazer coisas com velhos, não gosto de velhos. " Esta é a primeira Antes de vir para cá atendi um a pessoa que está perto dos 60 a n os, com
um casamento que sempre foi ruim, com dificuldades muito gr a n des com
gr an de objeção. Então você trabalha isto, a pessoa está p erdida, sem saber
o que fazer com esta liberdade, com a aposentadoria forçada. Uma mulher os filhos, embora sempre tivesse cuidado deles. Nunca teve profissão, não
que só aprendeu na vida a cuidar da casa, dos filhos, quando eles saem de sabe trabalhar, não sabe o que fazer. Quer um rom an ce, quer amigos,
casa, não sabe o que fazer com a vida dela. E se esta mu lher é casada com uma ocupação, dinheiro. E não é que não tenha estas coisas, mas não
um homem q ue ela acostumou a ver só no j a n tar ou no café da manhã, no está nem um pouco satisfeita com a vida atual. Então eu traba lho com
sábado e no domingo. De repente, ele fica em casa o dia inteiro, eles não essa pessoa, como trabalharia com qualquer pessoa em qualquer idade. E
estão preparados para conviver 24 horas por dia, eles têm de fazer um nova uma série de coisas, que eu tenho o prazer de dizer a vocês, que ela já
aliança, ou então, passar o tempo tão incomodados com essa nova c oisa. conseguiu um emprego, está trabalhando, melhorando um pouco a rela-
Mudanças são difíceis, mesmo as que são para melhor. Quando se tem ção com o marido; porque ela está perdendo a idealização, porque criou
alguém que passou a vida inteira com uma pedra no sapato, quando você um romance com esse marido, mas o romance não existe. Essa é uma
tira essa pedra, ele não sabe como andar. Qu an do você tem alguém que forma de trabalhar, não é diferente do que se trabalha com uma c liente
passou a vida inteira se preparando para lidar com dificuldades econômi- de 30 anos. O que é diferente é o mundo com o qual essa cliente se
depara; as escolhas que tem para fazer pertencem a um universo diferen-
cas, isto é muito comum; um casal que lutou muito para criar os filhos,
nunca teve nenhum conforto e agora os filhos estão criados, foram para a te. As pessoas desta fa ix a de idade, em geral, têm um péssimo relaciona-
faculdade. Estes são bem-sucedidos e dão aos pais uma possibilidade de mento com os próprios pais. Têm dificuldade muito grande, não de en-
frentar a própria morte, mas a morte dos pais. Têm uma dificuldade mui-
vida econômica, que eles nunca tiveram a n tes. Os pais não sabem ap rovei-
tar, e não gostam que os filhos os sustentem, não sabem como gastar di- to grande de enfrentar o envelhecimento com a morte, como um fenôme-
nheiro, acham que é pecado. Não gostam de ter uma empregada, porque no em si. Não estou falando da pessoa de 85 anos que está morrendo, e
sim da pessoa de 60 ou 65 anos, que se relaciona mal com a m orte da
não sa be m o que fazer do seu dia. São pessoas que teriam de se adaptar à
nova realidade, e não existe nada dentro do social que as ajude nessa adap- pessoa de 85. Quer dizer, a coisa em si não é tão ruim qu an to a sensação
tação. Deveria haver aconselhamento, orientação ou programas para as de morte da outra pessoa.
pessoas poderem se adap tar a uma nova realidade. Isso não é necessaria-
mente um atendimento psicoterápico. Porque não é uma coisa errada da Dentro da á rea da gerontologia a gente trabalha com os jovens hoje, mas
pessoa, ela realmente não recebeu condições para isto, precisa de ajuda. muito mais tentando fazê-los pensar nos velhos, melhorando a relação
Uma ajuda do próprio Estado, da sociedade, que oferecesse uma com- com eles. Esta seria uma forma de se preparar para a própria velhice.
preensão maior de que não é verdade que quando a pessoa vai parar de Não digo pegar um grupo como esse aqui e trabalhar a velhice de vocês
tr abalhar, será necessa ri amente feliz. Ouve-se: "Mas o que mais você quer, porque é uma coisa tão distante. Então em termos de trabalho em rela-
mãe. Eu te dei uma máquina de lavar louça, uma empregada e um motoris- ção à terceira idade, são trabalhos que se fazem com pessoas a partir dos
ta. Por que não vai ao cinema, ou visitar suas am igas " Mas ela nunca fez
9 35, 40 anos, mais ou menos. Como é que é ter 35 anos e seus filhos
Envelhecimento e morte 85
84
começarem a ficar adultos, independentes. Como é você chegar aos 4 0 e Outras situações são tão concretas que não dá para m udar. Se uma pes-
descobrir que realmente não vai ser promovido a presidente da compa- soa diz: "A minha aposentadoria é de 400 cruzados por mês e eu não
tenho onde morar e nã o conheço ninguém, não posso caminhar porque
nhia, e que o máximo que você vai conseguir é um ca rgo de supervisor.
tenho a doença tal." E se ela me disser: "Será que a g ente conversando eu
Como é que é ter medo de como vai estar na aposentadoria, ganhando vou ganhar mais, ou andar?" Eu vou dizer: "Acredito que não, m as pode
pouco. Então cada vez você vai trabalh an do com uma faixa. Uma coisa
ser que a gente conversando, você descubra algo novo para você."
interessante que se nota quando se trab alha com a psicologia existencial,
o contato de pessoas jovens com pessoas idosas, é melhor do que o
Ta lve z p or ca us a d e m inh a lin ha de tr abalho, com minha experiência com
contato de pessoas de m eia-idade com velhos. O que é difícil, é o conta-
pessoas de idade, é um espanto a vastidão de recursos que as pessoas têm
to com a g eração seguinte, os pais com os filhos. O contato entre avós e
para melhorar a vida delas. Há pessoas que eu recebo, que me pergunto:
netos é ótimo. Os netos não são ameaçados pela velhice. Por isso a gente " Mas o que esta pessoa vai poder fazer por si mesma, o que vai p oder
não trabalha com jovens, a velhice. A gente pode trabalhar a relação
mudar nesta situação?" Eu sempre fico espantada qu a n to as pessoas são
entre esses jovens e os mais velhos, para ir m udando essa situação social,
capazes de mudar a situação, não só com velhos, mas muito com eles, por-
o preconceito. Numa civilização onde você põe um degrau mu ito alto,
que se pensa que não são capazes de mudar. M uito recentemente atendi
está negando ao velho a possibilidade dele se locomover, porque não
um caso muito bonitinho, um homem de 55 a n os, mas que parecia ter 75,
consegue subir no ônibus. embora fisicamente estivesse bem conservado, sem ca belos br a n cos. Era
Existe outro estereótipo de velho, o velho sábio, o velho que não tem uma pessoa que nunca tinha casado, m uito problemático. Já tinha feito vá-
mais desejos, que está pronto para a m orte, ele aceita tudo muito bem.
rias terapias e parou. Morava com uma irmã, também solteira, e a única
coisa que ele fazia era ir para a igreja. Era funcionário púb lico, que ia para
Este é outro mito não confirmado.
o seu trabalho e não tinha nenhuma esperança, nenhuma expectativa na
vida. E ele vinha muito desesperado como um a última tentativa e aí a gente
As pessoas vêm à psicoterapia expontaneamente ou levadas. É mais raro
conversou uma vez por semana durante três meses. Ele tr ocou o aparta-
uma pessoa velha vir sozinha, principalmente no Brasil. É mais freqüente
mento por um m enor, onde mora sozinho e alugou um pedaço da c a s a do
ver americanos, ou europeus mais velhos que procuram aconselhamento. irmão em Ubatuba, onde p a s sa os fins de semana. Conheceu um as pesso as
No caso do brasileiro é uma filha, amiga ou a lguém que propõe. Esta
lá do serviço dele, com quem está saindo. Tem um a senhora com que está
pessoa que falei há pouco veio sozinha, mas a filha sugeriu. Porque o
saindo. Eu fico olhando e não acredito, ele não parece m ais ter 75, parece
próprio velho encampa esta imagem de que não adianta mais para ele,
uns 63, ainda não 55, mas melhorou muito.
quer dizer, acredita que não adianta mais, não que não tenha motivação.
É quase universal que na primeira entrevista surja a questão: "Você acha Não estou querendo dizer de jeito nenhum que sou uma terap euta maravi-
que adianta alguma coisa eu vir aqui? Você acha que em alguma coisa eu lhosa. Tem casos onde a coisa não vai para fr ente. Muito recentemente
posso mudar? Será que não vai me atrapalhar, eu ficar só caraminholan- atendi o c as o de uma m ulher que me interessou muito. É viúva, tem filhos
do , ficar falando com você, porque já chorei tanto hoje, e pensei tantas ótimos que gostam m uito dela, é muito culta, viajou muito pelo mundo, tem
coisas, será que não vai fazer mal?" Quer dizer, há a dúvida de que possa família, amigos. Está numa dep ressão profunda, desde a viuvez e cada vez
mudar. O q ue respondo é algo assim: "Olha, acredito que possa mudar, pior, achando que a vida não tinha nenhum atrativo para ela. Dizia ela:
não posso garantir. Eu proponho que a gente possa fazer uma experiên- "Para que viver? Tá, os fil hos são muito bons, mas não tenho vontade de
cia. Você acha que foi bom conversar hoje? Se você achou que foi bom, a levantar de manhã, não tenho vontade de fazer nada." Atendi-a em novem-
gente experimenta mais uma vez e você vai ver se a coisa aqui funciona, bro do ano passado quando estava indo para os EUA e sabia que o marido
se lhe faz bem; se for, a gente continua." Eu coloco isto porque acredito dela tinha morado lá. Ela tinha mil li vros. Foi a única coisa que a animou,
que a pessoa pode realmente mudar.
86 Envelhecimento e morte 87
pois me mos tr ei interessada em que ela tr ouxesse este mate ri al para mim, está comprometido com uma série de contratos com a vida, e que você
mas aí ela esqueceu de tr azer. Tivemos três ou qua tro sessões, aí ela ligou não pode fazer isto, enqu an to não terminar aqueles contratos.
dizendo que não podia ir na ou tr a sessão, que não tinha condições de sair Volt an do à questão do medo da mo rt e, quero esclarecer um pouco mais,
de casa, que estava em tr atamento psiquiátrico. E não voltou mais. Depois tem pessoas que eu atendo em terapia que estão vivendo muito mal, e se
de alguns meses telefonou que tinha gostado de mim e do papo. Então não sentindo muito mal; estas são as pessoas que mais freqüentemente têm
dá ce rt o com todo mundo. Quer dizer que para cada caso m aravilhoso, eu sonhos com a mo rt e, sensação de sufoco, f a n tasias de ficar preso num túnel,
tenho um péssimo, e uma porção de casos razoáveis. de perder a respiração, de entrar em pânico, ou de serem enterradas vivas.
São pesso as que têm este tipo de medo, e qu a n to mais elas vão se aproxi-
O velho pode mudar muito mais do que o jovem, por que vocês têm
mando del as mesmas, qu a n to mais são capazes de viver a vida delas de uma
amigos, pessoas com quem podem contar, têm esperança, encontram
maneira íntegra, mais estas fant as ias desaparecem. E neste sentido que eu
gente pela vida. A gente tem um tipo de vida onde e xi stem muitos fatores estava falando de preocupação, fobia e medo da morte. Quer dizer, então
terapêuticos na própria vida. Na vida dessas pessoas mais velhas, que vêm amo a vida, não quero m orrer, mas não fico desesperado, não fico passan-
procurar o psicólogo, não estou dizendo todas, mas em algumas e xi ste do a noite me preocup a n do com o medo da mo rt e. E isto tr az a coisa
uma aridez tão grande, um afastamento tão grande. A gente não se apro- paradoxal: qu an to melhor a pessoa vive, mais ela vai ser capaz de enfrentar
xima fisicamente do velho, você abraça e beija gente jovem, pega na mão. o envelhecimento, mais vai ser capaz de enfrentar a m orte.
No velho você encosta no máximo, se for da família você dá beijinhos.
Então a pessoa mais velha tem um a história atual de muito pouco contato Agora se vocês tomarem os e xi stencialistas como Tillich, por exemplo, ele
com outro. Um terapeuta que seja caloroso, ofereça um pouco de calor, fala dessa angústia e xi stencial da morte. Ele diz que a única angústia que
de interesse, torna-se uma presença tão diferente na vida desta pessoa, exi ste é o sentimento de culpa em relação a você mesmo. Esta culpa em
que sacode tudo. Alguém que nunca tomou remédio, se tomar um Lo- relação a você mesmo surge se você não se atu alizar, se não realizar o
rax, bumba, fica a chatado! Alguém que toma soníferos todo dia, vai to- próprio potencial. Quando você tem potencial para crescer, para apren-
mar um Lorax, não faz diferença. E a gente entra como se fosse um der, para viver intensamente, desde que você nasce até que você morra,
e xi ste possibilidade. Quando você não obedece a este potencial, quando
Lorax na vida destas pessoas.
esmaga isto dentro de si, quando permite que atrofie dentro de você
Se você vir uma manchete no jornal de que estrangulei alguém, é que me mesmo, tem um sentimento de culpa m uito grande em relação a você
mesmo e em relação à vida dentro de você. E este sentimento de culpa se
chamaram de tia. A p rimeira vez que chamam a gente de senh or é por-
transforma em angústia, e esta angústia é a angústia de m orte. Qu an do
que se mudou de fa ix a. Você pode criar em qualquer idade, desde que
você está cumprindo todos os seus pa péis, vivendo intensamente, você
possa aproveitar, que você esteja criando novas coisas. Você não fica
pode até morrer. Vocês se lembram da Função do orgasmo, de W. Reich,
zanzando num passado imóvel. Se houver condições para todo mundo
isto é muito semelhante, a sensação do orgasmo e da morte estão m uito
envelhecer, desde que as pessoas soubessem o que poderiam fazer. Quer
associadas. Quer dizer, a expressão do orgasmo, é uma expressão de
dizer, a menina de doze anos sabe que daqui a alguns anos ela vai poder morte. Quando você alcança plenitude, você pode até terminar. É neste
namorar, dançar. Poucos falam que daqui algumas décadas ela vai poder sentido que, quanto mais plen for a vida, não que você deseje a morte,
fazer cursos, vai poder se aposentar aos poucos, vai poder escolher o que mas aceita, porque não está sen roubado de nada.
realmente quer para ela. Porque quando a gente descobre aquilo que a
gente realmente gostaria de fazer, já está preso em uma série de arapu- Existe uma teoria de que o envelhecimento mais ajustado e adequado
cas. Qu an do você descobre o que gostaria de ter feito com 18 a n os, já seria conseguido por pessoas que `estão bem, seria um envelhecimento
está com 30. E com 30 você descobre o que gostaria de estar fazendo e já onde houve um desligamento progrléssivo, do trabalho, você acaba se en-
Envelhecimento e mo rt e 89
Mo rt e e desenvolvimento humano
88
nosso velho tem alguma coisa disso. Os velhos que eu conheço dizem:
volvendo menos, embora vá todos os dias, até o dia que não se importa
pectos da vida. " Deus m e li vre de eu depender dos meus filhos!" Eu não sei o que isto
com o que tem lá Então isto aconteceria com todos os as
tem de tão terrível. Eu não acho esquisito depender d os meus filhos, eles
Vocês percebem que existem velhos que parecem ser m eio indiferentes
dependeram de mim um tempo, se eu tiver de depender um dia, não me
aos bisnetos, uma avó é mu ito ligada aos netos, mas a bisavó não, mesmo
parece terrível. Pode ser qu e no dia que isso ficar mais próximo da reali-
que ela tenha capacidade física para isto. Esta é uma teoria, não é que
dade, também seja terrível para mim. Então eu fico pensando nesse mes-
todos concordam com isto. A teoria de que h averia um esfriamento pre-
mo traço, o velho não quer ser um peso, carga, então ele aceita bem a
paratório da morte, q ue seria este desligamento progressivo, desengaja-
coisa de ir para a floresta. Você percebe que isto é uma coisa absoluta-
mento, não seria um desligamento. Então à medida qu e a pessoa envelhe-
mente cultural, tem filhos que dependem financeiramente dos pais e não
ce, ela vai se preparando para a morte desta m a n eira, de modo a não se sentem nem um pouco dependentes: tem filhos que não dependem
sentir tanto a perda dos objetos de afeto, do trabalho, das pessoas, das
financeiramente dos pais, m as que se sentem inteiramente dependentes.
viagens, de comer, ou qualquer outra coisa. Então ela vai gradativamente
A mesma coisa poderia ser com a velhice, poderia, mas não é assim.
perdendo o interesse, e que isto seria uma medida sábia da natu reza para
fazer com qu e ela possa aceitar a morte dela. Ma s isto é muito discutível,
Agradecimentos e Despedidas
é uma teoria da década de 60, e na década de 70 apareceram uma série
de outros estudos, mostrando que, aparentemente, estas pessoas que se
Júlia: Você colocou completamente, discu tiu e complementou o que tí-
desligavam, raramente faziam isto de u ma m aneira saudável. A m aneira
nhamos discutido na última aula. Lev an tou as questões, preocupações
saudável, volt an do para a questão espiritual, é quando você vai transfor- desta fase, trouxe sua ex periência e o seu trabalho. Muito bom, a Rachel
mando aquele seu mundinho estreito (meus filhos, minha casa, etc.) para
está sempre aqui, ela é professora daqu i.
uma visão mais am pla de mundo e a sua independência destes fatores.
Você vai se relacionando cada vez mais com o mundo como um todo. Rachel: Inevitável
Você vê o R ogers, está menos preocupado com psicoterapia, do que com
a guerra nuclear. Os seus interesses vão se tornando cada vez mais am- Júlia: Inevitável. Acho que a gente pode ter sempre contato com ela,
plos, à medida que você precisa cuidar menos, tem m enos investimento qualquer coisa que precisemos.
próximo. A idéia do desengajamento seria essa, você iria se preparando
para a morte, assumindo interesses cada vez mais amplos. A prática não Rachel: Eu gosto muita da idéia deste curso, e estou gostando de ver. Eu
vi alguns dos conferencistas aí, parecem bárbaros, eu m e senti honrada
mostra muito isso, mostra que as pessoas vão crescendo espiritualmente
de estar no meio deles. Primeiro é bom ver quem são os outros. Quer
e, com isso, é claro, elas vão se desligando um pouq uinho mais. E mu it as
dizer, o convite era honroso em si, mas quando vi a categoria...
vezes esse desligamento tem a ver com pessoas que vã o realmente se
torn a n do apáticas, mas se estivessem sendo mais bem atendidas, esse Aluno: Em relação à categoria, honrados ficamos nós.
desligamento simplesmente não ocorreria.
Rachel: Chave de ouro.
Existe uma série d e estudos sobre o envelhecimento e a morte, dentro
daquela idéia do que acontece quando o velho deixa de ser produtivo, Júlia: Obrigada.
como é que a cultura lida com isso. Èm certas culturas, o velho é muito
bem tratado, só paparicado e cuidado pelos outros. Em outras culturas,
afastado; entre os
como na história da Balada de Narayama, o velho é
esquimós, por ex emplo, é o filho mais velho que leva a mãe ou o pa i até à
beira da fl oresta. E isto é feito com todo um ritual, um cerimonial. Mas o
Reflexões sobre a psicanálise e a morte 91
Proponho-me, neste trabalho, efetuar algumas reflexões sobre a psica- Agora nos defrontamos com um segundo problema: isso não nos dá a
nálise e suas abordagens e teorizações sobre a morte, de uma forma que i mpressão de um certo cinismo comodista? Do tipo: "Eu não julgo, sou
possa ser compreensível, mesmo pelos leitores não familiarizados com neutro, não tenho nada com isso; eu faço o meu trabalho e dane-se o
aquela área do conhecimento. No final do capítulo, indicarei leituras mundo..." Penso que existe uma certa verdade nisso, mas uma verdad e
complementares para aqueles que queiram aprofundar-se no tema. incompleta já é uma mentira. O p sicanalista pode e deve lutar pela
vida, como ser humano e como profissional. Mas a própr ia psicanálise
Antes peço ao leitor que me acompanhe num passeio. Observemos os descobriu que a melhor forma de lutar contra a morte, fortalecendo o
seres human os, as sociedades, e tentemos classificar o que vemos em lado da vida, é evitar juízos de valores, aconselhar, condicionar, educar,
sua passagem pelo mundo. Proponho que, nesta classificação, coloque- ou qualquer outra atitude que n ão seja fazer o indivíduo (e a sociedade,
mos como extremos de uma fa ix a, como num espectro de cores, a em colaboração com outras disciplinas), tomar consciência daquilo que
VIDA e a MORTE. Entre esses dois extremos teremos várias "cores",
Reflexões sobre a psicanálise e a morte 93
lhe é inconsciente - e que, reca lcado, pode sabotar, impedir ou dificul- guns, devendo-se eliminar os outros, até a cham ada "ciência cristã" dos
tar sua vida, sua criatividade, sua felicidade, seja lá o que for felicidade, fundamentalistas americanos e a "ciência" de alguns grupos espíritas. Em
nível menor, todos nós criam os teorias sobre fatos que fogem ao nosso
para cada um . 1
controle - às vezes podem estar até corretas, p ois a intuição existe (esta é
O Terror diante do "Não-saber" outra teoria que, para algu ns, poderá ser considerad a delirante... - veja o
leitor onde fui me meter!), mas comumente são objetos internos que pro-
jet am os em ou tro s.
A psicanálise descobriu que existe uma sobredeterminação em nossas vi-
das, derivada de instâncias inconscientes. Isso provocou um a fe ri da narçí-
Atualmente passamos por um a fase ainda mais incrível: a própria ciência
sica na humanidade, que, de repente, viu-se não mais senhora de seus
atos e comportamento, ferida essa ainda não cicatrizada que leva mu it a s torn a n do-se uma espécie de religião, o cientista (e o leigo) acreditando
que aquilo que se comprovoti cientificamente estará sem pre correto. E
pesso a s a não aceitarem essa área do conhecimento. sabemos que a ciência não é neutra: que por mais rígidas que sejam as
Por outro lado, a tomada de consciência da morte, da finitude do ser técnicas utilizadas pelos cientistas, ocorrerão tr a n sformações na leitura e
interpretação dos resultados. Tanto é que teorias que duraram dezenas de
hum an o, constitui-se em outra ferida, esta ainda mais aterrorizante. Se,
com a p sicanálise, consegue-se compreender algo acerca da dinâmica do anos, são substituídas por outras, se o cientista se permitir duvidar de si e
inconsciente, em relação à morte nada sabemos. E, o nã o - saber é uma das da ciência. Mas, .muitas decisões são tomadas por pessoas e por gover-
tes para o ser hum ano. Perde-se a capacidade de nantes, baseadas em teorias ditas científicas - curiosamente, as teorias
coisas mais apavor a n
controle, fica-se submisso a algo desconh ecido, e isso é desesper an te. Daí que infirmam aquelas adotadas são ignoradas. Na verdade, isso é fácil de
vem a necessidade de criar "verdades", para que esse terror se esvaia. explicar. A ciência, Deus ex machina, está sendo utilizada, mesmo que o
Essas verdades podem fazer parte do domínio da fé. Aqui pouco pode- cientista não tenha consciência disso, de forma delirante ou m al-intencio-
mos acrescentar, a não ser aceitar que é ou tro fenômeno hum an o e, como nada.
tal, deve ser respeitad o e compreendido. Mas, novamente, o raciocínio
não é tão simples, porque desde que a fé não exige comprovação, podere- Aqui não podemos deixar de incluir a própria psicanálise, que comumen-
mos nos ver di a n te de situações estranhas: por exemplo, a minha fé está te se transforma em produto de fé e não de reflexão. Temos desde uma
correta e devemos destruir todos aqueles que não comungam com ela. IPA (International Psychoanalytical Association), fundada por Freud, que
Esses outros podem ser os hereges, os judeus, os comunistas, os imperia- tenta preservar a "pureza" científica da psicanálise (o que não quer dizer
listas, os protestantes, os ciganos, os homossexuais, as mu lheres, os nor- que isso não seja necessário, mas perceba o leitor o perigo que se corre:
destinos, os negros ou os brancos. queimar os hereges...), até as seitas que se autodenominam donas da ver-
dade, queimando seus próprios hereges e maldizendo as outras correntes
Pior ainda é tornar a fé "ciência". Dessa forma, ela deixa de ser fé e torna
psicanalíticas.
seus dogm as "respeitáveis". Desde a "ciência" inquisitorial para identificar
os inimigos do catolicismo, até a "ciência" que prevê o futuro da luta de
classes, passando pela "ciência" que prova a superioridade racial d e al- Até aqui, percebo, tentar alertar o leitor para aspectos ligados à morte.
Mas não posso deix ar de mostrar o lado de vida: os epistemólogos tentam
1 Aqui já se assoma outro problema: há quem se sinta feliz ao ver a destruição dos out ros
e, às vezes, até de si mesmo. A psicanálise desvela, quando lhe é possível, as motivações indicar as limitações das ciências, os psicanalistas mostram o que existe
inconseientes disso e, se tem so rt e, pode ajudar o indivíduo a sentir-se mais feliz, de de invariante nas várias abordagens escolásticas, os religiosos pregam a
outra forma. No entanto, isso nem sempre é possível, pois a própria relação analítica
poderá ser destuída, se isso ameaçar ocorrer. Adiante, o leitor encontrará hipóteses que tolerância com as outras religiões e o ecumenismo, etc. Como sempre, o
tentam explicar esse fato. conflito vida x morte se faz p resente.
9 4 Morte e desenvolvimento humano Reflexões sobre a psicanálise e a mort e 95
A psicanálise pode ajudar-nos a compreender m uitos mecanismos que an tasias inconscientes e algumas conscien-
Como pode verificar-se, estas f an
usamos para lidar com esse terror e desespero do desconhecido. Voltan- tes, correspondem a revivescências de outras mais primitivas. E, quase
do ao nosso tema, o não - -saber
sobre a morte, tentamos preencher esse. sempre, fazem pa rte do que se considera "normal" no ser hum ano.
não -
-saber
com teorias, intelectualizando. Tem de e xi stir algo após a mor-
te, senão a vida não teria razão de ser. Como nada existe que comprove No entanto, uma das questões controvertidas em psicanálise é se, em
isso, poderíamos dizer que se trata de defesas maníacas. As idéias de nosso inconsciente,
inconsciente, poderia existir algum tipo de representação da
outra vida, de paraíso, de reencarnação, não são sustentadas pelos nossos morte. Para Freud, isso não e xi stiria,
stiria, por ser u ma exp eriência
eriência que nun-
conhecimentos atuais. Voltamos aqui para o terreno da fé, com suas v an- ca teria sido vivida. Mas ele considerava como equivalentes os terrores
tagens e perigos, como já assinalei. da castração, da perda do amor, do objeto. Para os kleinianos, já existi-
ria o medo da morte: seria equivalente ao pavor do aniquilamento, uma
As Fantasias Inconscientes sobre a M orte ansiedade extremamente primitiva, que teria a ver com o predomínio
da pulsão de morte.
No trabalho p sicanalítico verificamos
verificamos que as fantasias inconscientes sobre
o que seria a morte não são muito abrangentes: 1) o reencontro com com Pulsão de Vida x Pulsão de Morte
pessoas queridas mortas (e não é por outro motivo que cri an ças tentam
matar-se para encontrar o papai ou o vovô que morreu, no céu); ou que, E aqui entramos em outro assunto controvertido: e xi ste ou não uma pul-
agora apelando para mecanismos mais profundos, a chance de alguém são de morte, que se contrapõe e ao m esmo tempo se funde com Eros, a
morrer após a morte de pessoas queridas é maior que na população em pulsão de vida. Em Além do princípio do prazer, Freud introduz este con-
geral - evidentemente, aqui poderemos usar teorizações
teorizações sobre o luto pa- ceito, como uma especulação, utilizan do inclusive modelos biológicos.
tológico, que verenios adiante; 2) o encontro com outras figuras idealiza- Com esse conceito, reformula todo o edifício da psicanálise, construído
das, como Deus lou algo similar, que seria um com plemento da f a a n tasia até então. Melanie Klein e seus continuadores levam essa especulação às
anterior; 3) a ida para um mundo paradisíaco, regulado pelo princípio do últimas conseqüências, passando a utilizá-la de forma p rodutiva na clínica
an tasia se articula com a se-
prazer e onde não e xi ste sofrimento. Esta f an e em suas formulações teóricas. No entanto, outros autores e escolas
guinte; 4) a volta ao útero m aterno, numa espécie de parto ao contrário, acham desnecessária a utilização desse referencial, acreditando que a
onde não e xi stem desejos e necessidades. Provavelmente desta fantasia, teorização baseada em pulsões agressivas ligadas
ligadas às sexuais é suficiente.
entre outras, provém a idéia da "mãe-terra", onde o morto será sep ultado.
Em meu trabalho clínico tenho me valido do conceito de pulsão de m orte
Mas, ao lado dessas fantasias prazerosas, e xi stem as terroríficas, entre as e creio que ele tem m e enriquecido na melhor percepção dos fenômenos
quais as relacionadas ao inferno ou locus similares têm predominância. humanos. Basicamente o que é postulado por Freud e gr a n de parte de
São fantasias persecutórias que têm a ver com sentimentos de culpa e seus seguidores é que vivemos constantemente num estad o de conflito
remorso. As identificações projetivas
projetivas em figuras diabólicas, na m orte entre Eros e Tanatos, pulsões de vida e pulsões de morte. As primeiras
como um ser aterrorizante, com face de caveira e seu ca jado, se interli- levam ao crescimento, desenvolvimento,
desenvolvimento, integração, reprodução, manu-
desinte gr ação, dissolução. Essas f anta-
gam a pavores de aniquilamento, desinte tenção da vida; as segundas fazem o m ovimento inverso, de desintegra-
desintegra-
sias se confundem com a loucura, a psicose, e, por vezes não poder su- ção, tentando levar o indivíduo
indivíduo para um estado inorgânico,
inorgânico, a m orte. Es-
portá-las pode levar ao suicídio. ses dois gr upos de pulsões estão "fundidos", funcionando sempre juntos,
complement a n do-se e opondo-se, num processo dialético. Da pulsão de
Evidentemente, esta cisão corresponde a mecanismos da posição esqui- morte, fertilizada pela de vida, deriva a a gr essividade normal, que prote-
zo-paranóide, seguindo-se o referencial kleiniano. ge o indivíduo dos a gr avos e faz com que ele possa lutar para conquistar
9 6 Morte e desenvolvimento humano
mais espaço vital. A falta dessa agressividade normal, que prefiro chamar
de vigor, impede inclusive a capacidade de reprodução da espécie.
Penso que agora não há mais necessidade de justificar porque esta teoria
Quando ocorre a "desfusão" das pulsões, e a de morte se encontra livre,
é tão malvista. Alguns autores, mais otimistas, procuram exp licar esse
7
—
que tenha uma boa morte. Em outros capítulos deste livro sa lienta-se a A teoria da inveja, tão criativamente elaborada por Melanie Klein, e cuja
importância disso para o ser hum a n o. antítese seria a gratidão, é de gr ande utilidade na compreensão destas
características humanas.
O problema da onipotência x impotência ocorre const an temente em nos-
A ampliação destes conceitos para gr upos maiores, pode ajudar-nos a
sas vidas, em todas as áreas. E está ligado ao que escrevi acima: a sabe-
compreender um pouco mais acerca das guerras, dos morticínios, dos
doria de viver consiste em sabermos usa r nosso vigor, nossa potência,
esquadrões da morte, das torturas, da indignidade, dos sacrifícios que
conscientes de nossas potencialidades e limitações. Nesse momento po-
seres humanos impõem a seus semelhantes (e a si mesmos), p as s an do
deremos gozar a vida, não um gozar hedonista, mas o famoso carpe diem:
pela fome, miséria, desumanização, etc.
aproveitar cada m inuto da vida, podendo "curtir" ao máxim o o que ela
nos oferece, não maniacamente, mas com a calma que a felicidade verda- No Brasil, em particular, vivemos isto de uma forma extremamente inten-
deira pode trazer. sa. O filicídio, um conceito psicanalítico extremamente rico, nos ajuda a
compreender vários desses aspectos, incluindo o massacre de cri an ças e
Diz-se comumente que existem os sofrimentos necessários, aqueles que de "infantes" (a infantaria), que são a primeira linha de ataque (e de
fazem parte da vida, e os desnecessários, aqueles que nós criamos cons- bucha de canhão) em guerras e revoluções. São sempre as cri an ças e os
tantemente. E observe o leitor a criatividade com que os criam os! jov en s as pr in ci pa is vít im as , d ev id o a su a fr ag ili da de di an te das atitudes
mortíferas dos adultos - desde os a gr avos na gestação e nascimento, a
As Sabotagens Internas desnutrição, a falta de condições dignas de vida, de escolaridade, de saú -
de, a exploração no cam po de trabalho, o envolvimento com a criminali-
dade, as drogas, a violência, etc., onde sempre existem adultos responsá-
Penso que esta criatividade que todos nós temos para sabotar nossa feli- veis que se omitem ou estimulam estas práticas.
cidade (podendo ampliar-se o ra ciocínio para gr upos, sociedades e a es-
pécie hum an a) pode ser razoavelmente compreendida, usando as teoriza- E ainda, em nosso meio, consideremos os velhos, que com a "aposentado-
ções sobre a pulsão de morte, descritas acima. Para o leitor que quiser ria" que recebem (ou não recebem) são condena dos a mortes precoces
aprofundar-se neste tema, os conceitos psicanalíticos de masoquismo e ou mortes em vida. Não seria esta uma maneira de e li minar populações
de narcisismo são import an tes. Principalmente os conceitos pós-kleinia- inteiras, que não são mais "produtivas"? Será isto um mecanismo apenas
nos de narcisismo destrutivo. inconsciente? Tenho minhas dúvidas.
Voltando à prática, procure o leitor lembrar-se das com plicações desne- Morte Física e Outras Mortes
cessárias em que, consciente ou inconscientemente, andou se metendo
nos últimos dias. As coisas que deixou de fazer, as que fez de man eira Espero estar conseguindo passar ao leitor a idéia de que a morte está
errada, as brigas inú teis, os estragos desgastantes, sem qualquer objetivo, sempre presente em nossas vidas, e das m ais variadas m an eiras. A morte
as fantasias persecutórias, os lapsos au tocondenatórios, os sentimentos de física será a última, mas teremos m ortes parciais ou totais nas áreas so-
culpa absurdos, os ataques invejosos e destrutivos contra si mesmo e c on- mática, mental e social, lembrando que essa d ivisão é apenas didática,
tra os. outros. Repare também que comumente essas "crises" ocorrem pois todas se interpenetram.
quando tudo tende a correr bem : os mitos e a própria cultura nos ensi-
Além das situações descritas acima, muitas fazendo parte do que se po-
nam que devemos tom ar cuidado com o "olho gordo" - a inveja (in -vidia)
deria chamar de "micromortes da vida cotidiana", parafraseando o famo-
t a n to sofrimento, que não podemos deixar de cham á-las de patológicas, sioneiros não podendo mais ser escravizados ou mo rt os e podendo até ser
se usarmos aquele conceito para definir o que será patologia. Sobre as tr ocados? (É verdade que isso nem sempre ocorre, que existem outros tipos
"patologias" sociais, fe li zmente, já temos consciência de sua importância e de escravidão "assalariada", etc., mas, isto vem sendo denunciado e não se
inclusive têm sido estudadas interdisciplinarmente. O mesmo tem ocorri- pode negar que, a d espeito de tudo o que ainda há por se fazer, a luta p ela
do com as grupais e individuais, mas é aqui que a psicanálise se mos tr a dignidade tem dado alguns resultados.) Que tortura é crime? Que já se
mais vigorosa, pois pode servir não só como inst ru mento de compreen- considera o direito à vida, à saúde, à educação e felicidade como algo ina-
são, mas também como terapêutica. lienável a todo ser humano, independentem ente de sexo, raça, religião ou
idéias políticas? Que a igreja católica já aceita, há tempos, que os índios têm
Na área mental teremos infinitas maneiras de os conflitos se manifesta-
rem, podendo culminar na p sicose que, para os psicanalistas kleinianos alma? E que vem lut an do, contrari an do seu p as sado, pela vida deles? Que
cada vez mais g rupos da popu lação se organizam, reivindicando seus direi-
decorre de ataques destrutivos (derivados da pulsão de m orte) à própria
tos - q ue grupos internacionais influem e debilitam ditadur a s , como o faz a
mente, à capacidade de p ensar, de simbolizar, desa gr eg an do e desinte-
grando o indivíduo. O suicídio poderá ser uma forma de levar isso para a Anistia Inte rn acional, por exemplo; que lutam pelo equilíbrio ecológico e
denunciam a desumanidade e a corrupção?
área física.
É claro que ninguém garante que tudo isso não possa cair por terra.
Quando os conflitos são mais primitivos, podem manifestar-se na á rea Atualmente volta o racismo na Europa, ao mesmo tempo que inim igos
física, pela impossibilidade de simbolização. Assim teremos doenças dos figadais se unem numa Europa unida. Guerras genocidas ocorrem contra
mais variados tipos, que, em gr au mais am plo (e aqui alguns autores minorias étnicas e nacionalismos reacendem, irmãos matando irmãos.
falam em somatização psicótica), poderão também levar à morte. Mas, na África do Sul o apa rt heid vai declinando. No Brasil quase nin-
guém m ais agüenta o "levar vantagem em tudo", antes orgulho nacional!
Tu do isso se reflete evidentemente, na área social. Mas, à s vezes, a predo- Infelizmente o tempo é muito curto para efetuarmos especulações sobre a
minância das manifestações conflitivas ocorre nesta área, como já vimos.
Atualmente o que mais preocupa é a violência contra si mesmo, contra o evolução de tudo isso, mas tendo a ser otimista. Penso que os recursos
mentais da hum anidade estão cada vez m ais disponíveis, e, a despeito de
outro, contra a sociedade e contra a própria natureza, podendo levar-nos
vitórias eventuais do aspecto morte, a força de vida ressurge, teimosa.
à destruição de ecossistemas e até da própria hu manidade.
Se tivermos ainda a sorte de conhecermos os mecanismos inconscientes
Tentando Combater a Morte envolvidos, ela ressurgirá com mais vigor. Mas, não podemos ficar passi-
vos diante de Tanatos: devemos estar sempre alertas, denunciando seus
Embora a morte física seja inevitável, ela pode ser adiada cada vez m ais, mecanismos, comumente sutis, de insinuarem-se, tanto no nível individual
e as demais podem ser combatidas. A hum anidade tem demonstrado que como social. E para isso não precisamos ser psicanalistas: temos de ser
possui recursos para isso. Penso que a própria descoberta da psicanálise cidadãos, exercendo nossos direitos, conquistados a tanto custo, em lutas
comprova esse fato. memoráveis que se estenderam por gerações.
Nunca saberemos como terminará a luta const a n te entre vida e mo rt e. A O Processo de Luto
despeito do pessimismo a longuíssimo prazo (bilhões de anos), e com o
gr au de conhecimento que temos agora, e x i ste a possibi li dade de que este- Uma das grandes contribuições da psicanálise tem sido uma melhor com-
jam os err ad os. Af ina l, q ue m im ag ina ri a, no início do século p a s sado, que a preensão do processo de luto. Em Luto e m elancolia, Freud l an çou as
escravidão e o preconceito racial se constituiriam em crime em qu as e todos primeiras hipóteses, que se constituem na origem e base de alguns desen-
os países? Que guerr as devem obedecer à C onvenção de Genebra, os pri- volvimentos posteriores. Sempre seguindo a linha de tentar transpor con-
Reflexões sobre a ps ica ná lis e e a m ort e 10 3
1 0 2
ceitos nem sempre fáceis p ara o leitor, observa-se, no trabalho clínico, tras chamam de "equivalentes depressivos". Na verdade, nada mais são
que manifestações de somatizações psicóticas, devido à dificuldade de
que o objeto morto (e objeto é um conceito amplo, que implica também,
mas não só, em pessoas inteiras) instala-se no ego do enlutado, funcio- simbolização, como já vimos. Se bem que os p ro gressos da neuroendo-
nando como objeto ao mesmo tempo protetor e perseguidor. E isto se crinologia e neurofisiologia vêm estud a n do, com algum sucesso, as miste-
deve à ambivalência dos seres humanos, à dualidade de suas fantasias riosas conexões entre mente e corpo - o que vem comp lement an do o que
inconscientes, derivadas de aspectos relativos à vida e morte. a psicanálise já descobrira.
Como elaborar melhor os lutos? Isto vai depender dos mais variados
D ur an te o trabalho de luto, o ser humano deve recolher sua libido, suas fatores que têm a ver com as "séries complementares", descritas por
fantasias destrutivas (e aqui propositalmente estou misturando conceitos Freud. Mas, não tenho dúvida de que alguns fatores sócioculturais têm
freudianos e kleinianos, que, na verdade, se constituem num contíguo), dificultado essa elaboração. A nega ção da morte, o terror que ela inspira,
que estavam dirigidas ao objeto, agora perdido. Na concepção freudiana a falta de ritua is que auxiliem na sua elaboração, e que têm a ver com
essa "energia" se volta para o próprio ego, para a figura morta agora
momentos históricos, como o leitor encontrará em outros capítulos deste
introjetada. Na kleiniana, as fantasias inconscientes decorrentes dessa
li vro, são motivos importantes. A falta de auxílio individual, que poderia
perda reativam fanta sias anteriores, e o objeto introjetado passa a func io-
ser efetuado por profissionais de saúde treinados psicanaliticamente, é
nar num padrão decorrente daquelas fantasias somadas à situação parti-
i mportantíssima. Comumente, e eu próp rio tenho alguma experiência nis-
cular com esse ou outros objetos perdidos no passado. N ão é m uito dife-
so, é de gr ande valia ouvir o paciente, desde que este não tenha c onflitos
rente da concepção freudiana: apenas se valorizam mais as fantasias pri- muito sérios. Médicos, assistentes sociais e outros profissionais, não ne-
mitivas em vez das pulsões. cessariamente psicanalistas, mas com uma visão da importância das fan-
tasias inconscientes, podem ser de gr ande ajuda.
O que nos interessa, do ponto de vista clínico, é a possibilidade de um
luto mal-elaborado, em que predominam os objetos introjetados persecu- Já no ca so de con flit os ma is s ér ios , é ind isp ens áv el qu e t era pia s p sic an alí -
tórios. Isto leva a lutos patológicos ou quadros m elancólicos, em que a ticas ou a própria psicanálise sejam utilizadas. Não raro, o processo de
depressão é persecutória, carregada de culpa. Não raro, esses indivíduos, luto reativa situações extremamente primitivas, que devem ser trabalha-
agora identificados com esse objeto morto, inconscientemente, passam a das em profundidade.
viver como "mortos" - a melancolia seria o exemplo típico. As fantasias
suicidas, ou o suicídio exitoso, são formas de eliminar esse objeto aterro- Enfim, nos encontramos diante de um p rocesso individual, com repercus-
rizante: mas, para eliminá-lo, o ser humano tem de eliminar-se como um sões sociais intensas, pois o melancólico, mesmo que aparentemente
todo. Outras vezes, como já vimos, coexistem fantasias de reencontro "equilibrado", passará seu estado para os filhos e estes para di a n te, o
com objetos perdidos, sentidos como bons, m as que na realidade, ambi- objeto persecutório pairando por gerações, culpógeno e impedindo o vi-
valentemente, levam à autodestruição, utilizando mecanismos ma níacos e ver. Postulo, portanto, que o luto m al-elaborado é "contagioso", principal-
liberando aspectos tanáticos. Uma comprovação da importância disso, mente para a s crianças, que terão de identificar-se com ob jetos (pais, por
em termos epidemiológicos, é que a chance de morte "natural", após a exemplo) cujas fantasias mortíferas e m oribundas se tr a n smitem verbal
morte do parceiro(a), é maior no primeiro ano após essa perda, entre e/ou extraverbalmente.
viúvos(as). Outro dado que nos revela a 'freqüência desses lutos mal-ela-
borados, é a verdadeira endemia de quadros melancólicos (ou depressi- Reações de Aniversário
vos, segundo a classificação psiquiátrica ) que assolam os serviços de saú-
de. Comumente esses sintomas não se manifestam na área m ental, mas Uma forma peculiar de m an ifestação do processo de luto mal-elaborado,
principalmente na somática, constituindo-se o que os clínicos e psiquia- se constitui nas chamadas "reações de aniversário". Trata-se de fenôme-
Reflexões sobre a psicaná lise e a mo rt
rt e 1 0 5
1 0 4 Morte e desenvolvimento
desenvolvimento humano
nos que, eliciados por uma data, fazem o indivíduo passar por processos A partir do trabalho psicanalítico, surgiram teorias vigorosas que podem
auxiliar os seres humanos a lidarem com a morte, a morte física e as
variados de manifestação de conflitos: a n siedade, tristeza, surtos psicóti-
cos, idéias ou tentativas de suicídio, somatizações (enfartes do miocárdio, mortes parciais do dia-a-dia, de uma forma produtiva, fazendo com que a
gastrites, crises ulcerosas digestivas, sintomas vagos, sintomas de vários vida possa ser vivida criativamente
criativamente e a morte possa ser aceita como um
órgãos com ou sem alteração anatômica), atuações na área social, ou fato da vida.
ainda na relação analítica, sonhos, etc...
É o que observamos em moribundos que tiveram a sorte de se realizarem
Descrevem -se várias situações de "reações de aniversário": 1) o indivíduo em suas vidas - a morte é vivida como algo natural, sem os terrores da-
iversário de mo rt e ou de algum
passa pelos processos desc ri tos acima no an iversário queles para quem a vida foi um fardo. Realizar-se
Realizar-se como ser humano, em
fato que se associa à morte ou perda de um objeto ambivalentemente
ambivalentemente ama- vida, será portanto, um dos escopos de todo tipo de ação, de profissionais
do e odiado; 2) Pode ocorrer quando atinge a idade da pessoa m orta, às de saúde, e da sociedade como um todo, numa luta pela dignidade e
vezes, o processo descrito leva à mo rt e física, por identificação; 3) Foram felicidade em vida. O psica-
oportunidade de cada pessoa de alcançar a felicidade
desc ri tas situações em que a "reaçã o de aniversário" ocorre quando os fi- nalista terá sua função, evidentemente, mas não poderá onipotentemente
lhos do paciente atingem a idade que ele tinha quando seu pai ou mãe lidar com tudo o que implica na luta EROS X TANATOS, sem a contri-
morreram, ou foram perdidos; 4) na data de abortos ou na data em que buição de todos os seres humanos, cada um em sua área, e todos juntos
deve ri a nascer uma c rian ça abortada. E x i stem situações ainda mais comple- como cidadãos.
xas, mas, na investigação psicanalítica perce be -se que ocorreu u ma identifi-
cação com o objeto perdido. Em ou tros tr abalhos postulei que essa identifi- Efetuar psicanálise com pessoas em idade avançada, com pacientes de
cação fica, de certa forma, encistada, até que, eliciada pelo tempo, ela res- doenças graves, que levarão à morte em pouco tempo, tem sido uma
surge, inconsciente, propici an do uma revivescência
revivescência desse luto mal-elabora- experiência riquíssima
riquíssima para clientes
clientes e p rofissionais
rofissionais.. Ob servo que, comu-
do, e os conflitos se manifestam
manifestam nas á reas descritas.
descritas. Não raro, um a vez mente, os pacientes, quando podem a proveitar a análise, integram melhor
passada a data, se não ocorrerem complicações, tudo volta ao "normal", seus objetos internos, podem conhecê-los, lidar com eles, entrando com
podendo haver recaídas em outros anos. M as, em situações graves, teremos mais freqüência no que os kleinianos chamam de posição depressiva.
depressiva. O
desde quadros psicóticos até doenças mortais. rever a própria vida, reconhecendo e aceit an do seus limites, seus "fracas-
sos" e sua criatividade, fazem com que os indivíduos vivam realmente,
Penso que este fenômeno, curioso, é ex tr emamente comum , e adiante indi- intensamente, o restante de suas vidas, e morram em paz. Lemb ro-me em
co bibliografia onde o leitor poderá encon t r ar situações clínicas e de even- particular
particular de um rapaz que passou toda sua vida numa promiscuidade
tos sim il ares, desc ri tos na biografia de personagens históricos. Constituem
Constituem maníaca e que se tornou dependente de drogas. Dessa forma adqu iriu o
uma prova de que as teo ri as psicanalíticas descritas acima têm uma ut ilida- vírus da aids. O seu tem po restante de vida, em análise, foi o melhor - e
de prática imensa, pois a tomada de consciência desses mecanismos, permi- passou a agradecer a Deus o fato de ter adquirido aids: só por isso, se
te sua elaboração e a não-repetição. O mesmo ocorre com o luto. dispôs a efetuar a análise pessoal e descobriu que "vivera" como morto
até então. Ao lidar com essas pessoas ó ana li sta se vê também extrema-
Conclusões mente mobilizado, e aprende muito acerca da sabedoria de viver.
Se a m orte faz parte da vida, deve ser inèluída
inèluída nela, o que não tem ocor- Se iniciei este
este capítulo com M ilan Kundera, que nos m ostra que vivemos
rido. O trabalho p sicanalítico, ao desvendar as fantasias inconscientes em apenas uma vez cada minuto, e por isso ele deve ser aproveitado, aceitan-
relação à morte nos auxilia a com preender o fenômeno. O que, evidente- do-se que não podemos vivê-lo de novo, quero encerrar o texto com a
mente, deve ser complementado pela investigação em outras áreas do letra de uma música de Chico Bu arque de Holanda: "O velho":
conhecimento principalmente a história, a a n tropologia e a sociologia.
Morte e desenvolvimento humano rt e
Reflexões sobre a psicaná lise e a mo rt 1 0 7
1 0 6
"O velho sem conselhos, de joelhos, de partida de Freud (Ed. Imago). Existem traduções acessíveis para o espanhol e
carrega com c erteza todo o peso desta vida. francês. Obviamente o original é alemão e a Ed. Standard foi efetuada na
Então eu lhe pergunto pelo amor: Inglaterra.
A vida inteira diz que se guardou, do carna val,
da brincadeira que ele não brincou. O conceito de narcisismo aparece pela primeira vez em "Sobre o narcisis-
Me diga agora o que é que eu digo ao povo, mo: uma introdução", no vol 14. Mas, o nar cisismo destrutivo é desenvol-
o que tem de novo para de ix ar? vido pelos kleinianos: aqui recomendo o trabalho de Hebert Rosenfeld:
Nada, só a caminhada, longa, prá nenhum lugar. Uma abordagem clínica para a teoria psicanalítica
"
psicanalítica das pulsões de vida e
investigação dos aspectos a gr essivos do narcisismo", que
de morte: uma investigação
O velho de partida de ix a a vida sem saudade
Sem dívida, sem saldo, sem rival ou amizade li vro Melanie Klein Hoje, vol 1, editado
pode ser encontrado traduzido no livro
Então eu lhe pergunto pelo amor: por Elizabeth B. Spillius, da coleção Nova Biblioteca de Psicanálise, coor-
Ele me diz que sempre se escondeu, nunca se denada por Elias Mallet da Rocha Barros, Editora Imago, 1990.
comprometeu e nunca se entregou
Me diga agora o que é que eu digo ao povo Voltando a Freud não pode de ix ar de ser lido "Luto e Melancolia" (1917),
O que é que tem de novo prá deixar? pletas. Mas o conceito de pulsão de vida e de
no vol. 14 das Obras Com pletas.
Nada e eu vejo a triste estrada,
estrada, onde um dia vou parar. morte só aparecerá em 1920, no trabalho "Além do princípio do prazer",
vol. 18. Em 192 3, em "O ego e o id" estabelece-se com clareza a função do
O velho vai-se agora, vai embora sem bagagem superego (vol 19). Em "O problema econômico do masoquismo" esse as-
Não sabe p rá que veio, foi passeio, foi passagem pecto é dissecado (1924, vol 19).
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco, mostra um verso manco, nu m caderno Poderia indicar mais de uma dezena d e trabalhos de Freud. Se quisermos,
• branco que já se fechou. é facílimo verificar que toda a psicanálise, mesmo antes do conceito de
Me diga agora o que é que eu digo ao povo pulsão de morte estar desen volvido, leva em conta, mesmo sem saber,
ix ar?
O que é que tem de novo prá de ixar? essa noção. Artigos mais diretamente ligados ao nosso tema, no entanto,
Não, foi tudo escrito em vão, eu lhe peço p erdão,
são: "Totem e tabu" (191 2, vol. 12), principalmente o item relativo ao con-
mas vou lastimar
Não, não vou lastimar. tato (tabu) com os mortos,
mortos, "Pensamentos para os tempos de guerra e
morte" (1915, vol. 14), onde mostra como devemos aceitar e lidar com a
De ix o a cargo do leitor as associações que possa efetuar. Eu apenas que- agressividade como fenômeno humano; "O m al-estar da civilização" (1930,
(1930,
ria concluir que, como profissional e ser humano lastimaria muito e que vol. 21), em que relaciona a civilização com as barreiras contra as pu lsões,
provavelmente este "velho" (que não necessita ter idade avançada) se en- agora após a publicação de sua teoria de pulsão de morte; "Inibições,
contraria aterrorizado diante da morte, pois não pôde viver a vida. Mas, sintomas e angústia" (19 26, vol. 20),
20), onde surge com mais clareza sua
como liberdade poética, que lança uma mensagem, identifico-me com teoria da angústia; "Por que a guerra?" (1933, vol. 22), onde consta a
Chico: não lastimaria e aproveitaria
aproveitaria ao máximo o poema ex emplar. clássica troca de correspondência entre Einstein
Einstein e Freud, que já previam
a próxima guerra mu ndial.
Sugestões para Leitura
conceitos freudianos em Eros x
Karl Menninger utiliza com maestria os conceitos
Evidentemente o leitor deve iniciar por Freud. Se não tem noções de Tanatos: O Homem Contra si Próprio, também um clássico, cuja primeira
psicanálise lhe aconselharia a ler primeiro as "Conferênc ias introdutórias edição é de 1938, revista em 1965 e editado no Brasil em 1970 pela
à psicanálise" (1916), no volume 15 da Ed. Standard das Obras Completas Ibrasa. Infelizmente, não me consta ter sido reeditado. O título original é
1 0 8 Reflexões sobre a psicanálise e a mo rt e 1 0 9
Man A gainst Himself. Outro clássico é Sadismo x M asoquismo en la Con- idade", de Elliot Jacques (vol.2), além de muitos outros trabalhos que
ducta Humana, do psicanalista pioneiro radicado na Argentina, Angel mostram o vigor da escola.
Garma, cuja terceira edição aumentada é de 1952, Ed. Nova, mas que
continua sendo reeditado. interpretação, de Herbert Rosenfeld é indispensável para quem
Impasse e interpretação,
quiser aprofundar os conceitos técnicos fertilizados principalmente pelas
A escola kleiniana leva o conceito de pulsão de morte à origem da ansie- idéias de narcisismo destrutivo (Imago, 1988). Numa abordagem pecu li ar,
dade e das fantasias inconscientes
inconscientes destrutivas e defensivas contra ela. Não André G reen, influenciado
influenciado pelos ingleses e também pelos franceses, nos
é fácil introduzir-se em seus conceitos, a não ser vivenciando-os concomi- brinda com um trabalho criativo em Narcisismo de vida, narcisismo de
tantemente através
através da a nálise pessoal (o
(o que, aliás, também vale para os morte, Ed. Escuta, 1988.
conceitos freudianos, mas, estes são mais compreensíveis, na medida em
que, de certa forma - correta ou deformada - foram incorporados à nossa Quem quiser conhecer melhor Bion, poderá iniciar com o livro de Leon
cultura ocidental). Pode-se tomar um primeiro contato com ele através do Grinberg e cols.: Introdução às idéias de B ion, também da Ed. Imago.
conhecido livro de Hanna Segal: Introdução à Obra de Melanie Klein, da
Imago, em várias edições, tradução da segunda edição inglesa, de 1973, O conceito de filicídio foi criado por Arnaldo Rascovsky e é desenvolvido
da Hogarth Press. N esse livro, à medida que a autora introduz o leitor nos em O assassinato dos filhos (filicídio).
conceitos, indica a bibliografia original, que assim se torna mais com-
preensível. Ed. Documentário, 1983, onde existem trabalhos de outros autores sobre
o mesmo tema. Podemos encontrar Rascovsky e vários autores criativos,
criativos,
Para os leitores que já conhecem Melanie Klein, recomendo a releitura
escrevendo sobre psicanálise e guerra , no livro organizado
organizado por Gley P.
do trabalho de 1940: "0 luto e sua relação com os estados m aníaco-de- e, Imago, 1988.
Costa, de Porto Alegre, Gu e a
rr e m o
rt
r t
ri buições
pressivos", que consta de Cont ri b uições à psicanálise da Ed. Mestre Jou.
Este trabalho logo deverá sair pela Imago, nas Obras Completas, editadas
Com esta indicação passamos para os autores nacionais. Em O que é
por R. M oney-Kyrle, na Inglaterra. Quando acabei de escrever este texto
só havia sido editado o vol. 3 onde constam: "Notas sobre alguns mecanis- suicídio, Editora Brasiliense, 1984, tento (Rossevelt M.S.Cassorla),
M.S.Cassorla), num
trabalho para leigos, mas que tem servido de introdução para profissio-
mos esquizóides" (1946), "Sobre a teoria da ansiedade e da culpa" (1948),
nais, abordar esse conceito, utilizando os referenciais citados, mas não só
"Algumas conclusões teóricas sobre a vida emocional do bebê" (1952),
(1952),
eles. Em Da m orte: estudos brasileiros e Do sucídio: estudos brasileiros, de
"Inveja e gratidão" (1957) e "Sobre o sentimento de solidão" (1963). Nos
que sou o organizador (Ed. Papirus, 1991), encontramos 25 trabalhos de
últimos trabalhos, a autora faz uma revisão dos c onceitos anteriores. Este
autores brasileiros,
brasileiros, que efetuaram pesquisas sobre os temas, sob várias
terceiro volume das Obras Completas é intitulado Inveja e gratidão e ou- abordagens, não só psicanalíticas. No segundo, encontra-se o trab alho "O
tros trabalhos -1946-1963, Imago, 1991. tempo, a morte e as reações de aniversário",
aniversário", onde o leitor encontrará
Os desenvolvimentos posteriores da escola kleiniana podem ser encontra- bibliografia acessória sobre esse tema. E nas referências dos demais tra-
dos em Melanie Klein Hoje. vol.1 e vol 2, da Imago, 1991 e 1990, respec ti- balhos, praticamente toda a bibliografia brasileira
brasileira estará à sua disposição.
disposição.
vamente. Ali se encontrarão os indispensáveis "Diferenciação entre a per-
sonalidade psicótica e nã o-psicótica", e "Ataques ao elo de ligação", de Evidentemente, a psicanálise
psicanálise não se reduz a Freud e à escola kleiniana,
kleiniana,
Wilfred R. Bion, onde se descrevem as vicissitudes do funcionamento da posteriores. M as , são os que eu conheço. Pen-
com seus desenvolvimentos posteriores.
' parte psicótica da personalidade, o artigo de Rosenfeld sobre o narcisis-
narcisis- so que a vida é m uito curta para conhecer tudo o que gostaríamos: por
mo citado acima, a chamad a organização patológica descrita por B. Jo- isso optei em aprofundar-me naquilo que me faz mais sentido hoje. Não
seph como "O vício pela quase-morte" (vol.1) e "Morte e crise da meia- sei se isso persistirá, porque o futuro é imprevisível.
1 1 0 Morte e desenvolvimento humano
O leitor já percebeu que estou justific a n do-me por não ter a capacidade Capítulo 7
de indicar textos, certamente valiosíssimos, de outras abordagens p sicana-
liticas, como as da psicologia do ego, junguiana, a psicanálise com abor-
dagem predominantemente existencialista, as várias orientações lacania-
nas, etc. Possivelmente, em outros c apítulos deste livro, autores mais com-
petentes o farão. O SER HUMANO: ENTRE A VIDA E A MORTE
Visão da Psicologia Analítica
O mais importante, no entanto, é que aqueles que me lêem percebam que
a queda no dogmatismo, de que eu ou a teoria que eu adoto, é a correta,
e a única correta, é um reducionismo estéril, do lado da pulsão de morte,
Laura Villares de Freitas
segundo o referencial que adotei no texto. Por outro lado, propor-se a
conhecer tudo, também é cair na onipotência. Precisamos suportar o não-
saber, respeitando o que os outros sabem, fertiliz an do-nos com eles, Desde pequena, eu era freqüentemente acompanhada por certas impres-
quando possível, mas, tampouco masoquisticamente, deixar que nos sões, percepções e sonhos que me assustavam e intrigavam. Muitos deles
"queimem" em fogueiras inquisitoriais os que se autodenominam "donos se relacionavam de alguma forma com a morte.
da verdade" e que, em sua insegur an ça, não toleram o diferente. Viver
não é fácil e, por isso mesmo, é fascinante! Posso rememorar algumas dessas vivências. Qu an do eu tinha sete an o s ,
morreu uma irmãzinha, doente, que contava então com três anos incom-
pletos. Havíamos nos mudado de casa e, naquele casarão novo, desco-
nhecido, cheio de me a n dros a serem ainda explorados e sem os meus
"cantinhos" habituais, eu me perguntava onde estaria a minha irmã . E, às
vezes, parecia que de alguma forma vinha uma resposta, sem palavr as ,
tr a n qüilizando-me e fazendo-me saber que ela continuava ali, em algum
dos meandros da casa nova, ou, em outros momentos, que ela estava num
mundo diferente. Era muito estranho...
Antes disso, eu costumava contar a minh a mãe sobre meus encontros,
brincadeiras e conversas com um amigo... que não existia!, isto é, ele
existia apenas p ara mim... Em diversas outras ocasiões, tive a sensação
de uma ou mais "presenças" no quarto em que eu estava, na sala, ou
perto de mim. Sempre me via com muito medo delas. Ocorreram-me
também sonhos ligados ao tema da morte ou ao falecimento de pessoas
próximas.
Hoje, ao refletir sobre essas experiências, constato o quanto elas foram e
são importantes na constituição de minha personalidade e também o
quanto elas continuam m e assustando e intrigando.
Acredito que muitas pessoas, se não todas, têm vivências semelh a n tes. O
difícil parece ser falar sobre elas, compartilhá-las. Difícil e muito neces-
sário, a meu ver. A perplexidade, a incerteza e o medo parecem ser co- A criança passa então a p ossuir um senso de identidade e a se reconhe-
muns e, quem sabe, se compartilhados, poderão ser lidados de m a n eiras cer como um ser em alguma medida individual. Com o prosseguir do
menos fechadas e mais eficazes. desenvolvimento, o brincar desempenha um pa pel importante e é interes-
sante observá-lo. Por um bom tempo, a cri an ça se identifica com os mais
O tema da morte é import an te justamente por tocar em nossos limites diferentes tipos de heróis, os quais têm semp re certos poderes especiais e
mais extremos e também em nossa maior possibilidade de abertura. A a tarefa de derrotar inimigos e monstros. Estes são representações sim-
morte coloca limites à nossa razão, consciência e c apacidade de apreen- bólicas do inconsciente que, como um enorme m anan cial de possibilida-
são e percepção - enfim, à nossa perspectiva d e vida. Por outro lado, des e forças dinâmicas, ameaça a integridade da consciência. A cri an ça
ju sta me nt e p or se r t ão im pe ne tr áv el, pe rm ite -n os tot al lib er da de à i ma gi - se identifica com os heróis que a parecem nos contos, desenhos animados,
nação, que pode fluir à vontade e acolher as mais diferentes idéias e filmes e histórias inf an tis porque psiquicamente está realiz a n do uma ba-
i magens a seu respeito. talha heróica: desenvolvendo um campo de consciência que se diferencie
do inconsciente. Sua vivência é a dG ter de matar o monstro, o dragão,
Apresento, neste capítulo, algumas dessas idéias e imagens, que têm aquele que quer dominar e controlar tudo e todos, isto é, aquilo que
envolvido a humanidade desde os tempos mais remotos. O p an o de ameaça subju gá-la e que ela iden tifica como o mal. Mais tarde vai ser
fundo para estas considerações é a psicologia analítica de Carl Gustav necessária uma relativização, um "acerto de contas"...
Jung, s obretudo em suas c oncepçõe s sobre a n atur eza da psique, o ar-
quétipo, o princípio de sincronicidade e o processo de individuação. A Muitos distúrbios de sono das crianças p odem ser entendidos a p artir
alquimia, ao conceber uma operação que denomina mortificatio, no s dessa perspectiva. O sono representa um período em que a consciência
oferece interessantes imagens e associações. Muitas idéias e intuições relaxa e se entrega ao inconsciente, que pode então manifestar-se nos
se apresentam em sonhos, sejam os que tratam diretamente do tema sonhos. A dificuldade para adormecer ou o freqüente despertar à noite
sejam os de pessoas próximas à morte. As experiências vividas no esta- com pesadelos podem significar que a consciência está se sentindo
do intermediário entre a vida e a morte, tais como são relatadas por ameaçada demais, prestes a sucum bir à força do inconsciente. A crian-
indivíduos que se recuperaram de um estado de inconsciência, têm sido ça precisa ter a confiança de que pode dormir e despertar no dia se-
objeto de muitas investigações na atualidade. As religiões tratam exaus- guinte, sem ter perdido sua identidade, a qual está sendo construída a
tivamente da questão da morte, que ocupa um lugar central em seus duras penas.
ensinamentos - destaco o Livro dos mortos do Antigo Egito e o Livro
Outra maneira de se lidar com a questão da morte é através da dimensão
tibetano dos mo rt o s, menos conhecidos em nosso meio.
da natureza, que a apresenta com freqüência em nossas vidas: o a n i ma l
que morre, a planta qu e murcha, o dia que termina e a noite que surge, a
O Processo de Individuação lua que ciclicamente nasce e morre todo m ês.
A consciência se desenvolve sobretudo a partir de polarizações entre Na adolescência, coloca-se com muita ênfase a questão da individuali-
opostos, isto é, da vivência do conflito. A oposição mais básica parece dade: "Quem sou eu? O nde estão os meus limites?" O adolescente não
ser a que se dá entre a consciência e o inconsciente. Este é concebido brinca mais de herói poderoso, mas ainda experimenta até onde vão
na psicologia analítica como inato, pleno de energia e constituindo um suas capacidades. Quando isto se dá apenas no nível concreto, pode ser
enorme manancial de p ossibilidades latentes. A partir das primeiras muito perigoso. Nosso limite concreto é a m orte do corpo. Muitos aci-
percepções, tais como as de frio/calor, os cheiros, fome/satisfação, o dentes, geralmente de motocicleta ou carro, os quais simbolizam o pró-
bebê começa a desenvolver fragmentos de consciência, que vão aos prio corpo, podem ser entendidos como decorrentes de testes de limi-
poucos se organizando num camp o e constituindo um centro: o ego. tes. Na adolescência ocorrem também gr a n des períodos de depressão e
O ser humano: entre a vida e a morte 1 1 5
apatia, numa maneira mais introvertida de passar pelas transformações O material de um m enino de cinco anos exemplifica bem essa situação.
todas, que implicam em perda e despedida do mundo da infância e Ele vinha fantasiado de super-homem para as sessões, vivenciando ser
aquisição de um novo modo de ser. Comportamentos de vandalismo e esse herói com todos os superpoderes. Estava send o muito import an te
destruição, em grupos pela cidade ou individualmente na família, geral- para seu desenvolvimento que ele o fizesse, pois, ao vivenciar a "super-
mente expressam o quão intensamente o adolescente sente que tem de visão" ele realmente desenvolvia suas habilidades visuais, ao se imaginar
abrir e conquistar espaço para si e para o novo, muitas vezes destruindo superforte ele fazia grandes avanços motores, ao dramatizar um ser tão
o que já existe e representa o velho. poderoso, ele realmente fortalecia sua identidade, e assim por diante.
Um dia ele chegou sem a roupa de super-homem, com um cu rativo
Ju ng (1 ) e qu ip ar a a v id a a o p er cu rs o d o so l. Es te na sc e, va i- se el ev a n do enorme, e contou: "Escorreguei na fantasia. Caí e me machuquei." Ele
no horizonte, encontra-se a pino ao meio-dia, passando então a realizar estava descrevendo literalmente o que ocorrera: escorregara na capa do
um movimento descendente; põe-se no fmal da tarde - isto é, morre - e super-homem. Mas ele estava descrevendo também o "escorregão na
então percorre o outro lado da Terra durante a noite. A vida hum a n a fantasia" num outro sentido, isto é, fora até seus limites; a inflação psí-
teria esse mesmo ritmo, numa curva parabólica. Jung enfatiza o momento quica passara a ser perigosa, machucara-se, deprimira-se, e tinha agora
do meio-dia, ou a metade da vida, que denomina metanóia, como consti- a oportunidade de se reconhecer c omo um menino, fortalecido pela
tuindo a ocasião de a consciência ab rir-se para o outro lado, isto é, tendo vivência prévia do super-homem, mas começando a se desidentificar
se diferenciado e afastado da escuridão e sentindo-se mais fortalecida, com ele. Naquele momento, passou a ser criativa em seu d esenvolvi-
então reconsiderar o valor criativo do inconsciente e se voltar para o que mento a vivência da qued a. Não é à toa que temos aquela expressão:
lhe falta ainda desenvolver. "Caí do cavalo".
Depois o sol começa a declinar no horizonte, em ana logia ao que acon- N a metanóia a situação é diferente. Há a inversão dos valores e a vivên-
tece com o corpo. A consciência, no entanto, continua em expa nsão, cia da morte do ego. São as histórias ou mitos em que o próprio herói
tendo agora de considerar mais atentamente as crescentes limitações tem de morrer - não ma is o dragão - numa vivência d e sacrifício, morte
físicas e a perspectiva d o final da existência do corpo. Jung diz que n o e renascimento. Em nossa cultura, o melhor símbolo para esse mom en-
meio-dia da vida nasce a morte, e que esta passa a ocupar um lugar to talvez seja o do Cristo na cruz. Muitas vezes aparece a sensação de
fundamental na consciência, devendo mesm o constituir o principal cen- perda de sentido da vida, de estar perdido e desorientado na floresta,
tro de interesse no envelhecimento. no deserto, ou numa viagem noturna pelo oceano. Os referenciais anti-
gos da consciência não servem m ais; é preciso encontrar novos. É preci-
O ego sadio na infância tem a vivênc ia de ter dominado o dragão. M as ele so se voltar deliberadamente pa ra o self, ou arquétipo central, na pro-
não consegue matá-lo, pois o dragão é o próp rio inconsciente. Nas histó- cura de uma nova orientação. Não se trata mais de "eu sou, eu quero,
rias infantis, o monstro costuma ser congelado, banido para um território eu posso, eu decido", mas impõe-se também a vivência de "eu dependo".
muito distante, ou mesmo morto; mas dep ois reaparece, pois é indestrutí- O ego passa a reconhecer e a se preocupar com os aspectos que ainda
vel. O ego apenas apazigúa um pouco o inconsciente, abre canais para não desenvolveu, aos quais ainda não se dedicou .
sua energia, chega a termos com ele para garantir sua sobrevivência. A
consciência vai-se fortalecendo, estruturando-se mais e mais, ampliando- A partir dessa vivência, pode-se construir um novo centro da personali-
se, mas não chega a dar conta da totalidade psíquica. Vivencia momentos dade, entre o ego e o self. É a descoberta do inconsciente não mais
em que se sente idêntica a ela, todo-poderosa, e outros em que se sente como um dragão ameaçador, mas como um interlocutor, um amigo em
ínfima e frágil. E é entre esses dois extremos que ela se situa dinamica- potencial, que pode colaborar e contribuir mostrando à consciência o
mente, sempre test a n do e procurando am pliar seus limites. que lhe escapa. 0 novo centro passa a se situar num ponto intermediá-
1 1 6 Morte e desenvolvimento hum ano O ser humano: entre a vida e a morte 11 7
rio, que leva em conta as questões de a mbas as instâncias, isto é, os satisfatório não pode ser conseguida, resultam estagnação e agonia, apa-
símbolos em seu potencial mais pleno. Na segunda metade da vida a recendo o símbolo do desmembramento.
regulação psíquica pode se dar pelo diálogo mais fluente entre cons-
ciência e inconsciente, conseguido através da vivência criativa do sacri- A repressão de u m dos aspectos do conflito impossibi li ta sua elaboração
fício do ego, que costuma ser simbolizado como uma morte e posterior e faz com que ele se degenere e assuma caráter destrutivo. Posteriormen-
renascimento. te os conteúdos inconscientes irrompem na consciência, ocasion an do
uma perturbação psíquica. A psicologia junguiana trata do símbolo do
São no entanto muitos os desvios possíveis. Há pessoas que passam a uroboros, a serpente mítica que morde a própria cauda, relacionando-o
vida inteira vivendo o mito do herói todo-poderoso. A "idade do lobo" ao estado psicológico primal em que ainda não se deu a separação em
mostra isso de m an eira bizarra: homens pelos quarenta a n os que resis- opostos. É um estágio que podemos associar a momentos específicos
tem a passar pela vivência da n ova fase, procurando namorar meninas como nascimento e morte, mas não à possibilidade de qualquer mud an ça.
adolescentes, na tentativa de perm anecer na fase anterior e evitar o O ú nico caminho criativo é reconhecer os opostos e suportá-los, apesar
sofrimento inerente ao sacrifício e à transformação próprios da meta- de advir então um grande sofrimento.
nóia. Jun g (1) come nta que é com o se o h omem pa ras se os pont eiros
do relógio e esperasse que a natur eza também o fizesse. Devido ao A imagem de estar desmembrado ou sendo desmembrado surge, segundo
medo da vida, fica psicologicamente atrasado, clam a n do o direito de a hipótese de Pilger-Holdt, quan do se está psicologicamente fixado na
permanecer no apogeu do meio-dia. Quem se recusa a acompanhar o unidade primal, o que leva a uma estagnação insuportável. O desejo de
ritmo natural da vida, perman ece como que suspenso, duro e rígido, harmonia máx ima reprime aspectos de divisão e abandono, cria a imagem
fixado nas recordações do passado, sem relaç ão com o presente. A do paraíso ou de um grande útero acolhedor e nutriente, mas significa a
partir da metanóia só permanece realmente vivo quem estiver disposto dissolução do ego. O símbolo do desmembramento, se devidamente con-
a morrer com vida, afirma Jung. siderado, permite a elaboração criativa dessa situação que em si constitui
um dos desvios possíveis no processo de individuação.
A neurose consiste numa alienação da p rópria natureza. E tão neurótico
o idoso que não se preocupa com a morte quanto o jovem que reprime
Jaff é (3) c omen ta q ue o p rocess o de in divid uaç ão nã o é some nte uma
suas fantasias sobre o futuro. As religiões, comenta Jung, são comp lica-
escola de vida, mas também uma preparação para a morte, em que se
dos sistemas de preparação para a morte. N as duas religiões mais disse-
destacam a velhice e o fim da vida como tendo um significado particular.
minadas, o Cristianismo e o Budismo, o significado da vida se consuma Nesta fase, a tomada de consciência dos aspectos até então relegados ou
na morte. Este autor lamenta o fato de as religiões desde o Iluminismo
projetados é fundamental. A idéia do reencontro com os mortos queridos
serem consideradas como espécies de sistemas filosóficos, isto é, algo
indica a possibilidade de integração dos conteúdos que haviam sido pro-
produzido pela "cabeça". Ele sugere que se pense, ao invés, no coração,
jet ado s n ess as p esso as.
na medida em que os símbolos religiosos têm um caráter revelatório e de
criação espontânea, e se ligam a um a sabedoria mais completa, que não
A natureza conhece a morte e se prepara para ela, afirma Jung (1). Na
pode ser abrangida apenas pela razão.
velhice a contemplação, a reflexão e as imagens interiores vão assumindo
Pilger-Holdt (2), ao estudar o tema do desmembramento, identifica-o importância crescente e a maioria das fantasias, sonhos e idéias que sur-
como o símbolo extremo de conflito. A vivência dos opostos e do conflito gem são antecipações, exercícios preparatórios. Objetivamente, o que a
entre eles são condições necessárias para a vida psíquica e contêm um consciência pensa a respeito da morte é indiferente. Mas subjetivamente
enorme potencial energético para o desenvolvimento. No entanto, quan- a diferença é enorme, podendo significar saúde ou patologia, sentido de
do a conciliação e integração dos opostos num nível mais abrangente e vida ou um vazio insuportável.
Morte e desenvolvimento humano O ser humano: entre a vida e a mo rt e 1 1 9
1 1 8
mistas que ao sentir o medo da morte, o homem vive o momento tenebro-
A Alquimia e a Mortificatio
so de seu destino em que tem de se ap resentar como uma tota lidade.
Ju ng de dic ou am pl os es tu do s à al qu im ia , q ue co ns id er av a pr ed ec es so ra Em termos psicológicos, mo rt ificatio diz respeito à sombra. O negrume,
t an to da química qua nto da psicologia, numa época em que o conheci- quando não é a condição original, é realizado mata ndo-se algo, comu-
mento objetivo e o subjetivo não estavam dissociados. A alquimia parece mente o dragão, o rei, o sol, o leão, uma águia, um sapo. O dragão, como
ter-se originado no Egito Antigo, mas seu a uge foi na Idade Média. Era já comen tamos, sim boliza o inconsc iente, a psique instint iva. Re i, sol e
um trabalho de laboratório na tentativa de transformar a matéria bruta na leão referem-se ao ego, ao instinto de poder e também a um princípio
Pedra Filosofal ao depurá-la e subm etê-la a sucessivos processos. Na Ida- coletivo dominante ou regulador, os quais devem ser modificados para
de Média, a alquimia viveu seu p onto máximo de desenvolvimento, se- que um novo centro desponte. Outro objeto da mortificatio é a figura da
guindo-se sua repressão. Byington (4) faz um a interess a n te leitura da his- pureza e da inocência: quando algo branco é morto, putrifica e se torna
tória, denunciando a dissociação a nível cultural ocorrida no século negro.
XVIII, que culminou com a Inquisição e o desenvolvimento da ciência
apenas objetiva, sendo banida a alquimia. Os textos alquímicos a que É como se o ego, ao encarnar-se e ousar existir como um centro autôno-
temos acesso são em linguagem cifrada e simbólica, utiliz an do-se de mui- mo de ser, adquirisse realidade substancial, mas também se tornasse su-
tas imagens e fórmulas, remetendo sempre ao nível objetivo e ao subjeti- je ito à de co m po si çã o e m or te . A lu sõ es à de ca pi taçã o també m ap ar ec em ,
vo. A integração entre esses dois pólos era intensamente vivida pelo al- e Jung comenta a cabeça oracular, símbolo da consulta à totalidade para
quimista: ao final do processo, a matéria se transmutava e ele mudava seu informar-se além das possibilidades do ego.
nome, express an do a profundidade da transformação sofrida em sua Refletir sobre a morte pode levar uma pessoa a ver a vida sob o prisma
identidade. da eternidade. A origem e o desenvolvimento da consciência parecem
estar ligados à experiência da m orte. Edinger comenta que talvez o pri-
Edinger (5) apresenta um amplo estudo sobre a psicoterapia e a alqui- meiro par de opostos percebido pela consciência do homem primitivo
mia, no qual m e apóio para as considerações a seguir. Marie-Louise von tenha sido o contraste entre o vivo e o morto. Provavelmente apenas um a
Fr an z (6) também aprofundou a questão das relações entre a morte na criatura mortal seja capaz de consciência. Nossa m orta li dade é nossa fra-
alquimia e os sonhos sobre a m orte.
queza maior e nossa força suprema.
Edinger descreve sete operações alquímicas, que ap li ca também ao pro- As mais antigas formas de expressão religiosa se associam a ritos de se-
cesso psicoterápico. Uma delas, a que se dá pela morte, é a mortificatio. pultamento, sendo o simbolismo mortuário egípcio a primeira grande tes-
Esta pode ser considerada do ponto de vista exclusivamente biológico, temunha da realidade da psique. É como se a psique não pudesse existir
significando o fim do corpo. Mas se incluirmos também o ponto de vista como uma entidade separada , até descobrir a morte no aspecto literal,
psicológico, ela passa a remeter a uma transformação sentida como enor- concreto e físico. O inconsciente coletivo equivale à terra dos mortos ou
me, da persona li dade inteira e propiciadora da vivência do renascimento à vida após a morte, e uma descida ao inconsciente coletivo é sentida
num novo modo de ser. como uma morte deste mundo.
A obra alquímica tem três estágios: nigredo, albedo e nmbedo. O nigredo, O encontro com o inconsciente, isto é, a experiência d o todo, é sempre
ou enegrecer, pertence à operação denom inada mortificado, ou pu tre fa c- vivido pelo ego como uma derrota d olorosa, o que a alquimia exp ressa
tio, que se relaciona com escuridão, derrota, tortura, mutilação, morte e através de símbolos de m orte, mutilação ou envenenamento. Por outro
apodrecimento. Referem-se à pu tre fa cti o fezes, excremento, maus odores, lado, seguindo a lei dos opostos, na medida em que o ego admite a mor-
poluição do ar, vermes, e o temor é um de seus agentes. Dizem os alqui- te, constela-se a vida nas profundezas. Esta é a essên cia da psicologia do
12 0 Mo rt e e desenvolvimento humano O ser humano: entre a vida e a mo rt e 121
sacrifício. As vivências de nascimento e m orte, presentes em cada expe- A vegetação também costuma aparecer ligada à morte. O deus O síris era
riência de tr an sformação durante a vida, não são sinônimos de com eço e muitas vezes simbolizado como um grão de trigo. Os egípcios acreditavam
fim, mas sim o conteúdo do potencial de desenvolvimento. Um sacrifício na ressurreição, que associavam ao grão e à vegetação, imagens ao mes-
das perspectivas pessoais é necessário a cada avanço, e este é vivido como mo tempo de tran sitoriedade e de vida eterna.
uma morte.
Um tio muito próximo veio a falecer aos cinqüenta e poucos anos, víti-
Sonhos Sobre a Morte e Próximos da M orte ma de uma doença terminal. Em certa ocasião, tive um sonho em que
ele vinha ao meu encontro e dizia que estava muito bem, observando e
refletindo. Com uma tranqüilidade enorme, explicava-me ainda que se-
Os sonhos são produtos naturais e espontâneos da psique e mantêm gran- ria dividido em três e que cada uma dessas partes retornaria à vida,
de independência em relação à consciência - prestam-se, portanto, a in- numa existência ind ividual. Acordei impressionada com o sonho: emo-
vestigações sobre o inconsciente e a natu reza psíquica do ser humano. cionalmente tocada pelas saudades dele, ao mesmo tempo muito con-
Marie-Louise von Franz destaca-se no m eio junguiano por seus estudos fortada pela serenidade do sonho e intrigada também com a idéia pecu-
recentes sobre sonhos ligados à morte (3;6). Observou que eles não se liar de reencarnação que me fora apresentada. Naquele dia encontrei-
diferenciam dos demais eventos oníricos, pois mantêm uma relação com- me com minha tia, sua viúva, e contei-lhe que havia sonhado com ele.
pensatória com a consciência e colocam-se a serviço do processo de indi- Ela comentou que na véspera se completavam exatamente quatro anos
viduação. Ocorrem com freqüência a partir da meia-idade. Isto não signi- desde sua morte e que, m uito emocionada por isso, ela não havia podi-
fica que a morte esteja próxima, mas que a consciência está fixada numa do dormir à noite. Contei-lhe então meu sonho, que a essas a lturas eu
atitude excessivamente juvenil em relação à vida, a qual requer uma rea- já con side rav a com o noss o sonh o, e ti ve a imp ress ão d e qu e ela ficou
valiação. Tais sonhos não indicam um fim psíquico, mas apontam para a sensibilizada e de alguma maneira confortada. E fiquei ainda mais intri-
morte do corpo sempre que a atitude consciente for de negação desta, gada com o que me parecia então ter sido um sonho que eu tivera
como por exemplo o não-reconhecimento de uma doença terminal ou do também por e para ela.
passar dos anos. Por outro lado, os sonhos que antecedem à morte num
curto espaço de tempo geralmente sugerem a preparação para um a pro- Quanto à idéia muito difundida da reencarnação, Jung (7) tece algumas
funda tr a n sformação, a qual implica em algum tipo de continuidade da considerações. Muitos mitos afirmam que se a alma tiver atingido certo
vida psíquica. Seu conteúdo ap resenta grande diversidade de imagens mí- nível de desenvolvimento não necessitará mais retornar à Terra, ultrapas-
ticas, análogas aos ensinamen tos de diferentes religiões sobre a vida pós- sando o desejo de se ver reencarnada, libertando-se do mundo tridimen-
morte. sional e atingindo um estágio diferente de existência. Mas que, se ainda
houver um carma a cum prir, a alma recairá no mundo dos desejos e
Em alguns sonhos próximos à morte, von Franz constatou uma atitude retornará à vida.
de distanciamento ou indiferença quanto ao corpo. Também aparece
com freqüência o símbolo do fogo, que já na a lquimia era visto como a É impossível separar a idéia da reencarnação da de carma. Resta saber
essência imortal. As operações alquímicas pelo fogo tinham o sentido de se o carma é concebido como pessoal, levado de uma vida à outra, ou
realizar uma purificação da matéria, extraindo dela o essencial. O fogo é como impessoal, assimilado no momento do nascimento. O próprio
descrito em muitos textos alquímicos como o transmutador da morte, o Buda teria se esquivado de resp onder a essa questão, afirmando que o
que provoca a ressurreição, aludindo a um processo de desencarnação e máximo de sentido da existência que podemos alcançar reside na pró-
liberação do corpo, na morte. Esta geralmente é associada à fr ieza e pria vida. Jung sugere que consideremos o carma como um arquétipo
enregelamento. impessoal, que toma o mundo inteiro numa determinada ép oca: atual-
1 2 2 Morte e desenvolvimento humano O ser humano: entre a vida e a mo rt e 1 2 3
mente, a questão da tr íade divina e sua confrontação com o princípio razão, mas dar-lhe atenção e ousar esboçar uma concepção, já que o
feminino, isto é, a questão da origem do mal. inconsciente nos oferece comunicações e alusões m etafóricas.
Experiências semelhantes são relatadas por pessoas que estiveram à beira Ju ng (1 ) s e int er es so u po r fe nô m en os pa ra ps ic oló gi co s, te nd o i de nt ifi ca -
da morte por afogamento, congelamento ou queda, e por alpinistas que do neles coincidências irracionais e acausais entre eventos de diferentes
ultrapassaram oito mil metros de altitude. naturezas, que no entanto apresentam um sentido único. Denominou
"sincronísticos" tais acontecimentos e sugeriu a existência de um fator
As vivências entre a vida e a morte, que Frey-Rohn denomina "visões da responsável, o qual seria de natureza psicóide, isto é, não-psíquica mas
morte", podem ser relacionadas aos sonhos sobre a morte, aos êxtases existente no arquétipo, e que poderia ser ativado por emoções muito
místicos e a certas considerações feitas no âmb ito da parapsicologia. intensas. Este autor levanta a hipótese de que a psique seria capaz de
an ular as categorias de tempo e espaço, que a ela aderem com o qualida-
Ambos, os sonhos e as visões, abordam o significado da morte, apresen-
des relativas e condicionadas. A natureza da psique parece ser transes-
tando conteúdos de caráter irracional e numinoso. Mas há diferenças
pacial e transtem poral, e sua relação com o cérebro bem mais contro-
significativas: os sonhos trazem um colorido pessoal, enquanto as visões
vertida do que tem julgado a ciência. Jung reconhece tratar-se de uma
se caracterizam por falta de sensibilidade sensorial, com imagens de im-
concepção difícil de ser assimilada, mas, ante os fatos que se apresen-
pessoalidade e distanciamento; estas não apresentam aspectos somb rios e
tam, julga-a necessária e imperativa, se quisermos avançar na compreen-
negativos como aqueles. Ambos, quando evocados e assimilados à cons- são do ser humano.
ciência, propiciam um a transformação na personalidade, mas enquanto
os sonhos geralmente favorecem o preparo para a morte, as imagens das Marie-Louise von Franz (6) afirma que a parapsicologia se relaciona à
experiências no estado intermediário parecem ser relevantes sobretudo alquimia, pois ambas buscam um ponto de vista universal que considere a
em relação à cura do corpo.
psique e a matéria como uma realidade única, e a morte como u ma sepa-
T a n
to nas visões da morte qua nto no êxtase místico há o relato de um ração apenas parcial entre elas. A morte seria em su a essência uma tr an s-
choque inicial, seguido pela travessia de um túnel e pelo despertar de um formação psicofísica.
Eu diferenciado, que passa então pelas experiências acima descritas. Na
Há também tentativas de se reduzir as visões de morte a perturbações da
mística iraniana do século XII há a idéia de um mundo intermediário, no
percepção, a fatores químico-farmacológicos, ou ainda a fatores fisiológicos
qual o corpo m aterial se espiritualiza e o espírito se transforma em corpo
como falta de oxigenação cerebral, etc. Embora importantes para elucidar
sutil. E, tanto o místico quanto o que se recup era do coma, relatam ter a
alguns aspectos, estas concepções ignoram o fato de qu e tais visões tr azem
vivência de um renascimento no retorno.
uma vivência de convincente realidade, que perdura p or muito tempo e se
Chama a atenção no entanto o fato de o místico relatar experiências associa à tran sformação psíquica que costuma se seguir.
terríveis, de escuridão, terror e confronto com monstros e aspectos som-
brios, alternadas às de luminosidade e harmonia, enquanto as visões de Frey-Rohn sugere que o princípio de sinctonicidade, d escrito por Jung
morte apresentam ap enas o lado belo, claro e de ajuda dos seres ilumina- como relativo à c oincidência significativa entre a psique interior e eventos
dos. Relaciono este fato à grande d iferença entre os'dois tipos de expe- externos, seja também ap licado às relações entre os processos que se dão
riência: o místico procura conscientemente vivenciar a transcendência, ao simultaneamente no corpo e na psique do indivíduo. Ela se baseia nos
passo que o paciente comatoso é passivo neste aspecto. É como se o estudos de Meier a respeito das práticas de incubação na Grécia A ntiga.
místico estivesse numa condição mais p ropícia à vivência da mortificatio e Nestas, o doente deveria passar ao menos uma noite num aposento espe-
cial, denominado abaton, no templo de Esculápio, a fim de ter um sonho
1 2 8 Morte e desenvolvimento humano O ser humano: entre a vida e a mo rt e 1 2 9
ou visão que o pusesse em contato com a divindade - é assim se possibili- lação de um arquétipo, capaz de promover a cura. Permanece no entanto
taria a cura. M eier considera que a natureza arquetípica dessas práticas uma dúvida: Nos mistérios, tanto os ritos e cultos quanto a relação pes-
consiste no aspecto curad or e se vale do conceito de sincronicidade entre soal estabelecida com o sacerdote são fundamentais como propiciadores
os processos que ocorrem no corpo e na psique para compreendê-lo. Nas da cura; em relação aos comatosos, como falar em participação da cons-
experiências intermediá rias entre a vida e a morte, tanto as vivências lu- ciência, a qual é condição para a transformação?
minosas, quanto a escuridão corporal parecem expressar uma única situa-
ção: a questão da sobrevivência ou m orte. Frey-Rohn, ao refletir sobre esta questão, baseia-se nos comentários de
Dieckman sobre um Eu onírico, mais permeável a novas aquisições e
O arquétipo, da maneira como acabou sendo concebido por Jung, é um mudanças d o que o Eu desperto e, portanto, por onde se iniciariam os
princípio que form a o m undo, organiza as relações psicofísicas e é tam- processos de transformação dentro da análise - daí a importância do tra-
bém cap az de dispor dos a tos criativos, independentemente do tempo. E balho com sonhos. Em analogia a este Eu onírico, ela sugere que o Eu
nos permite compreender a sincronicidade dos eventos nas visões da sutil, identificado nas visões da morte, seja o sujeito interior do processo
morte como um ato criativo espontâneo, detonado pelo medo profundo de cura. Ele seria o responsável pela conexão com as imagens e por sua
diante da ameaça de morrer. Assim, em vez de considerarmos, como se transição até o Eu desperto.
fazia até a Idade M édia, uma correspondência mágica entre certos acon-
tecimentos e a emergência de um conhecimento absoluto, reconhecemos Outro fator significativo para a cura é que os símbolos vivenciados nas
a ação do princípio de sincronicidade. visões da morte têm um caráter universal e coletivo, girando ao redor da
questão da morte, sem ligação pessoal com o paciente. São imagens que
Marie-Louise von Franz (3) reproduz trechos de uma carta que Jung trazem um sentido de liberdade, integrando opostos, tendendo à perfei-
escreveu, em 195 2, discorrendo sobre as relações entre a psique e o cor- ção, e que podem ser associadas a idéias e práticas religiosas as mais
po. Ele sugere que consideremos a psique como uma intensidade, e não diversas. É possível que no estado de com a se dê algo semelhante ao que
como um corpo que se move no tempo, e o cérebro como uma estação ocorre sempre que u m m aterial arquetípico irrompe na consciência atra-
transformadora que transmuta a intensidade relativamente infinita da psi- vés de um sonho ou fantasia: instaura-se a oportunidade de ligação da
que, em freqüências ou vibrações que podem ser captadas. Libertada dos consciência do indivíduo com a sabedoria acumulada da humanidade, a
efeitos do cérebro, a psique poderia reassumir suas características ine- qual até então perm anecia inconsciente nele.
rentes, que transcendem o tempo e o esp aço.
Frey-Rhon comenta ainda a capacidade de se recordar dess a s experiên-
No âmbito da matéria, podemos apenas observar o que se relaciona ao cias, julgando-a tão misteriosa quanto no c aso dos sonhos. É difícil averi-
fenômeno da luz. Tudo o que ultrapassa sua velocidade é-nos inatingível. guar se o pós-comatoso relata algo realmente vivido, embora assegu re
Ju ng lev an ta a h ipó tes e d e q ue a p siq ue se co ns tit ui ba sic am ent e d a m es- que sim, ou se preenche as lacunas de memória num proc esso análogo ao
ma energia que o corpo, mas com intensidade e freqüência de vibração que Freud chama de elaboração secundária do sonho. De qualquer ma-
infinitamente mais elevadas, podendo superar as da luz. Haveria uma neira, é provável que a elaboração posterior das visões se dê segundo o
parcela de psique que não se submete à ação redutora do cérebro e mesmo arquétipo que as constelara. Esta autora sugere concebermos um
permanece, independentemente de vida ou morte. "núcleo do Eu", de energia indestrutível e que permaneceria ativo mesmo
em estado de inconsciência, relacionand o este conceito a formulações
Frey-Rohn relaciona a recuperação de um paciente desenganado à ativi-
análogas de Jung, Meier e Neumann.
dade criativa e autônoma do arquétipo, e reconhece um paralelo entre
os sonhos de cura nos templos de Esculápio e as visões da morte. O fato A síntese que faz Frey-Rohn consiste na hipótese de que o arquétipo,
de se estar vivendo uma situação extremam ente crítica já indica a conste- graças a sua num inosidade, a sua força criativa autônoma e a seu poder
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M o
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curativo inerente, coordena a cura e a transformação no p aciente. Espe- por i sso m esmo , a co luna m estra d o pal ácio do rei do lug ar (a
cial importância é dada à alusão a uma dimensão que transcende o tempo futura col una Djed, re presentan te deste Deu s quando d a come-
e o espaço e ao núcleo do Eu, abrangendo desde o Eu sutil até o Eu moração da paixão-iniciação). Para recuperá-lo, Isis entra no pa-
desperto. A psique teria a capacidade de, sem perder sua continuidade, lácio como ama do recém -nascido da casa real e se mete imedia-
passar de um estado a outro, podendo a consciência se foca li zar ora em tamente a imortalizá-lo pelo jejum e pelo fogo. Mas a rainha,
suas idéias e emoções, ora nas sensações corp orais, ora nas vivências em surpreendendo-a, emociona-se profundamente com estas p ráticas
estado de êxtase ou de coma, ora no drama onírico... e a deusa teve que revelar sua identidade, reivindicando a coluna
a fim de retirar dela o sarcófago... Foi assim que ela o levou de
O Livro dos Mortos do Antigo Egito volta ao Egito, enquanto os dois filhos do rei de Biblos morriam
em conseqüência: o mais novo, por causa das lamentações baru-
O s egípcios nos apresentam uma interessante concepção de vida e de lhentas da deusa diante do corpo de seu amante, e o m ais velho,
do seu olhar severo quando quis contemplar o corpo de Osi ri s n o
morte. Eles eram um povo concreto e materialista e seu livro dos mortos
seu sarcófago.
contém uma grande variedade de imagens universais. Após a morte, o
defunto faria sua última e grande viagem, em que teria de ultrapassar os "Desejando passar pela casa onde ficava seu filho Hórus (o Jo-
"Pórticos de Osíris", perigosas fronteiras da Duat, que equivale ao que vem), ela esconde o corpo do seu amante nos caniços do Nilo,
costumamos entender por inferno ou pu rgatório, e chegar ao julgamento mas Seth, que por acaso, nessa noite, caçava na região, descobre
final da "pesagem da alma" (Ba e 1b), podendo então, se bem -sucedido, o famoso ataúde... Fu ri o so, pega o corpo de seu irmão infortuna-
passar a viver no Amenti, que equivale a um paraíso de segundo nasci- do e o co rt a em quato rz e pedaços que dispersa em todas as dire-
mento. Se malsucedido, passaria a viver na Duat, numa condição equiva- ções.
lente a uma segunda, e definitiva, morte. O livro dos mortos do Antigo
"E esta foi a segunda fase da busca de Ísis, à procura infatigável
Egito contém versículos, rezas, encantações, fórmulas mágicas e u m rol de
dos quatorze pedaços do seu amante. A cada fragmento precioso
oferendas a serem levadas. e reencontrado ela eleva um santuário. Mas... não foi possível
Relato a seguir o m ito de Osiris e Ísis, que é c entral nesse livro, apoiando- encontrar a décima qua rt a pa rt e do corpo sagrado de Osi ri s , pois
foi dev ora do pel os pe ixe s d o N ilo . T ra tav a-s e d o s eu pê nis div ino .
me na versão e comentário apresentados por Pierre Solié (10):
Então Ísis fez uma cópia, em ereção... modelou, esculpiu em to-
"Osi ri s reina, em companhia de sua irmã gêm ea e esposa, sobre dos os materiais, consagrou-a... e deu esse F alo todo poderoso à
um Egito civilizado e unificado. Seu irmão gêmeo, S eth,... louco veneração de todos os Egitos. Enquanto ela reconstituía o corpo
de raiva e de ciúme... decide livrar-se dele pela astúcia. Faz cons- castrado do seu amante e o ressuscitava para que Osi ri s renasci-
truir um ataúde magnífico... com as dimensões exatas do seu ir- do viesse a ser o deus dos infe rn os de segundo nascimento
mão e... promete esta jóia à quele que, deitando-se nela, preen- (Amenti), o irmão maldito, Seth, se tomava o demônio dos infer-
cha-a com exatidão. Foi evidentemente Osi ri s que melhor se ajei- nos da danação eterna (Duat). Uma hierogamia (união sexual
tou ali, mas, mal ele tinha se deitado, os conjurados de Seth sagrada) simbólica fechava o ciclo passional do deus sacrificial."
prega ram o ta mpo, revesti ndo-o c om ch umbo, e joga ram-no a o
Nilo a fim de que o Mediterrâneo o levasse embora para sempre... Os egípcios concebiam o pós-morte como u ma situação que levava a um
Quando sua irm ã-amante soube da n oticia terrível, ela se lamen- dos dois estados definitivos: Amenti, reino de Osíris e dos mortos renasci-
tou longamente, tornou luto e foi à sua procura. Foi esta a pri- dos, ou Duat, reino de Seth, inferno da danação eterna. Valorizavam o
meira parte da busca de his que a conduziu até a Fenícia, a corpo físico, mumificando-o para que dele fossem extraídos os princípios
Biblos, onde ela descob ri u o cofre-sarcófago de seu amante en- espirituais, os quais seguiriam na viagem intermediária. O corpo físico
cerrado no coração do cedro mais belo da região, que se tomou, era objeto de contemplação e meditação. 0 Ka passava a desempenhar,
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M orteedesenvolviment
o humano
O ser humano : entre a vida e a morte 1
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3
O Livro Tibetano dos Mortos Ju ng su ge re qu e n ós , d e t ra diç ão oc ide nta l, l eia mo s e ste livro de trás para
frente, isto é, focalizemo-nos em primeiro lugar no Sidpa Bardo, a seguir
Tent ar com preen der a s concep ções e gípcia s e tib etan as re quer d e nós no Chdnyid Bardo e então no Chikhai Bardo, por ser esta a ordem segui-
grande esforço. São bastante diferentes das que costumamos adotar, e da por nossa psique e nossa psicologia. Tal inversão não corresponde à
sua linguagem nos é estranha. No entanto, tal empenho acaba sendo re- intenção original do Bardo Thódol, mas o contato desta maneira com o
compensado, pois podemos assim entrar em contato com visões de ser livro pode levar-nos à ampliação do conhecimento da vida, da psicologia
hum an o em m uitos sentidos complementares às nossas. que integra o irracional e o espiritual, e à compreensão d e que a psique
não é apenas a condição de toda a realidade física, mas é essa própria
O Livro tibetano dos mortos, ou Bardo Thódol, consiste numa série de realidade, isto é, que as afirmações metafísicas são, em última análise,
instruções para os mortos e moribundos, a fim de ajudá los a ultrapassar
-
afirmações psicológicas.
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3
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Ju ng re co nh ec e o pi on eir is mo de Fre ud e o g ra nd e av an ço para a mente meiramente em sua forma terrível, implicando num enorme perigo, que
ocidental que foi a psicanálise, mas considera que ela foi até o estado do deve ser tomado muito seriamente. Os tormentos deste Bardo são descri-
Sidpa Bardo e ali est a n cou, devido ao preconceito de que tudo que é tos como torturas; há uma desintegração da totalidade d o corpo Bardo,
psicológico é subjetivo e pessoal. Julga que Freud se deteve di a n te do que é u ma espécie de corpo sutil, de função equivalente à do corpo físico
medo da m etafísica - medo aliás bast an te justificado e presente também dur a n te a vida: constitui o envelope visível do self psíquico. Tal desmem-
no Livro tibetano dos mortos. E Jung tenta dar mais um p a s so, penetran- bramento tem seu correspondente psicológico em sua forma mais deleté-
do no sentido do Chdnyid Bardo. ria na esquizofrenia.
No estado Sidpa, o morto, incapaz de aproveitar os ensinamen tos dos Ultrapassar em vida o estado Sidpa e chegar ao Chdnyid, como propõe
dois Bardos a n teriores, cai 'presa de fantasias sexuais e é atraído pela Ju ng , é re al iza r u ma inv er sã o p er ig os a d os ob jet ivo s e int en çõ es da co ns -
visão de casais copul a n do, até ser apanhado por um útero e acabar nas- ciência, num auto-sacrifício sofrido profundamente pelo ego. Este autor
cendo novamente. Vai-se formando a base de seu comp lexo de Édipo, na comenta que ninguém que se dedique à individuação é poupado dessa
medida em que, se destinado carmicamente a renascer como homem, passagem, que, por outro lado, consiste na oportunidade de se chegar à
ap a ix ona-se por sua futura mãe e repele seu pai, o inverso se dando com visão do mundo como simbólico, isto é, refletindo algo que sempre esteve
quem vier a nascer com o mulher. A psicaná lise investiga esse estado, mas no próprio sujeito, em sua própria realidade transubjetiva.
no sentido inverso ao do Bardo Thddol: parte das fantasias sexuais da
infância e caminha em direção ao ú tero. O Chónyid Bardo se denomina "Bardo de Experienciar a Realidade". As
f a n tasias assumem forma real e o tema do carma se desenrola. Aparecem
O estado Sidpa se caracteriza pela ferocidade do carma, verdadeiro deuses e deusas apavorantes, acomp anhados de horríveis monstros. Mas,
turbilhão que leva o morto até o útero sem permitir retorno, dada a apesar do aspecto caótico e amedrontador, Jung reconhece ali uma certa
força dos instintos, inclusive o do renascimento físico. Em outras pala- ordem, mandálica e qu aternária, observando as cores e direções assumi-
vr as , quem aborda o inconsciente apenas com pressupostos biológicos, das por tais seres.
fica preso na esfera instintiva e é puxado repetidamente para a existên-
cia física. Conseguindo ter o insight necessário e não cair no Sidpa Bardo, o morto
vem a saber que todas essas fantasias emanam dele próprio e a reconhe-
A psicologia do Sidpa Bardo consiste no desejo de viver e renascer, o que cer os quatro caminhos de luz, que então lhe apa recem como radiações
impede a experiência das realidades psíquicas transubjetivas e transtem- de suas próprias faculdades psíquicas. Chega finalmente à visão da eful-
porais, isto é, arquetípicas. O morto deve desesp eradamente resistir a tal gente Luz Azul Suprema. Cessam as ilusões cármicas e a consciência
desejo e aos ditames da razão, abdicando da supremacia do ego, a fim de volta ao estado atemporal e não-caótico de totalidade e plenitude. É as-
não cair no estado Sidpa e novamente encarnar-se. Isto significa uma sim que, lendo o livro de trás para frente, atinge-se o Chikhai Bardo,
morte simbólica, o fim de qualquer conduta exclusivamente consciente, vivido no momento da morte.
moral ou racional, e um render-se voluntário às ilusões cármicas, que
surgem no estado Chbnyid, anterior ao Sidpa. Estas são o produto de Ju ng co ns id er a n o m ín im o or ig in al co nc eb er a s itu aç ão pó s- mor te co mo
uma ima ginação desinibida e é difícil por um lado dar-lhes o devido valor um estado onírico terrível, de caráter progressivamente degenerativo. No
e, por outro, diferenciá-las de um estado psicótico.. instante da morte dá-se a visão suprema, e logo se inicia uma q ueda cres-
cente na ilusão e escuridão, até a degradação máxima do novo nascimen-
A abertura do Sidpa Bardo descreve o terror e a escuridão do contato to físico. O apogeu espiritual é alcançado no momento da m orte, o que
com tais ilusões. Jung afirma que o estado Chiinyid equivale a uma psico- nos leva a considerar a vida h umana como o veículo de maior perfeição
se deliberadamente induzida, pois as imagens arquetípicas aparecem pri- possível. Ela gera o carma que possibilitará a liberação dos objetos, a
13 6 Morte e desenvolvimento hum ano O ser humano: entre a vida e a mo rt e 1
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permanência na luz e na vacuidade, sem m ais ilusões. A vida no Bardo se vai e a tr an sformação que ocorre em cada um que fica. Os enterros
não conduz a castigos ou paraísos, mas talvez a um a queda num novo
muitas vezes se constituem apenas em formas rápidas e eficientes de dar
nascimento físico, isto é, a um a nova oportunidade de chegar m ais perto
um fim ao corpo. O período de luto é reduzido, os vivos logo reassumem
do objetivo fmal de completude e compreensão de q ue por trás dos con- suas atividades cotidi an as da m an eira habitual. Além disso há uma espé-
teúdos do inconsciente coletivo não há rea lidade física ou metafísica, mas
"apen as " a rea li dade da psique. cie de tabu ao redor do tema da morte: não se deve falar no assunto,
muito menos compartilhar cert a s experiências.
Concluindo...
Desta maneira, perdemos a oportunidade de elaborar criativamente o
Ao que acontece, se é que algo acontece, na m orte e no pós-morte não símbolo da morte em cada um de nós. E o que acontece é a perda de
temos acesso. Mas podem os imaginar. E ao fazê-lo nos beneficiamos... conexão com a totalidade, de conseqüências enormes.
Existe a possibilidade de se vivenciar o símbolo da morte de m an eira zação da velhice, que infelizmente predomina em nosso meio, expressa-
criativa. O problema é que ele se encontra cercado de defesas também de se também na propagação da imagem de um corpo ideal, eternamente
nível cultural. A psicologia analítica oferece significativa contribuição, na jo ve m, a se r pe rs eg ui do po r t od os . C on ce be -s e o co rp o c om o alg o e xt er -
medida em que apresenta uma visão de ser hum a n o bast a n te abr an gente no à psique, a ser moldado e treinado. Mas, num sentido mais profundo,
e ainda não assimilada pela consciência coletiva: as concepções sobre a corpo e psique não podem ser dissociados - o corpo é também a psique.
natureza da psique, o princípio de sincronicidade e o processo de indivi-
duação são propostas de inte gr ação entre as diversas áreas do conheci- Destaco aqui o fato de que, embora descrevendo um a situação transes-
pacial, as pessoas falam em um corpo, astral ou sutil. Chama a atenção
mento - e também de inte gr ação do ser humano.
também, na descrição de tais experiências, a escolha de verbos que se
Penso por exemplo na analogia, que me salta à vista, entre o abaton e o referem aos sentidos da percep ção: "ver" uma luz, "ouvir" uma voz,
cubículo da unidade de terapia intensiva. Em ambos se dão experiências "sentir" uma presença. E são muito freqüentes as referências analógicas
semelhantes, portadoras de imagens universais e muitas vezes seguidas de a partes do corpo, como por exemplo os egípcios ao se referirem ao
Ba-lb, ou Jung ao criticar a associação comum do conhecimento à ca-
uma tr an sformação na personalidade e da cura do corpo. Há a diferença,
import an te e já comentada, quanto ao estado da consciência de quem se beça, sugerindo o coração. É necessário resgatarmos no nível coletivo
submete à vivência: por decisão própria ou em coma profundo, vítima de também a experiência simbólica do corpo, isto é, criarmos práticas e
um acidente. E há outra diferença, gr itante: enquanto no templo de Es- rituais que nos propiciem avanços na linguagem, ampliação da cons-
culápio o espaço era p ercebido como sa gr ado, o sacerdote investido de ciência e a possibilidade de vivências mais integradas e inte gr adoras.
um poder divino e havia um a série de ritos a serem cum pridos, num
centro de terapia intensiva, por mais sensíveis que sejam os médicos e Cabe ainda comentar o óbvio: justamente a condição do corpo é o
enfermeiros, a natureza dissociada da atual m edicina costuma predomi- parâmetro principal para se falar em vida ou morte, este par de opostos
nar, impondo um ambiente frio e impessoal, em que apenas a técnica e a fundamental para a psique. E às condições do corpo no estado inter-
assepsia determinam as condutas, isto é, os pseudo-rituais. Tanto a equi- mediário, sejam elas denominadas "vida vegetativa" ou "morte clínica", é
pe profissional quanto o paciente, seus am igos e familiares se ressentem, que se relacionam as vivências anteriormente comentadas e as associa-
sofrendo a falta de conexão com a dimensão arquetípica da totalidade ções que a elas fazemos. Além disso, tanto os egípcios quanto os tibeta-
psíquica - tão eliciada nessas oca siões e, infelizmente, tão reprimida! nos, ao conceberem uma viagem ou um Bardo do ser no pós-morte -
isto é, um estágio intermediário, não necessariamente ligado à doença , .
A questão do corpo também merece destaque. Mesmo considerando-o mas fazendo parte do processo natural -, incluem a consideração para
uma espécie de redutor da intensidade psíquica, reconhecemos que a com o corpo inerte, fazendo-o objeto de contemplação, meditação e
consciência se apóia nele de maneira fundamental e necessária ao longo cuidados.
do processo de individuação, desde os primeiros m omentos. Há diferen-
tes maneiras de se vivenciar o corpo, como aquela em que ele precisa Ao tentar constituir um corpo de conhecimentos que não dissocie as
ser afagado, alimentado, agasalhado, acariciado; ou aquela em que ele polaridades sujeito e objeto, a psicologia analítica se aproxima de todas
requer treino, desafio no desenvolvimento de habilidades, modelagem . as artes, ciências, religiões, enfim, das criações do ser humano. E ao
E, além destas, o corpo pode ser "ouvido", constituindo um rico canal de sugerir práticas que considerem sempre também o aspecto ritualístico,
expressão psíquica, uma fonte de símbolos. Ele tem sido considerado de relacionamento interpessoal e ligação com a totalidade, ela perma-
de maneira redutiva em nossa cultura. Há, por exemplo, todo um privilé- nece fiel a seu objeto, que é também s eu sujeito: a psique, em sua
gio dado à mente na educação, como se a ca be ça não fosse também vivência de paradoxalmente u ma terrível solidão e uma confortadora
corpo, e como se não estivesse ligada ao tronco e memb ros. A desvalori- solidez - que se dá no campo simbólico, por um lado intermediário
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entre qualquer par d e opostos e, por outro, continente e transcendente (9) Jung, Carl G ustav - "Psychological Commentary on Th e Tibetan
do conflito por eles instalado. Book of the Dead". Vol.11 of Collected Works. London, Routledge
and Keagan Paul, 1958.
Para concluir, relato ainda uma experiência pessoal. Em ce r t a ocasião, já
estudante de psicologia, pela p ri meira vez resolvi deliberadamente me dedi- (1) Ju ng , C ar l G us ta v - "T he So ul an d De ath" . V ol . 8 of Collected Works.
car a aprender com as vivências ligadas à mo rt e, que sempre me pegavam London, Routledge and Keagan Paul, 1960.
de surpresa. Na ocasião minha madrinha, mu ito querida, estava prestes a
morrer e eu costuma va visitá-la. Sua doença se estendia por um longo pe- (7) Jung, Carl Gustay. Memórias, sonhos, reflexões. São Paulo, Nova
ríodo e era notável o q uanto ela se debatia entre a morte e a vida, procurava Fronteira, 1 9 7 8 .
assistência espi ri tual e se dedicava a morrer com consciência - achei que (2) Pilger-Holdt, Christel - "Dismemberement as an Extreme E xample of
com ela eu poderia aprender algo sobre a morte. Foi inusitado. Lembr o- me
Conflict". Paper presented at the "16th Meeting of theInternational
do dia em que ela, ao me ver vestida com um casaco que eu mesma havia
Association of Jungian Trainees and Analysts", Ubatuba, 19 91.
tr icotado, criticou uma falha no acaba mento e se dispôs a me ensinar a
fazê-lo melhor. M a n dou-me comprar uma linha especial. Voltei ao hospital (10) Solié, Pierre - Mitanálise junguiana (tradução de Fanny Ligeti). São
na tarde seguinte com a li nha. Mas e a agulha? Foi então que recebi o meu Paulo, Nobel, 1985.
ensinamento sobre a morte: "Como é que uma moça como você, que passa
o dia todo fora de casa, não tem na bolsa uma agulha, uma linha, u ma (6) von Franz, Marie-Louise - Os sonhos e a mo rt e. São Paulo, Cultrix,
1990.
tesourinha? E se de repente cair um botão?", repreendeu-me ela. E, nos
curtíssimos intervalos en tr e os freqüentes engasgos, dispnéias e apnéias,
pôs-se a simular uma agulha com os dedos e a me mos tr ar como se fazia o
tal conse rt o. Este foi o nosso último contato: ela faleceu naquela noite. E foi
assim que recebi o ensinamento que eu estava buscando: lidar com a morte
é também cuidar do dia-a-dia, da vida.
Referências Bibliográficas
Quando falamos desde uma ontologia, os termos são descritos como con-
MORTE: ABORDAGEM FENOMENOLÓGICO- dições de possibilidade para qu e alguma coisa se dê.
EXISTENCIAL Durante o desenvolvimento da abordagem proposta, faremos algumas
descrições, que devem ser entendidas como ontológicas e não como
psicológicas. Estaremos trat an do de elementos estruturais para a com-
Daniela Rothschild preensão do ser. Disso pode decorrer uma psicologia, como a que foi
Rauflin Azevedo Calazans
desenvolvida por Medard Boss, L. Binswanger, Rollo May e outros.
A referência que nos possibilita falar de morte na abordagem fenomeno- No desenvolvimento de sua a nalítica e xi stencial em Ser e Tempo, Heideg-
lógico-existencial é desenvolvida por M artin Heidegger em sua obra fun- ger privilegia a morte, como qualquer outro termo pinçado desta obra.
damental Sein und Zeit (Ser e Tempo). No termo ser-no-mundo já está implícita a circularidade que permeia
todo o tratado, ou seja, cada elemento, na sua descrição, remete a outro
Heidegger (1889-1976), filósofo alemão discípulo de Huss erl, desenvol- já des cr ito ou ain da po r d esc re ver .
ve em Ser e Tempo uma busca do sentido de ser, através do método
fenomenológico. O ser-aí é no mundo. N essa relação fica explicitada uma sujeição do ser-aí a
esse mundo que já lhe é dado com o interpretado. Nessa perspectiva, habita-
A fenomenologia é um método de investigação da história do conheci- mos um m undo familiar, onde tudo é conhecido, previsível, onde todos so-
mento, que propõe a volta às coisas mesmas, a pa rtir da descrição e da mos ninguém: "a gente" ch ora como todo mundo chora; "a gente" sofre
interrogação do fenômeno, isto é, do que é dado imediatam ente. como todo mu ndo sofre, "a gente" se alegra como todo mundo se alegra,
O e xi stencialismo é um a corrente da F ilosofia, que toma com o principal
pelos mesmos motivos que todo mundo chora, so fr e e se alegra. Em uma
centro de interesse e consideração a experiência mais imediata do ho- primeira aproximação, esse contexto nos aparece como algo aterrador e
mem, ou seja, sua pr ópria existência. Insurgiu-se contra a filosofia e a aprisionante, porque nos tira a possibilidade da autenticidade. No entanto,
teologia racional em favor do sujeito, e este com a responsabilidade essa é uma estrutura ambígua, porque na realidade ela é um a possibilidade
total de sua existência. de fuga dessa mesma autenticidade.
To da a hi st ór ia da fil os of ia na sc e a pa rt ir do es qu ec im en to da qu es tã o d o A nossa vivência mais cotidi an a dessa estrutura é a da hospita li dade, do
ser. A filosofia instaura a dicotomia sujeito-objeto, a partir da ascenção amparo e do enredamento. _E como se soubéssemos e escapássemos da pos-
do sujeito como senhor do ente, que acaba enclausura do em si mesmo. sibilidade de uma vivência mais singular, que nos coloca fora dessa proteção.
Heidegger retoma os pré-socráticos, onde a questão do ser e do não-ser Do que escapamos é da angústia
já est á pre sent e. Desloca a que stão d a sub jetivid ade que a té en tão im-
pera na Filosofia. Partindo do constructo "ser-aí" (Dasein), que substitui "A angústia faz pa tente no ser-aí, o ser relativamente ao mais
as noções tradicionais de sujeito, homem, indivíduo, como ser-no-mun- peculiar poder ser, quer dizer, o ser livre para a liberdade de
do, quebra a dua li dade sujeito-objeto, reestabelecendo a importância eleger-se e empunhar-se a si mesmo". (Ser e Tempo, p. 208)
1 44 Morte e desenvolvimento hum ano Mo rt e abordagem fenomenológico -
existencial 1 4 5
A angústia é a forma autêntica do temor, que é a nossa vivência mais O ser-aí é ser para a morte. O ser-aí já está sempre l an çado em suas
cotidi a n a. possibilidades, e a morte é a possibilidade mais peculiar, irrefutável e
irrepresentável.
Teme r é sem pre t emer algo, alg o frente a mim por um porquê . O n osso
mais pecu li ar poder ser, do qual nos esquivamos, é a m orte. A angústia nos abre este ser relativamente à morte que é ameaçador,
estranho e inóspito; nos esquivamos e habitamos um mundo protegido,
A mo rt e é um fenômeno do cotidiano. Vivemos sempre a morte como a presumível, onde a m orte aparece como um acidente no fmal da vida,
morte do ou tr o. Os ou tr os morrem e eu ainda não. A minha morte, eu penso que não é hoje.
amanhã. Nós nos esquivamos da possibi li dade da singularização da mo rt e.
No texto de Simone de Beauvoir fica patente a ameaça, a inospitalida-
A morte é a possibilidade mais peculiar, irrefutável e irrepresentável do
de, o estranhamento da imortalidade. Características tão hum an as
ser-aí. Dentro de todas as minhas p ossibilidades, já está presente a abso-
quanto avançar, lembrar, se desesperar, se matar, ficam assim impossi-
luta impossibilidade de não estar mais aí bilitadas. Só lhe resta continuar. Um continuar sem projetos, sem senti-
A angústia é um fenômeno raro em nossa existência e quando passa, parece do, sem ligação temporal.
que foi um nada. A angústia põe de manifesto a possibilidade da autentici-
Na a bertura privilegiada da angú stia, nos angustiamos pelo ser no mun-
dade e da inautenticidade, ou seja, a p ossibilidade do ser-aí, ser o autor da
do enquanto tal. Nos deparamos com a falta de sentido no mundo, que
sua história, a pa rt ir da construção, ou não, de um sentido.
não nos pode mais sustentar. Assim, nos apropriamos de que só nós
" Que faria agora? Iria levantar-me e continuar a viver? Catarina podemos nos dar esta sustentação, ou seja, ser o autor do sentido de
estava morta, Antônio, Beatriz, Carlier, todos os que eu amara es- minha existência.
tavam mortos, e eu continuava a viver; estava presente, o mesmo há
séculos; meu coração podia bater durante um momento, de pieda- No cotidiano vivemos afastando essa possibilidade de nós m esmos. Acre-
de, de revolta, de desespero; mas eu esquecia. Enfiei os dedos na ditamos que amanhã semp re haverá tempo. Só, por isso nos envolvemos
terra e disse com desespero: "Não quero". Um homem mortal teria em projetos, acreditando que eles poderão se concretizar e qu e sempre
podido recusar-se a continuar seu caminho, poderia ter eternizado teremos tempo para isso.
a revolta, poderia matar-se. Mas eu era escravo da vida que me
puxava para a frente, para a indiferença e para o esquecimento. Na vida de Fosca não e xi ste a possibilidade da morte. Esta é vivida como
Era vão resistir. Levantei-me e tomei lentamente o caminho de perda das pessoas com as qu ais se envolve.
casa". (S. de Beauvoir, Todos os homens são m ortais, p. 326)
Em nosso e xi stir essas perdas são vividas como morte factual, separações,
Em Todos os homens são mo rt ais, Simone de Beauvoir se utiliza de um término ou interrupção de um p rojeto.
personagem mortal (Fosca), que tem a experiência da imortalidade.
Essa construção nos leva a conhecer os sentimentos ambivalentes do Fosca se desespera ante a possibilidade do esquecimento das perdas, res-
personagem que, se em um primeiro momento se fascina, acaba por sentindo-se de não poder eternizá-las nesse momento.
viver sua imortalidade como danação, um a vez que, ao usar o elixir que
lhe dá a vida eterna, já não pode mais m orrer. "A gente" cuida das perdas tent a n do minimizá-las, pensando que haverá
sempre outra oportunidade, pens a n do que sempre aprendemos alguma coi-
Não é o nosso caso. A mo rt e para nós não é uma escolha, todos vamos sa com isso, fazendo substituições. Assim nos esquivamos da consciência do
morrer. fim. Não existe recomeço, não existe substituição, não é possível esquecer.
1 4 6 Morte e desenvolvimento humano Morte abordagem fenomenológico -existencial
14 7
Nossas perdas, assim como ganhos, nossos erros e ace rt os, nos constróem, " Olhei meus sapatos de fivela, minhas mangas de rendas; parecia-
ou seja, sou eu quem perde, quem g a n ha, quem erra, quem acerta.... me que há vinte anos eu me prestava a esse brinquedo e que um
dia, ao soar a meia-noite, eu retornaria ao país das sombras. Ergui
A todo momento temos de escolher. A cada escolha que fazemos decre- os olhos para a pêndula. Acima do mostrador dourado, uma pasto-
tamos a morte da outra possibilidade não escolhida. Isso freqüentemente ra de porcelana sorria para um p astor; dentro em pouco, o p ontei-
nos traz ansiedade frente ao conflito de não podermos viver tudo ao m es- ro assinalaria meia-noite, assinalaria meia-noite amanhã, depois de
mo tempo, de não podermos estar em mais que em um lugar ao mesmo amanhã, e eu ainda estaria presente; não havia outro país senão
tempo. O ser-aí m orre cotidianamente todos os dias. aquela terra onde não havia lugar para mim. Estivera na minha
terra em Carmona e na corte de Carlos V, e nunca mais. Doravan-
" Mas eu era escravo da vida que me puxava para a frente, para o te, o tempo que se desenrolava à minha frente seria, a perder de
esquecimento. Era vão resistir. Levantei-me e tomei lentamente o vista, um tempo de exilio; todas as minhas vestimentas seriam fan-
caminho de casa." (Simone de Beauvoir, op. cit., p. 326.) tasias e minha vida, uma comédia." (S. de Beauvoir, op. cit., p. 276)
Em nosso mais cotidiano modo de ser, nos vemos como escravos do Presente, passado e futuro; é assim que entendemos o tempo. Dentro
tempo. O tempo passa, nos carrega para a frente, sem parada, sem dessa leitura podemos falar separadamente de cada tempo, conforme
sentido, levando-nos ao esquecimento e à indiferença. Esse é o cam inho estejamos mais próximos de um ou de outro, e isso é sempre compreen-
de casa. A ssim nos sentimos abrigados, fugindo da responsabilidade dido por todos. No passado fiz tal coisa, amanhã farei alguma coisa e
temporal do projeto de nossa existência. agora estou fazendo isso.
O ser-aí é lançado, lançado em suas p ossibilidades no seu tempo, a fim de No horizonte da temporalidade circular de Ser e Tempo essa separação não
si mesmo. Meu projeto aponta para um futuro que ainda não é, mas que é possível. Na perspectiva do sentido não vivemos um tempo, somos tempo.
poderá vir a ser, e que também poderá não ser, uma vez que está implíci- Fosca, na medida em que se vê como imortal, sente-se invadido por um
to nas m inhas possibilidades a de já não estar mais aí presente interminável, pesado como um exílio. Para ele o tempo passa,
Dentro desta perspectiva, cabe-nos a adoção de um sentido que transfor- nada acontece de verdade e nada poderá acontecer, uma vez que o
ma a leitura desse tempo. Assim m e vejo como ser finito e responsável futuro é só uma extensão desse presente, assim como o passado.
pela minha existência. Meu futuro já foi projetado por mim, impulsionado O sentido foi exilado de sua existência pela vivência de imortalidade, nada
pelo meu passado do qu al me utilizo no presente. pode significar nada.
Na perspec tiva do sentido, o passado tem significado como o já vivido, que Fosca lamenta o tempo todo q uanto é inóspita a imortalidade. "A gente"
passa a ser acolhido, possibilit a n do que nos lancemos em projetos. Ao nos sempre pensa que seria m uito bom ser imortal. Fosca nos mostra quan-
lançarmos nesses projetos o passado é ressignificado a serviço deste futuro. to é impossível a realização dessa fantasia.
Para Fosca, como não é d ada a possibilidade do morrer, a circularidade Morrer é um dado estruturante de nossa existência. Todo ser-aí é ser
não existe. Fosca não consegue ver um sentido no seu viver. O sentido é para a morte.
• decorrente da possibilidade de um futuro finito. AFosca só resta o esque-
cimento e a indiferença. O passa do não pode ser acolhido, ressignificado, Toda a concep ção qu e tem os do que é home m, ser hum ano, su jeito ou
porque é uma repetição infinita. Às vezes, se engana, se envolve com indivíduo fica perpassada pela idéia de mo rt alidade. Só podemos entender
pessoas e conseqüentemente com projetos. Percebe seu engano quando algum sentimento, algum afeto, alguma m an ifestação intelectual ou social, a
assiste o morrer dessas pessoas. Desespera-se. Só lhe resta continuar.... pa rt ir desse dado. Pois assim temos a noção de ser com o todo mundo é, e
1 48 Morte e desenvolvimento hum ano
só assim podemos nos relacionar com os outros. Só assim frases como: Capítulo 9
"morrer por", "morrer de", até "morrer"... fazem sentido.
" - Tudo era falso - repetia ela - Não sofremos dentro do mesmo
tempo e tu m e amas do fundo de outro mundo. Estás perdido para
mi m MORTE, SEPARAÇÃO, PERDAS
- Não. Agora é que nos encontramos porque agora vamos viver E O PROCESSO DE LUTO
dentro da verdade.
- Nada pode ser verdadeiro de ti para mim.
- Meu am or é verdadeiro. Maria Júlia Kovács
- Que é teu amor? Quando dois seres mortais se amam , são mol-
dados, corpo e alma, pelo seu amor, que é a própria substância
desse corpo e dessa alma. Para ti...é um acidente." (S. Beauvoir, op . Eros e Morte
cit., p. 320.)
"Era uma tarde quente e abafad a, e Eros, cansado de brincar e
derrubado pelo calor, abrigou-se numa caverna fresca e escura.
Fosca se exilou desse mundo, ou seja o único que ele e nós c onhecemos.
Era a caverna da p rópria Morte.
Está impossibilitado do com partilhar. Não é mais desse mundo, portan- Eros, querendo ap enas descansar, jogou-se displicentemente ao
to, esse mundo não lhe dá mais sentido nem sustentação. Tudo o que chão, tão descuidadamente que todas as suas flechas caíram.
existe é o vazio da angústia. Q u an do ele acordou percebeu que elas tinham se misturado com
as flechas da Morte, que estavam espalhadas no solo da caverna.
Fosca se a n gustia porque é um personagem mortal, escrito por uma auto- Eram tão p arecidas que Eros não c onseguia distingui-las.
ra mortal, para leitores mortais. Tudo o que pode ser com partilhado tem No entanto, ele sabia quantas flechas tinha consigo e ajuntou a
o recorte da mortalidade. quantia certa.
Naturalmente, Eros levou algumas flechas que pertenciam à
" - Não há mais o que contar - disse Fosca - . Todos os dias o sol Morte e de ix ou algumas das suas.
lev a n tou-se e deitou-se. Entrei no hospício, saí do hospício. Houve E é assim que vemos, freqüentemente, os corações dos velhos e
guerras: depois da guerra, a paz; d epois da paz, outra guerra. To- dos moribundos, atingidos pelas flechas d o Amor, e às vezes,
dos os dias homens nascem e homens m orrem." (S. Beauvoir, op. vemos os corações dos jovens capturados pela Morte. (Esopo,
cit., p. 391.) Grécia Antiga, in Meltzer, 1984.)
A morte do outro configura-se como a vivência da morte em vida. É a
possibilidade de experiência da morte que não é a própria, mas é vivida
Referências Bibliográficas como se uma parte nossa morresse, uma parte ligada ao outro pelos vín-
culos estabelecidos.
BEAUVOIR, S. - Todos os homens sã o mortais.. Rio de Janeiro, Nova E a morte da qual todos temos recordações, desde a m ais tenra infância,
Fronteira, 198 3. nas inevitáveis situações de separação da figura materna temporárias ou
definitivas, mas sempre dolorosas. Separação ou morte de figuras paren-
HEIDEGGER, M. - EI ser y el tiempo. Buenos Aires, Fondo de Cultura tais, amigos, amores, filhos, todos temos histórias a contar. A perda e a
Economica, 1980. sua elaboração são elementos contínuos no processo de desenvolvimento
1 50 Morte e desenvolvimento humano rt e,
e , separação, perdas e o processo de luto
Mo rt 1 51
humano. E neste sentido que a perda pode ser cham ada de morte "cons- tida e digna, assumindo o controle dos rituais e dit an do as formas de
ciente" ou de morte vivida. comportamento adequadas.
A morte como perda nos fala em primeiro lugar de um vínculo que se No século XIX, a morte romântica traz em seu bojo a idéia da morte
rompe, de forma irreversível,
irreversível, sobretudo quando ocorre perda real e con- como uma ruptura insuportável, porque representa a morte do outro. E o
creta. Nesta representação de morte estão envolvidas
envolvidas duas p essoas: uma período das grandes explosões sentimentais, a tristeza e a dor c a n tadas
que é "perdida" e a outra que lamenta esta falta, um pedaço de si que se em verso ou prosa. Era m uito freqüente morrer de amor, se o outro mor-
foi. O outro é em parte internalizado nas memórias e lembr an ças, na re, morro também. Está aí estabelecida a relação entre as perdas e o
situação de luto elaborado. A morte como perda evoca sentimentos for- suicídio. Romeu e Julieta são os grandes protagonistas do amor, da sepa-
tes, pode ser então chamada de "morte sentimento" e é vivida por todos ração e da morte, sendo este também o grande a rgumento das óperas
nós. E impossível encontrar um ser humano que nunca tenha vivido uma dramáticas.
perda. Ela é vivenciada conscientemente, por isso é, muitas vezes, mais
temida do que a própria morte. Como esta última não pode ser vivida O século XX segundo Aries, traz a representação da "morte invertida"
concretamente, a única morte experienciada é a perda, quer concreta, (ver capítulo
capítulo 3). É a m orte que se esconde e que é vergonhosa, o grande
quer simbólica. fracasso da humanidade. Há um a supressão da manifestação do luto, a
sociedade condena a expressão e a vivência
vivência da dor, atribuindo-lhes
atribuindo-lhes uma
A morte como perda supõe um sentimento,
sentimento, uma pessoa e um temp o. É a qualidade de fraqueza. Há uma ex igência de domínio e controle.
controle. A socie-
morte que envolve basicamente, a relação entre pessoas. Se ocorre de dade capitalista, centrada na produção, não suporta ver os sinais da m or-
maneira brusca e inesperada tem uma potencialidade de desorganização, te. Os rituais do nosso tempo clamam pelo ocultamento e disfarce da
para li sação e impotência. As a ções do cotidiano, como falar, atravessar
morte, como se esta não existisse. As crianças devem ser afastadas do seu
uma rua, cuidar do outro, alimentar-se são matizadas pelo constrangi- cenário, como se esta não ocorresse. Esta supressão do p rocesso de luto
mento do inusitado
inusitado em duas situações: diante
diante da próp ria perda e diante traz sérias conseqüências do ponto de vista psicopatológico.
psicopatológico. Sabe-se q ue
de alguém que perdeu alguém. Embora saibamos racionalmente que a muitas doenças psíquicas podem estar relacionadas com um processo de
morte é inevitável, este saber nem sempre está presente, fazendo surgir o luto mal-elaborado.
paradoxo da morte (in)esperada. Em casos extremos a morte invade de
tal forma a vida que passa a fazer parte dela. O processo de luto p or definição é um conjunto de reações diante de um a
perda. Bow lby (1985 ) refere-se às quatro fases do luto:
Ver a perda como uma fatalidade, ocultar os sentimentos, eliminar a dor,
apontar o crescimento possível diante dela, podem ser formas de negar os 1. Fase de choque que tem a duração de algum as horas ou semanas e
sentimentos que a morte provoca, para nã o sofrer. pode vir acompanhada de manifestações de desespero ou de raiva.
Sabe-se que a expressão de sentimentos nessas ocasiões é fundamental 2. Fase de desejo e busca da figura perdida, que pode durar também
para o desenvolvimento do processo de luto. No entanto, as m anifesta- meses ou anos.
ções diante da perda e do luto sofreram alterações no decorrer dos tem-
pos. Cada cultura apresenta algumas prescrições de como a morte deve 3. Fase de desorganização e desespero.
ser enfrentada e quais os comportamentos e rituais
rituais que devem ser cum -
4. Fase de alguma organização.
pridos pelos enlutados. Segundo Aries (1977), na Idade Média era autori-
zada a manifestação dos sentimentos diante de uma perda. C om o desen- Na fase de choque o indivíduo
indivíduo pode p arecer desligado,
desligado, embora m anifeste
anifeste
volvimento do poder da Igreja esta passou a exigir uma atitude mais con- um nível alto de tensão. Ocorrem expressões emocionais intensas, ata-
1 52 Morte e desenvolvimento humano Morte, separação, perdas e o proc esso de luto 1 53
ques de pânico e raiva. A companhia de outras pessoas é muito importan- Na fase de reorganização se processa uma aceitação da perda definitiva e
te neste período. a constatação de que uma nova vida precisa ser começada. Muitos viúvos
Na segunda fase há a expressão do desejo da presença e busca da pessoa e viúvas têm de aprender habilidades novas, que nunca foram exercitadas,
perdida. A raiva pode estar presente quando há a percepção de que houve porque eram função do morto como por exemplo: guiar, manipular con-
efetivamente uma perda , provocando desespero,
desespero, inquietação, insônia e tas bancárias, cuidar da casa e das crianças, dentre outras. Estes
Estes momen-
preocupação. Ao mesmo tempo, existe a ilusão de que talvez tudo não te- tos podem trazer saudades e a necessidade da presença do outro nova-
nha passado de um pesadelo e de que nada mudou. A pessoa fica atenta a mente. Portanto, embora numa fase de aceitação e de novas buscas, a
quaisquer sinais ou ruídos, que podem confirmar esta f a a n tasia do possível saudade, a tristeza podem retornar, tornando o processo de luto gradual,
retorno. Dois processos contraditórios coexistem, a rea li dade da perda, com e nunca totalmente concluído. Alguns buscam novos relacionamentos,
todos os sentimentos que a acomp an ham, e a esper a n ça do reencontro. A como forma de dar continuidade à vida. Podem ocorrer escolhas
escolhas basea-
raiva pode ocorrer neste período, quando o enlutado se sente responsável das na manutenção das caraterísticas do ser perdido, com as conseqüen-
pela morte do outro, ou pela frustração da busca inút il . Pode também apa- tes dificuldades que este processo acarreta. Outros permanecem sós, por-
recer quando há o sentimento de que o morto não se cuidou de forma que crêem que nenhuma relação pode entrar no lugar daquela que foi
adequada, evoc a n do então a sensação de ab an dono. Esta raiva pode se perdida. Todos estes aspectos fazem parte do processo de elaboração da
manifestar como irritabilidade ou uma profunda amargura. perda.
A raiva torna-se instrumental, quando se trata de uma perda temporária, Em algumas fases do processo de luto podem acontecer identificações
porque pode promover um reencontro e tornar uma nova separação mais com o morto, por
por exemplo, quando a pessoa se p ercebe fazendo coisas
difícil. Este mesmo procedimento costuma
costuma ser usado em relação a uma de que o outro gostava. Podem ocorrer conflito e mal-estar quando a
perda definitiva, como uma tentativa de recuperar um vínculo que foi p°ssoa, de repente, se percebe fazendo coisas que nunca fazia, nem
rompido, embora seja obviamente ineficiente neste caso. Enqu an to per- gostava, que eram as atividades do cônjuge. Estes processos, que seriam
sistir a raiva é porque a perda nã o foi aceita, e ainda existe uma esperan- considerados
considerados patológicos em outras instâncias,
instâncias, fazem parte normalmen-
ça. Esta raiva é, m uitas vezes, transferida para os amigos que estão no te do processo de luto. Eles se tornam patológicos se forem com pulsiva-
papel de consolar o enlutado, mas que indiretamente confirmam a reali- mente repetidos. A identificação pode ocorrer também quando o enlu-
dade da perda. O corre a busca inút il de alguém, que possa dizer que a tado passa a manifestar os mesmos sintomas do morto, acredita que o
perda não ocorreu, que foi tudo um sonho. morto está presente em certos objetos
objetos ou pessoas. Conforme o grau e a
perda de contato com a realidade, estes fatos podem ser indicativos de
A esperança intermitente, os desapontamentos repetidos, o choro, a aspectos patológicos.
raiva, as acusações, a ingratidão com as p essoas próximas, são manifes-
tações da segunda fase do luto. Uma profunda tristeza
tristeza é sentida quando Durante o período de elaboração do luto podem ocorrer distúrbios na ali-
ocorre a constatação da perda como definitiva. Pode haver a sensação mentação ou no sono. Um núm ero grande de enlutados apresenta quadros
de que nada mais tem valor, muitas vezes acompanhada de um desejo somáticos e doenças graves depois do luto, podendo se configurar uma
de morte, pois a vida sem o outro não vale a pena . Nestes momentos depressão reativa ou até um quadro mais grave, como veremos a seguir.
podem ocorrer atuações, tais como se desfazer rapidamente de todos os
pertences do morto e, ao mesm o tempo, uma tentativa de guardar todos O tempo de luto é variável e em alguns casos pode durar a nos. Pode-se
os objetos
objetos que lembrem momentos felizes; são ações contraditórias e dizer que em alguns casos o processo de luto nunca termina, com o pas-
muitas vezes concomitantes. Conciliar estes desejos tão opostos são ta- sar do tempo, uma profunda tristeza, um desespero e um desânimo to-
refas das últimas fases do luto. mam conta, quando se recorda o morto, embora estes sentimentos ocor-
Morte e desenvolvimento humano Morte, separação, perdas e o processo de luto 1 5 5
15 4
ram com menos freqüência. O traço mais permanente no luto é um senti- Estamos considerando aqui as perdas onde e xi stia um vínculo, portanto,
mento de solidão. um investimento afetivo. Qu an to maior este investimento, t an to maior a
energia necessária
necessária para o desligamento. Estes fatos
fatos se agravam, quando
Para Raimb ault (1979) para rea lizar-se o processo de luto é necessário: e xi stia antes uma dependência física ou psíquica com o morto, torn a n do a
reorganização da vida ainda m ais difícil.
1. Uma desidentificação e um desligamento dos sentimentos em relação
ao morto. As causas e circunstâncias da perda também têm uma importância no
processo de elaboração desta.
2. A aceitação da inevitabilidade da morte.
Mortes inesperadas são bastante comp licadas, pela sua característica de
3. Qua n do for possível encontrar um substituto para a libido desinvestida. ruptura brusca, sem que pu desse haver nenhum
nenhum preparo. A mutilação do
corpo, costuma ser um fator agravante, acarretando
acarretando freqüentemente re-
Se não tiver ocorrido este desligamento
desligamento do objeto perdido, em cada nova
volta e desespero. Sabe-se que o estado em que fica o morto, pode ter
relação se buscará c oisas da anterior, com conseqüências desastrosas. fortes influências nas memórias e lembranças, que se têm dele. Em casos
Como foi visto
visto é necessário tempo para o processo de luto. O final deste de morte repentina, quando não há informações de como ocorreu, pode
processo, segundo Raimbault, é a possibilidade de ter paz, disponibilida- haver dificuldades
dificuldades no processo de luto consciente.
consciente. Podem se manifestar
de para novos investimentos. E a possibilidade de ter recordações, olhar sentimentos de culpa muito fortes, caso a morte tenha ocorrido num aci-
uma foto e sentir a presença na ausência. dente, em que o enlutado também estava presente e sobreviveu. Às vezes
este fato conduz a ideações de acompanhar o m orto.
Bowlby levanta alguns aspectos, que podem afetar o processo de luto e
que talvez facilitem a evolução de um quadro patológico. Ele chama aten- No caso de doenças graves, em qu e houve um p eríodo longo
longo de cuidados
ção para cinco pontos importantes: com o morto, é provável surgirem outros sentimentos.
sentimentos. Nestes casos pode
ocorrer o que se c hama de "luto antecipatório".
antecipatório". O processo de luto ocorre
1. Identidade e papel da pessoa que foi perdida. com a pessoa ainda viva, e é sentida a sua perda como companheiro para
uma série de atividades, daquele que cuida, do parceiro sexual, do colega
2. Idade e sexo do enlutado. de trabalho. A pessoa ainda não morreu, mas estas perdas já têm de ser
elaborad as , com ela ainda viva e de ambos os lados. Muitas vezes, observa-
3. As causas e circunstâncias da perda. se uma degeneração física ou psíquica. Este processo pode gerar sentimen-
tos ambivalentes naquele que cuida, surgindo o desejo de que o parente ou
4. As circunstâncias sociais e psicólogicas que afetam o enlutado, na
cônjuge morra para a liviar o sofrimento de ambos despe rtan do a culpa por
época e após a perda.
estes sentimentos. Ver a dor e sentir-se impotente para promover seu o
5. A personalidade do enlutado, com especial referência a sua capacida- alívio e o bem-estar da pessoa amada é causa de muito so fr imento. Portan-
de de amar e responder a situações estressantes. to, a morte do doente pode tr azer um certo alívio, mas, também, incitar
sentimentos de culpa, pois a pessoa acredita que não tratou o ou tr o da
Cada uma destas caraterísticas pode facilitar ou dificultar o processo de melhor forma possível e com isso não evitou a sua morte.
luto. Temos de levar em conta as caraterísticas de persona lidade
li dade do enlu-
tado an tes da perda: se era uma pessoa centrada, equilibrada,
equilibrada, ouse era Em alguns casos, foram tantos anos de dedicação com o paciente, qu e
fr ágil ou desestruturada. A perda é considerada como u m a crise e que quando este morre, fica a sensação de vazio, porque nenhum a ou tr a ativi-
será enfrentada com as caraterísticas que a pessoa já possuía. dade tinha espaço. Preencher este vazio pode ser uma tarefa muito pen o-
1 56 Morte e desenvolvimento hum ano Morte, separação, perdas e o processo de luto 1
5
7
sa, dificultando o processo de luto. Somente parte destes sentimentos são perda ocorra, porque a c rian ça sempre esp era a volta d o morto. Muitas
conscientes, alguns são tão dolorosos que permanecem inconscientes. vezes, os pais escondem os seus sentimentos para não ent ristecer a cri an ça,
e este procedimento acaba por causar mais problemas, pois esta sente que
O relacionamento do sobrevivente com o morto também in fl ui no proces- também não deve manifestar os seus sentimentos.
so de luto. Relacionamentos carregados de hosti li dade, ressentimento e
mágoa são m ais difíceis de serem elaborados. Existe uma imagem mu ito A criança passa p elas mesmas fases de luto que o adulto, desde que esteja
forte que se li ga aos últimos momentos que se passou com o morto. É de posse dos esclarecimentos de que necessita e que devem ser forneci-
muito desesperante se um pouco a n tes da morte houve desentendimento, dos, levando-se em conta o seu nível cognitivo e capacidade de com-
mágoa, ofensa, com muito ressentimento. Estes sentimentos persistem preensão. É sabido que a continência e o apoio são extremamente impor-
após a morte, caus an do muito sofrimento ao sobrevivente e p odendo vir tantes para a criança. A falsa noção de que "proteger" a criança da dor,
acompanhados de um sentimento de culpa pertinaz, por ele se julgar o escondendo fatos que são evidentes é uma das principa is razões para a
causador da morte do outro. Como o ser humano se torna onipotente manifestação de sintomas patológicos na criança. É um mito supor que o
quando se vê di an te de tanta dor! Será que sentimentos são tão fortes que
processo de luto da criança é rápido e que logo ela se esquecerá da
podem assassinar uma outra pessoa? O luto traz revivências de formas de
pessoa perdida. Estudos realizados com bebês, nos quais já ocorreu o
ser inf an tis, com as suas caraterísticas mágicas e todo-poderosas.
estabelecimento de vínculos específicos, demonstram que a cri an ça se de-
O suicídio é uma das mortes mais difíceis de elaborar, pela forte culpa sespera na ausência da mãe, que é sentida como morte. Suas primeiras
que desperta. Ativa a sensação de abandono e impotência em quem fica. reações são de protesto e raiva, um esforço urgente para recup erar a mãe.
O enlutado, além de lidar com a sua própria culpa, é freqüentemente alvo Logo se desenvolve um desespero, a esperança diminui, m as não o desejo,
de suspeita da saciedade como sendo o responsável pela morte do outro. a criança então vai se tornando apática, podendo cessar o seu desenvolvi-
Em m uitos caos, há uma dificuldade de desligamento da libido pela rup- mento, e nos casos mais críticos desenvolve-se a depressão an aclítica,
tura inesperada. conduzindo à morte. Quando há o reencontro, em alguns casos, a criança
está tão abalada que nã o restabelece o vínculo prontamente. Em outros
Outros fatores psicológicos e sociais também afetam o luto, como por casos, um substituto pode ser procurado. Com crianças institucionaliza-
exemplo as condições de vida do sobrevivente, se vive sozinho, se tem de das, como não há uma pessoa única que cuida delas, este vínculo mais
cuidar de outras pessoas, além das condições econômicas e da idade. É profundo não se estabelece, e a criança pode tornar-se muito autocentra-
claro que estes fatores, por si só, não são os únicos responsáveis pelo da, às vezes com comportamentos autistas.
processo de luto, mas podem afetar o seu desenvolvimento.
Bowlby fez um estudo sobre o luto infantil e percebeu que este sofre in- Qual a diferença entre o processo de luto normal e o patológico? Para
fluência do processo de luto dos adultos, e também do nível de informação Bowlby, a exacerbação dos processos presentes no luto normal, com uma
que a c rian ça recebeu, como foi visto no capítulo 4. Segundo Raimbault duração muito longa e com características de obsessividade, configuram
(1979), a criança tal como o a dulto começa neg an do que houve uma perda um processo patológico. O que se define como luto saudável é a aceitação
e age como se a pessoa não tivesse mor ri do. Em virtude do pensamento da modificação do mundo externo, ligada à perda definitiva do outro, e a
mágico acha que é responsável pela morte do outro. Pode também apresen- conseqüente modificação do mundo interno e represen tacional, com a
tar processos identificatórios com sintomas semelhantes aos da pessoa mor- reorganização dos vínculos que permaneceram. Os processos defensivos
ta. Informações sonegadas e confusas atrapalham o processo de luto. Res- são constituintes regulares de todo o processo de luto, em qualquer ida-
postas que escamoteiam o caráter de permanência da m orte, que é a infor- de, e se tornam patológicos quando assumem caráter irreversível, fazen-
mação mais difícil de ser comunicada, não permitem que a elaboração da do parte integrante da vida.
158
M orteedesenvolviment
o humano
Em seu texto "Luto e Melanco li a", Freud apresenta um estudo aprofundado Morte, separação, perdas e o processo de luto
1 59
sobre o processo normal e patológico de luto, sendo o último o que denomi- trada. Quando o indivíduo expressa as autorecriminações, elas parecem
nou como melancolia e que tem diferenças em seu desenvolvimento. Para ser mais ligadas à pessoa amada, mas foram deslocadas desta para o ego
Freud, o luto é a reação à perda de um ente querido. Há uma série de do paciente. A relação fica destruída, há uma separação, um desligamen-
reações anormais neste sujeito sem que sejam consideradas patológicas. to da libido, que, sem ser transferida para outro objeto, é deslocada para
Ocorre um profundo desânimo, cessação de interesse pelo mundo externo, o ego e aí ocorre uma identificação do ego com o objeto abandonado.
perda da cap acidade de amar e inibição de atividades externas. A res tr ição Como diz Freud, "uma sombra ca iu sobre o ego e uma perda objetal se
do ego fica vinculada a esta perda. O trabalho do luto envolve um teste de transforma na perda do ego".
realidade, que comprova que o ob jeto não existe mais, e a libido retirada
das li gações com ele. Este processo é extremamente difícil, e emé alguns Segundo Freud, na melancolia há uma escolha do tipo narcísico, báseado
momentos pode ocorrer a fantasia de que a perda efetivamente não ocor- na sua semelhança. Ocorre um a regressão para uma fase anterior do de-
reu, como vimos. O des li gamento envolve lembr a n senvolvimento, a fase oral narcísica, promovendo u m processo de identifi-
ças, expectativas vincula-
das ao objeto e a realização do desinvestimento de cada um a delas, o que cação com o objeto, com a conseqüente incorporação do mesmo.
pode ser lento e d oloroso, mas quando termina o ego permanece li
desinibido para novas possib il idades de vínculo. vre e Outros processos patogênicos que se apresentam e que tornam o luto
patológico são a ambivalência e a culpa. Este processo pode estar incons-
A melancolia, ou o que atualmente pode ser chamado de depressão, se- ciente e os sentimentos de amor e ódio se alternam. O ódio entra em ação
gundo a definição de Abraham nos seus comentários ao texto de Freud, tirando prazer do sofrimento pelas degradações. Este ódio, que será diri-
ocorre em pessoas que têm uma disposição patológica. Na mel an gido contra o outro, passa a atuar internamente, como uma autopunição.
coli a
ocorrem os mesmos sintomas do processo de luto normal, acrescidos de E um processo de vingança contra o objeto perdido, que passa a ser
um rebaixamento da auto-estima, havendo uma autorecriminação e uma torturado pelo sofrimento da pessoa. Esta ocorrência é muito comum nos
expectativa de punição. A melancolia é também uma reação a um objeto processos de separação.
perdido, sem ter ocorrido morte, mas que o su jeito o sente como morto
E patente a ligação da melancolia com o suicídio. Os impulsos assassinos
enquanto objeto de amor. Não fica claro o que foi perdido, nem para a
própria pessoa, pois a perda objetal pode estar inconsciente. Muitas ve- contra o objeto perdido são voltados contra si próprio. A pessoa tende a
zes, parecem esquisitas todas estas manifestações apresentadas, sem uma se ver também como um objeto, e daí dirige para si a hostilidade relacio-
causa aparente. nada com o outro.
Uma das características principais da melancolia é uma diminuição pro- Muitas vezes, a melancolia se transforma em mania, há uma procura vo-
raz de novas ligações.
funda da auto-estima, um empobrecimento do ego. Segundo Freud, se no
luto o mundo se torna vazio, na melancolia é o ego, um ego desprezível, O trabalho de Melanie Klein (1940) estabelece a relação do processo de
que deve ser punido. Sintomas como insônia e anorexia parecem ser uma luto com os estágios iniciais do desenvolvimento infantil, mais particular-
forma de superação do instinto de vida e um modo de punição. A p essoa mente com a fase depressiva.
realmente se sente assim, não é fingimento, e ela repete à exaustão suas
dificuldades, encontrando satisfação em falar do seu sofrimento. A confiança do bebê é estabelecida a través do amor, prazer e conforto,
facilitando a internalização de objetos "bons". Estas experiências dimi-
Na melancolia é como se uma
parte do ego ficasse contra a outra, nã o nuem a ambivalência e os medos de destruição destes objetos. Experiên-
havendo mais conexão com os
fatos da realidade, não adianta checar a cias desagradáveis, ou a falta de experiências amorosas e prazerosas, po-
veracidade com fatos externos,
porque nenhuma correlação será encon- dem diminuir a confiança, aumentar a ambivalência e confirmam a ansie-
dade em relação à aniquilação interna e perseguições externas. A criança
1 6 0 Mo rt e e desenvolvimento humano Morte, separação, perdas e o processo de luto 16 1
sente falta do seio e do leite como os representantes da bondade e da No processo normal de luto o indivíduo reintrojeta e reinstala a pessoa
segurança, que, acredita, foram p erdidos como resultado de suas f a n tasias perdida, bem como seus pais amados que são os objetos internos "bons".
agressivas e destrutivas. Qu a n do ocorre uma p erda, o indivíduo sente que o seu mun do interno foi
destruído.
A flutuação entre a p osição depressiva e a maníaca são partes do desen-
volvimento normal. Segundo a autora, fantasias onipotentes e violentas Muitas tentativas de suicídio podem ser a forma de des t r uir os pais internos
são usadas como forma de controlar os objetos "maus" perigosos. As f an " maus", que frustram, ab an donam e perseguem. Um maior detalhamento
tasias onipotentes, destrutivas e reparadoras entram em todas as ativida- sobre este tema será apresentado no capítulo seguinte sobre o suicídio.
des infantis. No início do desenvolvimento, o ego não tem armas eficazes
A autora conclui que, tanto nos processos de luto normal, como no pato-
para lidar com a culpa e com a an siedade. Este ego infantil busca então
lógico, a posição inf a n til depressiva é reativada. Os indivíduos maníaco-
lidar com os medos da desintegração através de tentativas de reparação,
depressivos e aqueles que não conseguem elaborar o luto têm em comum
que, quando maníacas e obsessivas, não permitem a recriação da paz
o fato de que, na infância, não conseguiram estabelecer os seus objetos
interna e da harmonia.
internos "bons", e não se sentiram seguros no m undo.
A autora estabelece uma conexão entre a posição depressiva infantil e o Até aqui dem os destaque ao processo de luto di an te de perdas definiti-
luto normal. Quando acontece a perda de uma pessoa amada ocorrem vas, como é a m orte. Igor Caruso (1982) em seu trabalho refere-se a um
fantasias inconscientes, por parte do enlutado, de ter perdido seus objetos outro tipo de morte, a separação, que ele relaciona a u ma fenomenologia
internos "bons", sentindo que os seus objetos "maus" predom inam. Seu da morte. Uma das experiências mais dolorosas para o ser hum an o é a
mundo interno está à beira da destruição. Vimos que o enlutado procura separação, que todos, inevitavelmente, viveremos. Segundo Caruso, estu-
em alguns m omentos reinstalar o objeto perdido, como forma de reinsta- dar a separação amorosa é estudar a presença da morte em nossa vida. É
lar os objetos "bons" que sente como perdidos, em última instân cia, os uma morte psíquica na vida dos seres humanos. Separar ou partir é mor-
pais que foram os primeiros objetos internalizados. rer um pouco. A separação pode ser em m uitos casos pior do que a
própria morte, porque significa uma capitulação diante da morte ainda
O enlutado passa por um estado maníaco-depressivo transitório e modifi- em vida. Por outro lado, a separação p ode ser a saída menos dolorosa, em
cado, superando os processos infantis através da sua repetição em diver- alguns casos, porque evita a morte.
sas circunstâncias e com diferentes manifestações. Quando o ódio em
relação ao objeto amado predomina, este se torna persecutório, e afeta a A separação é a vivência da morte num a situação de vida, com Eros pre-
crença nos objetos "bons". sente. Segundo Caruso, desenvolve-se:
3. A indiferença: há um a experiência de "pouco importa". Força-se uma turbada, ab a n dona o próprio ego em favor do amado. A perda na m elan-
diminuição da idealização egóica. Esta indiferença pode ocorrer em colia é uma perda de vida. O melancólico, tão imbuído de seu estado,
meio ao desespero. E um embotamento afetivo, uma repressão das muitas vezes perde o interesse pelo companheiro e s6 se interessa em
f an tasias sexuais. Pode-se traçar uma analogia com a rigidez da mor- viver a sua perda, abandonando então o outro. A melancolia pode ser
te, uma renúncia ao prazer, p ara se evitar o desprazer. considerada como uma vitória da pulsão de morte.
4. A fuga para diante: é uma busca de novas atividades ou de novas for- No processo do amor e da separação estão presentes duas forças antagô-
mas de prazer. Procuram -se intensamente novas relações, como substi- nicas, por um lado, e complementares, por outro, como vimos no capítulo
tuição ao parceiro perdido. O ego so fr edor necessita de consolo. do Dr. Cassorla. São as forças de a mor/ódio e vida/morte. As forças de
amor e vida podem estar presentes em situações de vida, quando a morte
5. A idealização: é uma form a de depuração, um a filosofia estóica, he- aparece como escape para a dor e a destruição de uma separação. A
róica. É uma rebelião contra o processo de "morte" que procura se agressividade ocorre tamb ém, algumas vezes, nas relações amorosas, no
instalar processo de conquista.
Os mecanismos de defesa, como Caruso diz, são "frágeis vitórias contra a A separação pode ser vista como um fracasso do amor, onde pode-se
morte", e são acionados como forma de proteção ao aniquilamento do verificar a irrupção dos impulsos sado-masoquistas. O sofrimento muitas
ego, evitando a destruição e a p erturbação dos ideais. vezes constitui um elemento de prazer, ama-se um pouco morrer, há ele-
A separação traz o sentimento de "nunca mais", como na situação de mentos libidinais na autodestruição, que são os c omponentes masoquistas
morte, só que o companheiro não morreu. Este m esmo mecanismo pode da separação.
levar o separado a almejar a morte como forma de escape de tão profun-
As várias fases do desenvolvimento são também ex periências de morte em
da dor, principalmente quando vem acompanhado da crença de que exis-
vida. O desenvolvimento futuro representa perda, morte e sacrifício de
te uma vida depois da morte, que é sempre fantasiada como muito mais
formas anteriores. Como nos dizem Aberastury e Knobel (1973), o ado-
feliz do que a atual. Esta é mais uma razão para os freqüentes suicídios lescente tem de realizar o luto do corpo, da identidade e dos pais inf a n tis.
após a separa ção, mesmo que somente como elemento desencadeador.
Há a perda de algo conhecido e a angústia diante do novo. A velhice é
Como veremos no próximo capítulo, o suicídio pode ser um elemento
também u m mom ento de profundas separações, onde o indivíduo tem de
preventivo contra uma separação; quando o indivíduo sente a relação
se despedir do trabalho, dos familiares, do seu corpo e pertences e final-
ameaçada e o p erigo de abandono, mata-se antes de viver a separação.
mente da própria vida.
A separação também estimula desejos de morte contra o companheiro, se
De todos os aspectos que vimos até agora, podemos observar que as p er-
não concretamente, então internamente como possibilidade: é a tentativa
das e a sua elaboração fazem parte d o cotidiano, já que são vividas em
de esquecer, através do processo de desligamento libidinal. Ocorrem t an
todos os momentos do desenvolvimento humano. São as perdas por mor-
to a depreciação, como desvalorização, onde todos os elementos negati-
te, as separações amorosas, bem como, as perdas consideradas como "pe-
vos são projetados no outro, ou seja, os aspectos de "sombra" segundo o
quenas mortes", como, por exem plo, as fases do desenvolvimento, da in-
conceito junguiano. Em op osição pode ocorrer a idealização do outro.
fância para a adolescência, vida adulta e velhice. São também vividas
Estes sentimentos ambivalentes e contraditórios costumam estar presen- como "pequenas mortes" mudanças de casa, de emprego. O matrimônio e
tes conjuntamente. A melancolia ocorre também nos processos de separa- o nascimento do filho também são "mortes simbólicas", onde uma pessoa
ção. O objeto é introjetado no ego, e a perda é sentida como aniquila- perde algo "conhecido", como o papel de solteiro e o de filho, e vive o
mento do próprio eu. 0 melancólico é um amante qu e, de maneira con- "desconhecido" de ser cônjuge ou pai. Estas situações podem despertar
1 6 4 Mo rt e e desenvolvimento humano
ABERASTURY, A. e KNOBEL, M. - La adolescencia normal B.A. , Ed. Esta é realmente a questão fundamental, a vida va le ou não à pena ser
Paidós, 1973. vivida? O suicídio inclui uma gam a de situações muito complexas, cujos
contornos são vagos e indefmidos. Ter clareza quando se trata efetiva-
AIRES, P. - A história da morte no Ocidente. Rio de Janeiro, Francisco mente de su icídio, ou de acidentes, acaso, homicídio, doença ou quais-
Alves, 1977. quer outros atos autodestrutivos é muito difícil. Veremos neste capítulo
como vários autores procuraram compreender este problema. Arrolare-
BOWLBY, J. - Apego, perda e separação. São Paulo, Martins Fontes, 1985.
mos hipóteses, tentativas de explicação e tratamento de um problema tão
CARUSO, I. - A separação dos amantes. São Paulo, Diadorim Cortez, profundo. Estaremos apenas tangenciando alguns dos pontos essenciais
1982. para a discussão do suicídio, ou melhor dos suicídios.
FREUD, S. - Luto e melancolia. (1917[1915]). In: Edição Standard Bra- Levy (1979) tr az em seu artigo algumas das defmições, que permitem situar
sileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, o que é suicídio. Em sentido est ri to é considerado como uma auto-elimina-
1974, vol. 14. ção consciente, voluntária e intencional. Num sentido mais amplo, o suicídio
inclui processos autodestrutivos inconscientes, lentos e crôn icos.
KLEIN, M. - O luto e a sua relação com os estados maníaco-depressi-
vos. In: KLEIN, M. - Cont ri b uições d psicanklise. São Paulo, Mestre Tenta tivas d e suicid io são atos de liberad os de au to-agres são, em qu e a
Jou , 19 81 . pessoa não tem certeza da sobrevivência, manifest a n do uma intenção au-
todestrutiva e uma consciência vaga do risco de morte.
RAIMBAULT, G. - A c ri a nça e a morte. Rio de Janeiro, Fr an cisco Al-
ves, 1979. Equivalentes suicidas, também cham ados de "pára-suicídios" ou de sui-
cídios inconscientes, são atos que não se expressam d e modo explícito e
manifesto, e sim de forma incompleta, deslocada, simbólica como se
16 6 Morte e desenvolvimento humano Compo rt amentos autodestrutivos e o suicídio 16 7
verifica em certos acidentes, homicídios provocados pela vítima e a uto- necessidades, buscando m aior amor e valorização pessoal. É uma forma
mutilações. de comunicação. Há uma ambivalência entre o desejo de viver e morrer.
Processos autodestrutivos crônicos são processos lentos, provocados O suicidio é um ato muito complexo, port a n to, não pode ser considerado
por tendências inconscientes como é o caso de certas doenças psicosso- em todos os casos como psicose, ou como decorrente de desordem social.
máticas e toxicomanias. Nestes casos, não se observa u m risco tanatogê- Ta mb ém nã o p od e s er ligado de forma simplista a um determinado acon-
nico imediato. tecimento como rompimento amoroso, ou perda de emprego. Trata-se de
um p rocesso, que pode ter tido o seu início na infância, embora os moti-
Levy traz a questão etimológica; na palavra SUICÍDIO estão as palavras vos alegados sejam tão somente os fatores desencadeantes.
su l de si mesmo e caedes ação de matar, portanto ma tar a si mesmo, e em
1778 a palavra foi incluída no dicionário de língua fr a n cesa. Embora a Todos n ós p odem os ter idéia s e a té d esejos de m orte qu and o esta mos
etimologia traga evidências, a idéia do suicídio oferece muitas dificulda- desesperançados ou desanimados; mas até a consumação de um ato suici-
des com suas inúmeras controvérsias. As causas podem ser as mais varia- da, há uma série de variáveis em jogo que têm de ser consideradas. /,
das, incluindo aspectos externos, normas sociais e motivações internas.
Dados epidemiológicos sobre suicídio foram apresentados por Kastenbaum
(1983), que encontrou uma relação positiva entre o aumento da idade e a
Para alguns autores, só é vá lido considerar suicídio quando o indivíduo
está consciente do seu ato. O su jeito tem de estar lúcido quando da reali- taxa de suicídio. A velhice se caracte ri za por ter o índice mais alto de suicí-
dio porque neste período se vivem situações altamente desvitalizantes
zação do ato, excluindo-se aqueles casos em que o indivíduo se encontra
como: isolamento social, desemprego, aflições econômicas e perda de pes-
confuso, escolhendo a morte em vez da vida. A intencionalidade da ação
autodestrutiva é um aspecto distintivo do suicídio, embora nem sempre soas que ri das. Um exemplo desta situação foi o suicídio de Bruno B ette-
seja fácil de ser avaliada. Dois aspectos devem ser levados em conta: lheim. A Revista Veja l p ub li cou sobre este assunto um artigo que discute o
direito de morrer de um psicanalista, com 86 anos, conhecido pelas suas
a. Possibilidade ou impossibilidade de reversão do m étodo empregado obras sobre crianças. Internado em um asilo tomou um a dose que sabia
para morrer. fatal de tranqüilizantes antes de perder os sentidos. Parece ter sido uma
decisão consciente de algo que sempre quis, ou seja, escolher a sua forma
b. Providências que tornam possível a açã o de terceiros, quando esta de vida e no fim, como esta se tornou insuportável achou melhor morrer.
intervenção é possível e pode se inferir que a intencionalidade seja
mínima. Em termos de sexo, observou-se que os homens se suicidam mais e a
hipótese explicativa é que estes apresentam um menor índice de tole-
Existe um grau crescente de intencionalidade quando se consideram rância à frustração.
idéias de suicídio, passando-se para desejos, ameaças, tentativas e final- Subgrupos minoritários estão mais vulneráveis a situações tensionantes,
mente o ato consumado. Será que o indivíduo quer mesmo morrer ou portanto, têm alto risco para a prática suicida. Alguns países apresentam
viver? Em cada situação deve ser levada em conta a intenciona li dade e
maiores índices de suicídio como a Hungria, o Japão e a Suécia li gados à
letalidade do ato. Pelo que está sendo visto, cada caso tem de ser estud a-
práticas educativas ou à repressão das emoções.
do em seus aspectos m ais minuciosos.
Em relação ao estado civil foi observado que as taxas de suicídio são mais
Deve se levar em consideração o que Schneidmann e Farberow (1959) altas entre pessoas sozinhas como solteiros, viúvos ou separados. A pro-
chamaram de "C ry for Help", onde o sujeito atenta contra a própria vida
1 Revista Veja, 21/03/90.
como forma de chamar a atenção das pessoas à sua volta para as suas
1 6 8 Comportamentos autodestnitivos e o suicídio 169
fissão em que se encontrou o m aior índice de suicídios foi a m edicina, e dos jovens suicidas. São famílias com maior proporção de separações
dois fatos podem ser a rr olados para encontrar exp li cação para isso. Em entre os pais, alcoolismo, envolvimento com a policia e a justiça. Segundo
primeiro lugar o fato de a medicina ser uma profissão muito tensionante, o autor, isto impediu que a função parental se proc essasse de forma mais
onde decisões rápidas precisam ser tomadas com alto grau de responsa- adequada. A p erda dos pais foi mais precoce no gr upo suicida. Trata-se
bilidade. Por outro lado, os médicos têm fácil acesso às drogas, o que de jovens com maior susceptibilidade a rejeições e uma menor capacida-
facilita a ingestão delas numa dose letal. de de suportar frustrações.
Consider an do-se as doenças mentais, as taxa s de suicídio são mais altas Kalina e Kovadloff fizeram um levantamento histórico do suicídio. Na
entre indivíduos portadores de m elancolia, onde o desejo de morte pode Antiguidade gr eco-romana o suicídio era um ato clandestino, patológico,
não ter sido suficientemente satisfeito na psicose. solitário e só seria a valizado com o consentimento da sociedade. Não
havia o poder de decisão pessoal, era uma transgressão. Os suicidas não
Diversas notícias de jornal nos tr azem dados sobre a rea lidade brasileira tinham direito a uma sepultura regular e suas mãos eram enterradas se-
atual, sendo que algum as chamam a nossa atenção de forma especial. Uma paradamente. A mão era considerada assassina e a sua separação desti-
delas se refere ao suicídio entre indígenas. 2 Acreditar-se-ia que as socieda- nava-se a evita r que cometesse outros atos proibidos. A proibição dos
des p rimitivas estariam mais a salvo do suicídio, pela continência do g ru po ritos funerários era uma forma de punição, para impedir um possível
e presença de normas claras e precis as . A psicóloga Maria Aparecida Cos- contágio dos cidadãos pelo suicida.
ta, da Funai, porém, diz que histórias de enforcamento não são n ovidade na
reserva de Dourado onde vivem os índios guaranis. Não há uma hipótese Em Roma, o indivíduo deveria submeter ao Senado as suas razões para o
clara, a resposta é o silêncio. Para a psicóloga a hipótese para o suicídio desejo de morrer.
se ri a o contato com as cidades, a miséria e o ab a n dono d as tradições e
cultos. Esse afastamento dos rituais quebra o contato com suas ra í'es, le- Havia situações em que o suicídio era incentivado como, por exemplo,
vando a situações de isolamento e solidão, lembrando a idéia de sociedade o dos escravos após a m orte do dono, das viúvas na Índia após a m orte
tanatotóxica, de que nos falam K alina e Kovadloff (1983), e a que nos refe-
do marido.
riremos com mais detalhes posteriormente.
Outra reportagem sobre suicídio de adolescentes traz material para pro- Na Idade Média o indivíduo e a sua vida pertenciam a Deus, e o sujeito
fundas preocupações sobre a qualidade de vida nas gr andes cidades. 3Re- era castigado quando tentava se apoderar da vida qu e não lhe pertencia.
fere-se ao suicídio de M. P ., de 16 anos, que morreu ao cair da j an ela de
seu apartamento depois do uso de drogas e bebida. As hipóteses são de Na época atual, há uma maior autonomia, não existindo mais castigo im-
que os jovens buscam a morte inconscientemente, sendo a sua principal posto pelo Estado. Hoje a maior causa de suicídios, no Ocidente, é a
causa entre adolescentes. No Brasil 5.000 adolescentes se suicidam a cada solidão, o sentimento de irrelevância social. Houve um desmoronamento
ano. Por quê? O que faz com que jovens na flor da idade, com a vida pela dos três pilares básicos da sociedade: família, Estado e religião, que me-
frente, no auge do desenvolvimento físico e psíquico, com todas as p oten- lhor descreveremos a seguir.
cialidades abertas, se matem?
Já en tr e o s p ov os pr im iti vo s, o s ui cí di o o u at o d e se m at ar es tá li gado às
Cassorla (1984), em estudo com jovens entre 12`e 27 anos que tentaram normas do gr upo. Pode ser incentivado pela comunidade quando há sé-
suicídio, verificou diferenças nas características das fam ílias de o ri ge m rias infrações às re gras sociais, como forma de neutralizar a culpa, reabi-
2 Suicídio contagia índios caiuás.O Estado de S. Paulo, 13/01/91. litando o indivíduo diante do grupo. A quebra d e costumes e tradições
3 Shopping News, 26/08/90. nestas sociedades é considerado com o delito gr ave.
Compo rt a mentos autodestnutivos e o suicídio 171
Dias (1991) apresenta um relato sobre o suicídio em outras culturas, debilitação das crenças que nos ajudam a nos conduzirmos, como as prá -
corno no Oriente, onde é reconhecido como auto-sacrifício ou autopurifi- ticas religiosas.
cação. No Japão o suicídio pode ser visto como a última obra de arte, a
morte como arte foral. Este aspecto é magnificamente representado no O suicídio varia na razão inversa ao grau de integração dos grupos so-
filme "Mishima", de Paul Schradder. São m encionados também os suicí- ciais. Ele chama de egoísmo a este estado em que o indivíduo se afirma
dios por honra e p or serviço. de forma excessiva diante do social e às custas deste. O suicídio egoísta
resulta de uma individualização excessiva; nas sociedades altamente agre-
O Japão de hoje apresenta um índice crescente de suicídios, li gados à gadas é difícil ocorrer este tipo de suicídio, como nas sociedades primiti-
questão da honra, de jovens que fracassam na realidade escolar e são vas. Em sociedades desagregadas o que pode acontecer é que o indivíduo
considerados indignos. A autora cita também os discípulos que se suici- se sente só, desesperado, sem razões para viver, e matar-se pode ser a
dam após a morte do mestre, ou dos cidadãos que se matam após o óbito única solução p ossível.
do imperador, como ocorreu no caso da m orte do imperador Hiroito. A
autora menciona o li vro de Maurício Pinguet, A mo rt e voluntkria no Ja- Suicídio Altruísta
pã o, onde se pode ver com mais detalhes estes aspectos. Port an to, para
uma aná lise do problema do suicídio devemos levar em conta qual a O indivíduo também pode se matar quando está muito integrado num
inserção social deste ato na comunidade da qual o indivíduo faz parte, grupo. Este não pode perm anecer vivo quando perdeu a estima pública.
porque os valores são com pletamente diferentes nas diversas culturas e Motivos externos como a desonra ou brigas podem levar à condenação.
entre o Oriente e o Ocidente. A sociedade prescreve a não-individualidade, e em muitos credos religio-
sos o suicídio faz parte dos rituais na forma dos martírios e sacrifícios. O
Entre as principais teses sociológicas sobre o suicídio, a obra que inspi- homem anseia li bertar-se do individualismo para mergulhar nesta essên-
rou outros autores foi a de Durkheim, O suicídio, do final do século 19, cia, não há tanto apego ao pessoal. Outro exemplo de onde pode se
considerado um importante trabalho de investigação sociológica muito manifestar o suicídio altruísta é no exército, onde o soldado vive uma
atual. Para este autor, o suicídio é um ato individual com características espécie de impessoalidade, tem seus princípios de conduta regidos de
da sociedade que o produz. E um ato complexo, indefinido e com contor- fora, a renúncia é o resultado de um adestramento prolongado. Nestes
nos vagos. O suicídio é um homicídio intencional de si mesmo. Só uma casos, são comuns os suicídios heróicos.
aproximação grosseira pode falar sobre as suas intenções. De várias ma-
neiras o indivíduo renuncia à sua existência. E um ato desesperado de Suicídio Anômico
alguém que não quer viver.
É conhecida a influência agravante das situações de desorganização
Segundo, o autor a classificação do suicídio facilita a chegad a aos seus como as crises econômicas. Às vezes, o indivíduo não tem consciência dos
motivos básicos:
seus limites e do que necessita, precisando de um parâmetro social.
Quando a sociedade falha neste aspecto, o homem se sente desorientado.
Suicídio Egoísta A anomia pode ser percebida também na vida familiar, verificando-se
aumento de taxas de suicídio após divórcios, por causa da incerteza, o
A sociedade mod erna força a pessoa a ser livre, destaca o valor da perso-
que resulta num estado de perturbação.
nalidade individual, facilitando o que se chama de suicídio egoísta, basea-
do na vontade p essoal. A religião pode impedir o suicídio graças ao seu O suicídio egoísta e anômico apresentam uma semelhança: em amb os a
forte poder de integração, bem como a família também pode estimular a sociedade, aparentemente, não preenche de forma total as necessida-
i munidade ao suicídio. Os índices de suicídio aumentam quando há uma des do sujeito.
Comportamentos autodestnttivos e o suicídio 1 7 3
Kalina e Kovadloff (1983) são os representantes atuais das hipóteses so- pessoais do sujeito, e a morte surge como solução para o alívio da frus-
ciais sobre o suicídio. Segundo as colocações destes autores, o suicídio é tração. Segundo os autores, o Ocidente chegou nu ma encruzilhada ética.
resultante de uma existência autodestrutiva, chamada de existência tóxi-
ca. Esta se vincula a um projeto de morte, o de viver se suicid a n do. Na Camus p õe a nu a perplexidade humana diante dos tentáculos paralisan-
civilização ocidental falta um plano de desenvolvimento interior. tes da sua impotência e das dolorosas limitações. O absurdo a que a
sociedade submete o homem não é uma derrota, e sim um estímulo para
Para estes autores considerar a opção do suicídio como p essoal é insufi- a sua superação, conduz à revolta, liberdade e pa ix ão, portanto, ao lado
ciente. O suicídio é resultado de uma indução social, e não de um a livr e mais criativo do ser hum a n o. Para este autor o suicídio é a derrota, o
determinação individual. Entretanto, cada individuo articula à sua m anei- abandono da luta.
ra os recursos com os qu ais a sociedade o dotou. O suicídio pode ser uma
forma de rebelião ou subm issão contra essa sociedade. Muitas pessoas morrem porque consideram que a vida não merece ser
vivida. Outros paradoxalmente se matam pelas idéias ou ilusões que lhes
O indivíduo que atenta contra a sua vida, atenta c ontra a sociedade. Em dão prazer de viver. Para Ca mus o suicídio é um gesto preparado como
nossa cultura houve um aumento de suicídios, a pessoa aprende que algu- uma grande obra, no silêncio do coração, é uma confissão a si mesmo de
mas vezes é mais di gn o morrer do que viver. A existência tóxica envolve que a vida não vale à pena, é u ma tragédia.
um viver se suicidando, o homem então só term ina de morrer.
Camus traz o mito de Sísifo como um represent a n te máximo do absurdo.
Kalina e Kovadloff pesquisam a origem etimológica da palavra suicídio, Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso uma pedra
fazendo uma ligação terrível com a palavra ocidente. Se occidere cortar, até o cume de uma m ontanha de onde rolava para ba ix o, pelo seu peso.
esmigalhar, ferir mortalmente, se matar; occasum: ocaso, ruína, decadên- Tinh am pens ado c om ra zão qu e nã o há c asti go ma is ter rível do que o
cia, resultando na palavra O CIDENTE. Então a nossa sociedade está trabalho inútil e sem esperança. Sísifo havia desafiado os deuses por ter
esmigalhada, em ruínas. D aí o nome de sociedade tanatotóxica. acorrentado a Morte, e por ter esquecido de voltar às profundezas da
terra após a sua própria morte. Este mito é trágico porque o herói está
Os autores afirmam que, em bora haja a indução social, o suicídio é um consciente, conhece toda a extensão de sua m iserável condição. A p erda
ato psicótico. Esta imposição social invade o sujeito, atinge a sua cons- do sentido é o primeiro sinal do absurdo, a busca da saída se faz pela
ciência e aniquila o ego. Este não consegue se defender, perde a crítica. revolta, liberdade e pa ix ão. Paradoxalmente o absurdo confere um senti-
Segundo estes autores, mesmo que racionalmente se possa compreender do para a vida, n a medida em que não há conformação e, portanto, há
os motivos do suicídio, este é sempre um ato psicótico, pois envolve a luta e conseqüentemente vida.
perda de consciência. Este ponto é altamente controverso e não há con-
senso entre os autores que estudaram a questão do suicídio. Outros autores buscaram as hipóteses para o suicídio em motivos in-
trapsíquicos.
O suicídio é uma trágica denúncia do indivíduo de uma crise coletiva.
Quando ele se mata fracassa uma prop osta coletiva daquela sociedade. Menninger (1965) em seu livro Eros e Thanatos - O homem contra si
pró pri o traz os motivos subjetivos e particulares para um processo auto-
Entre os aspectos de uma sociedade tóxica se encontram o armamento destrutivo.
nuclear, a contam inação do planeta, a despersonificação e o elevado nível
de agressividade, que as metrópoles produzem, o reba ix amento do valor Segundo o autor, pareceria evidente que o homem se opusesse firmemen-
individual e da auto-estima. Nas grandes cidades ocorre a solidão, a dis- te à morte e à destruição. Entretanto, torna-se cada vez mais evidente
tância dos vizinhos, a falta de solidariedade, o desenraizamento e a que- que parte da destruição que flagela a humanida de decorre da autodes-
bra das tradições. A tecnologia não atende mais às necessidades básicas e truição, aliando-se a forças externas no ataque à sua própria existência.
Compo rt amentos autodestrutivos e o suicídio 1 75
Ten dên cia s c ons tru tiv as e d est ru tiv as da pe rso na lid ad e e stã o e m c ons tan - indivíduo, de modo qu e o eu é tratado como um objeto. Pessoas suicidas
te conflito e interação para criar, destruir e construir, representando pr o- são normalmente am bivalentes quanto aos seus sentimentos.
cessos anabólicos e catabólicos da personalidade. Além dos atos suicidas,
propriamente ditos, há uma série de atos com conteúdos fortemente au- Exemplos como no filme Sociedade dos poetas mo rt os indicam que quan-
todestrutivos como a participaçã o em certos sacrifícios, o ascetismo, o do ocorre um suicídio, como no caso do jovem, pode na verdade haver o
martírio e a submissão a certos procedimentos cirúrgicos sem necessida- desejo de assassina r o outro, no caso o pai. Não ocorre o assassinato,
de óbvia. Muitas pessoas, embora não admitam, destroem a vida em pro- porque a vítima tem e o agressor, as su as intenções hostis. Por outro lado,
cessos autodestrutivos crônicos como o alcoo li smo ou a adição a drogas. pode haver a interferên cia de fatores eróticos, tornando difícil matar a
Acidentes freqüentes, atribuídos ao destino ou ao acaso, podem trazer no quem se ama, no caso também o pai. É preciso pensar tam bém no ele-
fundo intenções de morte. mento vingativo presente em q ualquer ato suicida que é a possibilidade
de infligir sofrimento ao outro.
Este livro se propõe a descobrir que motivos subjacentes determinam
essa escolha, onde o desejo de morrer vence o desejo de viver, muitas O melancólico pode descarregar contra si próprio os amargos ataques, as
vezes com plena colaboração das facu ldades mentais e intelectivas. hostilidades antes ocultas em relação ao objeto amado
A autodestruição começa muito tempo antes do ato suicida, é como se a Desejo de Ser Morto
pessoa tivesse um encontro com a morte, embora, aparentemente pareça
fugir dela. Esta intenção parece estar presente desde os primeiros anos
de vida. Ser mo rt o é uma forma ex tr ema de submissão, assim como matar é um a
forma de agressão. Neste c a s o temos a questão do masoquismo, de sentir
Menninger considera que para ocorrer o suicídio é necessária a presença prazer na d or. Como é possível obter satisfação com a puniçã o, com a
de três componentes: o desejo de matar, o desejo de ser morto e o desejo doença? Uma das explicações cabíveis é de que o ego precisa sofrer na
de morrer. O suicídio é antes de tudo u m hom icídio, um hom icídio de si dimensão de sua destrutividade dirigida para fora, se há um ataque para
mesmo, onde a mesma pessoa é o assassino e o assassinado. Nenhum fora, a mesma proporção precisa ser dirigida para dentro. É necessário que
suicídio é consumado se além do desejo de matar, não estiverem presen- haja sentimentos de culpa, para haver a necessidade de punição. Desejos
tes o desejo de morrer e de ser morto. Quand o o desejo de morrer não homicidas, mesmo que não efetuados e inconscientes dem an dam punição.
está presente, pode ocorrer o paradoxo de que o indivíduo suplique para
que o salvem, após um ataque suicida, muitas vezes brutal. Menninger faz então um paralelo entre os meios utilizados para os atos
suicidas e a sua possível relação com os três componentes aqui considera-
dos. Há elementos mais a gressivos como tiros, ou uso de instrumentos
Desejo de Matar cortantes penetrantes. Psicóticos podem estabelecer relações m ais con-
cretas, por exemplo, tocar ou encostar em fogões pode representar um
Neste aspecto é extremamente importante o caráter destrutivo. O instinto desejo patológico de ser aquecido, amado, sentir calor humano, libertar-
destrutivo pode estar presente na criança pequena di an te de um rival. se de uma frieza ou um gelo interno. Afogamento pode representar o
Em todo o ato destrutivo pode existir uma erotiza9ão parcial, como um desejo de voltar ao bem-estar da existência intra-uterina. O processo de
prazer neste ato, conhecido como sadismo. O mesmo pode ocorrer nos ingerir substâncias venenosas pode estar relacionado a intensos desejos
atos autodestrutivos. Pode acontecer quando o amor e o ódio são desliga- orais. Em muitos destes métodos podemos encontrar elementos de puni-
dos dos objetos externos e voltam-se contra o pró prio indivíduo. O desejo ção, aliados a fatores eróticos ligados ao prazer. Muitos têm um caráter
de matar em vez de ir pa ra objetos externos, volta-se contra o próprio exibicionista, um desejo de ser descoberto e mais uma vez pu nido.
17 6
M o
rteede
senv
olvime
n t
o humano
Comportamentos autodestrutivos e o suicfdio 17 7
Traze ndo no seu bojo uma ca racter ística n arcísic a, mat ar-se em vez d e clui, também, a simulação de doenças e dor, que acabam envolvendo um
ser executado é conservar n o íntimo a ilusão da onipotência, e pelo ato sofrimento, mas também, uma forma de agredir as pessoas que estão
do suicídio tornar-se senhor da vida e da morte. Mesmo porque muitos próximas. Às vezes, as doenças, cirurgias, ferimentos são formas de evitar
suicidas têm certeza de uma vida futura que será melhor do que esta. um mal m aior, como a morte ou a psicose. Acidentes repetidos podem
Então o suicídio não é uma morte verdadeira porque não é sentida como significar uma forma de neutralização parcial dos instintos destrutivos.
definitiva. Este aspecto é fundamental no estudo de suicídios de cri an ç a s ,
como já mencionamos Menninger fala do suicídio orgânico onde o processo autodestrutivo se
localiza num órgão que adoece.
Desejo de Morrer
Em cada uma das situações devem ser observados os seguintes elemen-
Uma pessoa que tenta se m atar e depois pede encarecidamente que a tos: o componente autopunitivo, o componente agressivo em relação ao
salvemos, pode estar diante do paradoxo de se matar e não desejar mor- ambiente e o componente erótico.
rer. O contato com a realidade pode ser tão precário, que o indivíduo
Garma (19 73) levantou as seguintes hipóteses psicanalíticas para a expli-
acha que pode se matar e não morrer, ou acredita ser possível um retor-
cação do suicídio. Este seria uma deformação masoquista da personali-
no. Supomos que este processo pode estar atuando de forma inconscien- dade. Quando ocorre a perda do objeto, ÿ suicídio aparece como possibi-
te, quando vemos um sujeito que tenta desesperadamente se matar, faz lidade de reencontro com ele. Este mesmo autor fez um levantamento
várias tentativas, e não consegue morrer, criando situações de extremo das seguintes representações de morte no suicida:
sofrimento. Às vezes, o corp o atende a este desejo do sujeito, e condições
orgânicas aparentemente inofensivas levam-no à morte. O desejo de mor- 1. Possibili dade de se livrar de c onflitos.
rer pode estar ligado a fantasias de nascimento e de retorno ao útero.
2. Busca de uma vida que.não se tinha antes.
Voltando à interação de fatores construtivos e destrutivos, naquelas ações
onde os impulsos destrutivos são neutralizados em p arte, surgem todas as 3. Fantasia de reencontro com outras pessoas.
formas de autodestruição crônica ou parcial. Qua ndo os impulsos destru- 4. Busca de um elemento de beleza na morte.
tivos suplantam os construtivos, de forma completa, ocorre o suicídio,
principalmente quando há um contato precário com a realidade. As ten- 5. Fuga de uma situação intolerável.
dências autodestrutivas já se manifestam na infância e são neutralizadas
pelos conteúdos construtivos. 6. Busca de uma união sexual, amorosa.
A diferença entre um suicídio agudo e um crônico é que no último há um 7. Busca de uma perfeição narcísica.
•
Abadi (1973) lev an tou outras hipóteses para o suicídio: Ocorreram pedidos de d esculpa, porque o suicídio é considerado um
ato vergonhoso, em nossa sociedade, e alguns acreditavam que deviam
a. Predomínio de an siedades paranóides e vivências persecutórias. ser punidos.
b. Mecanismo de d efesa diante de situações intoleráveis.
Em mu itas cartas, os suicidas se colocam em condição de julgar o ato dos
c. Atuação psicótica. outros, responsabilizando-os pela sua desgraça, além de m an ifestar o de-
sejo de controlar a própria morte. E uma forma de sair da impotência,
d. Condição masoquista. através de um ato onipotente, manipulando a realidade externa. Muit as
e . Ato regressivo. vezes na carta apresentam um interesse em saber o que os outros sentirão
após a sua morte, port a n to, envolvendo um desejo de continuação.
1. Como um ato agressivo, é uma forma de vingança contra a sociedade.
Podem aparecer mensagens envolvendo a idéia de sacrifício, efetuado
g. Como autocastigo, apazigúa sentimentos de culpa, evit an do a retaliação. para aliviar a carga dos outros. É a figura do bode expiatório.
h. Fantasia de retorno ao útero materno, como possibilidade de reunião O elemento de vingança m a n ifesto, devolve a rejeição e o abandono
com o objeto amado. que alega sentir, jogando a culp a do seu ato sobre o outro, como uma
i. Fan tasia de onipotência divina, possibi li dade de dispor da vida e da forma de lei de talião.
morte.
A autora relata o qua nto a intimidade do sujeito se torna evidente nestas
J• Fan tasia de adquirir um bem maior, a vida depois da morte. cartas, com uma clareza de comunicação que nunca esteve tão presente
durante sua vida. Neste caso, trata-se de uma comunicação unilateral, já
São t an tas as hipóteses e representações de m orte que fica difícil falar em que não há interlocutores.
um suicídio, pelo contrário, parecem ser vários suicídios.
Uma das hipóteses principais de Dias é a questão narcísica, em que o
Di as (1991) em sua obra trabalhou num enfoque psicanalítico e antropoló- suicida vê o mundo à sua imagem e semelhança. Acusa o mu ndo real por
gico com mensagens de adeus, ana li sando aqueles elementos da população não ser igual aos seus desejos.
suicida, que escrevem not as de despedida. Foi feita uma compilação d as
mensagens deixadas pelos suicidas, durante os anos de 1986-8 7, no Instituto A idéia do testamento aparece nas cartas como nas mortes naturais, a
de Criminalística de São Paulo. Muitos dos temas apontados pelos autores recomendação de como os sobreviventes deverão resolver os seus pro-
de abordagem psicodinâmica estão presentes nestas mensagens. blemas, acreditando onipotentemente que os seus desejos serão respei-
tados. Nestas mensagens, m uitas vezes se vê o discurso autoritário,
Em m uitas delas, a morte não tem para o suicida a conotação de fim e é como se fosse uma ordem.
considerada como passagem ou transição para um estado mais vivo ou
prazeroso, como se fosse uma etapa adicionada à vida, um outro tipo de São encon tr ad as ambivalências, onde não fica claro se o desejo é de morte
existência. Fantasias de liberação de uma situação difícil envolvem fugir ou de vida. Foi notada profunda regressão, em a lguns c a s os, com uma in-
de situações intoleráveis. Neste caso, pode ser visto como um ato de tensa simbiotização, onde o indivíduo quando se vê separado não consegue
rebeldia de um indivíduo que sempre se colocou de forma passiva na resistir e tem de morrer. Cassorla (1984 ) em seu trabalho verificou que, no
vida. A coragem de buscar o ato suicida se contrapõe à sensação de caso de mulheres suicid as , pode haver uma ligação simbiótica, como se
frac as so e inutilidade na vida. A morte aparece como triunfo. Fantasias houvesse uma indiscriminação. A perda ou a meaça de perda do objeto
de reencontro foram bastante comuns. conduz a atuações, podendo culminar com tentativ a s de suicídio. Pode não
Compo rt amentos autodestrutivos e o suicídio 1 81
Há uma forte relação entre os processos de luto e o suicídio, como já O suicídio esquizo fr ênico ocorre em presença de um ego m arcado por re-
apontamos no capítulo anterior. Segundo Cassõrla (1984) quando há difi- gressões intensas, com carência de identificações primárias, fr agmentado,
culdade em elaborar a perda, a tristeza pode se voltar para dentro. Po- confuso e indiscriminado. Este elemento dissociado fica à margem do ego
dem surgir sentimentos agressivos em relação à pessoa perdida, desejos e, por isso, pode compulsivamente matar o suposto perseguidor, sem perce-
de morte conscientes ou inconscientes. Estes geram culpa que são em ber que destrói todo o self, o próprio indivíduo, que na esquizo fr enia não
parte reprimidos e que p odem levar a atos inconscientes de autodestrui- parece um ser único. Observa-se em alguns adolescentes esquizóides que
cão. A raiva em relação à pessoa morta pelo seu abandono gera senti- nunca se que ix aram e que viviam uma solidão apavorante, uma despersona-
mentos ambivalentes de amor e ódio . lização a n gustiante, da qual tentam se afastar violenta e agressivamente.
No terceiro ciclo da alteridade, os distúrbios se ligam à traição, separa- oportuna e extremamente importante, que envolve aspectos médicos, psi-
ções conjugais e frustrações relacionadas a aspectos de animus e anima, cológicos, sociais, legais e religiosos.
religiosos. O qu e se observa ainda hoje, no fmal
e ao desespero da vivência de fracasso na relaçã o adulta do casal. do século XX, é que estamos longe do consenso. O assunto ainda m erece
discussões aprofundadas. Aqui no B rasil ainda não tivemos notícias deste
No quarto ciclo, o cósmico, ocorre a m aior incidência de suicídios, mais do
movimento.
que os outros tr ês juntos. Este ciclo inclui as vivências mais profundas e
penosas do ser hum a n o, o sacrifício do corpo e a compreensão do significa- Prevenção do Suicídio
do e fmalidade de todo o processo e xi stencial. É difícil vivenciar este ciclo
em nossa sociedade pa tr iarcal, que menospreza a velhice, reforçando
reforçando a sua As autópsias psicológicas (Ebert,
(Ebert, 1987 ) podem ser um processo designa-
característica
característica de inutilidade e impotência. Surge, então, a am argura de não do para avaliar uma variedade de fatores, incluindo comportamentos,
ter vivido a vida em sua total potencialidade e de nada mais poder fazer. A pensamentos, sentimentos e relacionamentos de um indivíduo que está à
fr us tr ação deste ciclo é sentir que a vida foi um grande nada. A pesar desta morte. A autópsia psicológica foi desenvolvida por Schneidmann e Farbe-
vivência ser muito dolorosa, tran sformações são possíveis
possíveis já que há um a row, em 1961, e foi usada para investigar acidentes e homicídios e avaliar
gr a n de introversão de energia nesta época. O tr abalho terapêutico nesta aspectos psicológicos
psicológicos de pessoas que estão morrendo. Traz informações
fase é muito import a n te, não só para trabalhar o arquétipo da mo rt e, mas valiosas
valiosas para se compreender a d inâmica da m orte. Posterio
Posteriormente,
rmente, o
também o da vida, ambos exigindo transformações intensas. intensas. Pode haver procedimento foi usado também com pessoas que tentaram suicídio e
uma urgência de crescimento e fuga da estagn ação. sobreviveram, como forma de p revenção de novas tentativas.
O tratamento de pacientes suicidas exige profunda compreensão de suas A primeira questão que se coloca numa autópsia psicológica é saber o
motivações básicas que, como vimos, são variadas. O a to suicida pode modo da morte. Quatro modos foram descritos por Schneidmann que
despertar, no terapeuta, seus próprios desejos de morte, sua impotência. são: natural, acidental, homicídio ou suicídio. Freqüentemente a causa da
Segundo B yington, o terapeuta
terapeuta deve estar profundamente ligado ao seu morte é clara, mas o modo não. Será que o disparo de uma arma foi um
eix o. As defesas, falta de profundidade, racionalizações, são prontamente acidente ou foi intencional?
detectadas pelo paciente,
paciente, tão sensível neste momento di an te das opções
de vida e de morte. A segunda questão que se busca responder é porque a morte ocorreu
naquele momento. Para isso é preciso examinar eventos import an tes, na
Como vimos, o suicídio sempre foi condenado p ela sociedade, considera-
considera- vida do sujeito, e a conexão deles com a tentativa de suicídio ou morte.
do como crime ou loucura. Entretanto, algumas palavras devem ser ditas
sobre um novo movimento que surge com o título de "morrer com digni- Um terceiro objetivo da autópsia psicológica
psicológica é obter informações que
dade". Uma grande polêmica foi lev a n tada pelo livro Suicídio -Modo de podem ser válidas na predição do suicídio. Schneidmann criou três
usar, de Guillon e Bonniec (1974). Nesta obra há uma consideração sobre classificações da motivação para a morte: intencional, subintencional e
o suicídio auxiliado e a eutanásia. Os autores discutem se não ac aba sen- não-intencional. Isso facilita a identificação de indivíduos e grupos de
do, mais violento deixar sofrer desesperadamente aquele que deseja mor- alto risco.
rer. Os autores procuram afirmar que não pretendem estimular o suicí-
O quarto objetivo é a possibilidade de oferecimento de ajuda psicoterápi-
dio, e sim ajudar aqueles que já tomaram uma decisão consciente e deli-
ca para os sobreviventes, que necessitam falar e esclarecer as distorções
berada. Colocam-se como facilitadores do processo de morrer, para evi-
da realidade.
tar que pessoas usem formas violentas, dolorosas
dolorosas e m uitas vezes ineficien-
tes, caus an do ainda maior sofrimento e degradação. Apresentam socieda- Os autores apresentam uma lista de tem as a serem investigados numa
des pela morte com di gn idade na Europa. Trata-se de uma discussão autópsia psicológica, incluindo os seguintes itens:
18 4 rt e e desenvolvimento humano
Mo rt Comportamentos autodestrutivos e o suicídio 185
1. História de alcoo li smo. 18. Avaliação dos sentimentos relacionados
relacionados com a morte, p reocupações,
2. Not as , mensagens e cartas do suicida. fantasias.
4. Ava li ação dos relacionamentos (familiares, conjugais, filiais, empre- 20. História de morte na família (arrolar suicídios e outras mortes na
gatícios e de amizade). família).
5. Relacionamento marital. 21. História da família (verificar relações com o morto e eventuais confli-
tos que ocorreram antes da morte).
6. Estado de ânimo (sintomas de depressão, flutuações de ânimo, pro-
blemas somáticos). 22. História de empregos (tipo de trabalho, empregos estressantes e con-
flitos com chefes e colegas).
7. Estressores psicossociais (perdas e separações de p essoas significati-
vas, perda de emprego, problemas financeiros e legais). 23. História educac ional (identificar
(identificar nível educac ional, e eventuais confli-
tos nesta área).
8. Comportamento pré-suicida (verificar questões financeiras, providências).
24. Familiaridade com instrumentos que provocam a morte (verificar uso
9. Linguagem (dados verbalizados pelo paciente, que poderiam conter de armas e drogas).
indícios de um futuro su icídio).
25. Relato policial.
10 . Drogas usadas.
Como se pode ver é uma investigação minuciosa, que pode elucidar mui-
11 . História médica. tas questões. Considerando-se
Considerando-se o aspecto preventivo da questão pode ser
12. Estado mental e racional na condição do suicida antes de sua morte extremamente benéfico para aqueles pacientes que tentaram suicídio,
suicídio, e
(ver orientação, memória, atenção, concentração, ânimo e afeto, alu- muito eficaz no planejamento do processo psicoterápico. É também usa-
cinações, cognição, linguagem). da com os familiares
familiares para a compreensão dos eventuais motivos que te-
riam levado a pessoa a buscar o suicídio. No caso de ter havido morte,
13 . História psicológica (veri ficar tentativas de suicídio a n teriores, busca pode ser uma forma da família compreender e aceitar melhor as razões
de tratamento psicológico, hospitalizações, episódios depressivos, ou que levaram ao suicídio.
i mpulsivos).
É necessário observar e cuidar do indivíduo que pede ajuda. O grande
14. Estudos de laboratório. perigo é que, muitas vezes, estas pessoas não são levadas a sério. As
15. Verificar o relatório do médico legista (uso de drogas, ferimentos,
tentativas de suicídio são muitas vezes taxadas pejorativamente de atos
histéricos. É conhecida a reação do grande pú blico a ações espetaculares,
estado físico em geral).
incitando o sujeito a finalizar o ato. Às vezes, o indivíduo pl an eja tudo,
16 . Avaliação dos motivos (arrolar os modos: suicídio, natural, acidental pensando que vão salvá-lo, e ao ver a reação contrária, pode se sentir
ou homicídio, anotar as possíveis razões).
razões). ainda mais d esesperado. Sabe-se que a pessoa que tenta suicídio, tem
alto risco de repetir o ato, se não receber a ajuda de que necessita, pro-
17. Reconstrução dos eventos ocorridos no dia anterior à m orte (relató-
(relató- curando formas mais letais e eficazes. São freqüentes as histórias de su-
rio detalhado e cronológico) jei to s c om in úm er as te nt at iv as , a té qu e fin al m en te um a dá ce rt o. É im -
1 86 Morte e desenvolvimento humano Comportamentos autodestrutivos e o suicídio 18 7
portante cuidar de qu estões, como: defesas enfraquecidas, apoio dos va- CAMUS, A. O mito
- de Sísifo.
lores pessoais, possibilidade de expressão de sentimentos, ênfase em no-
vas relações e elevação da auto-estima. CASSORLA, R. M. S. - O que é suicídio. São Paulo, B rasiliense
rasiliense,, 1984.
Cassorla (1991) relata em seu li vro, Suicídio: estudos b rasileiros, o traba- CASSORLA, R. M. S. - Características de famílias de jovens que tenta m
lho com gr upos Balint. Estes gr upos são constituídos
constituídos por m édicos gene- suicídio em Campinas Brasil. Um estudo comparativo com jovens
ralistas e especia listas
li stas não psiquiatras que se reúnem semanalmente com normais e psicóticos. Acta Psiquiátrica e Psicológica da Amé ri
ri ca
ca Lati-
um psicanalista, discutindo reações emocionais que ocorreram no pac ien- na, 1984, 30: 1 25 134.
-
te, no médico e na relação de ambos. CASSORLA, R. M. S. (Org.) - Do suicídio: estudos brasileiros. Campinas,
O autor observou que os profissionais
profissionais de saúde tratam estes pa cientes Papirus, 1991.
com desprezo, agressão, chegando a maltratá-los. Esta agressão pode ser DIAS, M. L. - Suicídio. Testemunhos de adeus. São Paulo, Brasiliense,
a reação de um médico assustado. O aspecto manipulativo do ato é o que 1991.
mais irrita a equipe de saúde. Eles estão lá para salvar a vida e minorar o
sofrimento, mas os desejos podem ser conflitantes, um quer sa lvar e o DURKHEIM, E. - El suicidio. Buenos Aires, Schapire Edit., 1971.
outro quer morrer. Isto exacerba
exacerba a sensação de impotência, culpa e re-
EBERT, B. W -G uide to conduct a psychological authopsy. Professional
morso da equipe. O indivíduo que te nta suicídio é o que tem mais a lto
Psychology Research and Practice, 1987, vol. 18 (1): 5 2 5 6 .
risco de recorrência, necessitando, portanto,
portanto, de m ais ajuda. O desprezo
-
nesse momento pode ser extremam ente letal. GARMA, A. - Los suicidios. In: ABADI, M. - La fascinación de la muer-
te. Buenos Aires, Edit. Paidós, 1973.
O autor levanta pontos import a n tes, que devem ser percebidos e que são
indicadores de processos autodestrutivos, manifestados muito antes de o GUILLON, C. e BONNIEC, Y. - Suicídio, modo de usar. São Paulo,
ato ter-se consumado. Estes podem apresentar-se na fala do paciente, no EMW Edit., 1984.
relato do desejo de se matar ou de morrer, nos surtos psicóticos, nas
queixas somáticas indefinidas e recorrentes, nos picos de angústia com Psicologia da morte. São Paulo,
KASTENBAUM, R. e AISENBERG, R. -
sintomas de desa gr egação e desintegração, onde a morte pode ser enca- Pioneira,
Pioneira, 198 3.
rada como um a solução menos terrificante.
terrificante. É importante observar tam- KALINA, E. e KOVADLOFF, S. - Cerimônias de destruição. Rio de Ja-
bém o aparecimento de sintomas estranhos que surgem de repente. neiro, Francisco Alves, 1983.
40% dos pacientes apresenta lesões no Sistema N ervoso Central. Alguns Os doentes são raramente consultados sobre os seus desejos, e são interna-
sofrem um profundo emagrecimento, retardo psicomotor, incontinência, dos em hospitais cada vez mais sofisticados, p ri ncipalmente se têm dinheiro
confusão e alucinações, torn a n do-se verdadeiras "sombras humanas". P u - para custear os tr atamentos, pelo menos aqui no B rasil. Tecnicamente, em
demos ver alguns dos nossos ídolos passarem por este processo. vez de repouso e tranqü i li dade rece be m aparelhos, transfusões, picadas,
O estigma e a desinformação levam a um comportamento discriminató- in tr omissões de tubos e catéteres e exames muito invasivos. Há um a preo-
cupação com ó rgãos, pulsações, secreções e não com a pessoa.
rio que afeta o atendimento a estes pacientes. E comum a recusa de
atendimento, aleg an do-se falta de condições. Porém, o que está realmen-
Kubler-Ross faz um relato pungente em seu li vro sobre um jovem médico
te em jogo, muitas vezes, é o medo do contágio. A equipe de saúde tem
atendendo a um caso. Tratava-se de um paciente com uma doença seve-
de lidar com os próprios medos de contágio, com as atitudes negativas
ramente incapacitante, acomp an hada de extremo sofrimento. O jovem
em relação à vida sexual dos pacientes e ao uso de drogas. Em geral,
i mbuído de sua tarefa como médico exercitou todo o seu poder de "sal-
estes pacientes necessitam de um atendimento psicológico. var" o outro, orgulhoso e vitorioso de suas façanhas. Não conseguia, en-
O câncer, segundo Sontag (1984), carrega consigo as seguintes metáforas: tretanto, compreender o olhar rancoroso que o paciente lhe dirigia, já
desgaste, corrupção, traição, invisibilidade até os últimos estágios, além que este não podia se comunicar verbalmente. Solicitou ajuda a Kubler-
de ser chamada tam bém de "gravidez demoníaca" por causa do cresci- Ross, que facilitou a comunicação entre eles, e o médico ficou sabendo
mento desorganizado. O tratamento é brutal, muitas vezes, pior que a que o paciente aprovava as su as ações, mas ressentia-se da falta de infor-
doença. São usadas metáforas de guerra para nomear estes tratamentos mação por parte do médico, e que gostaria de participar das decisões.
como: guerra química para a quimioterapia, e guerra de mísseis para a Assim houve uma m aior integração entre ambos. Os dois são repre-
radioterapia. Segundo Dierkhising (1987), o câncer ainda é associado sentantes do momento em que vivemos, o médico com a sua atitude oni-
com desfiguramento, dor, crise financeira, trauma em ocional e perda de potente de salvador e conquistador da m orte, e o paciente passivo, ape-
funções corporais. nas receptor de todos os procedimentos. O final feliz se deveu a um
questionamento deste méd ico que pôde desviar um pouco o olhar dos
Sabe-se hoje que 50% dos cânceres são passíveis de cura ou pelo menos instrumentos que monitoravam o paciente, para olhar nos seus olhos e
podem ser controlados. Mu itos dos sintomas podem ser aliviados, trazen- resgatar o olhar clínico dos médicos.
do uma boa qualidade de vida para o paciente, como discutiremos a
seguir. Entretanto, a imagem relacionada à morte ainda p ersiste, e obser- Atualmente o pa ciente não é encarad o como pessoa e sim como objeto
va-se algo análogo ao que ocorre com os pacientes portadores de aids, há de atua ção do médico, passivo, submisso e silencioso. Como vimos ao
o medo do contágio psíquico. O sofrimento do paciente é temido, condu- analisar as representações de morte, a do século XX, foi denominada de
zindo também a um isolamento. morte interdita por Phillipe Aries (ver capítulo 3). Houve uma alteração
na trajetória da morte, não mais a morte familiar, aquela que todos co-
Estes fatores têm um peso no desenlace da doença. Atitudes e repre=
sentações sociais têm de ser trabalhadas, tarefa fundamental dos profis- nheciam o seu desenlace. Com o desenvolvimento científico da atualida-
de, houve um adiamento do momento da m orte sem uma conseqüente
sionais de saúde.
preocupação com a qualidade de vida destes "sobreviventes". Podemos
Segundo Kub ler-Ross, é um a tarefa desafiante focalizar o paciente como até dizer que o homem foi privado de sua morte, tal o grau de invasão e
pessoa e tratá-lo como um ser humano, fazê-lo participar do tratamento. de não-privacidade, em alguns dos hospitais. Segundo B astos (1983), o
É difícil em nosso tempo encarar a morte como um fenômeno natural, ela homem não sente mais a morte chegar, desconhece os seus sinais, que lhe
é sempre atribuída a um fator externo, maligno. Com o avanço da ciência, são camuflados. O paciente perdeu o seu lugar social. O doente foi priva-
mais se teme e se nega a m orte como realidade. do de suas vontades e de sua consciência, não é consultado em suas
1 9 2 rt e e desenvolvimento humano Paciente terminal e a questão da m orte 1
9
3
necessidades mais básicas, como vimos no caso do jovem médico. A mor- são é a melhor forma de ajudar o paciente. Reagir à raiva com uma raiva
te tornou-se em m uitos casos um ato solitário, mecânico e doloroso. E a ainda maior só exacerba a hosti li dade. Esta raiva p ode estar relacionada
medicina representante do século XX preocupa-se mais com o desenvol- com sentimentos de imp otência e falta de controle da própria vida.
vimento tecnológico do que com o bem-estar do outro.
3. Barganha: é a possibili dade de entrar num certo acordo para adiar o
Kubler-Ross foi a grande revolucionária de nosso século, ao procurar ou- desfecho inadiável. O paciente imita de uma certa forma a criança peque-
vir os pacientes nas suas necessidades como seres hum a n os Segundo a na que promete se comportar bem para ganhar um presente. As promes-
autora, a melhor forma de compreender o processo de morrer para poder sas que o paciente faz, por exemplo de se a limentar, desc an sar, fazer
ajudar de uma forma mais eficaz, era pedir que os pacientes em fase exercícios são uma forma de ficar bonzinho e, com isso, ganhar um tempo
terminal fossem seus professores, relatassem suas experiências, que se- a mais de vida. Este mecanismo pode estar ligado a aspectos de culpa,
riam analisadas na sua dinâmica. As reações de seus colegas foram, a relacionada com o surgimento da doença.
princípio, de descrédito, de falsa "proteção aos pacientes", envolvendo a
falácia de que falar sobre a morte conduz à morte. Parecia não haver 4. Depressão: após a negação e a raiva, pode sobrevir um sentimento de
pacientes moribundos no hospital em que ela trabalhava. perda, perda do corpo, das finanças, da família, do emprego, da capaci-
dade de realizar certas atividades profissionais e de lazer. É um estado de
Para Kubler-Ross não havia con flito qu an to a contar ou não ao paciente que preparação para a perda de todos os objetos amados. Este momento é
ele tinha uma doença grave. A questão era como fazê-lo• transmitir o diag- muito difícil também para a família, que tenta de todas as formas animar
nóstico e ao mesmo tempo dar acolhida e esper an ça, dar informações sobre o paciente, trazê-lo de volta para a vida. É importante a preparação do
os procedimentos a serem realizados e, principalmente, garantir a presença luto como vimos no cap ítulo 9. Tirar o paciente do processo com encora-
constante do médico. Assim o paciente não precisaria temer o isolamento, o jamen to e ânim o pode pert urbar o seu des envolvimen to. Faci li tar a ex-
ab a n dono e a rejeição. O informe sobre o tem po de vida de que dispõe, é pressão destes sentimentos e não se contrapor a eles deve ser o procedi-
algo totalmente dispensável, pois na maior parte das vezes está errado e traz mento mais adequado. Cabe diferenciar um m omento de depressão, ain-
angústias freqüentemente desnecessárias. Obviamente, isso não implica em da ligado a uma reação contra a doença, e este estágio, que é a elabora-
omitir a gravidade do quadro c línico do paciente. Quer se diga ou não, ele cão de um luto de p erdas que já foram vividas.
saberá de alguma forma o que está acontecendo.
5. Aceitação: os pacientes que viveram a sua doença e receberam apoio
Os estágios arrolados por Kub ler-Ross, são os seguintes: nos mom entos anteriores poderão ultrapassar os estágios precedentes e
1. Negação e isolamento: este estágio ocorre quando é dada a notícia e é chegar a uma aceitação da sua vida. Tendo realizado a despedida dos
influenciado pela forma como esta foi dada. Algum grau de negação tem seres queridos, pode se manifestar uma gr ande tranqüilidade. O paciente
de ocorrer, pois, como vimos, é impossível encarar a qu estão da morte o parece desligado, dorme, não mais como fuga, mas como um repouso
tempo todo. Este mecanismo é mais comum no início do processo, e pode antes da gr ande viagem. A luta contra a morte cessou. Muitas vezes a
ser seguido de choque e torpor. Vem acompanhado da frase célebre: pessoa fica em silêncio. É muito difícil para os familiares aceitarem este
momento, pois eles querem trazer o paciente para a vida, conversar, falar
"Não pode ser comigo."
de aspectos do mundo, que para o paciente não são mais necessários,
2. Raiva:quando a nega ção não é mais possível, ela pode ser substituída uma vez que o desligamento já se processou. É m uito importante que os
por sentimentos de raiva, revolta, ressentimento e inveja, acompanhados profissionais identifiquem quando se trata de uma desistência precoce de
da frase: "Por que eu?" Neste momento, pode ser muito difícil o contato lutar contra a doença e a morte, porque ainda há vida, diferente de um
com o paciente, tornando as visitas penosas, despertando sentimentos de paciente que realizou a sua trajetória, tendo chegado ao fim com paz.
culpa na equipe e nos familiares. Entender a raiva, facilitar a sua expres- Nem semp re ocorre uma distinção clara destes dois momentos.
19 4 Morte e desenvolvimento humano Paciente terminal e a questão da mo rt e 1
9
5
A esperança que seria um sexto estágio está presente em todos os mo- mento da relação familiar, problemas financeiros e a perda da autonomia
mentos e deve ser incentivada pelas pessoas próximas ao paciente. sobre o próprio corpo. O luto não começa n o momento da morte, e sim
quando a pessoa p ercebe que ela é inevitável.
Kubler-Ross, como vimos, foi a grande inovadora neste campo e, com
certeza, está provocando uma mudan ça que a história ainda terá de regis- Segundo Weisman existe o mito de que o paciente terminal só teme a
trar ao tratar da mudança de m entalidade em relação à m orte, ainda no morte. Ele lev an tou alguns aspectos, que podem ser mais preocupantes
século XX. Ela foi criticada, posteriormente, porque se sabe que nem para o paciente de acordo com as su as características de personalidade e
todos os pacientes passam por todos os estágios e nem sempre nessa história de vida, e que ele cham ou de sofrimento secundário. Às vezes, o
seqüência. Ela própria aponta esta questão em seu livro, dizendo que medo de morrer é menos angustiante do que o de se sentir sozinho e
somente alguns pacientes chegam à aceitação, muitos lutam contra a mor- abandonado nestes momentos, há o medo da separação e d a perda dos
te enquanto estão morrendo, com grande inquietude e desespero. Por apoios de situações conhecidas e prazerosas. Pode ocorrer ansiedade de
outro lado, sabemos que, como p rofissionais de saúde temos responsab ili- aniquilamento e alienação, como se fosse uma morte em vida. A ansieda-
dade na facilitação do processo de morrer de nossos pacientes. de de aniquilação pode estar ligada a um medo de desintegração, um
medo de perder a sa nidade, já que as situações fam iliares são perdidas, e
Weisman (1972) discute a problemática de como agir com o paciente o paciente encontra-se diante do desconhecido.
quando não estão mais em questão o diagnóstico e a cura. E neste mo-
mento que se inicia um outro tipo de tratamento que tem a ênfase no Erickson (1974) expõe a questão da com unicação que muitas vezes está
alívio e no bem -estar da pessoa. Ela não morre só da doença, mas tam- prejudicada na relação entre o paciente e as p essoas que o rodeiam. E le
bém como ser humano. É conveniente lembrar que não estamos tratando fala também sobre o padrão do duplo vínculo, ou seja, os pacientes são
de uma doença, mas de um ser humano que tem uma personalidade, submetidos a mensagens contraditórias. Essas mensagens são enviadas em
desejos e expectativas. vários níveis. A vítima do duplo vínculo se vê como incapaz de julga r o
que os outros querem dizer e procura sempre conteúdos ocultos nas suas
O autor levanta três estágios da doença terminal: falas. O potencial de interações sociais psicologicamente destru tivas é pa-
ralelo ao duplo vínculo esquizofrenizante
Estágio 1: Do início dos sintomas até o diagnóstico. Entre os mec anismos
de defesa mais observados estão a negação e o deslocamento. No caso do pac iente terminal, as pessoas próximas enviam mensagens ver-
bais e não-verbais incongruentes, onde tentam ocultar fatos ao paciente,
Estágio 2: Desde o diagnóstico até o estágio terminal, é a época em que como por exem plo o diagnóstico de uma doença fatal, o agravamento do
está concentrada a m aior parte do tratamento, cujo objetivo principal é quadro, ou a iminência da morte. Est a s tentativ a s de ocultamento são mui-
combater a doença e buscar a cura. Há oscilações entre a negação, o tas vezes infrutíferas, porque a m aioria dos pacientes já sa be da gravidade
abrandamento e o deslocamento, até chegar a uma aceitação da irre- do seu c a s o pelas próprias m anifestações corporais, além disso, é virtual-
versibilidade dessa condição, dependendo da trajetória da doença. mente impossível controlar todos os aspectos presentes nu ma relação, in-
clusive envolvendo outras pesso a s . A mensagem verbal pode até ser passível
Estágio 3: Período em que o tratamento ativo diminui, há uma ênfase
maior na busca do alívio de sintomas e nos cuidados pessoais. de con tr ole, m a s as expressões faciais, a luz e o brilho dos olhos, a p ostura,
todos estes elementos podem denunciar uma incongruênc ia entre um "oti-
Cada estágio favorece uma outra percepção da vida e d a morte. As inte- mismo" verbal e um "desânimo" corporal. Por outro lado, como gar a n tir que
rações familiares e, principalmente, com a equipe m édica podem sofrer todas a s pessoas contem a mesma história e controlem a s su a s expressões
alterações radicais. As necessidades do paciente são muito diferentes em não-verbais com a mesm a eficiência. Para se conseguir todos estes oculta-
cada período, ele começa a vivenciar as perdas como isolamento e afasta- mentos, provavelmente a comunicação se tornará superficial, já que muitos
19 6
M o
rteede
senv
olvime
n t
o humano
Paciente terminal e a questão da morte 19 7
seu trabalho não entra no vácuo da relação médico-paciente, port an to , biente e, no que for possível, o lugar é modificado de acordo com os
deve ter o seu espaço legitimado no atendimento a pacientes terminais. seus desejos, para que se assemelhe mais a um lar.
nem antes, nem depois. O que deve nos preocupar, segundo Lamerton,
é quando um paciente pede para morrer. Temos de investigar as razões KOVACS, M. J. Um estudo sobre o medo da morte em universitá ri o s das
-
monstrou a possibilidade de prevenir esta doença expondo alguns ani- notar. Freud, na década de 1880, havia ido a Paris para estudar com
mais a uma versão atenuada d ela, de forma que o sistema imunológico Charcot (1825-1893) na Salpetrière. Charcot estudava os fenômenos da
do animal, sistema natural de defesa, se tornava capaz de suportar uma histeria, usando a hipnose como instrumento de seu trabalho. A partir das
gr a n de dose da bactéria não atenuada. observações feitas no trabalho de Charcot, Freud acabou por postular
noções sobre a histeria, entre elas a de que emoções ligadas a aconteci-
O sucesso destes experimentos encorajou Pasteur a estender as experiên- mentos do passado, que não fossem expressas em palavras ou ações, po-
cias para a espécie human a. Desenvolveu de início o soro a n ti-rábico e deriam dar origem a sintomas físicos como, por exemplo, as para li sias. O
posteriormente a vacinação para outras doenças.
histérico, por sentir a experiência emocional muito dolorosa, reprime a
Ora, estava estabelecido o estímulo para que mu itos outros pesquisadores lembrança do acontecimento no inconsciente. Mais tarde o conteúdo re-
concentrassem seus esforços nessa direção. Assim em 19 06 cientistas de- primido pode voltar na forma de um sintoma físico.
t
senvolveram a vacina contra a tuberculose, em 1911 foi desenvolvido um
c Era um retomo a uma visão integrada do ser. Embora o próprio Freud
omposto especial, derivado do arsênico, o Salvarsan, para o tratamento
tenha mostrado que as paralisias histéricas eram destituídas de um substra-
da sífilis. Na década de 20, a insulina foi isolada e usada no tratamento to neurológico, não resta dúvida de que seus tr abalhos apontam na direção
dos diabéticos. Na década de 30, surgiu a sulfa, sendo possível então o
desta visão mais integr ada do homem, m ostr an do que acontecimentos da
tratamento eficaz de várias infecções. Esta p ossibilidade foi ainda amplia-
esfera psíquica causavam conseqüênc ias orgânicas. Poste r i ormente surgi-
da na década de 40, com a d escoberta da penicilina. Nos anos 50, na área
ram muitos estudos com base nos conhecimentos psicanalíticos, que nos
da psiquiatria, houve o desenvolvimento dos neurolépticos, sendo então ajudaram a compreender mec an ismos psicológicos que contribuem para o
possível o controle de algumas doenças mentais.
aparecimento de muitas doenças, como veremos mais adiante.
Se essa abordagem foi se sedimentando por ser de fato eficaz trouxe, por
outro lado, algumas conseqüências, como, um certo distanciamento entre Um outro autor que deu contribuições importantes neste sentido foi
médico e doente. O foco de atenção do médico passou a ser p redominan- Claude Bernard (1813-18 78), que em seu livro A Introdução à Medicina
Expe ri mental,, publicado em 1850, falava da idéia de que o corpo está
temente a doença, mais que o doente. Um evento que pode ser considera-
do como o que deu origem a este movimento de afastamento é a invenção sempre tentando manter um equilíbrio delicado no funcionamento quími-
do estetoscópio. Esse simples apa relho de ausculta, que foi inventado em co de suas mú ltiplas partes, e quando este equilíbrio se rompe há o surgi-
1819 por Laennec (1781-1826), se interpôs entre o méd ico e o doente, mento de doenças e eventualmente a morte. Bernard, pensador de sua
transformando a técnica de ausculta. Daí por diante, muito raramente o época, portanto cartesiano, propunha a análise das partes como forma de
médico voltou a encostar seu ouvido no tórax do doente. Melhorou a entender o todo, sem que, no entanto, se perdesse de vista a forma pela
técnica de coleta de dados médicos, mas eliminou-se o efeito tranqüiliza- qual estas partes se inter-relacionam.
dor do toque humano, o que o Dr. Lewis Thomas (in Locke, 1987) des-
Walter Cann on, fisiologista da Harvard Medical School a partir dos
creve como o "ma is antigo e mais efetivo ato médico".
anos de 1930 e ao longo da década de 40, estudou os elementos de que
Ao longo do século XX, diversos aparelhos foram desenvolvidos. Apare- nos falava Claude Bernard. Descreveu o fenômeno a que chamou de
lhos que ajudam muito no diagnóstico mais preciso, mas que, concomi- homeostase. E um dos sistemas vitais que p articipam da homeostase é o
tantemente, concentram o foco de atenção no órgão doente, reforçando a sistema imunológico.
i magem do paciente como objeto de estudo.
Cabem algumas palavras sobre este sistema. Sabe-se hoje ser b a s t a n te
No entanto, no final do século passado e início deste século a atenção complexo, formado por m uitas células com funções muito específicas, o
acerca dos efeitos do psiquismo sobre doenças físicas voltou a se fazer que faz com que o sistema imunológico seja capaz de identificar quais
20 8 rt e e desenvolvimento humano Atendimento psicossocial a pacientes de cancer... 209
células pertencem ao corpo, e quais lhe são estranhas. Descobriu-se que Tem sido publicada uma gran de quantidade de tr abalhos científicos a
o sistema imunológico é dotado de uma memória bioquímica capaz de esse respeito. Trabalhos que tentam identificar que aspectos estão mais
identificar algo em torno de 10 milhões de bactérias diferentes e de des- envolvidos com a possibi lidade da pessoa adoecer.
truí-las. Descobriu-se também, a partir de experiências realizadas in vitro,
que o sistema imunológico funciona autonomamente, uma vez que manti- E aqui vou me a ter aos aspectos psicossociais, que possam levar ao surgi-
nha suas funções mesmo nesses experimentos fora do organismo. No en- mento do câncer, em especial.
tanto, apesar dessa propriedade, uma vez no org a n ismo, mantém uma
inter-relação com todos os outro sistemas, podendo ter seu funcionamen- Encontra-se na li teratura, ao longo dos tempos, muitas referências de que
to influenciado por alterações em ocionais. o câncer é uma doença psicossomática. Autores associam o seu surgimen-
to a traumas esp ecíficos e a condições psicológicas como o luto, ansieda-
Na década de 1950, novos conhecimentos foram acrescen tados por
de, desapontamentos, perda do apoio emocional dos pais, ainda dur an te
Rodney Portes e Gerald Edelm a n sobre o sistema imu nológico, já que
foi determinada a estrutura molecular de um anticorpo, um dos compo- a infância, etc.
nentes desse sistema.
D ur an te a década de 195 0, estudos com orientação psicanalítica surgiram
Assim, dentro do caminho cartesi an o, no qual gr adualmente a medicina foi a respeito da estrutura de personalidade dos pacientes com cânc er. Neste
deix a n do de ser arte para ser técnica, d a n do origem a inúmeras esp eciali- período, as conclusões eram baseadas em conjectur a s clínicas e as únicas
dades, surge mais uma: a imu nologia. Outros fenômenos são observados e fontes de informação eram as experiências do médico e os estudos retros-
percebe-se que há uma interação do sistema nervoso no funcionamento do pectivos de pacientes. A despeito dessa metodologia, esses estudos tive-
sistema imunológico e a imunologia passa a ser a neuroimunologia. Logo se ram muita relevância.
faz necessária nova ampliação e a neuroimunologia p a s sa a abr a n ger co-
nhecimentos da área do psiquismo, dando origem à psiconeuroimunologia. Mais recentemente foram-se sofisticando as técnicas de pesquisa, amplian-
do-se a abrangência dos estudos que passaram a incluir fatores de ri sco e
Como exemp lo, temos a assinalamento de Cannon, que afirma que a ho- prevenção, a evolução da doença e tratamentos, o estudo dos doentes que
meostase era mais do que o sistema nervoso e a bioquímica agindo em sobreviveram longamente e.o luto. Surgiram estudos prospectivos, procedi-
harmonia. Cannon sugeriu que experiências normais de vida como o sur- mentos metodológicos mais exatos, usando-se gr upos de controle e estudos
gimento da puberdade ou a adolescência, a fadiga, o trabalho estafante estatísticos, além do uso de recursos multidisciplinares.
ou aborrecimentos do dia-a-dia, têm um reflexo no físico, de forma que
todas as doenças podem ser estudadas a partir desse ponto de vista. Alguns assuntos se mostraram m uito interessantes, por exemplo, como
estados emocionais podem afetar a transformação de células normais
Estamos diante de um acontecimento curioso: o próprio avanço tecno-
em células cancerosas; o impacto que tem o surgimento do câncer e seu
lógico, que foi levando ao surgimento de especialidades qu e cada vez
convergiam mais o foco da observação, propunha agora uma ampliação tratamento, exigindo esquemas de apoio social e intervenção psicológi-
ca; o impacto dos tratament os em pacientes que sobrevivem por longo
deste foco, integrando fenômenos de áreas que a n tes eram considera-
das absolutamente separadas. tempo e por fim os efeitos do luto nos familiares após a morte do
paciente.
Estabelece-se agora, em bases científicas, um encontro com as idéias
de muitos médicos que desde a Antiguidade vinham, de forma intuitiva, estudo identificaram alguns fatores de risco para o surgimento do
afirmando haver uma intervenção dos aspectos emocionais no binômio câncer. Há três tipos de risco psicossocial: o estresse, traços de personali-
saúde/doença. dade e háb itos pessoais.
21 0 rt e e desenvolvimento humano Atendimento psicossocial a paciente de câncer... 211
H a n s Selye, químico orgânico, trabalhando na Universidade d e Praga e em seres humanos, como por exemplo, morte de um cônjuge ou alunos
posteriormente na Universidade Mc Gill, em Montreal, Canadá, postulou submetidos a exames escolares e em casos de isolamento social.
na década de 1920 o conceito de estresse, comprovando suas influência
nas alterações orgânicas, em animais de laboratório. Estudos em a n imais tê m - se mostrado contraditórios. Há, no ent an to, um
dado que p arece se confirmar: estresse em animais provavelmente influi
Embora haja um a forte crença de que aspectos psicossociais interfiram no crescimento de tumores, mas não no surgimento do câncer.
no surgimento do câncer, Bernard Fox questiona essa asserção. Ele
afirma: "Embora tenhamos algumas dúvidas, nós estamos sendo leva- Estudos em ratos revelaram que animais que podiam con tr olar os choques
dos mais e mais próximos, em vista de recentes estudos, à firme posição elétricos, aos quais eram submetidos, não desenvolviam tumores. Aqueles
de que fatores psicossociais podem na verdade, afetar a incidência de a n i mais que, em função de dispositivos da experiência, não podiam contro-
câncer em seres hum anos Mas não estamos ainda seguros dessa posi- lar o choque entravam em estado de desespero seguido de prostração,
ção." (in Locke, 1987). tendo aumentado o crescimento do tumor. Este ex perimento é a origem do
" modelo do desamparo"; o desamparo como elemento que influencia o de-
O estudo do pa pel que os fatores psicossociais exercem no surgimento senvolvimento do câncer. A habilidade do indivíduo para lidar com o es-
do câncer é bastante difícil em função das muitas variáveis que entram tresse parece ser de importância nesse modelo. Assim, os aspectos subjeti-
em jogo. Por exemplo, muitas vezes, um câncer já se desenvolve duran- vos de um determinado es tr essor, para um determinado indivíduo, passam a
te muitos anos até que comecem a se manifestar os sintomas, de forma ser mais import a n tes do que os aspectos objetivos do estresse.
que pode ficar difícil saber o que realmente sign ificam os dados do
período premórbido. Este dado é tão mais importante quando se consi- O estudo com seres humanos apresenta dificuldades óbvias. Alguns estu-
deram alguns tipos de tumores que produzem hormônios lev an do a dos, no entanto, assinalam uma relação entre vários eventos estressantes
alterações psíquicas, como é o caso de tumores do pâncreas, que levam e alterações bioquímicas e do sistema imunológico, que podem estar
a um estado de depressão, ou tumores da tireóide ou ainda tumores de eventualmente ligadas ao surgimento ou desenvolvimento do câncer.
pequenas células do pulmão. Não se pode também afirmar com certeza Alguns autores têm tentado enumerar e quantificar os elementos estres-
de que forma os tumores são afetados por fatores psicossociais em suas sores. Holmes e Rahe, da Washington School of Medicine, criaram uma
diferentes fases de desen volvimento. Um outro elemento dificultador a escala de "Avaliaçã o e Readaptaçã o Social", onde listam vá rios eventos
se considerar é que diferentes tipos de câncer sofrem diferentes in- sociais, como morte do cônjuge, divórcio, prisão, mud an ça de status
fluências do meio ambiente. Assim, cânceres de pele podem ser desen- econômico-financeiro, gr avidez, aposentadoria, etc. dando pontos para
cadeados por raios ultravioletas e outros cânceres com diferentes loca- esses eventos, conforme seu poder estressante. "Ao usarem esta forma
lizações podem não sofrer esta influência. Há a inda experiências em de avaliação objetiva à qu antidade de mudanças observáveis na vida das
animais que mostram que o estresse pode exacerbar o crescimento de pessoas, Holmes e seus colaboradores foram capazes de predizer o apa-
himores virais e não estimular o crescimento dos não virais, de forma recimento de doenças com grande grau de exatidão estatística." (Simon-
que "um conjunto indiscriminado de dados psicossociais, para pacien- ton, 1987)
tes com diferentes tipos de câncer, podem ser como misturar laranjas e
maçãs, sem saber como elas diferem." (Fox, inAder, 1981.) A respeito da influência da p ersonalidade no surgimento ou desenvolvi-
mento de câncer, os dados encontrados na literatura são muitas vezes
Os estudos sobre o estresse como fator de risco têm sido desenvolvidos contraditórios.
de duas maneiras: com animais de laboratório, em que é examinado o
crescimento de tumores após submeter os sujeitos de estudo a situações Tem surg ido tr ês tip os de p esqu isa n esta área . Em prim eiro lu gar têm
de estresse, e estudos de impac to emocional criado por situações naturais sido feitos estudos das possíveis relações entre m edidas psicossociais obti-
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o humano
Atendimento psicossocial a paciente de câncer... 2
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das cinco a dez an os antes e o subseqüente surgimento do cânc er. Assim,
ras, não-afirmativas, pacientes, evitadoras de conflitos, com baixa ex pres-
Dattore e colaboradores (1988) constataram que a repressão emocional sividade de em oções e em pa rticular a raiva, submissas à autoridade ex-
era maior em indivíduos que desenvolveram câncer. E ssa pesquisa, se- terna e apresent a n do uma resposta defensiva ao estresse. Muitos autores
gundo autores que a citam, tem recebido críticas, já que não apresenta
assinalam que há u ma possível correspondência destes traços de persona-
controles adequados para eventos intervenientes, que poderiam ter in- lidade com alterações biológicas ligadas ao sistema de defesa do organis-
fluenciado os sujeitos da pesquisa no que toca a diferentes exposições a
mo, bem como, aumento de divisão das células malignas e também inibi-
carcinogênicos ambientais.
ção da atividade de reparação do DNA d a s células. (Simonton, 1987 e
O segund o tipo de pesquisa envolve o uso de dados psicossociais obtidos Baltrusch, 1988)
na época do diagnóstico de câncer, para determinar se fatores de perso-
Ora, ao se falar de traços de personalidade não se pode deixar de pensar
nalidade são associados com a evolução posterior da doença. Desta for-
na influência que eles têm na maneira do indivíduo lidar com a vida.
ma, Greer e colaboradores (1979), verificaram que o otimismo e o espíri-
Tr at a- se , p ois , d e u m es til o d e m an ejo de sit ua çõ es de vid a. O es til o p od e
to de luta, em pacientes operadas de câncer de mam a, estavam associa- ser eficaz enquanto as situações ambiental e psicológica são estáveis e
dos com ausência de recorrência cinco anos depois. Redd e Jacobsen então a auto-estima é m antida. No ent an to, a repressão crônica, que im-
(1988) citam Rogentine e colaboradores que, observaram q ue, pacientes pede a expressão das necessidades e afetos, tem conseqüências negativas
que referiam ter precisado de pouco esforço para se ajustarem à doença,
do ponto de vista biológico e psicológico.
tiveram recorrências e morreram mais cedo do que aqueles pacientes que
pareciam menos bem-a justados na época do diagnóstico. Presume-se que Segundo Temoshok (in Baltrusch, 1988) o tipo C de personalidade é
estes pacientes que evoluíram pior também tinham uma atitude de maior uma frágil adaptação ao m undo. A homeostase com o ambiente pode
resignação diante das dificuldades da vida. Outros autores também en- ser atingida apenas parcialmente e com um a lto custo, enqu an to que a
contraram esta relação. Assim Degoratis e colaboradores (1979) estuda- homeostase biológica parece estar severam ente comprometida. Estes
ram doentes de câncer de mama e aqueles que eram menos bem-adapta- indivíduos eventualmente desenvolvem um estilo de manejo de vida q ue
dos, apresent a n do gr a n de ansiedade, depressão e hostilidade, medidas depende da supressão do reconhecimento dos sentimentos e necessida-
em escal as apropriadas, concluindo que viveram mais longamente após o des biológicas. Especula-se atualmente que o câncer cresça em condi-
diagnóstico do que aqueles mais bem-a justados. ções de estresse, em que houve uma acomodação crônica a um baixo
nível de organização e que tem como substrato biológico os neuropeptí-
O terceiro tipo de pesquisa se p rende à análise de dados psicossociais ao deos imunomoduladores.
tempo do diagnóstico, determinando se esses dados estão relacionados a
marcadores imun ológicos e histológicos de prognóstico da doença. Os Baltrusch (1988) afirma que os recursos pessoais que o indivíduo tem
pacientes de alto risco, segundo esses estudos, mostraram ter muitos tra- para lidar com estresse são de maior importância para a adequação às
ços de personalidade do chamado tipo C, associado à diminuição de vá- diversas situações de vida. Pessoas que tenham um senso de significância
rias funções do sistema imunológico, como, por exem plo, diminuição de de si mesmas e de compromisso consigo, uma atitude vigorosa com a
atividade de células NK, "Natural Killer" - um tipo de célula do sistema vida e autoconfiança têm menor possibilidade de desenvolver doenças,
i munológico. (Baltrusch, 1988.) quando submetidas a situações de estresse. Nos níveis cognitivo e em o-
cional, lidam de uma forma mais eficaz com as vicissitudes da vida. O
Pesquisadores estabeleceram um perfil de personalidade de pacientes mesmo é verdadeiro para indivíduos que tenham recursos pessoais para
com câncer a que deram o nome de tipo C. Para isso tomaram como base enfrentar situações sociais ou que possam contar com uma rede social de
o modelo desenvolvido para pacientes com doenças coronarianas e lista- apoio. Pessoas bem-estruturadas psicologicamente são muitas vezes so-
ram as seguintes características: pessoas supercooperativas, apaziguado- cialmente competentes e geralmente possuem um a rede social de apoio
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o humano
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também b em-estruturada. Ligações sociais que levam a apoio eficiente, e
que não sejam associada s a conflitos e fricções interpessoais, parecem vés de trabalho de relaxamento e contato social em pessoas idosas, que
favorecer a adaptação a situações de estresse e também resultar em uma estavam morando em comunidades de velhos. Os sujeitos do estudo fo-
condição melhor de saúde. Nota-se que condições adversas são impor- ram distribuídos ao acaso em três grupos, a saber: um grupo de relaxa-
tantes no estabelecimento de m aior vulnerabilidade. Baltrusch observa, mento, outro de contato social e um terceiro sem nenhum contato. Os
como muitos outros autores, que perdas e separações parecem constituir indivíduos dos dois p rimeiros grupos eram vistos três vezes por semana
elementos import a n tes na desestabilização da saúde e comenta que tanto durante um mês. Ao fim desse período os indivíduos pertencentes ao
perdas reais como ameaças de perdas p odem ter o mesmo efeito. grupo que era submetido ao relaxamento mostrou um significativo au-
mento na atividade das células NK e diminuição da tensão relatada por
Um forte suporte social geralmente está associado com a diminuição da eles próprios, enqu a n to que os indivíduos dos dois outros grupos não
morbidade e da mortalidade. Provavelmente este suporte mitiga os efei- mostraram nenhuma alteração significativa. Houve também um aumento
tos d an osos que situações de estresse podem causar. Pesquisas recentes geral na resposta dos linfócitos T à estimulação com fitohemaglutinina,
mostram que indivíduos que se sentem menos apoiados por sua rede com uma diminuição das concentrações mitogênicas. Estes dados suge-
social, têm tendência de criar redes sociais mais am plas, porém mais rem também que a imunocompetência pode ser aumentada por uma in-
superficiais. Estas pessoas geralmente se sentem apoiadas por todos os tervenção psicossocial em populações de idosos.
indivíduos de suas relações e a m aior contribuição para seus sentimentos
de não serem a judados vem do fracasso de seus esforços, quando tenta- Estes estudos permitem pensar que a velhice é caracterizada por altera-
ram conseguir apoio significativo de seus pais. Segundo B owlby (1985) ções do sistema nervoso autonômo e nos meca nismos de regulação dos
há uma clara relação entre a experiência do indivíduo com seus pais e órgãos internos e por várias alterações do sistema imunológico, que são
sua capacidade posterior de estabelecer vínculos. por sua vez influenciados por situações de estresse emocional e formas
inadequadas de lidar com situações estressantes.
Th or ia s e co lab or ad or es (1 98 5) , e m es tu do s c om pe ss oa s i do sa s, ob se rv a-
ram que indivíduos com bons sistemas de suporte social tinham baixos Relato de uma experiência brasileira no atendimento
índices de colesterol, ácido úrico e altos índices de eficiência do sistema psicossocial a pacientes com câncer
i munológico. Vale notar que mulheres geralmente têm mais sensibilidade
para estabelecer relações sociais, bem como, maior versatilidade na esco- A experiência pessoal de Carl Simonton como oncologista, aliada às ob-
lha dessas relações, o que reflete nas funções fisiológicas. servações anteriores descritas, fez com que este autor propusesse um
método de atendimento psicossocial a pacientes com câncer, que está
Um peso adicional para pessoas idosas é a subestimulação. Arnetz e relatado em um livro em co-autoria com Steph a n ie Matthew-Simonton e
colaboradores (1983) examinaram os efeitos psico-endócrinos e metabó- Ja me s C re ig hto n, ch am ad o Com a vida de novo (1987).
licos do isolamento social e subestimulação. Notaram que a estimulação
social levava a um grande aumento da testosterona, dehidroandrosterona Este método vem send o empregado por nós n o Centro Oncológico de
e estradiol 2, enquanto a hemoglobina A lc decresceu significativamente Recuperação e Apoio - CORA.
nos grupo estimulados. Estes experimentos permitem concluir que a su-
O CORA é uma sociedade civil„ sem fins lucrativos e de utilidade pública,
bestimulação e o isolamento podem estar associados a um amplo espec-
fundada em 1985 por um grupo de pacientes e ex-pacientes de câncer.
tro de alterações psicofisiológicas em pessoas idosas. A Dra. Kiecolt-
Estes pacientes, embora recebessem bom atendimento médico, sentiam
Glaser e colaboradores testaram o aumento da imu nocompetência, atra-
necessidade de que aspectos emocionais também fossem cuidados. Para
2 São hormônios sexuais.
viabilizar o atendimento dessa necessidade entraram em contato com o
Cancer Supp ort and Education Center de Menlo Park, Califórnia, E.U.A.
Atendimento psicossocial a paciente de câncer... 21 7
e através de convênio este grupo passou a vir periodicamente ao B rasil, ao atendimento, de forma que a depressão que freqüentemente se encontra
longo de dezoito meses, para dar treinamento a profissionais na área de neste paciente possa ser revertida.
saúde mental. O método usado pelo Cancer Support an d Education Cen-
O primeiro pa sso que se dá com os pacientes é no sentido de auxiliá-los a
ter é o chamado método Simonton.
fortalecer a sua convicção de que o tratamento a que estão sendo subme-
ismo é dotado de um sistema de defesa
O CORA, no ent an to, se propõe a um trabalho mais amplo que abr an ge a tidos é eficaz, e que o seu org an
área de divulgação e esclarecimento da opinião pública a respeito do sofisticado e poderoso. Isso vai dando ao paciente a ce rt eza de que ele
câncer, tendo pa rt icipado da traduç ão e edição no Brasil do livro acima tem recursos pessoais para li dar com a doença, começando a reverter sua
referido de autoria de Carl Simonton. postura passiva em relação aos fatos da vida. Como passo seguinte,
aprenderá sobre sua forma de lidar com o estresse da vida cotidiana,
Atualmente, além do seu Programa Avançado de Auto-Ajuda (PAAA), tomando consciência de sua maneira de operar para então poder buscar
onde é usado o método Simonton, o CORA d esenvolve reuniões abertas métodos mais eficazes para enfrentar as situações de vida, em lugar de
semanais para pacientes e familiares. Estas são reuniões de auto-ajuda, te que o paciente experimente uma mud an ça na
desistir. É muito import a n
onde pacientes e familiares encontram-se com ex-pacientes, podendo tro- percepção de si mesmo, de forma a se sentir mais seguro e estimulado
car informações importantes para aqueles que acabam de receber o diag- para lidar com os problemas do cotidiano. Tenta-se assim um a reversão
nóstico de câncer. de perspectiva, de forma que a desesperança e sensações de desamparo
sejam transformadas em esperança e expectativas, o que faz com que o
Através de um corpo de voluntários, adequadamente treinado, o CORA desejo de morte, freqüentemente presente nestes pacientes, de forma
elaborou um cadastro de serviços de atendimento na á rea de oncologia consciente ou inconsciente - já que a morte pode ser sentida como um a
para encaminhamento de todo o paciente que esteja em busca de pro- solução - seja transformado em desejo de vida.
fissionais.
O CORA tem dado treinamento a profissionais da área de saúde mental e Um outro passo que nos parece importante é despertar no pa ciente a
está ampli an do o programa de treinamento para profissionais da área de noção de que cada um, de um a forma ou de outra, participa dos proces-
saúde (médicos, enfermeiros-padrão, fisioterapeutas, etc.). sos de saúde ou de doença. Verifica-se que freqüentemente o câncer sur-
ge num período de 6 a 18 meses após alguma situação de estresse que o
No Programa Avançado de Auto-Ajuda (PAAA) acima referido, desen- paciente tenha vivido. Não apenas situações penosas e desagradáveis po-
volvemos um trabalho de gr upo temático. Reunimo-nos com os pacientes dem se constituir em estresse. Algumas outras situações que levem a m u-
uma vez por semana, durante nove semanas, aprox imadamente seis hor as danças de vida alterand o o equilíbrio emocional e exigindo esforços de
por vez. Estimulamos nossos pacientes a que venham às reuniões de gru- adaptação também têm efeito estressante. Segundo a escala de Holmes e
po acomp an hados por uma pessoa da familia com quem sintam a fin idade. Rahe, anteriormente citada, são situações estressantes desde o c as amento
Parece-nos import a n te a presença deste acompanhante, uma vez que isto ou ser prem iado em loteria, até uma condição freqüentemente desejada,
nos permite lidar com dinâmicas familiares sempre si gn ificativas e agora como a aposentadoria.
ainda mais já que a família está vivendo, em função de ter um de seus
membros port an do uma doença que ameaça a vida, todas as f an tasias Discutir com o paciente como ele participa de seu processo de saúde ou
ligadas à morte. de doença, através da criação de situações desnecessárias de estresse,
O método Simonton visa ajudar o paciente de câncer a lidar com suas possibilita rever suas met as , aceitar seus limites, reformular sua maneira
emoções, identificar suas necessidades existenciais e encaminhar o seu de criar ou enfrentar problemas.
Atendimento psicossocial a paciente de câncer... 21 9
21 8
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situações de vida de forma eficaz, de m an eira que o indivíduo não se longo da vida, mesmo tendo se tornado inadequados. Este trabalho é
sinta fracassado e deprimido. E conduzida uma primeira experiência de seguido por um outro complementar a que chamam os de "Escultura F a-
relaxamento e a visualização em que é demonstrada a possibilidade de se miliar", já que usamos como técnica expressiva a escultura com massa de
conseguir uma resposta orgânica, evidenci an do a inter-relação men- modelar. Visa identificar modelos desenvolvidos na relação do indíviduo
te/corpo. A seguir, é proposta a visualização do sistema imunológico em com sua família de origem e de como estes modelos podem estar sendo
ação, em caso de câncer, e depois se usam técnicas expressivas (dese- atualizados com a família atual, levando a relacionamentos inadequados.
nho) para que se evidenciem conteúdos inconscientes. Os p articipantes
são divididos em subgrupos, sendo então trabalhadas as crenças a res- A sexta sessão é dedicada ao trabalho com fantasias de morte. Também
peito do câncer e dos tratamentos. aqui usamos técnicas de relaxamento e visualização. Sugerimos aos pa-
cientes que visualizem a situação de sua própria m orte e a possibilidade
Iniciamos a segunda sessão com um relaxamento e introspecção, para que do renascer, construindo então uma nova vida. Com o em outras ativida-
os particip a n tes possam fazer contato com os conteúdos de seu mundo in- des, o grupo é dividido em subgrup os nos quais os comentários emergidos
terno. A seguir passamos a um processo de c ompartilhamento das vivências são processados. O objetivo visado, como já mencionamos anteriormente,
que os participantes tiveram, e que sintam necessidade de serem trabalha- é permitir ao paciente uma revisão de fantasias e emoções em relação à
das. Usamos para isso todo o período da manhã. No período da tarde morte, bem como, o restabelecimento de prioridades para a sua vida. A
retomamos o p rocesso de relaxamento e visualização e voltamos a trabalhar sétima sessão inicia-se como as dem ais sendo que no final da manhã vol-
mais detalhadamente imagens relacionadas ao sistema imunológico, us a n do ta-se ao tema da segunda sessão, ou seja, o trabalho com o sistema imu-
também algumas técnicas psicodramáticas que reforçam o trabalho. O gru- nológico. Nos subgrupos o trabalho é orientado no sentido de se verifica-
po de participantes é dividido em outros menores, coordenados por moni- rem as mudanças de crenças e expectativas a respeito do câncer e dos
tores, para que seja possível um aprofundamento maior do trabalho. tratamentos que ocorreram no decorrer do trabalho. À tarde trabalhamos
com os participantes do grupo o estabelecimento de metas de vida. São
A terceira sessão inicia-se como a anterior: relaxamento, introspecção e sugeridas metas de trabalho, de relacionamento, de exercícios físicos e,
partilhamento. Ao final da manhã, trabalhamos o tema: "Formas de Con- por fim, metas de prazer. Pedimos aos pacientes que se comprometam
tribuição para o Adoecer" e no período da tarde trabalhamos "Ganhos com as metas que eles estabeleceram e que de fato tentem cumpri-las.
Secundários da Doença". Estes assuntos devem ser preferencialmente Metas factíveis e cumpridas com sucesso ajudam os pacientes a melhora-
conduzidos por um monitor que seja um ex-paciente de câncer. rem sua autoconfiança e auto-estima.
A quarta sessão é inteiramente dedicada a trabalho corporal. Usamos A oitava sessão é conduzida, em seu período da manhã, de modo que os
como instrumento de trabalho a técnica "Radix". "Radix " é uma técnica participantes estabeleçam seus p róprios roteiros de relaxamento e visuali-
que descende da terapia reichiana. Consiste em exercícios que permitem zação e, no período da tarde, é desenvolvido um trab alho com técnicas de
a diluição de couraças, facilitando a liberação e conseqüente conscienti- comunicação inter-pessoal.
zação de emoções.
A nona sessão é dedicada ao encerramento do trabalho.
A quinta sessão, também a exemplo das outras, inicia-se com um relaxa-
mento, introspecção e partilhamento. A seguir trabalhamos o tema a que Ao longo do trabalho nossos pacientes podem ter com os outros monito-
chamamos de "Decisões de Infância". É um trabalho que visa colocar o res algumas entrevistas individuais. Recebem ainda três sessões de massa-
paciente, através de técnicas de relaxamento e visualização, em contato gem terapêutica, que podem ajudar os participantes a ter um contato
com experiências de sua infância e que foram significativas no estabeleci- maior com seu corpo, estabelecendo maior intimidade e conhecimento de
mento de padrões de comportamento que permaneceram presentes ao suas necessidades.
2 2 4 Morte e desenvolvimento humano Atendimento psicossocial a pacientes de cân cer... 2 2 5
fazer piadinha s, gozação, ou ficar indiferente, como descreve Concone O caráter funcionalista da instituição prevê que determ inadas tarefas têm
(1983). 0 primeiro passo é tirar qualquer identidade hum an a do cadáver, de ser cumpridas e registradas e o pessoal de enfermagem precisa adap-
pois pensar que ali havia um ser hum an o e que a vida é transitória, pode tar-se a elas. Observou que qu ando é feita a escala das enfermeiras há um
ser muito angusti a n te. Para o estud a n te de medicina, desvendar os segre-
temor muito gr ande de ficar responsável por um paciente terminal, há
dos do corpo, seu funcionamento e recuperação são os grandes desafios, tentativas de modificação da escala.
sendo o maior deles adiar e controlar a morte.
Te nd o a ab or da ge m fe no m en oló gic a co mo a su a fu nd am en ta çã o, a au tor a
No treinamento do pessoal da á rea médica ocorre um a dessensibilização se questiona no seu pa pel de profissional de saúde, sentindo-o incompleto
dos elementos que possam evocar a morte. As pessoas são transformadas se não pensar na importância a ser dada no período que an tecede a mor-
em órgãos, ossos, s an gue, numa reação contrafóbica, represent a n do uma
te. Desde 1983 começou a abordagem do tem a da morte e o relaciona-
atitude vitoriosa e de domínio. E enfatizada a objetividade científica, o mento com o p aciente terminal em uma unidade dos programas de disci-
controle sobre a doença, e o paciente vira um nú mero. O m edo da morte
plinas do curso de enfermagem. No seu tr abalho em muitos pontos seme-
se torna uma questão intelectual.
lhante ao de Kubler-Ross, como mencionamos no capítulo anterior, a au-
tora se dedicou a escutar os pacientes em suas falas, em sua forma de ser
A função da enfermeira, segundo Quint Benoliel (1972), é de assistir o
doente, promover a sua recuperação e ajudá-lo a fazer o que não tem no mundo, buscando responder às seguintes questões: o que é ser um
paciente terminal? O que é es tar vivenci ando a fini tude próxi ma? O que é
condições de realizar só. A relação paciente/enfermeira é fundamen tal.
Muitas vezes, a enfermeira é a pessoa mais próxima ao doente, que cuida conviver com a idéia de m orte iminente? O que é estar morrendo?
de suas necessidades básicas e que melhor o conhece como pessoa. Está
subordinada ao médico a quem compete tomar as decisões mais cruciais, E como fica o psicólogo diante da questão da morte? Hoje em dia este
e à enfermeira cabe colocá-las em prática, mesmo que tenham opiniões problema vem se tornando m uito importante para o p sicólogo, que está
divergentes a respeito. sendo chamado para trabalhar em hospitais, clínicas, com pacientes por-
tadores de doenças gr aves e também com suicidas. Pouco se tem escrito
Tr at ar de pa ci en tes te rm ina is, m an tê- los lim po s, co nf or tá ve is e s em do r é sobre este profissional diante da questão da morte. O que nã o de ix a de
uma das tarefas mais difíceis como, vimos. No curso de enfermagem tam- ser um paradoxo, porque se a morte é uma preocupação universal do
bém são mais enfatizad os os aspectos técnicos e práticos da função de homem, e a psicologia estuda a relação do homem com o mundo, então a
enfermagem. Há pouca ênfase em questões ligadas à emoção. A enfer- morte deveria ser área de preocupação primordial da psicologia, como
meira é quem está próxima nos m omentos mais difíceis, é quem o pacien- campo de estudo e c omo prática profissional.
te busca para conversar sobre os seus temores, ou quando está m orrendo.
E a enfermeira também que está ma is próxima à família, tendo de lidar Kastenbaum e Costa (1977) fizeram um lev a n tamento das principais áreas
com os sentimentos dos parentes, as dúvidas, angústias, temores e quando de pesquisa vinculadas ao tema da morte, dentre as quais podem ser
o paciente falece é quem toma as p rimeiras providências. citadas as seguintes: desenvolvimento cognitivo emocional e atitudes dian-
te da morte, morte ligada ao comportamento e ao estilo de vida, suicídio,
Boemer (1986) realizou um estudo sobre o que d enominou a faticidade processos de morrer, luto, perda e tristeza. Resta saber de que forma
do paciente definido como terminal, e como enfeum eira tem uma convi- podemos relacionar o trabalho do psicólogo com a questão da morte. No
vência muito forte com estas pessoas. A autora fala das práticas da enfer- capítulo 4 no livro Da mo rt e: estudos brasileiros (1991), tentamos fazer
magem envolvendo cuidados com a higiene, hidratação, medicação. En- uma sistematização destes pontos. E inegável que a morte faz parte do
tretanto, ressalta que estas práticas se tornam rotineiras, mantendo-se cotidiano do ser humano, quer por atração, repulsa, curiosidade ou ter-
iguais dur an te vários dias, sem alterações significativas em seu conteúdo.
ror. Como vimos, pode estar na gênese de vários quadros neuróticos ou
Profissionais de saúde diante da morte 2 31
23 0 Morte e desenvolvimento humano
psicóticos e aparecer sob as mais variadas formas, como medo da castra- dade, medo ou dor. Essas crises mantêm uma an alogia com a morte, pelo
ção, fobias ou ansiedades de separação entre outras. seu fator de desconhecimento.
O psicólogo pode se de fr ontar com a questão da mo rt e em qualquer situação O tr abalho com idosos é ou tr a moda li dade de ação para o psicólogo. Esse
de tr abalho, até naquelas onde nem se imagina ria. Na escola, por exemplo, g ru po caracteriza-se por estar cronologicamente mais próximo da mo rt e físi-
pode estar com uma criança, que acabou de perder seu animal de estimação ca e, talvez, para alguns idosos conversar sobre o tema da m o rt e seja vital.
ou alguém da família. O psicólogo indust ri al também entra em contato com Mas para ou tr os, é justamente sobre a vida que querem falar. E import an te
várias situações de "morte" no tr abalho, desde o falecimento de colegas ou lembrar que a velhice é um a fase do desenvolvimento e como tal tem as
s u p e riores, acidentes dos mais va ri ados tipos, configur a n do processos aut o-
expectativas e desafios inerentes a este período e trabalhar estas questões, o
destrutivos crônicos como vimos no capítulo dez até situações de perda ou aprofundamento de ce rt as relações, a revisão da vida, a busca do significado
mu d a n ça de emprego, muitas vezes vividas como mortes. e xi stencial podem ser os temas da terapia. Atua lmente, nota-se um gr a n de
movimento no sentido de prop or psicoterapia a pessoas mais idosas.
Esta ligação parece ser m ais evidente no trabalho clínico, quer institucio-
Um novo campo de trabalho está se abrindo para o psicólogo dentro dos
nal, quer em consultório particular. Será qu e os psicólogos estão atentos a
hospitais não só na á rea da psiquiatria, mas também em outras, fazendo
sinais que indicam o início de processos m órbidos, autodestrutivos muitas
parte das equipes multidisciplinares de saúde em campos como a oncolo-
vezes inconscientes para o paciente e que resultam em doenças psicosso-
gia, cardiologia, nefrologia, ortopedia, só para citar alguns. Seu trabalho
máticas? Ansiedades e fobias podem levar a uma paralisação, que seria
pode constar de acompanhamento pré e p ós-operatório, trabalho com os
quase uma morte em vida.
familiares e atendimento a pacientes terminais, além da possibi lidade de
A intencionalidade da ação autodestrutiva, a princípio latente, pode em orientação e apoio à equipe médica e de enfermagem no que concerne a
algumas situações transformar-se num processo mais explícito, como evi- questões de saúde mental.
denciado pelo grande número de tentativas de suicídio e também por Como aponta C amon (1984), o trabalho do psicólogo no contexto hospi-
ações letais, como dirigir perigosamente ou se into xi car com álcool e dro- talar ainda é polêmico, muitos tentam adaptar modelos de atuação em
gas. Estes indícios podem vir camuflados por outras queixas e é necessá- consultório particular nos hospitais, o que causa problemas. Em seu li vr o
rio que sejam percebidos e apontados desde o início do processo terapêu- relata experiências de psicologia em unidades de pediatria, ortopedia,
tico, quando a ação psicológica pode ser ma is efetiva. UTI, com pacientes mastectomizadas, com pacientes que tentaram suicí-
dio e no man icômio judiciário. Trata-se de u m livro que nos oferece a
Outra questão freqüentemente perturbadora é a perda de pessoas signifi-
possibilidade de refletir sobre a prática d estes psicólogos pioneiros em
cativas, a sepa ração, o abandono e o luto. Outros processos podem ser
uma área ainda em expando no Brasil.
vividos no cotidiano como perdas: são os processos de mudança de casa,
relacionamentos novos, rompimento com os antigos, alterações de empre- O trabalho do psicólogo é minimizar o sofrimento ligado à hospitalização
go. Estes podem, às vezes, ser sentidos como pequenas m ortes, pois im- e, por isso, ainda nos surpreende o fato de m uitos hospitais se recusarem
plicam na perda de uma situação antiga conhecida, e na passagem para a ter p sicólogos em seu quadro de profissionais, aleg a n do problemas fi-
uma etapa nova desconhecida, sendo evidenciadas em momentos críticos nanceiros; acreditamos, no entanto, não ser esta a única razão.
da vida como, por exemplo: adolescência, casamento, maternidade, pater-
nidade, aposentadoria. Cada um deles tem suas características peculiares, Gostaríamos, neste momento, de retomar um projeto de lei defendido
mas estes processos podem vir acom panhados de m uito sofrimento, pois pelo sr. Mário Hato, em 1984, que propunha a regulamentação da contra-
representam a perda de um ponto conhecido e o lançamento em direção tação de psicólogos em instituições de saúd e, escolares e hospitalares.
a uma etapa nova, na qual o desconhecido se faz presente, surgindo ansie- Esse projeto não foi aprovado, entretanto, resolvemos relembrá- lo pois
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Profissionais de saúde diante da morte
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dros, e a experiência tem se mostrado muito válida, como atestam depoi-
contém import an tes reflexões sobre o trabalho do psicólogo em hosp itais. mentos de pac ientes, artigos e pesquisas realizadas em hospitais.
O projeto propõe que hospitais, casas de saúde e outros estabelecimentos
da mesma natureza, que funcionam sob regime de internação de pacien- Mas estarão os psicólogos dispostos e preparados para tr abalhar neste con-
tes, fiquem obrigados a contratar e m a n ter psicólogos clínicos no quadro texto? Com o vimos, não é possível simplesmente tr ansplantar uma experiên-
de profissionais, que atuam na área de saúde, na proporção de um psicó- cia de consultório p ri vado, para hospitais. Ainda não há uma sistematização
exões já são possí-
logo para cada 25 pacientes. Estes psicólogos deverão atuar na sua área sobre esta nova área de tr abalho, entret an to, algumas re fl
abalho com pac ientes portadores
de competência, junto aos doentes que demandam abordagem p sicológica veis, p ri ncipalmente no que concerne ao tr
para a solução de seus problemas de ajustamento, colaborando em assun- de doenças graves, os assim chamados pacientes terminais.
tos psicológicos ligados a outras ciências e integr an do as equipes m ulti-
disciplinares de saú de que se constituírem em hospitais. Torre s e G ued es (1 987) el abora ram um a rtigo e m qu e tec em r eflexõ es
sobre o psicólogo e a questão da terminalidad e. O primeiro ponto a ser
A justificativa para este projeto envolve a necessidade da presença do considerado para quem vai trabalhar com pacientes terminais, é o de
psicólogo nos hospitais, considerando-se a sua atuação indispensável para caminhar em direção ao medo em relação à morte e o morrer. Assim
uma abordagem total do indivíduo, que enquanto está doente vivencia, como ocorre com outros profissionais de sa úde, é uma tarefa difícil de-
nesta situação de debilidade física, uma nova e traumatizante experiência frontar-se com a própria negação, para aí poder entender a da instituição
que é a internação hospitalar. Sem considerar o sofrimento físico provo- de saúde e a do pa ciente. Essa negação pode m anifestar-se no silêncio ou
cádo pela disfunção orgânica, a internação hospitalar já significa, em si, na omissão ante a questão da morte.
uma quebra na rotina cotidiana do paciente e na acomodação ao estilo de
vida que escolheu para si. Há uma mudança de hábitos, uma série de Segundo as autoras, trabalhar c om o sofrimento ou a perda de significado
intervenções e exames que o magoam, m achucam e invadem a sua priva- da existência pelo paciente, pode despertar no profissional as mesmas
cidade e nem sempre respeitam a sua dignidade, como mencionamos, no vivências, ferindo o seu narcisismo, e a sua onipotência, colocando-o dian-
capítulo onze. Isto pode gerar uma sensação de dependência, limitação e te do incompleto e do não-terminado.
i mpotência, levando a conflitos psicológicos intensos, que somente um O trabalho com pacientes terminais, pode se desenvolver numa linha de
profissional especializado pode prever, diagnosticar, indicar terapia ade-
quada, com reais possibilidades de transformar o trauma hospitalar numa apoio em situação de crise, ou configur a n do-se como um processo psico-
terápico onde se busca autoconhecimento, insight, e em que algumas de-
experiência positiva de reflexão sobre a vida e de equilíbrio íntimo em
fesas são mais trabalhadas. Existem algumas peculiaridades, como vimos
relação às agressões externas, permitindo ao indivíduo a assimilação de
no capítulo onze, que requerem flexibilidade por parte do psicólogo,
seu estado em sua atual circunstância de doente. terapêutico, que além do consultório pode envolver o do-
como o setting
micílio e o hospital, com recursos nem sempre adequados. A regularidade
O autor do projeto fala então de uma coerção aos hospitais para que das sessões pode ser alterada, sessões são susp ensas por conta de inter-
contratem psicólogos, apontando a insensibilidade de algumas instituições venções cirúrgicas ou pela impossibilidade física do paciente. Outras ve-
quanto a estas questões ligadas à influência da psique sobre a gênese e zes, é necessária uma assiduidade maior, sessões mais longas, sessões
desenvolvimento de quadros orgânicos. não-verbais, onde é necessária a presença física, segurando as mãos do
paciente. Não há re gr as fixas, nem procedimentos específicos nesta situa-
Não acreditamos que se devesse coagir os hospitais a contratarem psicó- ção. Muitas vezes, o psicólogo tem de presenciar manifestações de sofri-
logos, mas concordamos inteiramente que esta deveria ser uma obrigação mento físico, a que não está acostumado. Será que ele agüenta tantas
moral das instituições de saúde, p or tudo que foi apontado até aqui. Sa- incertezas, descer da onipotência das suas interpretações, do seu saber
bemos que várias instituições hospitalares já têm psicólogos em seus qua-
23 4 Morte e desenvolvimento humano Pr o fissionais de saúde diante da morte
23 5
sobre o subjetivo do outro, e aceitar um contato que se faz no mom ento Cursos sobre a Morte e o Morrer
da relação, envolvendo inclusive uma pro xi midade física e pessoal?
O psicólogo neste caso tem de desenvolver o seu poder de escuta, perce- Em minha tese de doutorado (1989) fiz uma análise e uma reflexão sobre
ber as necessidades do outro, tornar-se disponível para esse contato tão cursos que tratam da questão da m orte, arrol a n do as experiências inter-
nacionais a que tive acesso. Elaborei uma síntese das idéias principais
íntimo. Os médicos se escoram nos exa mes, nos instrumentos na tecnolo-
gia e na farmacologia, o psicólogo se escora na sua "tecnologia", suas sobre estes cursos no ca pítulo 4, do livro Da mo rt e: estudos b rasileiros
interpretações psicólogicas sobre o viver do outro. Devemos verificar se o (1991), no capítulo 4 do qual reproduziremos alguns trechos.
"psi" não entra como defesa contra um contato profundo com o paciente, Os cursos de educação para a m orte, com os mais variados tipos de mate-
que neste momento está tão necessitado de ajuda. riais e programas, são oferecidos nos EUA, envolvendo todos os níveis de
Será que o não-espaço do psicólogo em algumas instituições hospitalares, escolaridade, inclusive para crianças.
também não estaria relacionado a uma certa ineficiência deste profissio- A expectativa destes cursos, segundo Leviton (1977), era diminuir o medo
nal, numa área nova de trabalho que está se abrindo? Será que os cursos
da morte e levar a uma faci li tação e preparação para o processo de m or-
de formação de psicologia têm estado atentos a estas novas áreas de tra- rer. Esta expecta tiva parece ser exagera da, pois é muito difícil atingir este
balho do p sicólogo?
objetivo com um cur so. Por outro lado, havia o temor de que um curso
deste tipo poderia induzir as pessoas ao suicídio ou a uma predisposição
Verificamos que o currículo mínim o obrigatório de psicologia não sofre
para morrer. Estes pensamentos parecem má gicos ou onipotentes e, em-
alterações há vinte a n os, apesar de terem ocorrido grandes modificações
bora se saiba que se um aluno tenta suicídio depois de freqüentar um
em nossa sociedade. Em discussões sobre esse fato, têm surgido idéias
curso sobre a m orte e o m orrer, inevitavelmente a relação entre o curso e
interess a n tes na forma de empreender mudanças envolvendo alunos, pro-
o suicídio será feita, mas terá um curso o poder de decidir a questão de
fessores e a própria comunidade. Seria a c onstrução da psicologia a partir
da ação dos profissionais em contato com a realidade. vida e morte de uma pessoa?
Parece-nos que neste momento de reflexão e eventual amp liação do currí- O períodico Omega Journal of Death and Dying, 1975, 6 (3) traz um
histórico sobre este tipo de cursos nos EUA desde a década de 60. F un-
culo, a inserção do tema da morte, em suas várias abordagens e instân-
damentei-me neste periódico e em outros artigos mais recentes para tra-
cias, poderia ser pensada, incluindo módulos interdisciplinares e uma di-
çar alguns pontos que nortearam a criação de um espaço para a discussão
versidade de abordagens para perceber e compreender fenômenos psico-
lógicos, principalmente diante de um tema tão complexo e abr an gente
do tema da morte na graduação, em psicologia.
como é a questão da morte. Um programa de psicologia que tenha um Alguns artigos descrevem propostas de cursos, outros avaliam seus efei-
leque de opções sobre os m ais variados assuntos permite que os alunos tos, há sugestões de metodologias e estratégias, ligadas às necessidades
busquem as disciplinas de acordo com os seus interesses. E neste sentido dos alunos que buscam esses cursos.
que se pensou na inclusão do tema da morte como opção para o aluno. E
indiscutível, como já foi visto, a importância do estudo desta questão pela Os artigos de Leviton, Bluestein e Doka (1975) apontam entre os principais
psicologia, mas o envolvimento e a busca de um maior aprofundamento é motivos de escolha dos cursos sobre a m orte os seguintes: cu ri osidade, bus-
uma opção, assim como foi a escolha da psicologia como saber e profis- ca da compreensão da morte do ponto de vista pessoal, ajuda para lidar
são. Como conjeturamos a escolha da psicologia na busca de autoconhe- com pessoas di an te da morte e preparação para enfrentá-la. Autores como
cimento pode envolver, mesmo que de forma subliminar, uma busca de Leviton, Bell e Bloom (1975), Whel a n e Warren (1980 /81) e Cook e ou tr os
compreensão e reflexões sobre a questão da finitude, portanto, da morte. (1984/ 85) procurara m estudar os efeitos deste tipo de curso e verificaram
236
M orteedesenvolviment
o humano
Profissionais de saúd e diante da morte 23 7
que alguns enfatizam aspectos cognitivos, como uma maior sistematização ;
Neste capítulo farei apenas um breve apanhado das idéias principais que
de idéias e pensamentos sobre a m orte e um maior interesse em leituras
nortearam o início do curso, para maiores detalhes remeto o leitor às
sobre o assunto. Qu a n to aos aspectos emocionais e atitudinais, mudou a I
duas obras já citadas neste capítulo.
forma de encarar a m orte, de lidar com os m edos pessoais, no ent a n to as
maiores influências observadas foram nos aspectos cognitivos. Entre os objetivos do curso estão os seguintes:
No Brasil ainda não temos um a sistematização tão clara. Uma das iniciati- 1. Apresentar teorias psicológicas, que trazem a questão da morte com o
vas mais profícuas em nosso m eio foi a criação do curso de Tanatologia, objeto de estudo. No caso de nosso curso escolhemos a psicanálise, a
coordenado pelas psicólogas Wilma da C osta Torres, Wanda Gurgel Gue- abordagem analítica de Jung e a abordagem fenomenológico-existencial
des, Terezinha Ebert e Ruth da Costa Torres, no Rio de Janeiro. Estas de Heidegger, para ilustrar concepções bastante diversas do homem em
psicólogas também coordenaram um simpósio sobre a psicologia e a mor- face da morte.
te, em 19 80, no Instituto Superior de Estudos e Pesquisas Psicossociais,
onde profissionais de diversas áreas debateram vários temas como: edu- 2. Possibilitar a sensibilização e a escu ta dos processos internos per a n te a
cação e morte, suicídio, velhice e morte, doentes terminais, a morte no morte. Supomos que o aluno, ao escolher este tipo de curso deseje cons-
contexto hospitalar. Houve também sessões de trocas de experiências. O ciente ou inconscientemente aprofundar o tema. São criadas condições
relato deste evento está contido num livro denominado Psicologia e morte para favorecer esse mergulho interno e ver como ecoam internamente
(1984). Além deste relato o livro contém uma vasta bibliografia sobre o certos temas, como por exemplo: a morte, o luto, o suicídio, o ser porta-
tema. Supomos que na imensidade de nosso país certamente existem ou- dor de um a doença incurável, entre outros. Os alunos não estão vivendo
tras experiências das quais ainda não tomam os conhecimento. esta experiência neste momento, mas sim a possibilidade de se transpor-
tar para esta vivência e tentar escutar os seus próprios sentimentos sem
restrições ou críticas a p ri o ri , compartilhar com os colegas, ouvir os senti-
A partir da constatação da existência de poucas experiências deste tipo, mentos deles e também escutar sem censura. Este poder escutar-se e
em nosso país, e dada a importância da questão da morte para a forma-
escutar o outro é fundamental na prática psicológica com pessoas em
ção do psicólogo, como vimos, surgiu a idéia de oferecer um curso sobre crise, como as que tentam suicídio ou falam sobre o seu desejo de morrer;
o assunto na graduação em psicologia, na Universidade de São Paulo, idéias que num primeiro momento podem parecer absurdas, mas que
cuja experiência relatarei a seguir. necessitam de um ouvinte atento, de um a atmosfera de acolhimento.
Decidi-me pela criação de um a disciplina optativa, a ser inserida no currí- Ca be ressaltar que, embora estejamos lidando com sentimentos e situações
culo de psicologia da referida universidade. Cabe c omentar que o tema é às vezes tr istes, tensas ou conflitivas, procuramos manter o enquadre peda-
obrigatório na formação do psicólogo, por tudo que foi discutido neste gógico. Em hipótese alguma é feita uma sessão psicoterápica em aula. Se o
livro, entret a n to, o envolvimento pessoal de cada um diante dele é uma aluno pede ajuda, procuramos encaminhá-lo a um trabalho psicoterápico
escolha também individual. Embora este curso possa ser interess an te em fora do curso. Misturar estes dois c an ais pode ser extremamente pe rigoso.
qualquer área de saúde, ele foi introduzido na graduação em psicologia,
por eu ser professora nessa unidade. 3. Refletir sobre a ação do psicólogo em situações envolvendo a questão
da morte. São convidados especialistas para falarem de sua experiência e
oferecerem subsídios para uma discussão sobre a prática psicológica. Ém
A disciplina foi oferecida pela primeira vez em 1986, e a partir dessa data - yi ng , para que o aluno se
outras ocasiões, é usada a técnica de role pla
consta no rol de optativas do Instituto de Psicologia da US P, com o nome coloque em situações que poderá enfrentar como profissional, com o in-
de Psicologia da Morte. tuito de poder vivenciar e depois refletir sobre a sua ação p erante pessoas
23 8 Mo rt e e desenvolvimento humano
Profissionais de saúde diante da mo rt e 23 9
enlutadas, ou pacientes com doenças graves. Não se pretende oferecer
quente o atraso na sua entrega e a ex pectativa em relação à avaliação, c
estágios, nem dar treinamento e formas de ação predeterm inadas.
que demonstra que é impossível não se envolver com um tema destes.
O programa do cu rso é o que compõe este li vro, ou seja, os seus capítulos. Os alunos que optam por este curso estão normalmente no 5 período por
4
Depois desses a n os de prática, procurei ouvir as necessidades dos alunos e um dado circunst a n cial da psicologia da USP, ou seja, são os que têm a
tenciono in tr oduzir ou tr os temas, que podem ser interess an tes, como a disponibilidade de freqüentar o curso. Os alunos dos outros an os já estão
questão da morte nas artes, a questão religiosa ou uma experiência de tra- sobrecarregados com disciplinas de estágio. E o requisito de terem cursa-
balho hospitalar com crianças ou pacientes po rt adores de aids. Os capítulos do certas disciplinas imped e os alunos dos dois primeiros a n os de fre-
são os temas das aulas, onde são usadas as mais diversas estratégias como qüentarem o curso. Limitamos as vagas em 20 , para poder trabalhar mais
aulas expositivas, discussões em pequenos grupos, dramatizações, role- intensamente com cada aluno.
pla yi ng , discussão de filmes, li vros e peças de teatro. Concordo com Bleger
(1980) qu e a aprendizagem efetiva envolve o pensar, implic a n do numa aber- Os estud an tes têm por volta de 19 a 25 anos na sua maioria, embora
tura de possibilidades e a necessidade de repensar estereótipos. alunos mais velhos já tenham freqüentado do curso; 80% dos alunos são
do sexo feminino e 20% do sexo masculino; 50% se declararam católicos
Obviamente, este é um curso q ue demanda envolvimento, lidar com um e 70% destes, praticantes; 31% se apresentaram como não-religiosos.
tema tão complexo, cheio de meandros e carregado de mat izes emocio-
nais não autoriza uma indiferença, e as estratégias do curso envolvem Acredita-se ser esta um a amostra representativa do curso de p sicologia
uma facilitação para este envolvimento. Por outro lado, acreditamos que de uma forma geral.
um c urso se constrói na relação professor-aluno, port a n to, os alunos são
chamados constantemente para que se engajem com os temas das aulas e Embora seja uma am ostra bastante homogênea, apresenta diversas repre-
com a construção do curso. sentações de morte entre as quais: morte como perda, morte como fim ou
transição, morte como parte da vida, morte como medo, morte como
Um ponto de angústia é a bibliografia cada vez mais extensa sobre o fascínio, morte é sempre a morte do outro, m orte como sono ou descanso,
tema, envolvendo várias abordagens. São diversas ciências que se preocu- sendo estas que apareceram com maior freqüência.
pam com o assunto, além da psicologia, como a a n tropologia, sociologia,
filosofia, teologia, biologia, medicina só para citar algumas. Tem os tido Quanto aos motivos de escolha do curso encontrei:
acesso a algumas obras, que recomendamos aos alunos, entret an to, o
1. Busca da compreensão da morte: aparece a necessidade de pensar e
tema é inesgotável. Esta publicação é o resultado de um sonho ac alentado
refletir sobre ela e preponderância da razão sobre a em oção. Pude obser-
de ter um tipo de livro-texto para o curso, que como tal é limitado e
var que, para alguns, pensar, estudar teoricamente, pode refletir uma ne-
simples, mas talvez seja uma tentativa de resposta ao pedido constante
dos alunos de uma bibliografia básica. cessidade de distanciamento do confronto pessoal com a morte. Este foi o
motivo mais freqüentemente apontado, para configurar a morte como um
objeto de estudo.
Outro grande temor dos estudantes relaciona-se com a sua avaliação,
Este curso, por razões ób vias, não tem provas, portanto, o prim eiro alívio 2. Buscade familiarização com u m assunto con siderado tabu: aponta se -
já ocorre u, ma s, a a ngús tia p erma nece p orque t erão de apre senta r um '
a necessidade de preencher uma lacuna que o interdito da morte em
trabalho individual por escrito, cuja simples entrega já ga r an te a aprova- nossa sociedade provoca, ou seja, debater, discutir esse tema. E apontada
ção. No entanto, a experiência tem demonstrado que mesmo esse pedido a necessidade de resgatar o tema e a p ossibilidade de encontrar interlocu-
li be ral acaba sendo extremamente envolvente para os alunos, e é fre-
tores para esse diálogo. Procura de um tempo e um espa ço legitimados
24 1
Profissionais de saúde diante da mo rt e
A avaliação do curso depois de seis anos de trabalho permitiu chegar aos tolerar ambigüidades.
seguintes aspectos p ositivos: Esta é parte de minha experiência construída com idéias, pl an os, propos-
tas, mas também com dúvidas, angústias, medos. Não foi fácil introduzir
a. Contato com questões pessoais, mobilizando o lado emocional em este tema no currículo, entretanto, para fina li zar esta obra coerente com
relação a tópicos referentes à questão da morte. gr ande expe-
o que expressei na apresentação deste li vro, está sendo uma
riência de vida, estudar, trabalhar, pensar e escrever sobre a morte. Volto
b. Abriu espaço para um tema pouco debatido.
a enfatizar, não como uma característica mórbida, e sim como uma signi-
c. Proporcionou condições para questionamentos e reflexões.
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Mo rt e e desenvolvimento humano Profissionais de saúde diante da morte 24 3
ficação para a vida. Alguns p oderão levantar as sobrancelhas e pensar: FEIFEL, H. - Physician's consider death. Proceedings of 75th Annual
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