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Alínea
EDITORA

DIRETOR GERAL
Wilon Mazalla Jr.
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Willian F. Mighton
COORDENAÇÃO DE REVISÃO
Erika F. Silva
REVISÃO DE TEXTOS
Vera Luciano Morandim R. da Silva
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Sofia Cavalcante
REVISÃO DE FILMES
Rosange/a A. Santos
CAPA
Fábio Cyrino Mortari

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CJP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Amatuzzi, Mauro Martins


Por uma psicologia humana I Mauro Martins
Amatuzzi. -- Campinas, SP: Editora Alínea, 200 I.

I. Psicologia humanista I. Título.

01-4247 CDD- 150.198

Índices para catálogo sistemático:


I. Psicologia humanista 150.198

ISBN 85-7516-008-7

Todos os direitos reservados à

Editora Alínea
Rua Tiradentes, 1053- Guanabara- Campinas-SP
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Coordenadoria de Estudos
Impresso no Brasil e Apoio à Pesquisa (CEAP)
PUC-Campinas
Agradeço aos editores das revistas abaixo
mencionadas e à diretoria da ANPEPP juntamente
com a Dfl Regina Maria Leme Lopes Carvalho, a
permissão de retomar textos aí publicados original-
mente, para a composição do presente livro:
Arquivos Brasileiros de Psicologia
Estudos de Psicologia (PUC-Campinas)
Psicologia em Estudo
Psicologia: Teoria e Pesquisa
Prometeo - revista mexicana de psicología
humanista y desarrollo humano
Coletâneas da ANPEPP.
SUMÁRIO

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Capítulo I. Humanismo e psicologia 11

Capítulo 11. Silêncio e palavra 23


Da fala ao silêncio . . . . . 25
Do silêncio à fala . . . . . . 29
O surgimento do secundário 34
A compreensão . . . . . . . 41

Capítulo Ill. Investigação do humano 45

Capítulo IV. Pesquisa do vivido . . . 53

Capítulo V. Atendimento psicoterápico. 61


A palavra foi feita para calar . . . . . 61
Escutar é abrir-se para o mundo, e responder 66

Capítulo VI. Versão de Sentido. . . . . . . . . 73


Compreendendo a VS a partir de sua história 74
Pré-história e outras abordagens . 80
Tentativa de definição . . . . . . . . . . . . 81
Para uma fundamentação teórica. . . . . . . 83
Princípios gerais para o uso da Versão de Sentido . 85
APRESENTAÇÃO

Este é um livro sobre o resgate do humano em Psicologia,


escrito na primeira pessoa por alguém com coragem suficiente para
Capítulo VII. Etapas do processo terapêutico 87 desafiar a si mesmo na busca pelo sentido do ser e do relacionar-se. É
87 também sobre todos os humanos que em salas de aula, em ruas e
A problemática . . . . .
praças, em sessões de psicoterapia, em reuniões de sindicatos, em
O material. . . . . . . . 91 teatros e igrejas traduziram em atitudes seus compromissos e valores.
Os caminhos da análise. 96 É acima de tudo um manifesto a favor do existir humano em
Os resultados . . . . . . 98 processo, numa arrojada aventura iluminada e nutrida pela palavra.
O alcance desses resultados . 102 Mauro Amatuzzi tem sido assim, um psicólogo que filosofa,
em suas múltiplas atividades como professor, pesquisador, conse-
Confirmações externas 102
lheiro e autor. Este não é apenas mais um de seus livros; constitui uma
Considerações finais . 108 síntese dos significados atribuídos, ao longo de mais de três décadas,
109 a esforços consistentes no sentido de um engajamento com pessoas e
Capítulo VIII. Psicologia popular .
comunidades na lida diária pela recuperação da dignidade humana.
Capítulo IX. Processos humanos 117 Muitas foram, certamente, as versões de sentido, mas nunca em detri-
mento do sentido do próprio viver, como valorização do cotidiano e
O que é processo . . . . . . . 117 construção de experiências pessoais.
Os processos na vida . . . . . 119 Os capítulos que compõem esta obra mantêm a ênfase no
A explicação psicológica do processo 121 humanismo como uma perspectiva de abordagem ao psicológico, na
Processos grupais . . . . . . . . . . . 123 palavra como definição primeira do ser humano, na investigação do
vivido como possibilidade de uma apreensão compreensiva do
Processo comunitário e outros âmbitos . 125
cotidiano, no processo como historicidade crítica e constitutiva.
O cuidar . . . . . . . . . . . . . 127 "Por uma Psicologia Humana" é um título que marca a
Criando bolsões de humanismo . 129 identificação do autor com a práxis de uma atividade profissional,
cuja matriz de pensamento substancia um compromisso com o
Referências bibliográficas . . . . 133 desenvolvimento de uma abordagem interdisciplinar aos problemas
e ao desenvolvimento humano, aplicada a indivíduos, grupos e
comunidades. Isso, em essência, define o próprio surgimento da
Psicologia Humanista em sua retomada dos valores renascentistas,
com ênfase na recuperação da importância do homem em seu tempo e
contexto, valorizado em sua totalidade.
CAPÍTULO l

"Sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já HUMANISMO E PSICOLOGIA
se confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de me
afastar da lógica, porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a
invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro." Clarice
Lispector em sua "Água Viva" parece traduzir de maneira simples e
ainda assim magnífica a importância de um livro como este, em que
da palavra emerge a confirmação do vivido em sua concretude atual e O texto a seguir corresponde originalmente a uma palestra
pronunciada na /V Jornada de Psicologia Humanista, promovida pelo
do transcendente como devir humano. Centro de Psicologia da Pessoa e pela Universidade Federal do Rio
De um ponto de vista estritamente pessoal, julgo imprescin- de Janeiro, em agosto de 1988, e depois publicada em Arquivos
dível também reverenciar o homem Mauro Amatuzzi, meu colega e Brasileiros de Psicologia, 41, (4), pp. 88-95, set./nov. de 1989, com o
parceiro num processo em que a cronologia do tempo é de menor título "O significado da Psicologia Humanista, posicionamentos filo-
importância face à grandeza do inusitado, das vivências diversas, das sóficos implícitos". Ainda gosto bastante dele. Parece-me que ele
contradições feitas de encontros e desencontros, da magia em aponta para a largueza do território de uma Psicologia realmente
Humana. Fiz pouquíssimas modificações, somente para adaptar o
momentos de descoberta acadêmica. Em meio ao turbilhão das texto ao novo título. Hoje creio que é melhor falarmos do Humanismo
pesquisas, dos relatórios, das reuniões administrativas, sobrevive o na Psicologia, do que da Psicologia Humanista.
aconchego de abraços essenciais, de olhares certeiros, a nos acalentar
a certeza de que ainda nos importamos com o outro, este amigo que
pode ainda ser cúmplice nas horas, tantas vezes vazias e despidas de
significados, em que o humano parece escapar de dentro de nossos
papéis e desempenhos. Ü essencial do que quero dizer a respeito desse assunto pode
Vera Engler Cury ser colocado em algumas poucas proposições. E a primeira é a
seguinte: o~~ªo~~~Q(cho @~ fala",mas__ele_~~j)f_Qpria
palavra, isto é, ele é palavra. Reencontro aqui uma idéia que é tanto
àe-neíàeggercomo de Búber: não é a linguagem que se encontra no
homem, mas o homem que se encorifrinahnguageill.A segunaa pro-
posição é que isso não é"pües-Ía" oujogoâepalavras, como talvez
possa parecer. Trata-se de uma afirmação muito precisa, que nos
coloca num outro âmbito de considerações, ou seja, que implica mu-
dança ra.<!ical de ponto de vista. E a terceira é justamente que essa mu-
danÇãrãdical deponfo- de vista é o que mais caracteriza a contribuição
do humanismo para a psicologia. Não se trata, com efeito, nem de
12 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA l3

uma mudança de objeto, nem de uma mudança de método, e nem Sob esse enfoque o ser humano nos aparece não como resul-
mesmo, quem sabe, de uma mudança teórica. Trata-se na realidade de tante de uma sérj_~__9e coisas, IIl_a~ como, fundamentalmenttÇo
uma mudança na relação com o objeto. Essa mudança é capaz de inU:Iante de umasérie de coisas, e osdesaflosdaquifo que efe devé
assumir em determinados momentos o mesmo método, só que num criar não são respondíveis com explicações óaql.lele tipo. O homem
contexto onde o sentido global é outro, o que faz com que a visão só aparece naquilo que ele tem de mais próprio, com -à questão do
resultante (a teoria, nesse sentido) seja outra, mais abrangente, capaz sentido, não com a questão da causa explicativa. A relação explica-
de conter as visões anteriores, só que como parciais, e reconhecidas tiva se refere ao homem como resultado, como repertório, ou como
como parciais. Nessa nova visão a teoria, aliás, se toma ela mesma recebido, e, portanto, em definitivo, ao homem como passado. Não se
relativa: não se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria passa a ser refere ao homem atual, ao homem desafiado, ao homem tendo que
ela também um momento de algo mais amplo, que é o que afinal impor- responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um futuro).
ta. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que uma teoria. Este homem atual, presente, desafiado, interpelado, em movimento,
Uma das coisas que subjaz a essas proposições é que a consi- é o que encontra as questões de sentido: essas são as questões pre-
deração do sentido é fundamental. Para compreender o ser humano, sentes, que surpreendem o homem como existente (não apenas como
tenho que lidar com questões de sentido. A consideração do ser natureza, como diria Merleau-Ponty).
humano em termos de causa e efeito, antecedente e consequente~ Dizer que o homem é um "bicho que fala" (o que equivale a
parfe-e-todo, por mais cabível, correta ou verdadeira que possa ser, dizer que é um "animal racional") é ficar no âmbito das explicações, e
não dá conta do que seja o ser humano como totalidade em movi- portanto, do homem como resultado. Mas isso não é ainda o homem
mento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorrências atual. Só poderemos chegar a ele mudando o ponto de vista e assu-
humanas ou comportamentos a partir de "causas" internas ou mindo as questões de sentido que definem sua atualidade. O que ele
externas (motivações inconscientes ou configurações de estímulo, fala? O homem atual, presente, existente, é constituído pelas
por exemplo), posso analisar relações de antecedente-conseqüente
questões de sentido. Ora, a palavra é exatamente a questão do sentido.
(como por exemplo o efeito de uma recompensa), ou posso explicar
Por isso o homem atual se encontra na palavra, e não o contrário. É na
certas coisas em função das relações parte-todo (como por exemplo
quando digo que o modo de ser de uma pessoa é a repercussão indi- decifração de suas questões de sentido que o homem pode se instaurar
vidual de problemas ou situações coletivas bem caracterizáveis). em sua atualidade. Mas é preciso tomar cuidado: essa decifração
Posso ainda descrever como é que tudo isso se articula numa espécie pode ser vivida como uma redução ao esquema explicativo onde
de história geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as apenas encontraremos o homem-resultado, e não o homem em sua
pessoas ou à maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma atualidade. Isso, para Merleau-Ponty, seria permanecer no nível da
dessas coisas é válida e possível, e de fato é feita, com muitas pes- palavra secundária, da fala inautêntica, do falar sobre, da fala sobre
quisas, certamente. Mas nenhuma delas em separado, e nem todas falas. A fala sobre falas é ainda um discurso no passado. A decifração
somadas, dão conta do ser humano como totalidade em movimento. do sentido só será um discurso no presente se for vivencial, expe-
Algo fica faltando, e não é algo que possa ser cumprido dentro de riencial, uma vivência do próprio sentido criando novos sentidos. É
cada um daqueles enfoques. Não é tanto que essas explicações este- enfrentando os desafios que vou decifrando os sentidos e criando
jam incompletas. Sim, até estão, e haverá sempre mais a pesquisar novos sentidos. A decifração dos sentidos que permanece no atual
nessa linha. Mas a incompletude a que me refiro é de outra ordem. identifica-se com o enfrentamento dos desafios, e não é apenas um
Talvez "explicações" dessa natureza não bastem, e por mais que estudo deles.
somemos explicações não estaremos entendendo ainda o principal O homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questões
desafio que se coloca para nós face ao nosso viver: o que vamos fazer de sentido e isso significa uma reviravolta completa de perspectivas
com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, e de tal forma que não (do homem-resultado para o homem-atual). E é exatamente essa
nos isole de um sentido mais global? reviravolta que faz o sentido do humanismo na psicologia.
14 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 15

Antes de passarmos para um outro ponto, gostaria de trazer Voltemo-nos agora para o Humanismo, e vejamos o que essa
aqui uma consideração paralela que pode nos ajudar a compreender palavra nos sugere. Podemos encontrá-la usada pelo menos de quatro
essa questão que acabo de formular. A diferença que existe entre modos diferentes em relação à Psicologia.
essas duas perspectivas é a mesma que existe na consideração da 1. No sentido estrito o Humanismo é um movimento cultural,
cultura como resultado (ou como produto), e da cultura como ato europeu, tendo seus primórdios já no século XIV, e que
cultural. Uma coisa é estudar os produtos culturais (objetos, máqui- esteve intimamente ligado à Renascença. Mas é talvez daí
nas, obras de arte, utensílios, ou outros produtos como a ciência, a que o termo tenha se generalizado, podendo ser aplicado a
religião, ou as estruturas de parentesco ou estruturas de relações de qualquer filosofia que coloque o homem no centro de suas
trabalho etc.) de algum grupo social ou sociedade. Aqui estamos preocupações, ou como um adjetivo aplicável a outros
estudando a cultura de um povo como algo dado, e, portanto, acaba- movimentos, como é o caso da "psicologia humanista" (ou
do. Outra coisa completamente diferente (embora possa incluir a pri- do humanismo na psicologia).
meira) é ser agente cultural, produzir cultura, inserir-se num O movimento cultural da Renascença precisa ser entendido
movimento vivo de produção cultural. A diferença entre essas duas em função de seu contexto. De algum modo ele aparece
coisas é clara. Ora, acontece que o termo "cultura" pode ser definido como uma espécie de reação contra um sobrenaturalismo
em uma dessas duas direções, originando-se daí muita confusão. A medieval que naquela época significava um desprezo pelo
cultura que é vista pelo estudioso não tem nada a ver com a cultura que é humano: nada das coisas desta vida é importante a
que é praticada pelo agente cultural. No primeiro caso temos um não ser aquilo que aqui é uma aquisição de méritos para a
produto acabado e mais ou menos estático: é a cultura como produto vida futura, eterna, após a morte. A vida presente, nesse
sentido, não é levada a sério em sua consistência própria,
cultural. No segundo, temos a cultura como conteúdo de um movi-
não tem valor nenhum em si mesma. O próprio homem, em
mento incessante, algo em constante mutação. No primeiro caso fa-
si, em seu corpo, não precisa ser cultivado, uma vez que seu
zemos história no sentido de retratar um passado (ou algo acabado),
destino é a morte; o importante é cuidar da alma imortal. As
no segundo fazemos história no sentido de construir a história em
coisas do mundo são transitórias e um cenário passageiro
curso. E a história que fazemos retratando só tem sentido em função para as coisas eternas, que são as que importam. A arte, a
da história que estamos construindo. A cultura de um povo não é algo ciência, a política, a beleza, a flexibilidade corporal não são
feito, mas algo que se faz, e reduzir uma coisa à outra é, na realidade, coisas que devam deter o interesse do sábio, mas sim, as
esmagar o potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movi- coisas eternas, sobrenaturais, as virtudes da alma. A saúde
mento, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios. do corpo, a maturidade psicológica não são importantes a
A cultura há que ser definida como um processo vivo e não como um não ser como substrato mínimo para as virtudes que nos
conjunto de produtos acabados. O ser humano tem que ser captado preparam para a vida eterna. O humano, o temporal, este
em seu movimento, e isso só pode ser feito movimentando-se, inse- mundo são assim altamente desvalorizados em favor do
rindo-se num processo. O homem como resultado, ou a cultura como espiritual, do eterno, do sobrenatural. A cultura antiga,
produto, não são ainda o homem atual ou a cultura que se faz. representante desse humano, era, assim, mais ou menos
Acredito que o sentido do humanismo em psicologia é o de nos desprezada, ou então era lida como um símbolo ou apelo de
colocarmos na postura do atual, do presente, do atuante, do em curso; algo outro, maior. Não que isso tivesse caracterizado a
e todas as explicações só terão valor como instrumentos para isso, Idade Média toda. Mas era a forma como uma face do
mesmo que, como instrumentos, permaneçam aquém dessa atuali- pensamento medieval foi lida a partir do ponto de vista da
dade. Renascença e do Humanismo. Uma nova necessidade nos
faz freqüentemente caricaturar a visão anterior. Seja lá
l6 MAURO MARTINS AMATUZZl PoR UMA PslCOLOGlA Hut-.1ANA l7

como for, esse humanismo nasceu sob a bandeira da reva- cimento do homem. E Fromm continua: "Os tratados de
lorização do humano, o que significava na prática um ética de Aristóteles, Spinoza e Dewey (... )são por isso, ao
retorno aos clássicos, e à cultura pagã greco-romana. O que mesmo tempo, tratados de Psicologia" (ld.ibid.). O equa-
é humano tem um valor em si mesmo, e não como mero cionamento e o encaminhamento desses problemas são ao
suporte ao sobrenatural; este mundo não é apenas um mesmo tempo ética e psicologia. Ética, porque seu
cenário provisório e sem importância para algo que não tem conteúdo é a questão do sentido, do por-onde-vamos; e
nada a ver com ele; o tempo, o que se constrói paulati- psicologia, porque para isso nos debruçamos sobre o
namente, o crescimento humano são importantes (o tempo, homem buscando um conhecimento de sua natureza. Um
e não a eternidade, é onde se constroem as coisas, e estas pouco antes Erich Fromm havia dito: "Na ética humanista
coisas que construímos). O homem é corpo tanto quanto o bem é a afirmação da vida, o desenvolvimento das capa-
alma, e é como um todo que ele tem que ser cuidado. Virtu- cidades do homem. A virtude consiste em assumir-se a
de é o desenvolvimento das potencialidades humanas, e responsabilidade por sua própria existência. O mal consti-
não algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou tui a mutilação das capacidades do homem; o vício reside
uma rejeição da visão teológica das coisas, e no século XX na irresponsabilidade perante si mesmo" (Id.ibid., pp.27-
isso é representado pelo humanismo ateu (cujo exemplo 28). Rogers e Maslow aproximam-se bastante de seme-
mais contundente é Sartre ). Para outros essa revalorização lhantes concepções. No fundo existe uma crença no
do humano, do mundo, do tempo não se define por um posi- homem, uma confiança no que nele se manifesta. A
cionamento anti-religioso ou ateu. Existe todo um huma- expressão teórica disso é a tendência atualizante de Rogers,
nismo cristão segundo o qual é na trama deste mundo que ou o conceito de auto-atualização de Maslow.
realidades definitivas estão sendo construídas (e um exem- O que está na raiz do humanismo não é, pois, apenas um
plo eminente desse humanismo em nosso século é Teilhard postulado teórico, ou uma hipótese, mas uma atitude
de Chardin). De qualquer forma essa revalorização do concreta em favor do homem. Isso é mais fundamental que
homem, das coisas do homem, da história humana, daquilo as teorias que a partir daí se constroem. Teorias diferentes
que aqui efetivamente se faz, da atualidade do humano, não sobre o homem podem ser consideradas humanistas. O que
se relaciona necessariamente com uma posição religiosa ou as une não é tanto que todas aceitem determinadas afir-
anti-religiosa. O que polariza esse movimento é justamente mações, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma
uma volta à atualidade do humano, e um acreditar que esse tradição ética: há valores envolvidos, mais que afirmações
é o caminho. abstratas. Há posicionamentos e compromissos, e não
apenas teses cognitivas (isso não quer dizer, é claro, que
2. Erich Fromm fala do humanismo não como um movimento
esses posicionamentos devam ser ingênuos: existe toda
localizado na Europa do século XIV. Ele fala de uma tradi-
uma elaboração crítica posterior que tende a confirmá-los,
ção da ética humanista que encontra representantes em
e isso no próprio Erich Fromm).
praticamente todas as épocas do pensamento ocidental. Ele
próprio pretende ser um pensador que se insere nessa tradi- 3. André Amar, numa visão de conjunto da história da psico-
ção. "Na tradição da ética humanista", diz ele, "predomina logia publicada num dicionário de psicologia francês, situa
a opinião de que o conhecimento do homem é a base para quatro momentos dessa história. O da psicologia humanis-
o estabelecimento de normas e valores" (194 7, p.31 ). ta, que, na sua consideração, é o que vem da Idade Média ou
"Normas e valores" aqui referem-se à questão do caminho, mesmo da Antigüidade grega, e vai até o começo da psico-
por onde vamos, que é a questão do sentido. Na tradição logia científica; caracteriza-se basicamente por um posi-
humanista essa questão se responde a partir de um conhe- cionamento ético, isto é, por uma não-dissociação entre
18 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR UMA PsJCOLOGit\ HuMANA 19

uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de não traziam as respostas de que se precisava: o ser humano
valores: é a psicologia brotando do contexto de uma ética, com seus questionamentos atuais não estava lá, por mais
de uma visão do sentido da existência. O segundo momento válidas que fossem as explicações aí dadas. Poderíamos di-
é o da psicologia científica onde exatamente se dá essa zer que essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua
ruptura entre a objetividade científica e a ética. Ele situa ortodoxia, podia nos dizer como treinar um soldado, ou
depois, como terceiro e quarto momentos, a psicanálise e a porque um soldado ficava perturbado quando voltava da
psicologia fenomenológica, e neste último, principal- guerra, mas não era esse o problema do povo americano. O
mente, começam a reaparecer coisas do primeiro momento. problema era qual o sentido da guerra, e qual o sentido da
É curioso notar que esse autor, sendo europeu, não fala da vida e da morte (ou da minha vida e morte, ou de meu filho
psicologia humanista tal como esse conceito aparece nos ou de meu marido). E aqui a psicologia tradicional não aju-
Estados Unidos, como algo bem específico, mais do que no dava muito. E tudo isso era urgente: os jovens estavam
sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificação morrendo, e o holocausto já estava no horizonte. Quanto à
sugere também que além de um posicionamento ético filosofia, para Maslow pelo menos, ela aparecia como um
indissociável, uma psicologia humanista implicaria uma conjunto de palavras apenas, sem nada de mais concreto.
crítica à atitude científica. Retomaremos a esse ponto.
Quanqo o humanism_o afeta a psicologia, então, resulta daí não
Vemos que esses três sentidos de humanismo convergem
uma teoria específica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar
em seu denominador comum, apontam para o mesmo
c_Qmum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes)
pónto, têm o mesmo "sentido".
todosaqueles psicólogos insatisfeitos com a visão de homem implí-
':l4. Mas concentremo-nos agora, então, na psicologia huma- g_t;;t -nas psicologias oficiais disponíveis. O rótulo específico de
nista no sentido restrito e contemporâneo do termo. E aqui psicologia humanista é apenas um episódio, diria momentâneo, de
dois livros que se tomaram clássicos, por exemplo, Psico- algo que tem um sentido maior: a presença de uma atitude humanista
logia Existencial Humanista, de Thomas Greening, e A no interior da psicologia.
Psicologia do Ser, de Abraham Maslow. É o tempo e a Penso que posso colocar esse sentido maior em quatro pontos:
década de 1960 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do
1. A primeira parte do livro de Maslow tem por título exata-
Vietnã; crise moral, de valores. O país envolvido por uma mente "Uma jurisdição mais ampla para a psicologia", e os
guerra considerada absurda pelo povo americano. E esse dois capítulos que compõem essa parte são: "Para uma
questionamento não era apenas teórico: teve inumeráveis psicologia da saúde", e "O que a psicologia pode aprender
manifestações pessoais e coletivas, as quais certamente com os existencialistas". Trata-se, no fundo, de admitir
tiveram uma importância para a retirada das tropas ame- que a psicologia possa trabalhar a questão dos fins, da saú-
ricanas do Vietnã. Tudo isso representou um grande ques- de, da auto-realização, e não apenas dos meios, da doença
tionamento coletivo do sentido da presença americana no
ou do ajustamento mínimo. Mas isso tudo é a questão do
mundo. Uma crise ética. "para onde vamos". A psicologia não pode ser apenas um
Esta psicologia humanista surgiu como uma reação, a partir conjunto de conhecimentos técnicos a serviço de qualquer
da insatisfação sentida face aos dois conjuntos teóricos finalidade; é enquanto toma para si também essa questão
mais importantes em psicologia: o behaviorismo e a psica- que ela se faz afinal uma ciência do homem, e não antes.
nálise; bem como face a uma descrença nas possibilidades Isso tem a ver com a neutralidade ética da ciência como
da filosofia. Não se tratava de negar as descobertas feitas no alguma coisa a ser redimensionada (e acredito que essa
behaviorismo e na psicanálise, mas de um sentimento de
questão não se aplique apenas às ciências humanas). A
que eles, permanecendo em suas perspectivas originais,
20 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA Hul\tANA 21

ciência só é eticamente neutra formalmente, abstratamente. termos de compreensão do que vem a ser a comunicação ou
O ato científico concreto nunca é neutro: ele se insere num mesmo o ato expressivo, nada de mais falso do que esse re-
contexto de sentido e serve a alguma direção do caminhar trato. Para não falar senão de um aspecto, a própria mensa-
humano. Para nos convencermos disso, basta que conside- gem depende dos passos seguintes, neles se transforma,
remos os critérios de financiamento de pesquisa. Mas essa não está plenamente constituída independentemente deles.
não neutralidade vai mais longe e toca na própria questão Ela só se toma o que é quando já não é mais pura mensagem
do alcance do saber: aquilo que eu vejo depende do ponto intencional (mas já é comunicação, por exemplo). A ciên-
de vista a partir do qual me coloco para olhar. É só dentro de cia tradicional não tem como lidar com isso.
um posicionamento de compromisso com o ser humano Um outro exemplo é o do gesto significativo: o dedo que
como um todo (coisa que não é nada abstrata, mas acarreta aponta para a lua, por exemplo. Idiota é aquele que, quando
até posições políticas) que meus olhos se abrem para aponto para a lua, olha para meu dedo. A essência de um
determinados aspectos do ser humano, ou que me disponho gesto só é dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais
a pesquisar determinados problemas e de um determinado que o analise e disseque cientificamente, não chegarei à
modo. lua, e portanto, nem mesmo à realidade de minha mão atual
2. Husserl foi um dos que iniciou um questionamento da como gesto, como presença. Ora, o homem é essencial-
aplicação do método científico à realidade humana. Não se mente um gesto, em sua presença ou em sua existência. Ele
nega a validade das conclusões. Mas se discute o alcance é um atribuidor de sentido, e é assim que ele constitui um
delas. Aquilo que elas afirmam caracteriza o ser humano? mundo e se constitui a si mesmo na relação com o mundo.
Para Husserl, a originalidade da consciência fica fora do Se separarmos as coisas, compartimentalizando-as, não
alcance do método das ciências naturais exatamente por mais veremos a realidade significativa, a atual, o presente.
sua realidade intencional (que só é captada através da Nada mais diferente de um movimento que um retrato,
questão do sentido). nada mais diferente de um ser vivo que um cadáver.
A atitude científica define um tipo de relação (a relação A diferença entre a pesquisa objetiva e a participante
objetificante) que não capta ·a pessoa atual mas apenas também ilustra a mesma questão. Não se trata apenas de
o ser humano como resultado. Para Buber, o centro da uma diferença de método para se conseguir o mesmo
pessoa só se revela no ato da relação. As afirmações cien- resultado. O saber produzido é concretamente outro, o
tíficas podem ser verdadeiras mas não caracterizam aquilo assunto pesquisado é outro, o possuidor do saber é outro.
que é especificamente humano. Trata-se de uma diferença na forma de conceber a relação
A maneira como costuma ser tratado o processo de comu- humana e o conhecimento.
nicação dentro de uma abordagem científica seria um 3. Gosto de entender a atitude fenomenológica por compa-
exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis ração com a atitude ingênua e a crítica. Segundo a atitude
momentos: 1) o da mensagem intencional a ser comuni- ingênua, existe um mundo independente, constituído por si
cada; 2) o da codificação da mensagem; 3) a comunicação mesmo, e como tal cognoscível (e Maslow fica ainda
ou expressão propriamente dita; 4) a recepção da comu- nessa atitude, ao que parece; é o preço que ele paga por não
nicação através das janelas sensoriais; 5) a decodificação ter sido um pouco mais filósofo). Já na atitude crítica,
no nível central superior; e 6) a compreensão da mensagem. sabemos que o que percebemos desse mundo depende de
Tenho seis coisas diferentes e bem específicas (e um dis- nossos referenciais. Costuma-se referir a Kant, com sua
túrbio de comunicação pode ser situado em um desses seis crítica ao conhecimento, para o nascimento mais forte
estágios). Por mais útil que possa ser tal esquema, em dessa atitude; é preciso relativizar o conhecimento e estu-
22 MAURO MARTINS AMATLIZZI

dar os referenciais através dos quais ele se dá. Creio que a


atitude fenomenológica vai além da crítica, e eu a formu-
CAPÍTULO ll
laria assim: é só na interação que teremos o verdadeiro
conhecimento. O conhecimento compõe a interação
humana com o mundo, é um aspecto dela. Uma interação
sem conhecimento é pobre e de um nível inferior, e ilude se
não nos dermos conta disso. O humanismo em psicologia
aponta para uma atitude fenomenológica. SILÊNCIO E PALAVRA
4. É só nessa postura totalmente diferente que se revela o
homem no que ele tem de próprio. Aquilo que se revela aí é
uma totalidade em movimento, uma criatividade, e não
completamente isolável de totalidades mais abrangentes.
O homem como pessoa atual é o homem como palavra, isto
é, como abertura para algo outro, onde corpo e alma são Juntamente com a questão do sentido, temos também a
questão da palavra, não menos importante para caracterizar o huma-
indissociáveis (não podendo ser compreendidos um sem o no. Nada entenderemos do "aparelho significatório" (expressão que
outro); é ato e não resultado (isto é, existe na interação com poderia substituir a de "aparelho psíquico") sem levar em conta a
o mundo e com os outros homens); é busca pe sentido, intencionalidade e a linguagem. Esse texto foi publicado original-
atribuição e comunicação de sentido, criação de mais mente em 1992, na revista Estudos de Psicologia (PUC-Campinas),
sentido. No fundo, a meu ver, a presença do Humanismo na 9(3), pp. 77-96, com o título "O silêncio e a palavra". Faço aqui
Psicologia é a presença de uma saudade. Saudade do pequenas alterações de detalhes apenas para melhor expressar o
que está sendo exposto. No item 111, quando se trata do secundário,
homem atual, desafiado no presente em relação ao sentido
houve modificações um pouco maiores, mas mesmo assim
de sua vida. consistiram apenas em acréscimos de algumas poucas frases
visando explicitar a relação do tema com a psicologia e a psicoterapia.

Este capítulo poderia ter o seguinte subtítulo: uma leitura de


Merleau-Ponty a partir das preocupações de um psicoterapeuta. De
fato, ele não pretende reconstituir o pensamento desse Merleau-
Ponty em seu contexto próprio e a partir das questões que ele se
colocava. Mas visa responder a uma pergunta como "em que esse
filósofo nos faz pensar, a nós psicoterapeutas?", ou "em que ele pode
nos ajudar a pensar nossas próprias questões?". É claro que essa
elaboração pressupõe uma primeira leitura dos textos a partir da qual
algumas pistas foram surgindo. Uma dessas pistas é a idéia de
silêncio, não apenas como ausência de ruídos, mas como algo
positivo e embrionário no plano das significações. Não pretendemos
seguir todas as pistas, mas começaremos por esta.
24 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR LIMA PsicOLOGIA HuMANA 25

Essa maneira de ler um autor (já falecido) não é isenta de riscos De que se trata, na realidade? Que silêncio é esse e como ele
e armadilhas. Contudo penso que poderemos evitá-las se levarmos germina num falar? Não é a esse silêncio que importa chegar no
em conta que as preocupações que nos guiam não são necessaria- processo terapêutico, para que ele possa ser falado e assim desen-
mente as do autor lido e que devemos tomar cuidado para não cadear o viver criativo?
misturar as coisas, atribuindo a ele pensamentos que serão nossos,
mesmo quando suscitados por ele.
A pesquisa foi feita basicamente em quatro textos: Fenome- 0A FALA AO SILÊNCIO
nologia da Percepção (FP), A Estrutura do Comportamento (EC),
Sobre a Fenomenologia da Linguagem (FL ), a Linguagem Indireta e 1. Eis como Merleau-Ponty fala desse silêncio:
as Vozes do Silêncio (LIVS), os quais foram citados a partir da edição
Perdemos a consciência do que há de contingente na expres-
em português, se bem que algumas vezes a tradução tenha sido modi-
são e na comunicação, seja na criança que aprende a falar, seja no
ficada levando em conta o original francês. escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, finalmente
Vamos formular agora, a título de hipóteses, algumas afir- em todos aqueles que transformam em palavras um certo silêncio
mações que poderão nos orientar no começo dessa leitura. Veremos (FP, p. 194).
depois o que os textos nos dizem a respeito.
A plena expressividade ou não da fala, ou seja, sua autentici- A criança que aprende a falar não apenas incorpora signos
dade, pode ser descrita a partir de sua relação com o pré-verbal que a novos ao seu repertório: ela tem acesso a um novo modo de comuni-
mobiliza. Este algo que a precede e a mobiliza, posto que não-verbal, cação e de relação com o mundo. Esse exemplo vem ao lado daquele
pode ser denominado, numa aproximação primeira, de silêncio. A do escritor quando diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, o que é
fala é ruptura de um determinado silêncio. diferente de simplesmente repetir o já pensado ou de fazer um novo
Do silêncio total do viver biológico emerge uma região que arranjo, mas que, na verdade, nada cria de novo.
vem a ser a intenção significativa (ou intenção de significar). É a essa Trata-se sempre do acesso primeiro à palavra. E mesmo
intenção que remete a fala como à sua origem. quando usamos para isso palavras já conhecidas, se realmente
Quando falamos de significado, referimo-nos, na realidade, ao estamos dizendo algo pela primeira vez, e assim criando para nós
aspecto conceitual, abstrato, de algo que é mais vasto e, em sua significados, é mais verdade dizer que a fala contribui para modificar
concretude, envolve outros aspectos, pois é também sentimento, o sentido comum das palavras, do que dizer que ela é constituída por
experiência de valor, desejo, intenção. A maneira pela qual a fala se esses sentidos comuns (FP, p. 190).
une a esse algo mais amplo o expressa e lhe dá forma, é aquilo que lhe Quando a fala é original ela faz evoluir a própria língua. Esses
constitui sua significância, ou significatividade, digamos assim. dois casos de acesso à palavra (o da criança e do escritor) são
Uma fala será tanto mais significativa, quanto mais estiver dire- justamente exemplos de todos aqueles que transformam em palavras
tamente conectada com essa porção emergente de silêncio, que um certo silêncio. Um certo silêncio. Não todo silêncio, nem
coloca o falante face a um mundo novo. Prefiro aqui o termo qualquer silêncio. Um certo. Perdemos consciência do que há de
significância, ao invés de significação, porque este último é ainda único e novo no ato realmente expressivo.
limitado ao aspecto conceitual daquilo que quero dizer. Ao falar, não E logo em seguida Merleau-Ponty acrescenta:
apenas faço signos a partir de uma intenção já pronta. Na verdade a Nossa vista sobre o homem permanecerá superficial
fala autêntica decide e desencadeia algo. Ela não apenas traduz, mas enquanto não remontarmos a esta origem, enquanto não encontrar-
cumpre, dá andamento a uma intenção, tomando-a, de certa forma, mos, sob o barulho das palavras, o silêncio primordial, enquanto não
passado como mera intenção, e dando origem a novas intenções no descrevermos o gesto que rompe esse silêncio (FP, p. 194 ).
interior de um movimento.
26 MAURO 1\1ARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 27

O silêncio primordial é, por assim dizer, a alma da palavra 4. Dois tipos de expressão descrevem esse silêncio:
pronunciada, é aquilo que se concretiza e adquire sentido no mundo
(1) um certo vazio da consciência (FP, p. 194); um voto (dese-
com o discurso. A ruptura do silêncio que dá origem à fala não é
jo) instantâneo (FP, p. 194); um vazio determinado (FL, p. 134); um
propriamente a eliminação do silêncio, mas uma realização dele.
certo vazio (FL, p. 134); uma certa carência que procura se preen-
cher (FL, p. 194); e
2. Merleau-Ponty dá, dentre outros, os seguintes exemplos da
(2) intenção significativa nova (FP, p. 194); intenção de falar
fala originária: a do apaixonado que descobre seu sentimento, a do
(FP, p. 185); intenção significativa em estado nascente (FP, p. 207);
escritor e do filósofo que despertam a experiência primordial ante-
intenção significativa que põe em movimento a fala (FP, p. 194).
rior às tradições (FP, p. 189). Nesses exemplos o silêncio pré-verbal
que mobiliza e dá vida à fala é identificado como o sentimento que o Eis alguns textos onde aparecem essas expressões:
apaixonado descobre (revela-percebe) e a experiência primordial Para o sujeito falante exprimir é tomar consciência; não
(anterior às tradições) que o escritor ou filósofo despertam (acordam, exprime somente para os outros, exprime para que ele próprio saiba
trazem à vida ou à consciência). O sentimento preexistia, mas quando o que visa. Se a palavra quer encarnar uma intenção significativa,
descoberto ele adquire um estatuto existencial novo. À esta luz, antes que é apenas um certo vazio, não é somente para recriar em outrem
de ser pronunciado, ele era um pré-sentimento. Só agora ele é assu- a mesma falta, a mesma privação, mas ainda para saber de que há
falta e privação.( ... ) Para a intenção significativa, voto mudo, trata-se
mido como tal, com esse sentido. A experiência primordial preexistia, de realizar um certo arranjo dos instrumentos já significantes ou das
mas só quando desperta é que ela tem acesso a um outro nível e se significações já falantes( ... ) suscitando no ouvinte o pressentimento
realiza no compromisso da pessoa. Só quando pronunciados é que de uma significação outra e nova, e, inversamente, promovendo
sentimento e experiência adquirem sua realidade determinada e naquele que fala ou escreve a ancoragem da significação inédita nas
plena. Descobrir o sentimento e despertar a experiência primordial significações já disponíveis. ( ... ) Exprimo quando, utilizando todos
são também formas de romper o silêncio. Quando rompido o silêncio esses instrumentos já falantes, faço-os dizer alguma coisa que
nunca haviam dito (FL, pp. 134-135).
se revela pois como sentimento ou experiência. Não como conceito
ou idéia. Estes mais o exprimem posteriormente do que o constituem.
A intenção significativa é mais de ordem dinâmica, do desejo,
do que de ordem cognitiva, conceitual. E a fala é primeiramente o
3. O silêncio está para a fala assim como a inspiração está para
desencadeamento de algo dessa ordem dinâmica, mesmo que possam
a obra de arte. A inspiração antes da obra é uma inquietação apenas,
resultar daí pensamentos.
um determinado estado de procura, e o artista só sabe definitivamente
o que ele queria pintar depois do quadro pronto. A inspiração o guia, A intenção significativa em mim (como também no ouvinte
mas nãó é um quadro interior. O pintar é o ato criativo. "O artista só que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutifi-
car em "pensamentos", no momento é apenas um vazio determinado
tem um meio de se representar a obra na qual trabalha: é necessário
a ser preenchido pelas palavras- o excesso do que quero dizer sobre
que ele a faça·· (FP, p. 191). E ainda: "A expressão estética confere aquilo que já foi dito (FL, p. 134) (destaque do autor).
ao que ela exprime a existência em si" (FP, p. 193).
Com a fala autêntica ocorre algo semelhante: "A fala, naquele E na Fenomenologia da Percepção:
que fala, não traduz um pensamento já feito, mas o cumpre" (FP,
p. 189). Ou: Da mesma forma que a intenção significativa que movi-
mentou a palavra do outro não é um pensamento explícito, mas uma
O próprio sujeito pensante está numa espécie de ignorância certa carência que procura se preencher, da mesma forma a reto-
de seus pensamentos enquanto não os formulou para si ou mesmo mada por mim desta intenção não é uma operação de meu
falou e escreveu, como mostra o exemplo de tantos escritores que pensamento, mas uma modulação sincrônica de minha existência,
começam um livro sem saber ao certo o que escreverão nele (FP, p. 188). uma transformação de meu ser (FP, p. 194 ).
28 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 29

5. O que precede a fala original e a habita dando-lhe vida, para • o da intenção significativa em estado nascente, carência,
Merleau-Ponty, não é o pensamento. Este se cumpre na fala. Só sabe- vazio, silêncio determinado; e
mos verdadeiramente o que pensamos quando o dizemos. O que vem • o da abertura ou potência aberta e indefinida de significar ou
antes é pois uma mobilização para falar (intenção significativa em de se transcender.
estado nascente, desejo, carência, vazio, silêncio primordial). Na verdade é dificil distinguir todos esses níveis. É nossa
A intenção de falar só se encontra numa experiência aberta, consideração que incide em separado sobre "partes" de um processo
como a ebulição de um líquido, quando na densidade do ser, zonas em que concretamente eles estão interpenetrados. Se por vezes
de vazio se constituem e se deslocam para fora (FP, p. 206).
conseguimos separar um momento como anterior a outro, será mais
como momento de gestação e não propriamente algo outro.
E esta mobilização lança o ser humano em outro nível, no novo
em relação à natureza ou em relação ao passado. O que está em jogo é
uma capacidade de auto-ultrapassamento.
(A fala falante) é aquela na qual a intenção significativa se
Do SILÊNCIO À FALA
encontra em estado nascente. Aqui a existência se polariza num 1. No caminho de volta do silêncio à fala um primeiro aspecto é
certo sentido que não pode ser definido por nenhum objeto natural. o do mistério da expressão. Merleau-Ponty usa expressões como "lei
( ... ) Esta abertura sempre recriada na plenitude do ser é o que
desconhecida" e "milagre". Em nossa arqueologia fenomenológica,
condiciona a primeira palavra da criança como a palavra do escritor,
a construção da palavra como a dos conceitos (FP, p. 207).
partindo da fala chegamos ao silêncio e suas raízes, por camadas que
se misturam. E podemos voltar. Em tudo isso descrevemos proces-
E em outro lugar: sos, e nossas descrições têm certamente um referente identificável.
Mas, em definitivo, não explicamos o ato expressivo.
É necessário pois reconhecer como fato último esta potência
aberta e indefinida de significar, isto é, ao mesmo tempo de captar e A intenção significativa nova só se reconhece recobrindo-se
de comunicar um sentido, pela qual o homem se transcende em de significações já disponíveis, resultadas de atos de expressão
direção a um comportamento novo, ou em direção ao outro, ou em anteriores. As significações disponíveis se entrelaçam repenti-
direção a seu próprio pensamento através de seu corpo e de sua namente segundo uma lei desconhecida, e de uma vez por todas um
palavra (FP, p. 204). novo ser cultural começou a existir. O pensamento e a expressão
constituem-se pois simultaneamente, quando nossa aquisição
6. Recuamos pois da fala autêntica para a intenção de falar que cultural se mobiliza a serviço desta lei desconhecida, como nosso
corpo de repente se presta a uma gesto novo( ... ) (FP, p. 194).
é um certo vazio, um desejo, um silêncio determinado, que por sua
vez emerge da natureza ou do passado como um salto qualitativo E uma capacidade do corpo humano apropriar-se, em uma
pressupondo uma abertura na própria natureza. É pela fala original série indefinida de atos descontínuos, de núcleos significativos que
ultrapassam e transfiguram seus poderes naturais. Este ato de trans-
que o homem se transcende a si mesmo em direção a um sentido
cendência se encontra primeiramente na aquisição de um comporta-
novo. Isso não é um mero movimento cognitivo. É um movimento mento, depois na comunicação muda do gesto: é pela mesma
existencial. potência que o corpo tanto se abre a uma conduta nova quanto a faz
compreender a testemunhas exteriores. Nos dois casos um sistema
Reconhecemos aí alguns níveis: de poderes definidos de repente se decentra, se rompe e se organiza
sob uma lei desconhecida, tanto ao sujeito quanto à testemunha
• o da fala autêntica; exterior, e que se revela a eles nesse exato momento( ... ). A linguagem
• o do sentimento ou experiência nomeados pela fala; coloca o mesmo problema: uma contração da garganta, uma emis-
são sibilante de ar entre a língua e os dentes, uma certa maneira de
• o da intenção significativa na fala;
movimentar nosso corpo se deixa de repente investir de um sentido
30 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR u~IA PsiCOLOGIA HuMANA 31

figurado, e o significam fora de nós. Isto não é nem mais nem menos Ao vivermos numa língua, portanto, somos subsidiários de
milagroso que a emergência do amor no desejo, ou do gesto nos toda experiência acumulada que a constitui. Isso nada mais é que a
movimentos desordenados do começo da vida (FP, 204). p. comunidade cultural na qual crescemos e vivemos e que eviden-
2. Como esta lei desconhecida atua? Ela trabalha sobre temente determina nossas condutas.
significações disponíveis fornecidas pela cultura, (que abstratamente Isso que estamos aqui chamando de conteúdo de uma língua,
consideradas constituem a língua como parte principal de um sistema um modo de ser sedimentado por ela (pela comunidade na qual
de signos), reorganiza os signos em função de uma intenção signifi- vivemos), pode se verificar até mesmo no nível das palavras. Sem
cativa nova, e os fazem dizer algo que nunca antes disseram. E é por dúvida as palavras denunciam um modo de recortar o mundo e
isso que as falas realmente expressivas acabam contribuindo para a portanto de se comportar. Merleau-Ponty fala da atitude que elas
própria evolução da língua. contêm e de seu significado gestual, linguageiro, que capta uma
essência emocional. E é sobre esse significado gestual que se constrói
Significações disponíveis, isto é, atos de expressão anterio- posteriormente um significado conceitual (Cf. FP, p. 190, 193, 197).
res, estabelecem entre os sujeitos falantes um mundo comum ao
A língua transmite diretamente, concretiza, um modo de se relacio-
qual a palavra tual e nova se refere( ... ). O sentido da fala nada mais é
do que o modo como ela maneja este mundo linguístico ou como ela nar com o mundo (FP, p. 201).
modula sobre este teclado de significações adquiridas (FP, p. 197).
4. Mas ao mesmo tempo que isso se relaciona com um estilo de
E como foram adquiridas essas significações? Como todos os língua (a conduta aí sedimentada), relaciona-se também com estilos
gestos significativos que lançam o ser humano no nível propriamente pessoais. Temos não só o estilo de nossa língua, mas também nossos
humano: um comportamento novo (de outra ordem de complexi- estilos próprios. Quanto a isso podemos dizer que cada um tem sua
dade), um gesto mudo; a linguagem, como vimos no texto anterior língua própria, constrói, com a forma que usa sua língua, seu jeito
(FP, p. 204). próprio (diríamos em português) de falar, o que equivale a dizer, seu
(As significações se tornam disponíveis) quando, em seu jeito próprio de se relacionar ou de construir o mundo. E temos aqui
tempo, foram instituídas como significações a que posso recorrer, um segundo nível de determinação: somos tributários não apenas da
como significações que tenho - e o foram por uma operação comunidade onde fomos socializados, mas também de nossa própria
expressiva do mesmo tipo. ( ... ) Exprimo quando, utilizando todos história pessoal.
esses instrumentos já falantes, faço-os dizer alguma coisa que
Assim como em país estrangeiro eu começo a compreender o
nunca haviam dito (FL, p. 135; cf. também FL, p. 136, e FP, p. 207).
sentido das palavras por seu lugar num contexto de ação e partici-
pando da vida comum, do mesmo modo um texto filosófico ainda que
3. f!- importante ressaltar aqui o condicionamento que a língua mal compreendido, me revela ao menos um certo estilo, seja um
disponível representa, para que possamos depois ultrapassá-lo na estilo espinosista, criticista ou fenomenológico, que é o primeiro
verdadeira expressão. esboço de seu sentido. Começo a compreender uma filosofia
A língua traz consigo uma atitude, um determinado modo de se deslizando-me na maneira de existir desse pensamento, reprodu-
relacionar com o mundo, e suas palavras, antes de carregarem um zindo o tom, o sotaque do filósofo (FP, p. 190).
conceito abstrato, trazem uma significação emocional presa a elas,
tudo isso resultando da sedimentação dos atos expressivos que vêm Mas isso que vale para uma língua estrangeira e para um
constituir o conjunto de significações disponíveis. filósofo vale para qualquer pessoa em se tratando de fala expressiva.
(As diferenças entre as diversas línguas) não representam Nossa fala não representa o nosso mundo, mas é o que somos face ao
diferentes convenções arbitrárias para exprimir o mesmo pensa- mundo, ou é o mundo que construímos. Também aqui há uma
mento, mas sim diferentes maneiras para o corpo humano de sedimentação e uma experiência adquirida.
celebrar o mundo e finalmente de o viver (FP, p. 198).
32 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR Ui'dA PsiCOLOGIA Hu11.tANA 33

No caminho de volta do silêncio à fala, a intenção significativa O sentido, quando é novo, não está contido pelas palavras,
passa por pelo menos esses níveis de determinação. Mas onde está ela mas é indicado por elas, e isso mesmo representa o caminhar do
então em sua pureza? Em sua pureza, dirá Merleau-Ponty, ela é ser humano. ·"O que queremos dizer( ... ) não é senão o excesso do
apenas um certo vazio, como vimos, um voto ou desejo que vai se que vivemos sobre o que já foi dito" (LIVS, p. 175).
recobrindo de significações e determinações na medida em que vai se
expressando. Se quisermos entretanto nos aproximar dela (no plano 6. Finalmente a "determinação" última da fala autêntica. O que
individual de qualquer discurso expressivo), ou de um pensamento representa ela? O que ela faz, ou cumpre?
universal (no plano de um discurso filosófico), para além dos estilos, Que exprime pois a linguagem se não exprime pensamentos?
é preciso que passemos pela concretude de uma determinada Ela representa, ou melhor ela é a tomada de posição do sujeito no
mundo de suas significações ( ... ). O gesto fonético realiza, para o
expressão. sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa estruturação
Se houver um pensamento universal (para além dos estilos}, da experiência, uma certa modulação da existência, exatamente
será retomando o esforço de expressão e comunicação tal como foi como um comportamento do meu corpo investe para mim e para o
tentado por uma língua que o obteremos, assumindo todos os outro· os objetos que me cercam de uma certa significação (FP,
equívocos, todos os deslizamentos de sentido de que uma tradição pp. 203-204 ).
lingüística é feita e que justamente medem sua potência de expres- (Na potência aberta de significar) o homem se transcende em
são (EC, p. 198). direção a um comportamento novo ou em direção ao outro ou em
direção a seu próprio pensamento através de seu corpo e de sua
Mas isso que vale para a filosofia (só chego ao universal
palavra (FP, p. 204).
passando pelo particular), vale também para o esforço de compreen-
são profunda de uma pessoa em psicoterapia. O desejo só aparece nas Tomada de posição do sujeito, estruturação da experiência,
entrelinhas do estilo. modulação da existência, transcendência em direção ao comporta-
O que importa no momento, nessa viagem de volta do silêncio mento novo. Essas afirmações mostram o caráter existencial, com-
à fala, é nos darmos conta de como ele. vai se revestindo de signifi- prometedor, envolvente, decisório da verdadeira expressão. Dizer
cados, passando pela cultura e pela história pessoal. realmente algo é tomar posição, e com isso entrar num mundo novo,
Mas se estamos considerando a fala autêntica, a expressão pelo menos no que diz respeito a um aspecto particular. A fala autên-
final não termina aí. tica depende mais do "eu posso", do que do "eu sei", diz também
Merleau-Ponty (FL, p. 133). Com a fala autêntica o homem, apoiado
5. A expressão é, na verdade, um tatear em tomo de algo que no contexto cultural e em sua própria experiência pessoal, os trans-
nunca será plenamente esgotado. O que ela faz é apontar para, forma e os leva adiante.
realmente, mas sem se apropriar e conter plenamente. Isso será
importante na hora de pensarmos a compreensão. Por ora fiquemos No caminho de volta do silêncio à fala, encontramos pois:
como algumas indicações de Merleau-Ponty. • uma lei desconhecida;
Se ela (a língua) quer dizer e diz alguma coisa, não é porque • significações disponíveis que estão no sujeito como uma
cada signo veicule uma significação que lhe pertenceria, mas porque possibilidade corporal ou essências emocionais;
todos juntos aludem a uma significação, sempre em sursis se
considerados um a um, e em rumo à qual eu os ultrapasso sem que • aquilo que a língua usada contém como atitude recebida ou
nunca a contenham (FL, p. 132). modo de ser (a presença da cultura);
• os estilos pessoais ou modos de ser da experiência pessoal,
No que se refere à linguagem, se o signo se torna significante
por sua relação lateral a outros, o sentido só surge então à inter- também como recebidos e constituintes da expressão (a pre-
secção e como no intervalo das palavras (LIVS, p. 143). sença da história pessoal);
34 MAURO l'v1ARTINS AtviATLIZZI PoR LIMA PsJCOLOGlr\ Hui\IANA 35

• a expressão como um tatear em tomo de um sentido nunca Merleau-Ponty distingue pois a fala autêntica da expressão
plenamente contido em palavras; e, finalmente segunda. E as questões que nos ocorrem agora são:
• uma tomada de posição do sujeito (que transfigura todas as a. o que é exatamente essa expressão segunda (que não cum-
determinações anteriores). pre tudo o que a originária cumpre), e como ela se tomou
Ocorre que a maioria de nossas falas não tem essa densidade da possível?
fala verdadeiramente expressiva e nova. Como se introduz aí no b. podemos separar claramente dois tipos de fala, uma autên-
mundo de nossa linguagem a fala banal, corriqueira, empírica, mais tica e outra não, ou trata-se mais de duas dimensões aparen-
ou menos repetitiva, que não acrescenta nada nem lança a pessoa em tes em qualquer fala, de forma que possamos encontrar um
um compromisso novo? solo de autenticidade mesmo em uma expressão segunda?

2. Vejamos então como Merleau-Ponty introduz a distinção.


Um primeiro texto é o seguinte:
0 SURGIMENTO DO SECUNDÁ R 10
Há lugar, é claro, para se distinguir uma fala autêntica, que
1. Tudo o que dissemos até agora refere-se à fala autêntica, aos- formula pela primeira vez, e uma expressão segunda, uma fala sobre
momentos realmente expressivos da fala: a primeira fala pronunciada falas, na qual consiste o ordinário da linguagem empírica. Somente a
com sentido, cada fala onde um novo sentido se cria ou está se primeira é idêntica ao pensamento (FP, p. 189, nt. 4).
criando, cada fala que rompe o silêncio lançando o falante numa nova
ordem. Merleau-Ponty chama a isso fala autêntica ou originária. E Nesse texto o que se opõe à fala autêntica é uma expressão
vimos dentre os exemplos possíveis "a fala da criança que pronuncia segunda. Em outros lugares aparecem termos como fala originária
sua primeira palavra, a do apaixonado que descobre seu senti- opondo-se a umafala derivada. A expressão pode ser segunda, ou
mento, a do 'primeiro homem que falou', a do escritor e do filósofo derivada em relação a uma primeira. "A palavra constituída, tal como
que despertam a experiência primordial anterior às tradições" (FP, funciona na vida cotidiana, supõe preenchido o passo decisivo da
p. 189, nt.S). expressão" (FP, p. 194).
São essas falas assim densas que se identificam com o pen- Certamente podemos imaginar um homem que só falasse
samento; nesses momentos expressivos a fala não traduz um automaticamente; mas isso seria ou efeito de danos cerebrais, como
pensamentojáfeito, mas o cumpre (FP, p. 189), ela é a efetuação do no caso dos afásicos, ou então não seria uma linguagem propriamente
pensamento, como também diz Merleau-Ponty, e é por isso que só sei dita, como é o caso de macacos que "aprendem a falar", ou de pertur-
o que penso (em se tratando de pensamento novo, nascente) quando o bações genéticas muito severas e no entanto compatíveis com o uso
digo, assim como um artista só sabe o que quer pintar depois que mais ou menos mecânico de algumas poucas palavras. A linguagem
terminou o quadro, ou um poeta só sabe, em definitivo, o que quer segunda, contudo, ao contrário disso tudo, é comum em nossa vida. É
dizer, depois que escreveu o poema. É essa fala expressão originária nossa linguagem ordinária, corriqueira, pela qual designamos
que desencadeia movimentos existenciais, transformadores do ser, objetos e interagimos no cotidiano. Estamos falando pois de uma
da forma de se relacionar (e é por isso que ela interessa tanto aos possibilidade comum, não extraordinária, de quem quer que tenha
terapeutas). tido acesso à fala.
Ora, evidentemente nem todas as falas são assim. A maioria Uma outra característica dessas falas é que elas, ainda que às
mesmo não o é. E o problema geral das pessoas que procuram terapia vezes complexas, na verdade não trazem nada de novo. São falas que
é que a desejada mobilização do ser em direção a sentidos novos está "não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de expressão" (FP,
estagnada no secundário, e com ela seu exi~tir. A pessoa não encontra p. 194). Passem-me o sal, vou comprar pão, que horas são?, quanto
o novo. custa?- são exemplos de falas de manutenção, e sua compreensão é
36 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA Hui\IANA 37

imediata por qualquer pessoa que seja da mesma comunidade 3. Mas como se forma essa expressão segunda, esse uso deri-
lingüística. São instrumentos de nosso cotidiano viver, do manuseio vado da linguagem?
social de objetos em função de nossas necessidades. E são falas sobre O ato de expressão (original) constitui um mundo lingüístico e
falas porque correspondem ao uso derivado de palavras que origina- um mundo cultural, ele faz recair no ser o que tendia para além. Daí a
riamente na comunidade foram expressivas, a serviço de necessi- palavra falada que desfruta de significações disponíveis, como uma
dades também derivadas, nesse sentido que não procuram romper fortuna adquirida. A partir destas aquisições, outros atos de expres-
algum silêncio primordial. Com elas não há necessidade de signi- são autêntica( ... ) tornam-se possíveis (FP, p. 207).
ficações novas. Merleau-Ponty as chama de falas banais.
As expressões originais se sedimentam em aqmsiÇoes
Vivemos num mundo onde a palavra está instituída. Para todas culturais, significações disponíveis, as quais poderão ser retomadas
essas falas banais possuímos em nós significações já formadas.
na linguagem empírica derivada (expressão segunda), ou então
Elas somente suscitam em nós pensamentos segundos; e estes, por
sua vez, se traduzem em outras tantas palavras que não exigem de instrumentalizando expressões novas onde haverá, neste caso, uma
nós nenhum esforço verdadeiro de expressão, e não pedem de transformação do sentido dos instrumentos culturais.
nossos ouvintes nenhum esforço de compreensão (FP, p. 194). A palavra (fala) enquanto distinta da língua, é esse momento
em que a intenção significativa, ainda muda e toda em ato, revela-se
Num texto bem posterior Merleau-Ponty retoma. a mesma capaz de incorporar-se à cultura, minha e de outro, capaz de me
diferenciação e a confirma: · formar e de formá-lo, transformando o sentido dos instrumentos
culturais. Por sua vez torna-se "disponível" porque, retrospecti-
Distingamos o uso empírico da linguagem já feita, e o uso
vamente, nos dá a ilusão de que estava contida nas significações já
criativo, de que o anterior, aliás, só pode ser um resultado. O que é
disponíveis, quando na verdade, por uma espécie de astúcia ela as
palavra no sentido da linguagem empírica, isto é, a oportuna cha-
esposara apenas para infundir-lhes uma nova vida (FL, p. 136).
mada· de um signo pré-estabelecido, não o é para a linguagem
autêntica. É, como disse Mallarmé, a moeda gasta que se passa em
silêncio de mão em mão. Inversamente, a verdadeira palavra, aquela A expressão segunda, seja no sentido da linguagem empírica
que significa, que torna enfim presente a "ausente de todos os ordinária pela qual prosseguimos nosso cotidiano, seja no sentido de
buquês" e libera o sentido cativo na coisa, não é, aos olhos do uso uma fala que de fato não cria um sentido novo (mesmo quando às
empírico, senão silêncio, visto que não vai até o nome comum. A vezes o pretenda, como é o caso do discurso circular da pessoa que
linguagem é por si mesma oblíqua e autônoma e, se lhe ocorre procura terapia), é uma possibilidade que se insere na própria
significar diretamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas
natureza da linguagem do homem.
de uma capacidade secundária, derivada de sua vida interior. De fato
o escritor, como o tecelão, trabalha às avessas: preocupa-se
unicamente com a linguagem e em sua trilha vê-se de repente 4. E, finalmente, para alargarmos um pouco mais o âmbito de
rodeado de sentido (LIVS, p. 145). possibilidades dessa expressão segunda, citemos dois textos, um
anterior e outro posterior à "Fenomenologia da Percepção".
Notemos, de passagem, que aqui surgem dois sentidos novos
No primeiro, para elucidar a questão das relações alma/corpo,
de "silêncio". O primeiro é o da linguagem empírica, que significa
Merleau-Ponty evoca as relações conceito/palavra. Nos dois casos
mas não toma presente um sentido novo. É o silêncio com que
não podemos separar os dois termos como se fossem duas coisas ou
passamos para outras mãos a moeda conhecida e gasta. Outro é o
substâncias. Eles se unem naquilo que é o concreto: o comportamento
silêncio da verdadeira palavra, porque ao tomar presente um sentido
humano (para os termos alma/corpo), e a fala viva (para os termos
novo ela não significa como os nomes comuns. É oblíqua, o sentido
conceito/palavra). Esse concreto é a operação constituinte na qual
novo surge nas entrelinhas, e por isso mesmo esta fala faz evoluir a
percebemos depois os dois termos como "produtos separados".
língua.
Assim sendo, cada grau de complexidade do comportamento
38 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR LIMA PsiCOLOGIA Hut--IANA 39

humano (operação constttumte do corpo/alma) seria corpo em de expressão segunda, mas contém algo vivo, um sentido em
relação ao grau mais complexo, e alma em relação ao menos gestação, um silêncio que procura se romper. Ora, esse parece ser o
complexo, assim como cada fala efetiva (operação constituinte do caso típico da pessoa que procura terapia: seus falares parecem
conceito/ palavra) é palavra (vocábulo) em relação a falas posteriores bloqueados no secundário, um falar-sobre que não tem desencadeado
e conceito (pensamento) em relação a falas anteriores. Os dois pares o viver, mas que por já ser um tatear (quando na terapia), aponta par
são inseparáveis, mas os distinguimos para compreender o próprio algo vivo.
dinamismo da operação em questão (o comportamento ou a fala). O O outro texto é bem posterior à "Fenomenologia da
corpo em geral, assim como a palavra (vocábulo), seria o adquirido; e Percepção". Ele mostra que um discurso teórico, abstrato ou mesmo
a alma em geral, assim como o conceito (pensamento), seria o sentido técnico, pode ficar aquém do que pretende resolver se não for fruto da
novo que se instaura. Um não vive sem o outro, mas não são duas ope- elaboração de uma experiência concreta, de um vivido que inclui
rações nem duas coisas, mas dois momentos de nossa consideração, conhecimentos, experiências anteriores, valores. Ou seja, se não for
necessários para compreender a complexidade da operação. Nesse uma autêntica operação expressiva. Não basta que articule correta-
contexto a expressão "linguagem empírica" aparece significando a mente conceitos ou fatos observados, diríamos. É preciso que tudo
materialidade das palavras, por oposição ao conceito/pensamento isso seja feito como autêntica operação expressiva. Senão perde-se a
que seria o sentido. A "fala viva" e expressiva os reúne. Aí o sentido relevância, a significância. Ora, isso é também uma forma de
novo adquire corpo e se torna então um adquirido, disponível para secundário: ficar aquém dos problemas que se desejava resolver, por
operações ulteriores. mais complexo que possa ser o discurso. Um discurso científico, ou
Pode-se certamente comparar as relações entre a alma e o mesmo filosófico, corretos do ponto de vista formal, podem ser
corpo com as relações entre o conceito e a palavra vocábulo (mot), irrelevantes, não significantes, inoperantes diretamente, secundários.
mas com a condição de se perceber, sob esses produtos separados, Até mesmo a ciência pode não "dizer" nada.
a operação constituinte que os une, e de se reencontrar, sob as
O que queremos dizer não se mostra, fora de toda palavra,
linguagens empíricas, acompanhamento exterior ou vestimenta
como pura significação. Não é senão o excesso do que vivemos
contingente do pensamento, a fala (paro/e), que é, somente ela, a
sobre o que já foi dito. ( ... )(No campo do pensamento político, por
efetuação do pensamento, onde o sentido se formula pela primeira
exemplo) toda ação e todo conhecimento que não passam por essa
vez, funda-se assim como sentido, e se torna disponível para
elaboração (onde entram em jogo todos os nossos conhecimentos,
operações ulteriores (EC, p. 243).
todas as nossas experiências e todos os nossos valores) e querem
propor valores que não tenham tomado corpo em nossa história indi-
A fala viva citada aqui é, evidentemente, a própria operação vidual e coletiva, ou bem, o que dá no mesmo, escolher meios por um
expressiva no sentido autêntico do termo. E a linguagem empírica cálculo e por um proceder inteiramente técnico, acabam aquém dos
seria como o "corpo" dessa operação: "acompanhamento exterior ou problemas que desejavam resolver (LIVS, p. 175).
vestimenta contingente do pensamento ". E sob ela que devemos
encontrar a "fala viva" se quisermos chegar ao sentido. Aqui a A possibilidade do secundário se instala até mesmo no interior
linguagem empírica não é, pois, sinônimo ou exemplo de fala banal, do discurso científico, filosófico, político ou técnico. E nesses casos o
mas é algo que está presente também na fala autêntica. que determina isso, como sempre, é ele não ser uma operação dire-
Há na fala uma camada superficial que devemos ultrapassar tamente expressiva (ou seja, estar desconectado do silêncio que é o
para chegarmos ao sentido. O texto não é completamente claro a excesso do que vivemos sobre o que já foi dito). Mas nesse próprio
respeito, mas creio podermos dizer que, desde que se trate de fala e vazio, creio, podemos ver, dissimulado, o sopro da vida.
não de mero automatismo ou reação mecânica, podemos procurar As possibilidades do secundário não se limitam pois às falas
o "vivo" que está sob a "linguagem". O tatear em torno do sentido corriqueiras necessárias em nosso cotidiano. Mas se esses alar-
novo que se procura pode nos parecer linguagem empírica no sentido gamentos são válidos, então podemos ver, até mesmo sob a lin-
40 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 4l

guagem corriqueira, uma certa expressividade: a da manutenção do A COMPREENSÃO


vivo. E é por isso que embora "segunda", Merleau-Ponty ainda usa o
termo "expressão" quando fala de "expressão segunda". Compreender significa ouvir o silêncio que procura se romper
com a fala.
5. Desses textos de Merleau-Ponty ficam pelo menos suge- Compreender profundamente significa ouvir o silêncio escon-
ridas algumas proposições de interesse para o psicólogo terapeuta: dido em qualquer fala.
Quando ouvido é que ele é realmente dito, e isso é uma mobi-
• a fala secundária não cria significados novos mas apenas lização do ser.
executa (ou aplica) significados antigos. Por isso ela não Ouvir não é um ato de inteligência ou do pensamento, mas uma
exige esforço especial de expressão nem de compreensão; participação existencial em um movimento de gestação ou parto no
tanto uma como outra são imediatas (a fala "nova" exige plano do sentido. É pelo conjunto de minha resposta interativa que
esforço de expressão e também de compreensão); mostro que ouvi. Ela será a elaboração de meu silêncio face ao outro
• a fala secundária é uma possibilidade decorrente da própria que me dirige a palavra.
natureza da linguagem humana. Falas originais se sedi- Creio que os textos de Merleau-Ponty apontam para isso.
mentam em significações disponíveis que são depois usadas
secundariamente, e isso é necessário para a vida cotidiana; 1. A compreensão vai além dos significados já conhecidos dos
instrumentos falantes, ou seja, dos termos usados. Ela atinge uma
• por causa dessa possibilidade da linguagem existe também
fonte, o centro do discurso, um sentido novo. Com o exemplo da
um uso secundário da capacidade de significar (a fala) que
decorre de um distanciamento do silêncio originário: é compreensão de um texto filosófico, ele escreve:
possível falar assim distanciado de si, mas esta fala não O fato é que temos o poder de compreender para além do que
envolve a pessoa como um todo e nem a compromete; pensamos espontaneamente. Alguém só pode nos falar numa
linguagem que já compreendamos: cada palavra de um texto difícil
• uma fala será inautêntica quando se esperaria, pelo contexto desperta em nós pensamentos que nos pertenciam antes, mas
da relação onde ela se encontra, que ela fosse plenamente essas significações se enlaçam às vezes num pensamento novo que
expressiva, e no entanto, por um mecanismo imposto pelo as remaneja totalmente; somos então transportados ao centro do
próprio sujeito (deliberadamente ou não), ela deixa de ser livro, reencontramos a fonte (FP, p. 189).
plenamente expressiva, e, de fato, naquele momento, o
sujeito fica cortado de um contato com seu próprio silêncio; Este ser transportado ao centro do discurso e descobrir o
• no entanto, por ser apesar de tudo expressiva (embora não sentido para além dos significados parciais não é como a resolução de
plenamente), a fala secundária, mesmo quando inautêntica, um problema. No problema a incógnita aparece pela sua relação com
contém em sua concretude pistas dinâmicas para o que os termos conhecidos do problema, quase mecanicamente. Na
poderá vir a ser autêntico ou original. compreensão de uma pessoa não é assim. Aqui é só na medida em que
me aproximo do sentido que as palavras vão se mostrando como
Creio que podemos acrescentar que a fala de uma pessoa que signos que realmente apontam para ele. Antes não.
procura psicoterapia é um tatear em tomo de um significado, um
esforço de expressão, que no entanto não chega a ser plenamente Não há nisso nada de comparável à resolução de um
problema, em que se descobre o termo desconhecido por meio de
bem-sucedido. Esse tatear, contudo, aponta para uma direção que é o sua relação com termos conhecidos. Porque o problema só pode ser
novo significado em gestação. Cabe ao terapeuta favorecer essa resolvido se for determinado, isto é, se o cotejo dos dados designar
gestação, ou ao menos não atrapalhá-la. Mas como? ao desconhecido um ou vários valores definidos. Na compreensão
do outro, o problema é sempre indeterminado, porque somente a
42 MAURO MARTINS A~4ATUZZI PoR UMA PsicOLOGIA HuMANA 43

solução do problema fará aparecer retrospectivamente os dados impedir seria determo-nos reflexivamente em cada palavra. Um texto
como convergentes, somente o motivo central de uma filosofia, uma posterior de Merleau-Ponty cabe bem aqui:
vez compreendido, dá aos textos do filósofo o valor de signos
adequados (FP, p. 189). O que com demasiada deliberação procuramos não o
obtemos, não faltando pelo contrário idéias, valores, a quem souber
É aqui que aparece aquela nota de rodapé em que Merleau- absorver, meditando na vida, o que de sua fonte espontânea se libera
Ponty diz que esta compreensão só se aplica à fala autêntica. Nas (LIVS, p. 175).
falas corriqueiras não há necessidade de um esforço de compreensão.
Contudo, se é verdade que em expressões segundas podemos 3. Mais adiante entretanto ele fala do esforço de compreensão.
encontrar também um núcleo de autenticidade, isso que ele diz da As palavras banais não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de
compreensão da fala autêntica se aplica pelo menos em parte à compreensão. Já vimos esse texto acima. "Para todas essas falas
compreensão de qualquer fala. Penso que o que muda, no caso da banais possuímos em nós significações já formadas", e essas falas
pessoa em terapia que tenta se expressar mas de fato não o consegue banais "não exigem de nós nenhum esforço verdadeiro de
expressão, e não pedem de nossos ouvintes nenhum esforço de
de forma satisfatória, é que os signos apontam para um centro
compreensão" (FP, p. 194). Não há oposição entre o caráter direto da
realmente, mas eles não são ainda "adequados", e por isso a
compreensão e o fato de que às vezes ela exige esforço. O que se
expressão não é completa. acrescenta aqui como característica do compreender, quando ele
exige esforço, é que ele supõe uma abertura para o novo, que é coisa
2. Um outro texto, também sugestivo, nos diz que a leitura ou a que não é necessária no simples caso da linguagem ordinária.
escuta de um discurso autêntico é como um "encantamento". Somos Podemos então acrescentar essa abertura para o novo como uma
possuídos pelo discurso, sentimos sua necessidade, embora não outra característica da compreensão.
possamos prever onde ele vai chegar. Nem o sujeito falante pensa
enquanto fala, nem o ouvinte pensa no que está ouvindo. O pensar do 4. É preciso citar de novo aqui um texto que também já lemos,
falante é seu próprio falar, e o do ouvinte, seu compreender. Só onde essa abertura para o novo vai aparecer como um movimento do
depois, ao final do discurso, quando o ouvinte acorda, por assim próprio ser, uma transformação mais global, portanto, do que a de um
dizer, é que podem surgir pensamentos sobre o discurso. simples pensamento.
O orador não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto (Na compreensão da fala de outra pessoa) não é primei-
fala; sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o ouvinte não ramente com representações ou com o pensamento que eu me
concebe a propósito dos signos. O "pensamento" do orador é vazio comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e
enquanto ele fala, e, quando alguém lê um texto para nós, se a com o mundo que ele visa. Assim como a intenção significativa que
expressão é bem-sucedida, não teremos um pensamento à margem pôs em movimento a fala da outra pessoa não é um pensamento
do próprio texto, as palavras ocupam todo nosso espírito, elas vêm explícito, mas uma certa carência que procura se preencher, assim
preencher exatamente nossa espera e sentimos a necessidade do também a retomada por mim dessa intenção não é uma operação do
discurso, mas não seríamos capazes de prevê-lo e somos possuídos meu pensamento, mas uma modulação sincrônica de minha própria
por ele. O fim do discurso ou do texto será o fim de um encantamento. Só existência, uma transformação de meu ser (FP, p. 194 ).
então poderão surgir pensamentos sobre o discurso ou sobre o texto;
antes o discurso era improvisado e o texto compreendido sem um A retomada da intenção significativa do outro, na compre-
único pensamento, o sentido estava presente em toda parte, mas em ensão, não é uma operação do pensamento, e sim uma transformação
nenhum lugar posto por ele mesmo (FP, p. 190). mais global do ser que acompanha a mutação daquele que está se
comunicando.
Este trecho enfatizao caráter direto da compreensão. Ela não
é reflexiva, somos transportados pelo discurso. O máximo que 5. A seguir Merleau-Ponty compara a fala com o gesto,
podemos fazer, creio, é não impedirmos isso. E uma forma de o dizendo que ela é um gesto lingüístico. No contexto dessa compa-
44 MAURO MARTINS AMATUZZI

ração aparece como compreendemos o gesto. E o que gostaríamos de


destacar é a reciprocidade de atos que é essa compreensão de gestos,
CAPÍTULO lll
e o fato de essa reciprocidade operativa confirmar o outro no seu
significado, e a mim mesmo em minha compreensão.
A comunicação ou a compreensão dos gestos se obtém pela
reciprocidade de minhas intenções com os gestos do outro, de meus
gestos com as intenções legíveis na conduta do outro. Tudo ocorre
como se a intenção do outro habitasse meu corpo, ou como se
minhas intenções habitassem o seu( ... ). O gesto está diante de mim lNVESTlGACÃO DO HUMANO
como uma pergunta: ele me indica alguns pontos sensíveis do
mundo e me convida a me unir a eles. A comunicação se completa
quando minha conduta encontra neste caminho seu próprio
caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro.( ... )
Não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação
intelectual (FP, pp. 195-196).
O ponto de partida deste capítulo é o interesse em conhecer
Com o gesto lingüístico ocorre algo parecido. Acompanho a melhor as formas de investigação do humano, e com isso avançar
pessoa que se comunica em sua intencionalidade, e com isso confir- nessa prática. Com essa intenção permito-me retomar aqui, com
modificações, o texto de uma palestra proferida na Universidade
mo-a em seu dizer confirmando-me em meu compreender, numa
Federal do Ceará, no final de 1993, e publicado na revista Estudos
espécie de reciprocidade de pensamento em ato. Essa confirmação de Psicologia (PUC-Campinas) com data de setembro de 1994,
aqui não significa, é claro, uma concordância com o que o outro diz 11(3}, pp. 73-77, com o título "A investigação do humano: um
em termos de afirmar também suas idéias. Isso seria um pensamento debate". Vamos manter aqui o tom coloquial que tinha o texto da
segundo. Significa isso sim que quando compreendo posso pensar palestra.
junto. Compreender é participar do sentido.

6. Em resumo, são características da compreensão:


• ela vai além do entendimento dos significados literais e
transporta-nos para o sentido novo apontado por eles; As questões que no momento me habitam, e que aqui ofe-
• ela tem um caráter direto; reço ao diálogo com os colegas, relacionam-se em grande parte com o
• mas implica abertura para o novo, e, portanto, saída da atitu- meu lado de professor orientador de projetos de pós-graduação em
de cotidiana; Psicologia. Que posturas epistemológicas são possíveis num projeto
• ela é uma transformação global do ser Uunto com as de investigação do humano, e quais os limites dessas posturas? Que
transformações do falante) e não apenas um ato do possibilidades entrevejo? Mas antes disso é preciso nos darmos conta
pensamento; e dos limites do próprio projeto acadêmico.
• implica uma reciprocidade operativa na qual os inter- Quando estou dançando estou fazendo uma investigação do
locutores se confirmam em suas intenções significativas. humano.· Seria então o dançar um ato de ciência? Se o for não
saboreio a dança, e talvez o conhecimento resultante seja mais pobre
Podemos comentar esse último ponto dizendo que quando essa
que aquele que eu poderia adquirir se dançasse sem pensar em ato de
confirmação ocorre, o silêncio se aquieta, a pessoa está como
conhecimento científico.
transportada para um mundo novo, e novas intenções podem
começar a surgir. Esse é o movimento existencial que se procura Creio que há aqui algumas coisas a se considerar. Uma é que há
desbloquear na psicoterapia. vários caminhos para a investigação do humano. A ciência, com
46 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 47

certeza não é o único, e talvez nem mesmo o mais rico. A poesia é o homem pode descobrir objetivamente, e, ao contrário da filosofia,
uma forma de investigar o humano; a literatura, o teatro também. A esses procedimentos objetivos não são passíveis de intermináveis
amizade é uma forma de investigar o humano; a luta política, o lazer, discussões. Podemos ter normas confiáveis para dirigir nossas ações.
o esporte. A psicoterapia também. Há muitos caminhos. Assim, a ciência nasceu gerada no útero da filosofia, e opondo-se a
O resultado dessas investigações, porém, não é sempre do ela. Tudo isso para garantir uma nova forma de vida social ou as
mesmo tipo. E essa é a segunda coisa que queria considerar. Quem formas novas que tomava a inquietação humana.
dança, conversa com amigos, pratica esporte, faz política com certeza Em seu berço a ciência já se anuncia como una: os fatos
aprende muito sobre o humano. Mas esse saber se encontra nele às humanos e sociais não são diferentes dos fatos naturais, e portanto
vezes de forma somente tácita. É o saber do homem de experiência, devem ser investigados da mesma forma. É claro que não foi assim
que o habilita a reagir de formas mais adequadas quando diante de tão simples desde o começo. A filosofia quis guardar o humano para
algum desafio novo. Mas não necessariamente esse saber se sabe de si, e entregar apenas o não humano para a ciência. Mas acabou
forma refletida. perdendo essa disputa, pois a ciência pretendeu abarcar tudo, e seu
Há uma diferença entre o saber tácito, experiencial, e o saber prestígio foi muito grande. A filosofia acabou ficando desacreditada
explícito, representado para o próprio sujeito. Este último também por muitos. O "ser" (objeto da filosofia) não ajudava muito na condu-
pode mostrar diferenças quanto ao grau em que é assegurado de ção da vida social, como os "fatos" (objeto da ciência). E Maquiavel
forma objetiva e pública. Ele pode, de fato, ser obtido por meios que foi preferido pelos príncipes.
não dependam da experiência subjetiva, de modo que qualquer Pouco a pouco, entretanto, e não sem a influência dos poetas e
pessoa possa verificar que é assim, ou melhor, possa ser convencida dos literatos (GUSDORF, 1990), começou um movimento que
de que os fatos demonstram tal coisa. É uma questão de lógica reivindicava a originalidade do humano. O que é próprio do humano
aplicada aos fatos. A sofisticação desse último tipo de saber é a não se deixa captar pelos métodos da ciência. Mas então não pode
ciência. A humanidade construiu uma ciência, um saber objetivo e haver ciência do humano? Sim, mas é outro tipo de ciência, pois tem
público, e que pode ser apropriado por quem o estuda. E mais. Na que lidar com a autodeterminação, com a liberdade, com a subjeti-
complexidade de nossa vida atual, esse tipo de saber se tomou vidade etc. E as ciências humanas foram nascendo do seio da ciência,
necessário, indispensável, insubstituível. A nossa sociedade não que então foi rebatizada pelos humanistas como ciência natural. E os
poderia funcionar sem ele. A nossa sociedade tal como ela é não cientistas humanos, ao contrário dos cientistas naturais, criticavam o
poderia subsistir e manter-se em movimento sem o saber produzido discurso simples de uma ciência una. Digamos que a relação
pela ciência (e por sua filha dileta, a tecnologia). pressuposta pela investigação nas ciências naturais é do tipo sujeito-
Mas estamos correndo demais. Antes mesmo da ciência havia objeto. O objeto é uma parte do mundo; o mundo existe em si; o
uma forma de saber, mais baseada no pensamento e na experiência de sujeito pode captar suas leis objetivamente, sem que haja nenhum
vida, mas que se pretendia geral, universal. Uma reflexão rigorosa envolvimento, mas apenas, digamos, um olhar. Já a relação
sobre as coisas. Era a filosofia. Só que, de repente, a filosofia pressuposta pelas ciências humanas é do tipo sujeito-sujeito, pois o
começou a parecer algo não certo, não seguro, e não prático para objeto aqui é um outro sujeito. O tipo de objetividade que se pode ter
atender às necessidades dos homens (fossem elas pragmáticas ou de é, então, outro: é uma objetividade que nasce de um entendimento
conhecimento). O pensamento não tinha um juiz que decidisse sobre entre os sujeitos, é uma objetividade que brota de uma inter-subjeti-
seu acerto ou erro. Foi assim que apareceram os fatos. Os fatos vidade. O mundo das ciências humanas não é o mundo em si, mas o
decidiriam. E esses fatos poderiam ser medidos objetivamente e de mundo tal como experienciado pelo homem e, portanto, carregado de
forma indiscutível. Bastava que se fizesse uma observação siste- significados. Não é natureza mas é mundo (mundo é natureza mais
mática, e com regras de precisão. Os fatos podem ser olhados de significado humano). Em vez de fatos, temos os fenômenos. Os fatos
forma neutra. A natureza está aí, ela funciona de acordo com leis que na verdade são derivados. O que é primeiro são os fenômenos. Os
48 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 49

fatos só são obtidos por abstração. A experiência primeira é de É interessante notar que esses desdobramentos (filosofia/
fenômenos, isto é, a coisa tal como vista, tal como experienciada. E ciência, ciência-natural/ciência-humana) não eliminam o ponto a
será trabalhando em cima disso que chegaremos aos fatos. Pre- partir do qual se deu o desdobramento. O surgimento da ciência não
tende-se com isso transcender a relação sujeito-objeto e se chegar a eliminou a filosofia (por mais que a ciência tivesse nascido por
uma outra que é mais primitiva que esta, e que por ser mais primitiva oposição a ela), mas a fez redefinir-se ou pelo menos repensar sua
nos dá acesso a uma verdade mais radical. No fundo as ciências identidade. O surgimento de uma abordagem fenomenológico-
humanas estudam não o mundo como natureza, mas a relação hermenêutica do seio da ciência não eliminou a abordagem empírico-
homem-mundo. Não é possível abstrair o homem que estuda, e analítica, nem mesmo impediu que nessa abordagem pesquisadores
considerar somente o objeto puro. Se nas ciências naturais se continuassem se ocupando de assuntos humanos (só que dentro de
pretende evitar ao máximo o envolvimento do pesquisador, na~ seu enfoque próprio). Parece que as coisas são assim; não ficam
humanas o que se tem a fazer é tirar proveito desse envolvimento. E nunca perfeitamente resolvidas ...
uma outra concepção de ciência, outro modelo epistemológico, outro Esse desdobramento no interior da pesquisa científica não
paradigma (CHIZZOTTI, 1991). estava ainda com firmeza estabelecido, quando novas necessidades
As pesquisas em ciências naturais foram, então, chamadas de surgiram. O que se começou a questionar foi que esse conhecimento
empírico-analíticas. E quando aplicadas ao ser humano podem ser de todo (seja ele empírico-analítico, seja ele fenomenológico-herme-
2 tipos: estatísticas ou de análise de comportamento. As pesquisas em nêutico) é muito heterogêneo com a ação concreta. Quer isso dizer
ciências humanas foram chamadas de fenomenológico-hermenêu- que ele ainda fica fora da atuação prática. Há ainda uma separação
ticas porque no fundo lidam com significados de experiências e entre o ato de pesquisar (o ato de produzir o conhecimento) e a
fazem interpretações (isto é, explicitação de significados ou desdo- atuação concreta histórica (o ato de aplicar o conhecimento). Isso
bramento de sentidos). Foram também chamadas de existenciais ou toma a atuação, e conseqüentemente toda prática profissional
mesmo humanistas (ver por exemplo Polkinghome, 1982), porque concreta, mera execução externa do que foi descoberto pelos sábios.
buscam o significado dos fenômenos para os humanos com eles E faz dos "sábios" os detentores do poder do conhecimento. Ou, pior
envolvidos. Também foram chamadas de "qualitativas" (ALVES, ainda, dá o poder do conhecimento àqueles que en.comendam e
1991), por oposição às "quantitativas". Os que se colocam nesta financiam as pesquisas. Mas os profissionais da área de humanas não
abordagem empírico-analítica consideram que o termo "quantita- conseguem aquietar suas questões nascidas da lida com o humano, e
tivo" aplicado a eles restringe muito o que fazem, pois eles podem aceitar tranqüilamente serem como autômatos dos sábios dos gabi-
trabalhar também com análise qualitativa. Mas a isso os praticantes netes e laboratórios, meros aplicadores de conhecimentos. Algo está
da abordagem hermenêutica dizem que não se pode confundir errado nisso tudo. Essa ciência toda ainda está longe da ação transfor-
análise qualitativa com pesquisa qualitativa. A análise qualitativa madora concreta. E isso foi sem dúvida influenciado por um pensar
pode se dar no interior da maneira convencional de fazer ciência, já a desenvolvido no interior de movimentos políticos revolucionários.
pesquisa qualitativa é um outro modo de se fazer ciência, inteira- Foi ficando mais clara a oposição entre conhecimento abstrato e ação
mente diferente, e não só diferente quanto a procedimentos técnicos. concreta, entre uma relação meramente cognitiva entre homem e
Penso eu que pode haver duas tendências em pesquisas desse mundo, e uma relação mais englobante, transformadora. O conheci-
segundo tipo, o fenomenológico-hermenêutico: uma tendência mais mento é, enquanto sozinho, constituinte da relação meramente
empírica, quando as conclusões são principalmente baseadas na cognitiva, mas por outro lado ele é apenas um componente, da relação
análise de dados dos depoimentos registrados dos sujeitos, e uma mais englobante e transformadora. Mas, e isso é fundamental, é só
tendência mais dialética, quando as conclusões são estabelecidas a enquanto inserido numa ação transformadora que o conhecimento é
partir de uma interação com os sujeitos, isto é, eles são convidados a concreto e vai mais longe. O verdadeiro conhecimento é o que faz
confirmar as conclusões e de alguma forma participam delas. parte de uma relação mais que meramente cognitiva com o real. Isso
50 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR LIMA PsiCOLOGIA HutviANA 51

tudo foi clareando uma nova concepção de ciência, de pesquisa e de pensar em sermos possuídos por uma sabedoria, da qual, no entanto,
investigação, e também de prática. E essa nova concepção foi cha- podemos nos aproximar com respeito? Que abordagem seria essa?
mada de dialética ou pragmática. F oi dentro dessa concepção que As 3 formas de escuta desenvolvidas por René Barbier nos
surgiram a pesquisa-participante, e a pesquisa-ação (ASTOLFI, fazem pensar. Ele é um sociólogo, especialista em pesquisa-ação, e
1993; GAMBOA, 1991). E os estudos teóricos dentro dessa nova que gosta de se considerar um psicossociólogo. Segundo ele essas 3
concepção tomaram outra fisionomia também: foram denominados formas de escuta são necessárias para que nos aproximemos do
estudos críticos e visam também uma transformação mais global. fenômeno que queremos estudar. Ele denomina a primeira de escuta
Dentro dessa nova perspectiva a ação concreta (a psicoterapia, por "científico-clínica". Não basta buscar a coerência, ou compreender
exemplo) pôde ser vista como pesquisa ou investigação. O ato de pes- as relações que existem entre os fenômenos que observamos no
quisar e o próprio processo terapêutico, por exemplo, não são coisas grupo ou na sociedade (e eu acrescentaria: também no indivíduo). No
diferentes. Está em jogo um novo modelo epistemológico. Não há face a face e no envolvimento com a ação é preciso desenvolver uma
uma separação entre a pesquisa e a ação; pelo contrário a ação escuta sensível ao que acontece com as pessoas em sua prática. Essa
desenvolvida como pesquisa passa a ser mais crítica, qualitativa- escuta científico-clínica vai além do que poderíamos chamar de
mente superior, e mais eficaz. E por outro lado o conhecimento assim escuta raciocinante (principalmente se esse raciocínio só lança mão
gerado, mais verdadeiro. do que já está estabelecido). O outro tipo mencionado por ele é a
Isso muda muita coisa, inclusive o modelo de relatório cientí- escuta "filosófica". É uma escuta dos valores últimos das pessoas e
fico, o modelo de registro de dados, o próprio modelo da interação do grupo, ou seja, "aquilo para que, a partir do que, a pessoa faz
concreta na coleta de dados, e a própria atuação profissional. Existem questão de viver e em favor do que aceita correr o risco de perder
modelos diferentes disso tudo para os 3 paradigmas. algo importante" (BARBIER, 1992, p.209). Aqui também lançamo-
Será que termina aqui essa andança dos modos de pesquisar o nos num plano que transcende o do puro cognitivo. É preciso ouvir o
humano? O que podemos prever como novos passos que virão? E que move as pessoas a partir de dentro. E o terceiro tipo de escuta é a
aqui só podemos ousar, pois estamos nos arvorando em profetas, "mito-poética". Consiste em ficar atento ao novo na vida do grupo, às
tentando detectar pequenos sinais dos tempos. F alo do que imagino e falas dissonantes, minoritárias, que questionam o já estruturado. "A
de como interpreto pequenos sinais. Todas essas formas de saber escuta mito-poética é aquela que está atenta à vida relaciona! e
não esgotam aquele conhecimento de vida, saber tácito que decorre simbólica de um grupo, de uma população, e à forma como as pes-
da experiência vivida, de que falávamos no começo. Há ainda soas são solidárias, como trocam mitos, símbolos, imagens, a fim de
muita coisa que daí não passou para o plano do saber repre- criar condições diferentes daquelas que lhes são impostas" (p.209).
sentacional explícito. Não será que todas essas formas de saber Às vezes são os mitos e símbolos os únicos meios de termos acesso a
explícito (filosofia, ciência natural, ciência humana, dialética) não algo que não está dominado ou plenamente conhecido e que, no
teriam em comum que todas elas ficam ainda de algum modo submer- entanto, é fundamental para se entender o que acontece, ou o que está
sas no fluxo histórico? Não será que para compreender o humano, e o por acontecer.
humano concreto que somos e que temos diante de nós, não teremos Creio que a integração dessas 3 formas de escuta só é possível
que tomar as asas do símbolo, cujos significados nunca se esgotam se estivermos envolvidos numa pesquisa conjunta, que não exclua
(pois não são meros signos), compreender o que da poesia não coube ninguém, e que é ao mesmo tempo uma prática em busca de signifi-
na ciência, o que da arte, da dança e da religiosidade também não? cados mais abrangentes, dentro de uma postura de quem quer, com
Não será que existe uma certa onipotência inserida essencialmente humildade, participar de um movimento e de uma sabedoria que já
no modelo até hoje vigente de ciência (seja ele empírico-analítico, estão aí.
fenomenológico-hermenêutico, ou dialético-pragmático)? Não será
que ao invés de pensarmos em possuir uma sabedoria não deveríamos
CAPÍTULO IV

PESQUISA DO VlVlOO

Uma psicologia humana passa muitas vezes por uma aborda-


gem fenomenológica, seja no sentido mais puro de um olhar para a
consciência e os significados do sujeito entrevistado, seja no sentido
em que esse olhar é determinado pelas indagações,que habitam o
pesquisador. Na verdade uma coisa necessita da outra. Esse capí-
tulo tenta mostrar isso numa linguagem que, mesmo sendo teórica,
pretende clarear os rumos da pesquisa e da prática. E quer fazer isso
como numa primeira expressão apenas reflexiva.

Uma das coisas que caracteriza uma psicologia de inspira-


ção fenomenológica é a importância dada ao vivido. Acredita-se que
muitas vezes ele seja melhor guia para nossas ações concretas e para
nossos pensamentos do que concepções ou idéias construídas mais
ou menos artificialmente (AMATUZZI, 1996). Daí a importância da
pesquisa que tenha por objetivo uma aproximação do vivido, e a
conseqüente expressão do que nele está contido como significado
potencial face a alguma problemática trazida pelo pesquisador. É
diante de uma indagação que o vivido se manifesta.
Mas o que é o vivido? É nossa reação interior imediata àquilo
que nos acontece, antes mesmo que tenhamos refletido ou elaborado
conceitos. Hesitei ao escrever "nossa reação" ao invés de "a reação da
pessoa". Saí do impessoal e escrevi "nós". Nossa reação. Saí da
postura objetiva e neutra, e estou evocando a experiência minha e do
leitor, a experiência comum, nossa. Todos podemos saber de que
54 MAURO MARTI~S AMATLIZZI PoR UMA PsicOLOGIA HuMANA 55

estou falando, mesmo que isso seja de dificil definição. Reagimos por nesse sentido ele é tanto sentimento como pensamento, sem ser
dentro àquilo que nos acontece. Isso é o vivido, a experiência ime- nenhum dos dois. É sentimento e pensamento potenciais. É a raiz
diata. É como nos sentimos. tanto do sentimento como do pensamento. Sim, porque o sentimento
Essa reação interior já é alguma coisa da ordem da consciên- também pode ser elaborado, recebendo a influência dos pensamentos
cia. Não estamos nos referindo a reações externas, fisicas ou fisioló- e decisões. E, como tal, ele estará distante da experiência imediata,
gicas, mas a reações internas. Algo que podemos sentir. Poderíamo~ pré-reflexiva. Se denominamos o vivido de sentimento é, então, para
talvez falar da face interior, ou psicológica, de nossa reação. Mas aqm distingui-lo do pensamento elaborado, ou da elaboração posterior
quase que já existe uma tomada de posição em relação à questão do que ocorre. Apenas por isso.
paralelismo psico-fisico (DUTRA, 2000). E não é ~ssa a in~enç~o. Vivido, experiência imediata, sentimento primeiro: a impor-
Relativizemos, pois, nossas maneiras de falar. O que Importa e aqmlo tância de se retomar a isso fica mais clara, então. É como se estivés-
a que estamos nos referindo, como uma experiência de cada um. semos deixando de lado tudo aquilo que colocamos em cima do que é
primeiro, para voltarmos à pureza original, digamos assim, para
Um outro aspecto é que se trata da reação imediata. Não a rea-
permitir que essa pureza original dê vida a tudo que se segue a ela,
ção construída, nem a reação pensada. É o que eu sinto, diretamente, a
corrigindo possíveis distorções, clareando a relatividade das elabo-
forma como avalio, diretamente. Para além das mediações pensadas,
rações. A pesquisa fenomenológica pretende voltar ao vivido, não
para além das minhas escalas de valor. E não se trata também daquilo
negando as elaborações que se fazem a partir dele, mas colocando-as
que eu possa pensar depois para "domesticar" a experiência, ou redu- provisoriamente entre parênteses, para revê-las depois, à luz daquela
zi-la ao familiar. fonte primeira. Daí as coisas podem ficar mais claras.
Finalmente dissemos que é nossa reação interior àquilo que Mas como chegar ao vivido sobre algum tema de inves-
nos acontece, e nã~ simplesmente àquilo que acontece. A dif~r~nça é tigação? Isso ficará mais claro se examinarmos primeiro o que
justamente a conexão com nosso centro pessoal. Buber dizia que acontece com ele no plano das significações. O seu percurso psico-
"aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida" (BUBER, lógico.
1982, p. 44). Há coisas que nos tocam e das quais não temos a menor Ele sozinho não existe, uma vez que é sempre acompanhado de
consciência. É um tocar meramente fisico. Para que possamos falar alguma significação. A função da pesquisa consiste em substituir sua
de vivido como reação interior, é necessário um outro nível de significação contextual imediata, pela significação do contexto
comunicação envolvendo a subjetividade, é necessário que tenha trazido pelo pesquisador, dialogicamente. Vamos construir isso
acontecido algo que seja portador de um sentido potencial para_ m_im passo a passo.
(ainda que seja apenas o sentido de um espanto). Com o vivido Dizer que o vivido é sempre acompanhado de alguma
estamos no plano do significado, e não simplesmente no plano dos significação significa dizer que não temos acesso direto a ele.
eventos mecânicos, digamos assim, ou objetivos. O vivido não é a Qualquer acesso já é uma forma de significá-lo, tanto por parte do
reação muscular, mas a reação psicológica, mental, espiritual, antes próprio sujeito que o vive, como por parte do pesquisador (ou do
de qualquer elaboração p_osterior com raci~cínios. A r~~aç~o sujeito que reflete sobre ele). Por isso devemos dizer que o vivido "se
psicológica imediata. Por Isso falamos tambem de expenencia diz" dentro de nós, ele se expressa, e assim assume um significado. E
imediata, e de sentimento (ver por exemplo ROGERS e KINGET, é nesse ato de se dizer que ele se constitui como vivido pleno, pois é a
1975, pp.61-63). . . partir de sua inscrição mínima na consciência que ele se toma vivido
Mas essa palavra sentimento, embora possa ser usada aqm, e propriamente, e não apenas um evento fisico.
perigosa. O sentimento se distingue claramente do pensamento. Uma Mas essa inscrição mínima é duplamente determinada, a partir
coisa é sentir, outra coisa é pensar. Pois bem, o vivido está num plano de fora. Ela já recebe a influência dos modelos de pensamento e
de consciência onde o sentir e o pensar não se distinguiram ainda. E linguagem que existem no contexto sociocultural onde o sujeito toma
56 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR u~dA PsiCOLOGIA HuMANA 57

consistência, e recebe também a influência da história individual do área abrangida por qualquer um dos 3 ângulos do triângulo é a mes-
sujeito tal como foi se construindo e deixando suas marcas na ma. O ângulo seria apenas o ponto de vista a partir do qual olhamos o
memória total dele. Essa dupla influência se apresenta, no entanto, triângulo. Tudo isso é o vivido pleno em seu momento primeiro de
como os ossos desse corpo, sendo que a carne é o próprio vivido manifestação. É preciso, então, distinguirmos (para compreender),
original. Ou seja, ele é estruturado a partir dessa dupla influência. O mas sem separar (como fatos ou entidades independentes), o puro
resultado é esse corpo com o qual podemos entrar em contato. É um vivido ou reação imediata, que não existe por si mas é apenas um dos
corpo unificado, mas composto de uma reação original, por um lado, ângulos do triângulo, e o vivido pleno em sua manifestação primeira,
e de uma estrutura que lhe possibilita a expressão e a forma como é que é o triângulo inteiro. Essa complexa realidade psicológica
conscientizado, por outro. costuma ser expressa por tríades de palavras: sentimento-pensa-
Esse corpo (o vivido constituído) se expressa, então, como mento-ação, experiência-percepção-comunicação, vivido-simboli-
uma forma de consciência (e é como forma de consciência que recebe zado-manifesto.
a influência dos padrões culturais e da história individual). Mas ele É preciso, no entanto, tomar nossa imagem mais complexa
pode se expressar também como uma forma de ação no meio, consti- ainda. Como realidade dinâmica, esse triângulo (ou esse vivido
tuindo-se como uma resposta (sujeita também àquela dupla influên- pleno) nasce de um núcleo, o "centro" ou "coração" da pessoa, o qual
cia). A pessoa manifesta sua reação imediata pela ação através da é, na verdade, uma relação. O "coração" humano é abertura. É por
qual responde a ela. A ação é uma forma de consciência também, de isso que dizemos que algo nos acontece. Existe um outro. O passo
manifestação do vivido. Principalmente quando ela está assim tão primeiro, onde se constitui a subjetividade, é um acolhimento. Pois
próxima da fonte que é a reação imediata. bem, nosso triângulo, vindo desse centro, se expande para fora,
A dificuldade de falar disso é grande porque o vivido pleno formando uma pirâmide de 3 lados. O pensamento (percepção,
supõe sua manifestação na consciência (através de uma inscrição simbolização) se desdobra em reflexão ou elaboração posterior,
ainda que seja mínima), e essa manifestação pode se dar diretamente constituindo como que um pensamento segundo. A ação primeira
através de uma ação (que seria então como uma forma de pensa- (comunicação, manifestação) vai também se sofisticando e se
mento). elaborando em ações planejadas e complexas. E cada uma dessas
Uma representação pode nos ajudar a compreender essa coisas gera também novas vivências, desdobrando o puro vivido
primeira expressão do vivido, ou essa primeira aparição dele no primeiro, a começar pela vivência de pensar e a vivência de agir ou
percurso de se manifestar. Podemos imaginar um triângulo de lados interferir no meio. Isso é necessário e biologicamente adaptativo para
iguais, de cabeça para baixo. No ângulo inferior desse triângulo a espécie humana. Mas tem um risco: distanciar-nos do centro a
temos o sentimento primeiro, a reação interior imediata, o vivido ponto de perder o contato com ele, e conseqüentemente perder a
puro, digamos assim. Mas isso tem uma inscrição na consciência. relação básica. Daí então a expansão do triângulo (a pirâmide) se
Essa inscrição pode se dar como a linguagem interior, ainda primi- transforma em desvario, e joga a pessoa no isolamento por mais que
tiva, de um dar-se conta, de uma interpretação fundadora (como diz ela aja e interfira no meio. Uma pirâmide "furada" em seu topo, sem o
LADRIERE, 1975), de um dizer original ou de um pensamento vértice e portanto sem eixo. Então, uma pessoa inteligente planeja
primeiro. Este seria o ângulo superior esquerdo de nosso triângulo. O mil ações e faz sutis análises, mas não se satisfaz em seu coração. Ela
ângulo superior direito (que está também acima da linha da simbo- perdeu o contato com seu centro, com sua relação básica.
lização que corta o triângulo horizontalmente no meio) é o da ação Mas voltemos ao nosso propósito. Agora que descrevemos
como também expressão primeira do vivido. Trata-se de uma ação algo do percurso do vivido ou experiência imediata, o que podemos
significativa, de um fazer algo, ou de um dizer, interferindo no meio dizer sobre o acesso a ele no intento de uma pesquisa fenome-
como uma resposta ao que nos acontece, mas ao mesmo tempo como nológica?
manifestação do que se passa conosco. Reparemos, no entanto, que a
58 MAURO 1\hRTINS AMA TLIZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 59

Em primeiro lugar é preciso dizer que uma pesquisa é uma Antes de comentarmos essa luz (e aquilo que se toma claro
atividade que se situa também em nossa consciência (em nossa com ela), no entanto, é preciso que olhemos um pouco mais para o
pirâmide). É um momento de consciência que pode ser comparado a depoimento. Ele pode ser qualquer expressão humana: uma dança,
um corte perpendicular ao eixo da pirâmide, formando, em seu plano, um desenho, uma obra arte etc. Mas freqüentemente ele é um relato
um triângulo. Esse triângulo é uma abstração, pois ele existe na verbal, especificamente colhido para aquela pesquisa, e portanto
verdade dentro do dinamismo da pirâmide que se expande a partir de focalizado na experiência imediata que é o objeto da investigação.
uma relação básica. De qualquer forma essa imagem nos ajuda a ver Por exemplo, se quero pesquisar o autoperdão (como tema), solicito
que a pesquisa tem um pólo de raciocínio, reflexão, pensamento; tem às pessoas que considerem sua experiência sobre isso, e me falem
também, num outro pólo, um sentimento primeiro que decorre do dela. Se quero pesquisar o vivido pelas pessoas em um grupo intensi-
contato com o dado; e, num terceiro, uma ação que é todo seu proce- vo, peço a elas que me contem isso, estando o mais próximo possível
do evento. Ou seja, o depoimento não é sempre a manifestação direta
dimento. E isso sem falar nas açôes decorrentes, mudanças na forma
e imediata do vivido em questão. Às vezes o sujeito precisa recorrer à
de estar no mundo que são conseqüências do conhecimento gerado, e
sua memória. O que significa isso? Significa que na leitura que fizer-
os sentimentos e pensamentos que acompanham e se seguem a isso. mos desse depoimento devemos levar em conta toda a elaboração que
No pólo pensamento, uma pesquisa é uma reflexão, um pensamento pode ter sido acrescentada pela memória. Mas a base para dizermos
segundo. É bem verdade que esse pensamento segundo toma-se que um depoimento desses é ainda expressão do vivido, embora
primeiro no âmbito interno da pesquisa (e será uma boa pesquisa indireta, é que o fluxo da consciência no tempo não se dá de forma
quando estiver organicamente interligado com os outros pólos: o entrecortada e justaposta. Há uma continuidade. Essa é justamente a
sentimento primeiro diante do dado, e o fazer-dizer primeiro que função da memória (mesmo se precisarmos levar em conta suas ela-
manifesta o dado). Mas o que importa lembrar aqui, agora, é que ela é borações). Os significados vividos dão continuidade à experiência
um pensamento segundo, que se desdobrou como uma reflexão, imediata (e se constituem, eles também, em desdobramentos do vivido).
pondo-se deliberadamente e sistematicamente a olhar para os Justifica-se então que se colham depoimentos baseados na memória.
pensamentos primeiros, ou ações, que expressam o vivido origina- Podemos voltar agora para aquela luz. A pesquisa é uma ativi-
riamente. A pesquisa está mais distante do centro gerador, embora só dade de pensamento segundo, de reflexão, que se volta para uma
tenha sentido enquanto estiver sob o int1uxo de sua energia. expressão do vivido, o depoimento. Como vimos, essa expressão é
Podemos dizer, então, que o acesso ao vivido, na pesquisa determinada, como de fora, pelos padrões lingüísticos e culturais, por
fenomenológica, se dá através dos pensamentos e ações que o mani- um lado, e pela história pessoal do sujeito, por outro. Quando o pes-
festam da forma mais direta possível. "Lemos o vivido" entrando em quisador busca no depoimento aqueles padrões culturais que lhe dão
contato com suas manifestações. Depoimento é o nome que se a estrutura (querendo encontrar o coletivo manifestando-se no parti-
convencionou dar para essas manifestações quando são tomadas cular), ou quando busca os elementos (vividos) de história individual
exatamente como apoio empírico para pesquisas. Obviamente que se escondem por trás da dinâmica do depoimento, ele não está
existem formas mais adequadas de depoimento para cada pesquisa. ainda fazendo uma pesquisa propriamente fenomenológica. Esta
ocorre quando ele pesquisador ou pessoa que reflete, guiado pela
Mas em princípio qualquer forma de expressão humana pode se
indagação que o mobiliza, atravessa o depoimento, por assim dizer, e
constituir em depoimento. Pois o que importa é a luz sob a qual lemos
parte em busca do vivido ali contido, sem se desviar para a busca dos
essa expressão. Deve ser justamente uma luz que atravessa a materia- padrões coletivos, ou elementos da história escondida. Mas como
lidade do depoimento, e embarcando em sua intencionalidade, vai em esse vivido não tem consistência sem uma estrutura ou contexto de
direção ao vivido puro (ou ao sentimento primeiro que se faz pre- significados, o pesquisador procura dizer inicialmente este significa-
sente) buscando expressá-lo em um outro pensamento que faça do para o sujeito, tal como ele se mostra no depoimento; e depois, por
sentido no contexto da problemática trazida pelo pesquisador. uma espécie de trabalho de abstração conceitual, vai se desprendendo
do contexto concreto do sujeito, para expressar seu significado mais
60 MAURO MARTINS AMATLIZZI

geral. Esse significado mais geral é o que aparece no contexto mais


amplo da existência humana, naquele aspecto que está sendo proble-
CAPÍTULO v
matizado pelo pesquisador, a partir de seu contexto. A luz sob a
qual se lê o depoimento é, então, uma luz que permite atravessar a
materialidade empírica do próprio depoimento, chegar ao vivido que
ele expressa, e depois, abstraindo-se do contexto concreto deste
sujeito, buscar os significados gerais em relação à existência humana
problematizada pelo pesquisador. Mas esses significados gerais,
assim construídos pelo pesquisador, devem dar conta do vivido ATENDIMENTO PSlCOTERÁPlCO
concreto dos sujeitos, ou seja, devem ser suficientes para dizer e
clarear esse vivido de um ponto de vista mais abrangente (e capaz de
incluir outros possíveis sujeitos nessa compreensão).
Nada impede que esse ponto de vista mais abrangente possa
incluir uma consideração do coletivo (em pesquisas temáticas) ou da
história individual (em estudos de caso). Mas na pesquisa propria- Este capítulo retoma anotações feitas para um curso sobre
mente fenomenológica essas considerações, quando for o caso de esse tema na Universidade Estadual de Maringá, em abril de 1999,
logo depois publicado na revista Psicologia em Estudo, da mesma
elas ocorrerem (devido ao tipo de delimitação do objeto e de alcance da Universidade, em edição especial, 4(1 ), pp. 67-81, com o título
pesquisa), serão apenas instrumentais ou intermediárias, e não finais. "Abordagem fenomenológica no atendimento psicoterápico". A
Onde termina, então, a pesquisa do vivido? Com que tipo de reflexão aqui apresentada baseia-se numa compreensão da fala e da
afirmação ela se encerra?Não é com a afirmação de um fato, mas com escuta. Toda fala efetiva e plena dá vida social a um sentimento ou a
a afirmação de uma possibilidade de compreensão (ou um conceito) uma intenção anteriormente vivida de forma ainda vaga. Fazendo
que se estende para além dos sujeitos estudados naquela amostra. E isso permite a manifestação de um aspecto novo da realidade vivida
assim que entendo o que Husserl chamava de essência. A pesquisa pela pessoa e mobiliza sua ação. O pensamento que ela transporta
fenomenológica, em psicologia científica, descreve uma essência, a inclui emoção. O atendimento psicoterápico caminha em direção a
partir de depoimentos concretos de pessoas falando de suas expe- falas que cumpram essa função. Isso se faz pela escuta aberta de um
terapeuta comprometido como pessoa nessa relação. Daí resulta um
riências (ou escrevendo ou manifestando de qualquer forma que verdadeiro diálogo e é ele que será, na verdade, terapêutico. Foram
seja). O que ocorre é que tal descrição, se o objeto foi bem escolhido feitas pequenas modificações no texto no sentido de complementar
(ou se o recorte da existência foi bem selecionado), deve possibilitar referências bibliográficas.
uma visão mais clara do assunto, e conseqüentemente, um posicio-
namento mais efetivo na ação.
Essa visão mais clara do assunto é o que o pesquisador busca, a
partir de uma questão que está tendo significado para ele. A partir daí
ele procura interlocutores vivos (ou memórias documentadas) com
quem possa dialogar em tomo da experiência vivida, e assim produzir A PALAVRA FOI FEITA PARA CALAR
suas respostas. E quando o interlocutor assume a mesma intenção de
pesquisa, ele sai também beneficiado por ela. Ele sai compreen- A base dessas considerações é uma concepção do processo
de significar, inspirada na fenomenologia. O atendimento psicote-
dendo-se melhor (e capaz de ações mais efetivas). Por isso, dentro da
rápico é uma ajuda ao processo de significar que de alguma forma
luz fenomenológica, não há diferenças essenciais entre pesquisa e ficou bloqueado, e não está mais conseguindo seguir sozinho.
atendimento psicológico ou psicoterapia. A aproximação do vivido Quando a pessoa vê diferente, ela se transforma e passa a estar no
desencadeia mudanças. É como uma volta à fonte, "às coisas mundo de forma diferente.
mesmas".
62 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR UMA PsicoLOGIA HuMANA 63

Duas frases de Clarice Lispector ilustram bem essa concepção música, e também- por que não?- faço uma pesquisa ou me dedico à
do processo de significar: ciência. Se não o fizer o sentimento permaneceria vago, sufocador. Se
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a eu não expressar de algum modo, o impacto da realidade fica parado
palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra dentro de mim, me sufocando e me impedindo de continuar a viver.
morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a Enquanto não for dito ou atualizado na plenitude de um dizer
entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a ou de uma presentificação, um sentimento permanece vago e sufo-
analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva cador. A partir do momento em que ele é dito, algo se transforma, se
então é ler distraidamente (LISPECTOR, 1985, p. 41 ). libera. O próprio sentimento deixa de ser vago e sufocador. E dá lugar
a outros sentimentos.
O que é que a palavra pesca? A não-palavra. O que é uma coisa Cecília Meirelles também, em um de seus poemas, faz uma
e o que é outra? A seqüência do texto nos faz apro~ndar na compa- pessoa lamentar que outra, a amada, não tivesse percebido o que suas
ração: quando essa não-palavra morde a isca ... As vezes a não- palavras escondiam, e que, no entanto, segundo a amante, é forte e
palavra não morde a isca. Não é sempre que a palavra realmente diz intenso, talvez não capturável pelas palavras, mas certamente visível
alguma coisa. Às vezes ela é vazia, oca de realidade. Existem para além delas.
palavras e palavras. Nem sempre a palavra pesca a não-palavra. Nunca eu tivera querido I dizer palavra tão louca: I bateu-me o
Quando consegue, algo se disse, ou algo se escreveu. Quando vento na boca, I e depois no teu ouvido.// Levou somente a palavra, I
consegue, a palavra está sendo plenamente palavra, cheia de sentido, deixou ficar o sentido. !I O sentido está guardado I no rosto com que
cheia de vida, cheia de realidade. Um escritor sabe bem quando ele te miro, I neste perdido suspiro I que te segue alucinado, I no meu
sorriso suspenso I como um beijo malogrado. !I Nunca ninguém viu
realmente escreveu alguma coisa, e quando ele simplesmente ninguém I que o amor pusesse tão triste./ Essa tristeza não viste, I e
colocou sinais gráficos sobre o papel. É a diferença entre a palavra eu sei que ela se vê bem ... I Só se aquele vento I fechou teus olhos
efetivamente expressiva e a palavra malograda. A psicoterapia é a também ... (MEIRELES, Poesia Completa, 1994, p.118).
busca de se passar dos discursos vazios aos discursos transforma- A palavra e o sentido. O dito e o vivido. O corpo e a alma, diria
dores. Não tanto transformadores dos outros, mas transformadores Merleau-Ponty. A não-palavra de Clarice seria o sentido de Cecília. A
daquele mesmo que os pronuncia. Todo esforço do terapeuta é um palavra conduz o sentido, vive pelo sentido. Mas este não está preso na
esforço de ser um interlocutor que favoreça a essa passagem. A palavra como num cárcere. Ele voa solto no olhar, no rosto, no suspiro,
psicoterapia é uma pescaria das não-palavras que importam para a na tristeza bem visíveis. Mas ... só se aquele vento fechou teus olhos
pessoa. E uma pescaria com as palavras de que no momento dispo- também. A palavra conduz o sentido, mas pode nos fechar os olhos
mos. O processo segue com palavras-iscas, de uma não-palavra a para o sentido. Como o vento.
outra não-palavra, até que se chegue a um centro a partir do qual tudo
A palavra foi feita para calar.
fica diferente. Um outro poeta, este argentino, Alberto Juarroz, diz que a
Numa outra frase Clarice diz mais: função da palavra é maior do que simplesmente designar as coisas.
Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irre- Ela cria uma presença.
produzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria
apenas vago e sufocador (LISPECTOR, 1984, p.191 ). El oficio de la palabra, I más aliá de la pequena miseria I y la
pequena ternura de designar esto o aquello, I es un acto de amor:
crear presencia (JUARROZ, 1980, p. 27).
Escrever é tentar entender. Procurar entender é procurar repro-
duzir o que não pode ser plenamente reproduzido. É colocar num
E ele comenta isso dizendo:
quadro o pôr-do-sol até que possamos entender o que é o próprio pôr;-
do-sol. Escrever é sentir até o fim aquilo mesmo que já sentimos. E La palabra es el hombre. Si esto es así, la poesía seria el
para poder sentir tudo que eu digo, falo, pinto um quadro, faço uma modo más amplio, el modo más comprensible y creo que abarca-
64 MAURO MARTINS Ai\1ATUZZI PoR Ui'dA PsiCOLOGIA Hui\1ANA 65

dor. .. Abarcado r de qué? La respuesta cómoda sería: de lo real. Pero entendida como se referindo ao conceito e não mais à coisa. E o
aqui hay otra cosa que a veces descuidamos y es que la palabra crea
c?nceito foi entendido como uma maneira de se apropriar da essên-
realidad. Entonces: no sólo abarcador sino también enriquecedor,
ampliador de lo real (JUARROZ, 1980, p. 30). cia. M~s es~a era et~rna, para Platão, por exemplo. O modelo perfeito
das coisas Imperfeitas. Passou a haver então, no entendimento das
E eu comentaria Juarroz dizendo que a palavra captura a pessoas, uma oposição entre o pensamento puro e a linguagem. O
realidade, nos põe em contato com ela, mas ao mesmo tempo, pensamento (noein =pensar) visa essências eternas e imutáveis. A
fazendo isso, ela amplia o real, ela o toma visível e o modifica. Aí posse delas por nós é o conceito(= naus, mesma raiz que pensar).
então eu compreendo, eu vejo. Mas o que vejo? Pensar passou a ser entendido como um abrir-se para as essências
Muitas vezes dizemos: "descobri um mundo novo", mesmo eternas. E a linguagem (legein =falar) ficou sendo algo que pertence
que nada tenha mudado objetivamente. A realidade parece trans- ao mundo passageiro e transitório da comunicação. O falar não
figurada. É a palavra, ou entendimento expresso por ela, que cria de~venda o sentido; é o pensamento que faz isso, mas separando-se da
esses mundos. Uma experiência nova, a partir de um novo ângulo de cois~ ~oncreta. Essa c~ncepção (segundo CORETH 1969-1973, pp. 26-
visão: uma nova realidade. 34) Ira prevalecer ate o século 18/19.
A palavra foi feita para calar. Aí se inicia uma mudança. Terceira fase. Humboldt, em 1835
Retomemos isso. A palavra cria. Cria presença. Enriquece o (citado por Coreth), irá afirmar: "as línguas não são propriamente
real. Isso nos remete para a história das concepções sobre a palavra. meios de apresentar a verdade já conhecida, mas antes instrumen-
Resumidamente, houve 3 fases. tos para descobrir o ainda desconhecido". Para Heidegger, já em
Primeira fase. Na Grécia antiga, assim como na Bíblia, aliás, a nosso séc. 20, o entendimento deve ser compreendido como uma
palavra era vista como uma coisa. Uma coisa que eu posso possuir, e abertura para o Ser que se revela. Ora, isso é a linguagem: a capaci-
que interfere com aquela outra coisa que está lá fora. Por isso o que eu dade básica do ser humano de se abrir para o Ser das coisas. Por isso
digo afeta a realidade. É como se eu possuísse a alma das coisas e ele dirá: "o homem habita na linguagem"; e não: a linguagem no
tivesse domínio sobre elas. Isso foi visto depois como pensamento homem. Para Merleau-Ponty o que existe atrás da palavra não é o
mágico. A crença infantil e ingênua de que meu pensamento tem pensamento. Este está na palavra. O que existe por trás é a intenção de
poder sobre a realidade. Mas isso é na verdade uma caricatura significar, ou seja, a mobilização para falar, o desejo. E o último
posterior do pensamento antigo. Vimos com os poetas como o Wittgenstein dirá que o jogo de linguagem próprio às ciências
pensamento que se expressa tem o poder de transformar a realidade. naturais (com a verificabilidade externa pelos fatos) não é o único
Foi apenas o modo de conceber isso que estava talvez pouco expli- possível: existem outros jogos de linguagem (o da arte, o da ética, o
cado. Mas por causa disso começou uma idéia diferente. da religião etc.). Se o jogo das ciências exclui como verdade tudo que
Segunda fase. Na Grécia mesmo começou-se a fazer uma não for verificado, isso não ocorre nos outros jogos, pois eles
separação entre a natureza (fj;sis, a coisa em si) e a palavra (lagos, representam caminhos diferentes. Nessa 3• fase, então, retomam-se
aquilo que expressa a coisa natural). Mundo é diferente de Palavra. as verdades da primeira fase.
Heráclito foi uma espécie de transição. Para ele, falar (legein, mesma Juarroz, o nosso poeta argentino, escreve:
raiz que lagos, a razão da coisa) não era ainda uma designação Utilizo el término pensar para significar la capacidad del
posterior e externa do objeto já sabido, mas era justamente o ato de hombre de interpretar, de traduciren palabras la rea/idad (grifo meu),
desvendar o ser da coisa, seu sentido. A palavra (lagos, razão) é justa- no como sistema lógico o racional, sino como persecución, como
mente o sentido desvendado. Mas para Platão e Aristóteles essa sepa- posibilidad de infinito desvelo en pos de encontrar un sentido a la
realid~d. Y entiendo por sentido no una fórmula, ni una explicación,
ração foi feita, e a palavra passou a ser vista como mero rótulo externo smo s1mplemente el que las cosas son asi porque deben ser así. o
do conceito. A linguagem deixou de ser um modo de se lidar com as sea ~ue el pensar es para mi la apertura humana, creadora, que
coisas, para ser apenas o sistema convencional de sinais construído cons1ste en el reconocimiento de la realidad que no puede darse sin
para designar, conteúdos já pensados, sinais esses que têm a finali- que ai mismo tiempo yo la esté creando (JUARROZ, 1980, p. 40).
dade de facilitar a comunicação na sociedade. A palavra foi então
66 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR UMA PsicOLOGIA HUMANA 67

E ele diz também: existia desde os tempos da escola primária. Por exemplo, lembro-me
quando uma criança fazia uma pergunta e a professora dava uma
Esa capacidad dei hombre de crear la realidad en base a su ótima resposta, porém a uma pergunta inteiramente diferente.
interpretación por médio de símbolos es lo que llamo pensar. Pero Nessas circunstâncias eu era dominado por um sentimento
todo eso ai mismo tiempo está cargado de un infinito peso emotivo. intenso de dor e angústia. Como reação, eu tinha vontade de dizer:
Toda palavra tiene una dimensión emotiva ... EI hecho de pensar y de Mas você não a ouviu! Sentia uma espécie de desespero infantil
expressarse es infinitamente emotivo: no hay pensamiento sin diante da falta de comunicação que era (e é) tão comum (ROGERS,
emoción. En ese sentido entiendo pensar (Juarroz, 1980, p. 41 ). 1983, pp. 4-5).

E poderíamos resumir dizendo que não há palavra viva que Ouvir realmente. Nós podemos ouvir, porque nosso aparelho
seja sem emoção, pois ela interfere com a realidade, cria um mundo auditivo está em ordem, mas não escutar, ou não ouvir realmente,
novo, mais do que simplesmente retrata a realidade. Se ficarmos na
quando não atravessamos os sons e não vamos até a alma da pessoa
mera palavra, então estaremos matando sua vida. Adélia Prado tem
que nos fala, ou até seu coração. Ficamos nas palavras-vento, como
um poema que se chama "Antes do nome":
aquele homem do poema de Cecília Meireles. Ele não entendeu nada.
Não me importa a palavra , esta corriqueira. I Quero é o O vento fechou seus olhos. O que houve com a professora de Rogers?
esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde
nasce o "de", o "aliás", o "o", o "porém" e o "que", esta incom- Um mero equívoco de comunicação como se ela tivesse confundido
preensível muleta que me apóia. I Quem entender a linguage~ as palavras? Certamente não. Ela entendeu corretamente todas as
entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. I A palavra e palavras. Mas não ouviu a pessoa. Ouviu o significado, não ouviu o
disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para
sentido.
ser calada. I Em momentos de graça, infreqüentíssimos, se poderá
apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror (PRADO, Merleau-Ponty já havia dito algo semelhante. Dizia ele que
1991' p. 22). para ouvir realmente (como diria Rogers) é necessário:
reencontrar sob as linguagens empíricas, acompanhamento exte-
A palavra foi inventada para ser calada, pois através dela eu rior ou roupagem contingente de todo pensamento, a palavra viva
entendo e dou sentido ao esplêndido caos, aos sítios escuros, à coisa que é sua efetuação, onde o sentido se formula pela primeira vez, se
mais grave, surda-muda. Quando ela pode ser, com plenitude, aquilo funda assim, e se torna disponível para operações ulteriores
que tem a vocação de ser, será como um peixe ~ivo na mão, pu~o (MERLEAU-PONTY, 1972, p. 227).
susto e terror. A tarefa do terapeuta é favorecer a palavra que seJa
aquilo que nasceu para ser: um momento fugaz que nos abre os olhos A linguagem empírica, a fala como som mensurável, é apenas
para a realidade, e muda tudo. o acompanhamento exterior do pensamento. A fala como palavra
viva, esta é a própria efetuação do pensamento. É nela que o sentido
se formula pela primeira vez, e se constitui tomando-se então dispo-
EscUTAR É ABRIR-SE PARA O MUNDO, nível para outros atos de viver. Quando aquilo que dizemos não é
E RESPONDER realmente ouvido, é como se não tivesse sido plenamente dito. É
como se a fala tivesse ficado entalada no fundo de nossa garganta. E o
Rogers, em uma palestra originalmente proferida em 1964, diz viver não pode se desenrolar.
em um trecho muito bonito e que comentei em um artigo meu Voltemos à professora de Rogers. O que será que aconteceu
(AMATUZZI, 1990): com a criança que não teve sua pergunta respondida? Ela poderá
O primeiro sentimento básico que gostaria de partilhar com voltar a insistir algumas vezes, ou poderá desistir. E se desistir
vocês é a minha alegria quando consigo realmente ouvir alguém.
acabará por esquecer sua pergunta verdadeira, e, pior ainda, acabará
Acho que esta característica talvez seja algo que me é inerente e já
68 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR LIMA PsicoLOGIA Hur-.tANA 69

por substituí-la pela pergunta que a professora diz ter ouvido, e Mas vamos ver, com Ricoeur (1977), como é que vai se
pensará que esta sim foi a pergunta correta. Paulo Freire diria que a manifestando um mundo com sentido, para além do simples real da
professora foi então a "opressora~' que fez o menino se distanciar de relação imediata, quando entramos no universo da linguagem.
sua verdadeira palavra. O primeiro distanciamento que a .Jinguagem opera em relação
Separarmos o mero significado do significado pleno nos ao real é o distanciamento da significação. Quando falo significo,
ajuda a compreender o ouvir. O mero significado fica no nível das construo signos, e assim me afasto, olho um pouco mais de longe,
palavras, enquanto o significado pleno se prende a toda presença analiso. Pela mediação dos signos me afasto da imediaticidade da
significante da pessoa. Receber o significado pleno, e não apenas o relação, digamos, animal. Mas com o evento da fala, resintetizo a
mero significado, é ouvir realmente a pessoa. A resposta que brota realidade: eu a re-encontro como designada por mim. Aqui temos o
deste ouvir bem pode ser chamada de interpretação simbólica porque discurso simplesmente como fala. Ouvir, aqui, é entrar em contato
reúne o que eventualmente estava separado. com o que a pessoa diz. E se sou da mesma comunidade lingüística
O texto de Rogers continua assim: isso ocorre sem maiores problemas porque também uso os mesmos
Creio que sei porque me é gratificante ouvir alguém. Quando tipos de signos com os quais analisamos a realidade. Falo a mesma
consigo realmente ouvir alguém, isso me coloca em contato com língua e entendo o que a pessoa está dizendo.
ele, isso enriquece minha vida (ROGERS, 1983, p. 5). Mas a fala opera um segundo distanciamento. É que quando_
falamos arrumamos o que dizemos de acordo com um estilo próprio.
Ouvir realmente é igual a entrar em contato, que é igual a Usamos expressões e construções que gostamos mais. Usamos um
enriquecer minha vida ou deixar-se tocar. Voltaremos a isso mais estilo, um gênero. Isso nos põe um pouco mais distantes do real
tarde. imediato. É o distanciamento operado pela composição, a que
No prosseguimento dessa fenomenologia do ouvir e do corresponde discurso como obra. Como obra literária. Se levarmos
responder, peçamos agora ajuda a Paul Ricoeur. Ele vai nos falar dos em conta isso, então o ouvir verdadeiro tem que levar em conta o
níveis de distanciamento que o discurso opera em relação o real. contexto da relação e o estilo próprio da pessoa. Ouvir então não será
Entendamos bem isso. Falar significa dar um sentido às nossas simplesmente entrar em contato com o que a pessoa diz, mas entrar
experiências e portanto nos aproxima delas, permitindo-nos lidar em contato com o que ela quer dizer através de todo esse modo
construtivamente e criativamente com elas. Tira-nos da condição próprio de dizer nesse momento e nessa situação. E isso pode não ser
natural e nos alça à condição propriamente humana. Simbolizamos o igual ao mero significado das palavras. Quantas vezes em brigas
real. Podemos discutir o real, e assim transformar nossa relação com ouvimos o outro dizer: mas você disse isso! E não nos sentimos
ele. Mas ao mesmo tempo que o falar faz isso, ele também nos compreendidos. O que acontece? A pessoa joga na cara da gente as
distancia do real. Para olharmos o que se passa, afastamo-nos um palavras e não o sentido. O verdadeiro ouvir vai além do significado
pouco. O que quer dizer tudo isso? Aproximação e afastamento são imediato das palavras.
dois aspectos de uma relação diferente com o real, que a capacidade Ricouer fala ainda de um terceiro nível de distanciamento que
de falar nos permite. É nessa relação diferente que aparece o signi- para ele é o que ocorre quando escrevemos. Ao escrevermos alguma
ficado, o sentido. E então o que era simplesmente real passa a ser coisa ou gravarmos de qualquer forma o momento fugaz de uma fala,
mundo. Mundo organizado e com sentido. nós construímos um texto que poderá ser usado por outras pessoas de
O que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como
forma mais ou menos independente das intenções imediatas de seu
organizamos nosso mundo, e como nossos problemas se prendem à
autor. O significado de um texto não se prende mais ao que seu autor
forma como fazemos isso. Se eu, como pessoa em processo terapêu-
tinha consciência de ter pretendido. O texto escapa à individualidade
tico, puder entender isso, então terei condições de ser diferente.
70 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR u~-.~A PsicOLOGIA Hu~JANA 71

do autor. Este muitas vezes se surpreende com tudo que disse e não Estamos aqui no limiar da resposta e temos que recorrer a
sabia. Esse é o distanciamento operado pela escrita, ou qualquer Buber. A fenomenologia do ouvir se expande em fenomenologia do
forma de fixar o que foi dito. A ele corresponde o discurso como diálogo. O que acontece então quando o ouvir chegou a esse nível
texto. Existe um "mundo do texto". E mesmo quando falamos, aquilo de profundidade? O passo seguinte pode ser expresso assim:
que dizemos tem essa dimensão de texto que remete a um mundo permitindo a interpelação do outro, sinto a necessidade da res-
talvez insuspeitado pelo autor. Quem sabe sejam essas as dimensões posta. Seu discurso já não está nele. Está agora em mim. O encontro
coletivas do que dizemos. Mas mesmo coletivas, são eminentemente humano está eminentemente presente em nossa relação com o
pessoais, pois se enraízam em nós. Aqui o ouvir tem que ir mais mundo. O que ocorre em mim que estou ouvindo é uma mobilização.
longe, então. Ouvir realmente, aqui, significa entrar em contato com Tanto em minha vida pessoal, como aqui diante da pessoa como
o mundo da pessoa. Com aquele espaço mental ou campo semântico interlocutor.
onde ela habita mesmo sem conhecer tudo que há ali. E nós podemos Para Buber a palavra verdadeira é a palavra dirigida, e é por
entrar em contato com esse mundo mesmo sem termos que dizê-lo de isso que recebê-la afeta a pessoa. Se como ouvinte não fui afetado,
forma organizada. Ele se constitui de tudo que é recebido pela pessoa, então não ouvi realmente. Mas não apenas as pessoas nos falam,
mas também de tudo que foi construído por sua história pessoal, pela também os eventos do mundo nos falam.
história de suas emoções, sentimentos, reações, e pelo seu momento Aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida.
presente em que nos fala. Não "saberemos" de forma representada e Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo são
discriminada tudo isso, mas podemos entrar em contato. É como palavras que me são dirigidas. Somente quando os esterilizo,
eliminando neles o germe da palavra dirigida, é que posso
entrarmos na casa de uma pessoa. Em sua moradia pessoal. Em seu
compreender aquilo que me acontece como uma parte dos eventos
modo de ver, organizar o mundo, estar nele, agir. Ela está neste do mundo que não me dizem respeito (BUBER, 1982, p. 44).
mundo, e podemos, ouvindo, entrar nele como um todo. O mundo do
outro tem coisas em comum com o nosso mundo, e tem coisas que lhe A outra pessoa é uma presença que me fala, uma presença a
são próprias. Mas justamente por isso, ouvir com essa profundidade mim dirigida. É só quando elimino esse fator de presença dirigida, e
nos obriga a questionarmos nosso próprio mundo pela aproximação portanto de algo que me toca, que eu posso olhar um acontecimento
do mundo do outro. de forma neutra, como algo que não me diz respeito. Essa objetivi-
Isso exatamente é o quarto nível de distanciamento operado dade só é possível graças à supressão mais ou menos artificial da rela-
pela fala. A fala, deixando de ser só do outro, nos afeta e questiona. ção mobilizadora. Mas o preço que se paga é não tocarmos o centro
Obriga a que tomemos uma posição. Permitindo que a presença total dinâmico da pessoa. Em psicoterapia, se quisermos tocar o centro
do outro me atinja como um projétil, ouço-me a mim mesmo recriado dinâmico da pessoa, é portanto necessário que nos deixemos tocar.
por esse encontro. É o distanciamento operado pela comunicação ou Tomar conhecimento íntimo de um homem significa então,
pelo ato direcionado de fala, à que corresponde o discurso como principalmente, perceber sua totalidadade enquanto pessoa
desafio. A fala do outro o distanciou de sua realidade imediata e, determinada pelo espírito, perceber o centro dinâmico que imprime o
através do seu mundo comunicado, o colocou em contato comigo perceptível signo de unicidade a toda sua manifestação, ação e
ouvinte, desafiando-me. Ouvir realmente agora significa ouvir-se a si atitude. Mas um tal conhecimento íntimo é impossível se o outro,
enquanto outro, é para mim o objeto destacado de minha contem-
mesmo recriado nesse encontro com o outro. E o paradoxo aqui é que plação ou mesmo observação, pois a estas últimas esta totalidade e
ouvir-se a si mesmo é ainda ouvir ao outro que se comunica comigo. este centro não se dão a conhecer: o conhecimento íntimo só se
Se eu não me ouço no que ele diz, ele não foi ainda plenamente torna possível quando me coloco de uma forma elementar em
ouvido. relação com o outro, portanto quanto ele se torna presença para mim
(Buber, 1982, p. 147).
72 MAURO MARTINS AMATUZZI

Só ouço plenamente quando o outro se toma presença atuante


para mim. Aí então, sinto a necessidade da resposta.
CAPÍTULO Vl
Mas neste momento central do diálogo, uma bifurcação é
possível.
Se precipito a resposta estrago tudo. Não dou tempo suficiente
a esta mobilização e atuo através de uma ligação direta. Minha
resposta será apenas o efeito do discurso ou da presença do outro.
Mas se, ao contrário, ainda espero, então permito que surja o VERSÃO DE SENTIDO
novo, e o que surgir será verdadeiramente resposta e não efeito. É
somente aqui que se fecha o elo dialógico.
O atendimento psicoterápico de orientação fenomenológica é
formado por elos dialógicos desse tipo. As outras falas que visam
apenas conferir a compreensão, manter a comunicação ou clarear o Este capítulo retoma um trabalho originalmente apresentado
sentimento são preparações para a resposta, ou já são implicitamente em Aguascalientes, no México, no 8° Encontro Latino-Americano da
a resposta, ou então não têm sentido terapêutico algum. Abordagem Centrada na Pessoa, em outubro de 1996, logo depois
do encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Psicologia (ANPEPP) daquele ano, onde foi também discutido.
Foi publicado como um capítulo das Coletâneas da ANPEPP,
caderno 9, com o título "O uso da versão de sentido na formação e
pesquisa em psicologia" (pp.11-24). Esse caderno foi organizado
pela profa. Regina Carvalho, tem como título Repensando a
formação do Psicólogo: da informação à descoberta, publicado em
Campinas, SP, Editora Alínea, 1996. O texto parte de uma preocu-
pação com a busca de caminhos para pesquisas de tipo qualitativo.
Propõe-se a examinar teoricamente um tipo de relato que vem sendo
usado como instrumento prático tanto na formação como na pes-
quisa, denominado Versão de Sentido (VS). Aqui conto um pouco de
sua história, e busco uma justificativa para seu uso. Fiz algumas
pequenas modificações no sentido de atualizá-lo e adaptá-lo a este
livro.

Tenho trabalhado há algum tempo com Versões de Sentido


(VS), como instrumento econômico e de uso fácil, no acompa-
nhamento reflexivo de atendimentos terapêuticos, de atividades
educativas e docentes, e de trabalhos com grupos. A experiência se
espalhou, e hoje muitos colegas a praticam em atividades de
formação e supervisão, e começa também a ser usada em pesquisa.
Contudo também não faltam os opositores, argumentando que o
74 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HUMANA 75

termo é em si contraditório, ou que a VS não pode servir como forma todos cansados de fazer relatórios mecânicos de sessão, como era
de acesso ao processo vivido. A experiência de quem já lidou com exigido nos estágios. E o outro motivo se referia à questão do sentido.
esse tipo de relato do vivido, entretanto, fala a favor de sua fecundi- O que "fazia sentido" para estarmos conversando? E antes disso: o
dade para a formação e pesquisa, tanto no campo clínico como no que "fazia realmente sentido" para nós estar escrevendo logo após
educativo ou de assessoria a grupos. um atendimento? A resposta parecia ser: o que de primeiro nos vinha
O que me proponho aqui é: à mente, agora, com o distanciamento da presença face-a-face do
cliente, e antes que nos tivéssemos envolvido em uma nova atividade.
1. redizer o que é exatamente uma VS, E mais: algo que nos desse uma visão de conjunto do que acabara de
2. contar um pouco de sua história, fundamentando-a em acontecer ali. Escrever isso foi experimentado como significativo.
uma história anterior, e Fazendo isso, e discutindo nossos atendimentos a partir de tais
3. buscar uma justificativa teórica para seu uso. relatos, algumas coisas foram ficando mais claras. O que fazia
Gostaria de ter como pano de fundo o conjunto de desafios sentido registrar era diferente daquilo que escrevíamos quando, de
encontrados em uma iniciação científica de abordagem qualitativa, seja memória, tentávamos reproduzir a seqüência dos fatos de forma
à pesquisa, seja à prática profissional. Não vejo porque uma inicia- neutra. O que fazia sentido registrar era o sentido vivo, presente no
ção, para ser científica, deva começar pelo manuseio de tabelas, fre- próprio ato de escrever. E era esse sentido que expressava melhor o
qüências e testes estatísticos, quando o que se visa é um aprendizado andamento do processo.
de penetração de significados. Não vejo porque, também, esse apren- F oi isso que nos levou à formulação de que o "sentido que
dizado deva ser separado de uma iniciação à prática de atendimentos interessa" é sempre presente. Um registro mecânico não o pode
ou de uma experiência de envolvimento com processos grupais. captar, pois ele só contém o passado. É só através de nosso presente
Entendemos por Versão de Sentido (VS) um relato livre, que que podemos estabelecer contato vivo com o sentido de um encontro.
não tem a pretensão de ser um registro objetivo do que aconteceu, E é o contato vivo que é útil na formação.
mas sim de ser uma reação viva a isso, escrito ou falado imediata- Mas isso equivale a dizer também que, se eu quiser ter um
mente após o ocorrido, e como uma palavra primeira. Consiste numa sentido vivo do sentido vivido numa sessão terapêutica, este só pode-
fala expressiva da experiência imediata de seu autor, face a um rá ser uma versão atualizada no presente, do sentido vivido lá. O resto
encontro recém-terminado. será tudo memória apenas, ou esquecimento. O único acesso possível
ao sentido vivo de um encontro se dá através de versões atuais dele,
no vivido de quem o reatualiza.
Aquele grupo de colegas, naqueles anos de 1989/90 na USP,
COMPREENDENDO A VS A PARTIR havia realizado uma exploração em ação da experiência do sentido. E
DE SUA HISTÓRIA isso foi publicado em 1991 em um artigo que teve por título: "O
sentido-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenológica no processo
Tudo começou com o convite, feito a alguns colegas recém- terapêutico" (AMATUZZI; SOLYMOS; ANDO; BRUSCAGIN e
formados, para uma pesquisa-em-ação a respeito do desenvolvi- COSTABILE, 1991).
mento pessoal. Isso se faria através de um grupo onde discutiríamos Gostaria de prolongar hoje aquelas reflexões para fazer face a
semanalmente nossas experiências em atendimento psicológico. algumas objeções que surgiram depois, em encontros com outros
Combinamos que essas discussões seriam feitas não a partir do colegas. E principalmente a duas delas: 1) o sentido não tem versão (e
relato da sessão, mas a partir de um relato condensado do que, para o portanto a VS nos distancia do sentido vivo), e, 2) a VS não nos dá
terapeuta, tinha sido o essencial do encontro terapêutico. Houve basi- acesso ao que de fato aconteceu (e portanto não serve como
camente dois motivos para isso. Um, bastante trivial. Estávamos instrumento científico de pesquisa).
76 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 77

A VS é uma versão do sentido vivido de um encontro, através primeiro declarou estarrecido que eles tinham dito o essencial
do sentido vivido logo depois (e por isso mais facilmente surpreen- daquele encontro, mesmo sem saber nada de seu enredo. Pessoal-
dido). Mas ela poderá ser também apenas memória, se não for mente comecei a pensar que uma VS bem feita é uma espécie de
atualizada em outro diálogo vivo. Isso também foi experimentado radiografia fenomenológica de um encontro.
naquele grupo. Ao invés de a sessão ser trazida ao grupo como um Até agora pretendo estar afirmando que:
objeto a ser analisado (através de um relatório), era lida a VS, e a ela
1. Uma VS é uma forma de contato vivo com o sentido de um
reagíamos com comentários livres, inclusive do próprio terapeuta.
encontro.
Esses comentários foram se revelando ser de dois tipos, quando mais
2. O sentido para o qual aponta uma VS se torna atual quando
úteis. No que diz respeito ao terapeuta (autor da VS) foi interessante
ela é colocada num contexto de interlocução presente.
constatar o poder de evocação que a VS tinha. Era como um registro 3. Ela tem o poder de transportar o vivido de forma conden-
condensado do vivido, e que permitia à pessoa não apenas lembrar-se sada. Ela evoca lembranças e desdobramentos de sentido
do ocorrido, mas também falar disso de forma viva, atual, como pela em seu autor, e passa para os ouvintes um sentido essen-
primeira vez, explicitando detalhes do vivido. E por parte dos outros cial, mesmo quando não passa detalhes fatuais.
membros do grupo constatamos que os raciocínios ou interpretações
causais não ajudavam muito, pelo menos no primeiro momento. Mais Mas outras coisas também pudemos constatar naquele pri-
valia simplesmente dizer, de forma simples e presente, o que se tinha meiro grupo. Vejamo-las:
ouvido a partir da leitura da VS, e a reação que ela havia provocado. A 4. Uma VS pode ser re-escrita pelo seu autor sem que ela deixe
partir daí se iniciava um diálogo que cumpria aquilo que, com Buber, de ser uma VS. Verificamos que o seu autor pode tomá-la
poderíamos chamar de "presentificação" do sentido ou dos signifi- atual, e nesse ato poderá haver novas explicitações ou
cados vividos (agora em novo contexto interlocucional). Só quando desdobramentos de sentido. Em suma, pode haver versões
isso estivesse realizado, é que outras formas de consideração ou de versões de sentido. Isso é importante do ponto de vista
raciocínio se faziam úteis no acompanhamento reflexivo da expe- da pesquisa. No fundo o método qualitativo de pesquisa
riência. consiste em re-escrever sucessivamente a mesma coisa (ou
Em um outro grupo posterior, tratando-se de uma experiência fazer sucessivas leituras) até que se chegue a uma depu-
didática (desta vez na PUCCAMP, em 1995), constatamos que aquilo ração do significado que se procura. E quando é o próprio
que para o autor da VS podia inicialmente parecer sem sentido se lido sujeito que faz isso (sozinho ou em interlocução), não seria
para terceiros, para os outros que ouviam de fato transmitia muito de estranhar que se acrescentassem eventualmente signifi-
exatamente a qualidade do vivido, mesmo que não houvesse ali infor- cados novos ao mesmo vivido.
mações sobre o empírico do que tinha acontecido. Isso aconteceu 5. Mas poderia ser uma VS re-escrita por outra pessoa? Pode-
ríamos talvez dizer que a transcrição feita por um pesqui-
mais ou menos assim. Numa sala de aula do curso de pós-graduação
sador seria tão mais apropriada quanto mais ele tivesse
em psicologia clínica, alguns alunos estavam trabalhando com
participado da re-criação do sentido através de um grupo
versões de sentido para acompanhar experiências semanais de aten-
de interlocução, na medida do possível com a presença do
dimento clínico, educativo ou de assessoria a grupos. Havíamos feito autor. Permanece válido, no entanto, que re-escrever (ou
um rápido "treino" para escrever VSs no começo do curso. Quando transcrever) é fazer uma outra versão do mesmo sentido, a
um determinado aluno foi ler sua VS pela primeira vez, ele hesitava partir do atual ponto de vista de quem o faz.
muito, e, com muitas explicações, dizia que não via sentido em ler 6. O trabalho com VSs em grupo (ou numa dupla) pode ser
aquilo para outras pessoas. Por fim foi pedido que ele a lesse assim equivalente a uma supervisão. Isso também foi constatado
mesmo, e, sem comentários, ouvisse o que os colegas tinham a dizer por membros do grupo de trabalho com VS, e que, por
acerca do que tinham ouvido. Ao final dessas falas dos colegas, o outro lado, estavam em supervisão com outra pessoa. O
78 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR LIMA PsiCOLOGIA HutdANA 79

que se dizia é que a discussão no grupo estava sendo mais caso de um processo terapêutico, será principalmente o
significativa do que aquela que a pessoa tinha em sua significado que o encontro teve para o cliente que irá definir
supervisão. F oi por causa disso também que muitos colegas seu sentido. Ora, o terapeuta como tal é uma pessoa voltada
passaram a usar a VS como método de supervisão, e para isso, e é nesse papel que ele faz suas versões de
alguns chegaram a levar trabalhos em congressos sobre sentido. Elas podem ser, portanto, aqui de particular
essa experiência. relevância.
7. Posteriormente a esse grupo, que durou aproximadamente Mais pesquisa seria aqui necessária, envolvendo compara-
um ano, o trabalho prosseguiu de outras formas. Uma das tivamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de todos os
formas mais significativas foi o trabalho com seqüências participantes do grupo), sem dúvida. No entanto eu ousaria
inteiras. A conclusão foi que, a partir da análise de séries dizer, teoricamente, que a natureza das coisas aqui em jogo
de VSs, referentes a um mesmo processo, é possível des- é tal que as VSs de um participante apenas podem nos dar
crever, de um ponto de vista mais fenomenológico, esse um razoável acesso ao sentido do processo como um todo,
mesmo processo. As versões de sentido, sessão por sessão, desde que sejam lidas sob esse ponto de vista. Preciso
olhadas em conjunto depois de terminado o processo, acrescentar aqui que, atualmente, já existem pesquisas
possibilitam uma visão mais condensada do todo, e ao envolvendo VSs de clientes ou participantes de grupo, por
mesmo tempo rica em detalhes experienciais (embora não exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, 2000;
em detalhes fatuais). Um trabalho nesse sentido já foi Macêdo, 2000.
publicado (ver cap. VII), e outros estão em andamento. 8. Há uma outra conclusão a que pudemos chegar, no entanto,
Uma questão importante que aqui se coloca é de se saber que toma relativas todas as anteriores. É que a VS é uma
se é possível descrever um processo do qual participaram coisa que se vai aprendendo a fazer, assim como se
pelo menos duas pessoas, a partir das VSs de apenas uma aprende a chegar a uma fala autêntica a partir de um hábito
delas. anterior de falas inautênticas, mecanizadas, e só indi-
Se entendemos por processo a seqüência de fatos ocorridos, retamente expressivas. Não basta uma simples instrução
objetivamente considerados, e envolvendo todas as para que a pessoa esteja pronta para escrever uma VS. É
pessoas em relação, então certamente que a descrição feita comum que ela comece fazendo relatos de observação
a partir de VSs seria muito parcial. Mas se processo se neutra, ou mesmo elaborações lógicas a respeito do
referir não a fatos objetivos, e sim à seqüência de signi- ocorrido. E só pouco a pouco que a VS vai se aproximando
ficados vividos de encontro para encontro, e se esses signi- de uma fala expressiva da experiência imediata.
ficados forem entendidos como sendo do encontro, e não de Nossa história com esse instrumento pode nos dizer algu-
cada participante em separado, então podemos hipotetizar mas coisas aqui. Uma primeira é que justamente ir apren-
que a série de VSs nos dê acesso ao desenho do processo. dendo a fazer VSs é ir aprendendo a lidar de forma viva
Cada VS será aqui realmente apenas uma "versão" do com o significado das coisas e, conseqüentemente, ir
sentido do encontro, e é enquanto tal que ela deve ser anali- aprendendo a relação psicológica. Isso parece importante
sada. no aspecto pedagógico da formação.
É claro que significado ou sentido do encontro é um concei- Em segundo lugar, se deve dizer que a VS não é tão variável
to de dificil apreensão. O que é isso na prática? No entanto é em seu valor expressivo quanto o seria a fala direta na
ele que mais interessa na avaliação de um processo: o que presença do cliente. O recuo no qual ela é feita (sob o clima
cada encontro possibilitou em relação a um movimento de do encontro, mas sem a presença do interlocutor) permite
conjunto, e como esses elos se articulam na cadeia. E no mais facilmente seu caráter expressivo. Além disso ela é
80 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR UMA PsicOLOGIA HuMANA Sl

passível de "correções" no grupo de acompanhamento uma técnica de supervisão, a Interpersonal Process Recall (IPR),
reflexivo (supervisão). surgida na década de 1970. Segundo um comentário de Bernard &
E finalmente, é importante dizer que uma boa análise de Gooyear, em seu livro sobre a supervisão (1992, p. 26), embora o
qualquer documento deve levar em conta as características método pareça comportamental, ele tem também um aspecto
de seu valor heurístico. fenomenológico, pois assume que as próprias pessoas são os
melhores intérpretes de suas experiências. Eles dizem também que
paradoxalmente tal técnica permitia um acesso mais livre ao vivido
PRÉ-HISTÓRIA E OUTRAS ABORDAGENS do que o da própria sessão, pois diante do vídeo o terapeuta permitia
mais facilmente que os insights emergissem de dentro de si mesmo.
Rogers, em 1951, em seu "Psicoterapia Centrada no Cliente", Ele fala de uma re-experienciação da sessão diante do vídeo. E o
utilizou-se também de relatos livres do próprio cliente para ilustrar resultado presumível, podemos deduzir, é que os comentários assim
o processo. Segundo ele, foi espontaneamente que uma determinada feitos após a sessão, com o distanciamento do contato imediato,
cliente escreveu após cada sessão. No fim do processo de 8 sessões o mencionavam sentimentos ou lembranças vividas lá, mas não verbali-
terapeuta recebeu todos esses escritos que serviram, então, para mos- zadas, e que, portanto, não apareciam na gravação.
trar como as coisas se passaram "aos olhos do cliente". Eis como ele O mesmo pode ser constatado com o uso de questionários
apresenta os manuscritos: aplicados a clientes e terapeutas logo após a sessão. As perguntas
Depois desta primeira entrevista, ela (a cliente) escreveu, de mencionadas em estudos como os de Heppner, Rosemberg &
forma bastante completa, suas impressões, e mostrou o relato ao Hedgespeth (1992) ou deStiles, Reynolds, Hardy, Rees, Barkham &
conselheiro antes do segundo encontro. O conselheiro a incentivou a Shapiro (1994) e que já constituem instrumentos padronizados visam
continuar realizando esses informes pessoais depois de cada
colher dos clientes ou dos terapeutas, imediatamente após a sessão e
entrevista, para incrementar nosso conhecimento da terapia. Disse a
ela que quanto mais sincero fosse o informe, implicando afirmações já não na presença um do outro, seus sentimentos, P,ensamentos ou
positivas ou negativas, mais valioso seria o registro. Não se voltou a avaliações acerca do encontro recém-terminado. E claro que as
mencionar o informe nas entrevistas seguintes, e o conselheiro só os respostas continham dados muitas vezes diferentes dos que apa-
recebeu ao final dos contatos terapêuticos. O relato é extensamente reciam nas gravações.
auto-explicativo, mesmo que a autora o interrompa por momentos A VS segue esse mesmo espírito, só que ela é feita de forma
com comentários (ROGERS, 1972-1951, pp. 88-89).
mais livre, não padronizada, e a partir daquilo que a própria pessoa
considera importante.
A cliente fez algo que se aproxima um pouco de nossas VSs, e
que foi utilizado depois num estudo de caráter eminentemente quali-
tativo. Algumas expressões chamam a atenção: informes pessoais,
sinceros, para incrementar nosso conhecimento. TENTATIVA DE DEFINIÇÃO
Infelizmente essas sessões não foram gravadas para que se Como produção, uma VS é a fala, o mais autêntica possível,
pudesse comparar os informes escritos com as gravações, e eviden- que toma como referência intencional um encontro vivido, pronun-
ciar assim não só o que a gravação tem a mais, mas também o que os ciada logo após sua ocorrência. Fala autêntica: é importante que seja
informes têm a mais, e que não poderia nunca ser gravado. uma fala expressiva da experiência imediata, fala primeira, original,
Bastante cedo também nos Estados Unidos o videotape foi uti- espontânea, e não necessariamente um raciocínio, teorização,
lizado como instrumento e técnica a serviço da terapia. Um dos usos cumprimento de instruções ou relatório. Referência intencional: esta
consistiu em recapitular a sessão, com sua ajuda, junto com o tera- fala é expressiva da experiência imediata, face a um encontro. A
peuta ou o cliente, permitindo novos insights sobre a relação. Isso era situação: uma relação interpessoal, uma aula assistida, um grupo, ou
82 MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR UMA PstcoLoGtA HuMANA 83

mesmo qualquer encontro com um objeto significativo. Esta fala é por exemplo), a presentificação esperada é aquela que toma o sujeito
pronunciada logo após a ocorrência do encontro, e tendo-o como mais bem preparado e disponível para o próximo encontro. Se se trata
referência. A situação interlocucional que define o encontro já não é de pesquisa, a presentificação esperada é aquela que atende, em
exatamente a mesma; o sujeito não está pressionado pela necessidade linguagem científica, a um objetivo ou intenção de conhecimento
da resposta, e nesse sentido está mais livre para um acesso à sua (ainda que esse objetivo faça parte de uma ação).
experiência imediata.
Como produto, a VS será um texto expressivo da experiência
imediata, escrito ou gravado por iniciativa da própria pessoa, ou PARA UMA FUNOAMENT AÇÃO TEÓRICA
solicitado por um interlocutor. A rigor poderia ser qualquer tipo de
Podemos buscar uma justificativa teórica para a versão de
produção simbólica.
sentido em uma fenomenologia da linguagem inspirada em Martin
Como poderíamos solicitar uma VS de um cliente, de um
Buber e Maurice Merleau-Ponty. Em dois artigos reuni alguns
supervisionando, de um auxiliar de pesquisa, ou de um participante
elementos que preparam essa tarefa (AMATUZZI, 1991 e 1992).
de grupo? Uma possível maneira simples seria pedir a ele que "logo Mas agora quero sugerir em que direções podemos desenvolver essa
após a atividade em questão, escreva, o mais espontânea e since- fundamentação.
ramente possível, baseando-se em seus próprios sentimentos neste Para além dos elementos simbólicos do discurso, a fala, como
momento, o que lhe parece ter sido o essencial deste encontro que ato, é um símbolo. Quer isso dizer que não apenas ela contém elemen-
acabou de acontecer". Ou: "escreva livremente acerca do acabou de tos que, advertida ou inadvertidamente, remetem a outras coisas
acontecer"; ou ainda: "escreva como você está, face a esse encontro (elementos simbólicos), mas que em si mesma ela "reúne", põe
que termina". É importante que o próprio autor experiencie a signifi- junto uma série de coisas que antes estavam separadas, e o faz
cância do que ele está escrevendo ou falando. Qualquer tentativa de intencionalmente (símbolo). Quanto mais a fala se cumpre como
"instrução" deve ser apenas o começo de um processo em direção a símbolo, menos importantes serão seus elementos simbólicos. Quanto
um texto ou depoimento cada vez mais expressivo da experiência mais ela exerce sua função simbólica, menos aparecem elementos
imediata face ao encontro, e que seja ao mesmo tempo significativo simbólicos inadvertidos.
para quem escreve. A afirmação, como ato, reúne sujeito e predicado, permitindo
A um texto assim produzido, nós o denominamos uma "versão um conhecimento maior. A designação reúne sujeito e objeto num
de sentido" porque ele pode ser um indicador indireto (mas o mais mesmo mundo de significados; sem ela o objeto permaneceria total-
direto que podemos dispor) do sentido do encontro. Ele é uma versão mente estranho e não integrado ao mundo de significados do sujeito.
do sentido do encontro, tal como ele existe no presente da experiência O anúncio reúne o ouvinte e o arauto com aquilo que é anunciado, e
dessa pessoa. E é quando utilizada dessa forma que uma VS pode ser que se faz, só então, intencionalmente presente aos dois. Um pedido
um instrumento útil em pesquisa e formação. reúne a pessoa a quem ele se dirige com uma carência solicitante do
sujeito, antes ignorada. Mas há outras coisas que são postas juntas ao
Podemos então falar de versões de sentido como método.
mesmo tempo nesses atos todos. No pedido, por exemplo, a carência
Consiste essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até
do sujeito podia até não ser ignorada, mas a outra pessoa aguardava
que se chegue a uma presentificação dele suficiente em relação ao
que a primeira o manifestasse para que elas duas se reunissem num
que é esperado daquela atividade. Versar e conversar: fazer versões vínculo de provimento ou subordinação. O próprio pronunciamento
de sentido, e "con-versar" a partir delas fazendo novas versões. do pedido para quem o faz implica o reconhecimento de uma carência
Presentificação: palavra de estilo buberiano, que quer dizer, aqui, e de uma necessidade do outro, ou seja, implica a decisão que assim
explicitar experiencialmente os significados, isto é, não apenas dizê- seja. Isto é, é um ato que reúne no sujeito uma série de coisas em seu
los conceitualmente, mas tomá-los presentes vivencialmente. Se se mundo interior. E assim por diante. Em vários níveis a fala reúne, e
trata do acompanhamento crítico de uma experiência (supervisão, poderíamos dizer que ela põe junto esses níveis também. É por isso,
84 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 85

aliás, que ela leva adiante a experiência, desdobrando significados. É interessante notar que se não for autêntica, isto é, se não estiver
isso também que significa estar em processo. exercendo plenamente sua função simbólica como ato de fala, então
Pensando em nosso problema que é a fundamentação da ela o fará indiretamente pelos elementos simbólicos nela contidos
versão de sentido, podemos dizer que a fala, como ato, põe junto, inadvertidamente. É o que acontece, por exemplo, quando, através de
reúne, coisas em 3 níveis. uma fala, estou tomando posição em uma situação atual, mas sem
Em primeiro lugar e basicamente, ela põe junto pessoas. A fala permitir que tudo que nisso está implicado se faça presente (se reúna).
permite o reconhecimento das pessoas em relação a um projeto. Meus modelos de relacionamento aprendidos em outras relações, por
Quando falo e sou ouvido, minha fala me dá a conhecer naquelas exemplo, tendem a se fazer presentes nesta. Mas se não me dou conta
intenções que constituem meu existir nesse momento: e isso é disso (isto é, se isso não é significado de alguma forma por mim),
compartilhado em uma relação. Ao mesmo tempo, pois, que reúne minha tomada de posição perde em autonomia, e os relacionamentos
pessoas no reconhecimento da identidade, revela essa própria anteriores tendem a se fazer presentes inadvertidamente através de
identidade no âmbito da interlocução (às vezes até para o próprio elementos simbólicos da fala (no mais das vezes somente decifráveis
falante sua fala tem essa função reveladora, isto é, reunidora de níveis por peritos).
diferentes de identidade). Uma VS "traz" para o novo contexto de interlocução (o aqui) o
No caso de uma VS, enquanto potencialmente ouvida por vivido anterior (no lá). E não é raro vermos uma verdadeira reedição
outras pessoas (ou pelo menos pelo seu próprio autor), ela o dá a das mesmas relações vividas lá, entre essas pessoas aqui.
conhecer, em maior ou menor profundidade, tomando disponível seu Em suma, o poder da VS se fundamenta no poder da fala.
existir em relação ao projeto envolvido pelo encontro. No caso de um Quanto mais autêntica ela for, tanto mais poder direto ela terá (isto é,
terapeuta, ela ajuda a tomá-lo mais disponível para o próximo aquele que decorre de sua função simbólica como ato), e menos poder
encontro na medida em que foi ouvida por alguém (e compreendida), indireto (isto é, aquele que decorre de seus elementos simbólicos
ou ao menos pronunciada conscientemente por seu autor. Em super- inadvertidos).
visão, pois, a VS "traz" seu autor, traz seu projeto, dá-o a conhecer
nesse novo contexto de interlocução. E esta é justamente uma das
finalidades da supervisão. Interessante lembrar que o distanciamento
PRINCÍPIOS GERAIS PARA O USO DA
calculado no qual é feita a VS facilita o aparecimento de aspectos até
então mais ou menos escondidos do projeto. VERSÃO DE SENTIDO
Em segundo lugar a palavra também põe junto passado, O que resulta disso tudo para a análise de VSs para fins de
presente e futuro. Ela toma atual o projeto a partir de suas raízes no pesquisa?
passado, e lançando-o em direção ao futuro. Ela cumpre uma atuali- O contexto ideal para sua "interpretação" (compreensão do
zação, e tanto mais quanto mais compromete o falante. Daí porque sentido que ela transporta) é o de uma interlocução onde ela e seu
uma VS precisa ser escrita como fala autêntica, que compromete o autor se fazem presentes. É nessa nova interlocução que se reedita ?
falante como numa tomada de posição. Quando fazemos uma VS sentido, mesmo quando implicando novas falas mais explícitas. E
trazemos para o presente um vivido, atribuímos-lhe significado isso que acontece em supervisão, e é isso que pode também acontecer
transformando-o de certa forma, e por isso disponibilizando nossa em pesquisa. É preciso que se aceite entretanto a figura do "parceiro"
pessoa em relação ao futuro. Como texto lido pelo autor, ela tem o de pesquisa. Nesse novo contexto se "versa e conversa", tendo a
poder de resgatar o todo do vivido, trazendo-o para a possibilidade de mesma referência intencional, até se chegar à explicitação preten-
uma nova re-experienciação. E esse poder será tanto maior quanto dida.
mais apropriado e facilitador for o contexto dialógico dessa re-atuali- Um outro ponto importante é que a VS pode ser "lida" em dois
zação. níveis. Ela transmite primeiro a vivência de seu autor. Mas num
Também em termos de espaço a fala autêntica reúne. Quanto segundo nível, ela transmite o sentido da relação vivenciada pela
mais genuína, mais ela porá junto intencionalmente o lá e o aqui. E é pessoa. É nesse segundo nível que ela merece, mais apropriada-
86 MAURO MARTINS AMATUZZI

mente, o nome de "versão": ela será uma versão do sentido da


relação, ou seja, a versão desta pessoa. A leitura que se faz depende
CAPÍTULO Vll
do nível em que o pesquisador se coloca, o que por sua vez depende
do objetivo da pesquisa.
Se nos colocarmos na perspectiva de Buber (1982-1953), o
"sentido" de uma relação não se encontra propriamente em nenhum
dos participantes. Em cada um, segundo ele, existe apenas o
"acompanhamento secreto da própria conversação", que é seu ETAPAS DO PROCESSO
aspecto subjetivo ou psicológico. O sentido de uma relação
"encontra-se somente neste encarnado jogo entre os dois, neste seu TERAPÊUTICO
Entre" (p. 139). De nosso ponto de vista, isso aponta para o fato de
que o sentido deve ser buscado numa leitura do segundo tipo acima
citado, e ela mesma inserida num contexto relaciona!.
Finalmente, quando se busca o sentido de processos, deve-se
trabalhar com séries de VSs. Elas permitem um olhar de síntese muito
Por quais etapas passa o indivíduo que, estando plenamente
mais imediato e rápido do que o que se poderia obter a partir de envolvido numa relação terapêutica, se propõe a explorar sua
gravações. experiência visando superar alguma situação pessoal vivida como
E o que resulta disso tudo para o uso de VSs na formação e na problemática? É possível descrever essas etapas a partir de Versões
iniciação científica? de Sentido das sessões escritas pelo terapeuta? Para responder a
É convicção minha que, apesar de as explicações serem aqui essas questões examinaremos, neste capítulo 3, seqüências de
dificeis (porque se referem a algo não convencional em pesquisa), se Versões de Sentido. Para isso retomo um texto que foi originalmente
se quer iniciar alguém a uma abordagem do sentido, é preciso publicado na Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, da Universidade
começar fazendo exatamente isso, e não outra coisa. É preciso que a de Brasília, em 1993, 9(1 ), pp. 1-21, com o título "Etapas do processo
terapêutico: um estudo exploratório". Fiz apenas pequenas modifi-
atividade de iniciação seja de mesma natureza que a pretendida, e não
cações nesse texto para adaptá-lo a esta publicação.
diferente. O que pode diferir aqui, para uma iniciação, seria o caráter
de menor risco, digamos assim, da atividade pedagógica. Ora, é
exatamente isso que as VSs como método possibilitam. Antes de se
atender um cliente, por exemplo, pode-se iniciar fazendo versões de
sentido da própria situação grupal de formação: e já estaremos
lidando com algo da mesma natureza do que aquilo que irá acontecer A PROBLEMÁTICA
no atendimento. E a conversa que ocorre depois nas sessões de
acompanhamento equivale a um "treinamento" de lida com significa- Este estudo se desenvolveu no interior de um grupo de tera-
dos. Coisa análoga se pode dizer a propósito da iniciação científica, peutas que toda semana se reunia para refletir sobre seus atendi-
quando se trata de pesquisa qualitativa ou fenomenológica. Em nossa mentos. A sistemática dessa reflexão era tomarmos como ponto de
experiência pudemos perceber a fecundidade do uso de VSs para uma partida breves relatos sintéticos da experiência imediata do terapeuta,
abordagem do sentido, tanto na formação como na pesquisa. escritos imediatamente após o atendimento. A esses relatos demos o
nome de Versões de Sentido (VS). A expectativa era que o esforço de
fazer VSs nos colocaria, a cada um, mais próximos do movimento
que constituía o processo terapêutico com aquele cliente em parti-
cular e, ao mesmo tempo, nos ajudaria a estarmos mais disponíveis a
ele no próximo encontro. Esta era a dimensão de "formação" que esse
88 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UJ'v\A PsiCOLOGIA HuMANA 89

grupo tinha. Havia, no entanto, ainda uma outra expectativa. O que Em outras palavras: existe alguma regularidade na forma
essas VSs poderiam revelar do processo se analisássemos séries mais como ocorrem as mudanças terapêuticas? Para fazer isso Rogers
ou menos longas delas? Foi com uma pergunta como essa que nos deixa de lado dois caminhos e opta por um terceiro. O primeiro
propusemos a trabalhar quando pudemos dispor de três seqüências de caminho corresponde à orientação em vigor nas pesquisas até então:
VSs praticamente completas, e que abrangiam, cada uma, um "saber alguma coisa sobre esse processo pelo estudo dos resul-
processo de atendimento desde o começo até o fim. tados" (idem, p.l09). Foram medidos não apenas resultados finais,
As possibilidades de análise de um material como esse são, mas intermediários. No entanto, face aos propósitos de Rogers, isso
sem dúvida, maiores que as que desejamos aqui apresentar. Nossa levava apenas a cortes fotográficos que não descreviam o movi-
mento.
análise naquele momento, contudo, restringiu-se a um aspecto
apenas: podiam as VSs nos mostrar um "desenho" do processo, do Mesmo esta última técnica (medidas intermediárias)
começo ao fim, em termos de etapas ou fases vividas pelo cliente na forneceu-nos poucas indicações quanto ao processo em si mesmo.
Estudos sobre resultados segmentados são ainda medidas de
relação com o terapeuta? A resposta a que chegamos foi positiva. E o
resultados e. por conseguinte. fornecem poucas indicações sobre a
que nos propomos agora aqui é refazer esse caminho com a preo- maneira como se opera a transformação (Idem, p.1 09).
cupação de determinar, o mais exatamente possível, o seu alcance.
Há já quase 40 anos Rogers (1958), num trabalho pioneiro, se É a maneira como se opera a transformação que também está
dedicou a descrever as etapas do processo terapêutico. O cap.5 de seu nos preocupando aqui.
Tornar-se Pessoa, publicado originalmente em 1961, traz o primeiro O segundo caminho é o da "formulação teórica", "acompa-
texto desse seu trabalho, que foi feito entre 1956 e 1957. Eis como ele o nhada, quando possível, de observação clínica" (idem, p.l09). E
apresenta: Rogers considera que certamente isso é possível, a partir mesmo de
Se nos capítulos precedentes o processo terapêutico é enca-
vários quadros de referência teóricos. No entanto não é isso que mais
rado de um ponto de vista quase exclusivamente fenomenológico, a interessa quando se trata de um "campo de investigação novo"
partir do quadro de referência do paciente, este capítulo procura (idem, p.ll 0).
captar aquelas qualidades de expressão que podem ser observadas Considera ele que, como abordagem primeira em um novo
por outra pessoa e situa-se, portanto, num quadro de referência domínio, o importante é que
externa (ROGERS. 1961, p.1 07).
nos fixemos nos acontecimentos. que nos aproximemos dos
fenômenos com o mínimo de preconceitos possível, que assumamos
Trata-se portanto de analisar o processo terapêutico vivido a atitude observadora e descritiva do naturalista, recorrendo a
pelo cliente na relação com o terapeuta, mas não tanto do ponto de inferências pouco diferenciadas (low-level inferences) que parecem
vista das percepções dele mesmo (o que Rogers chama aqui de mais conaturais ao material estudado (idem, p. 11 0).
perspectiva fenomenológica), mas sim a partir de uma análise que É interessante como isso se aproxima do que, numa linguagem
outra pessoa possa fazer. No entanto o que ele pretende estudar é o diferente da de Rogers, vem a se chamar de pesquisa fenomeno-
processo em si mesmo, o "processo através do qual a personalidade lógica: aproximar-se dos fenômenos descritivamente, sem idéias
se altera" (ROGERS, 1961, p.l08). Diz ele também: preconcebidas, com generalizações as mais próximas possíveis dos
Da mesma maneira que muitos psicólogos se interessaram dados. Interessante também o comentário com o qual Rogers
pelos aspectos constantes da personalidade (... ) também eu me caracteriza o seu método:
interessei, desde muito tempo, pelas constantes que intervêm na
empreguei o método que muitos de nós utilizamos para levantar
modificação da personalidade.( ... ) qual é o processo em que essas
hipóteses, um método que os psicólogos de nosso país parecem
modificações ocorrem? (ROGERS. 1961, p.1 08).
relutantes a expor ou a comentar. Usei-me como instrumento (idem.
p. 110).
90 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 91

Tanto Mucchielli (1991) como Chizzotti (1991), por exemplo, O próprio Rogers trabalhou logo depois em uma escala
consideram que esse usar-se como instrumento pode ser caracte- (W ALKER; RABLEN e ROGERS, 1960), e esta foi a matriz de
rística da pesquisa qualitativa. Mas Rogers considerava que isso só o muitas outras (ver, por exemplo, nos apêndices do livro de ROGERS,
levaria a levantar hipóteses úteis. 1967). Marziali & Alexander (1991) fazem uma interessante revisão
Rogers trabalhou a partir de gravações de sessões terapêuticas, bibliográfica da última década a respeito dos estudos sobre os
seguindo determinados passos. Em primeiro lugar ouviu, repetida e componentes da relação terapêutica, sua definição e mensuração.
pacientemente, as gravações, procurando ingenuamente (sem crivos Segundo essa revisão os estudos se centram em medidas da qualidade
de análise) apreender o que fosse relevante para uma compreensão do da relação terapeuta-cliente em diversos momentos do processo, e
seu assunto. Algumas categorias emergentes eram extraídas dos fatos sua relação com os resultados da terapia. Existe, sem dúvida, a
mais simples. Em seguida ele "formulava essas observações e preocupação da eficácia, uma vez que se pretende prever, o mais
essas abstrações elementares (low-level abstrations) de modo a precocemente possível, o resultado da terapia a partir da avaliação da
poder-se destacar imediatamente hipóteses verificáveis" (idem, relação terapeuta-cliente conseguida nas primeiras sessões, e com
p. 111). isso evitar tratamentos que tenham poucas chances de sucesso. A
Há dois comentários importantes a serem feitos aqui quanto à idéia de se fazer uma descrição fenomenológica das etapas do pro-
metodologia e seu alcance. O primeiro diz respeito ao uso do grava- cesso, contudo, um "desenho" de seu movimento para se saber como
dor como forma de registro. Está fora de dúvida que as metodologias ocorre a mudança, como era a intuição original daqueles primeiros
qualitativas tiveram um grande impulso a partir dessas formas de estudos de Rogers, foi praticamente abandonada. A intenção de se
registro, como comentam, por exemplo, Brioschi & Trigo: aproximar dos acontecimentos para entender o processo, e assim
... paradoxalmente, pode-se afirmar que o desenvolvimento tecnoló-
contribuir para a formação e aperfeiçoamento de terapeutas acabou
gico favoreceu a efervescência dos métodos qualitativos, na medida se perdendo. Este nosso estudo busca resgatar exatamente esta
em que o uso do gravador substituiu apontamentos manuscritos no intenção.
campo ou mesmo memorizados, de forma, muitas vezes, imperfeita
ou incompleta (BRIOCHI e TRIGO, 1987, p. 631).

Por outro lado, entretanto, o gravador possibilita um 0 MATERIAL


distanciamento entre o pesquisador e o pesquisado que pode amea- O que chamamos de "Versão de Sentido" (VS) é um relato
çar algumas das características da pesquisa qualitativa, particular- breve, escrito pelo terapeuta, imediatamente após o término de cada
mente o envolvimento do pesquisador e a validação em situação sessão. A intenção não é substituir por um relato de memória o que
(sobre esses conceitos ver MUCCHIELLI, 1991, pp. 20-21). O poderia ter sido gravado. Não se trata de um registro de fatos, mas da
pesquisador, apoiando-se no fato de que está gravando tudo, pode experiência presente do terapeuta, ainda no clima emocional da
deixar de ser ativo na exploração da experiência e no fazer surgir os sessão: o que ele apreende como sendo o sentido daquele encontro.
dados relevantes. Heppner, Rosenberg e Hedgespeth (1992) trabalharam com
O outro comentário conceme ao fato de que Rogers polarizou questionários aplicados imediatamente após cada sessão, para captar
seu trabalho pela formulação de hipóteses verificáveis. Com isso o pensamentos e interpretações de clientes e terapeutas a respeito da
valor de sua descrição do processo terapêutico, em si mesma sessão recém-terminada. Nossa VS é escrita somente pelo terapeuta
considerada, ficou mais ou menos perdido, e a pesquisa se orientou (se bem que já existam estudos baseados em VSs escritas pelos
para a construção de escalas que possibilitassem medir o estágio de terapeutas e pelos clientes), e não em resposta a algum questionário.
algum processo num determinado momento. A preocupação deixou De fato tentamos usar perguntas guias (c f. AMA TUZZI e col., 1991 ),
de ser descritiva ou compreensiva, e passou a ser avaliativa. mas elas não se revelaram muito úteis para o que queríamos captar: o
92 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 93

sentido da sessão, tal como vivido pelo terapeuta na relação com seu mente a pessoa com suas inquietações, oferecendo a ela um
cliente. Naquele mesmo estudo anterior citado, o que se evidenciou, espaço dialógico desencadeante de seu próprio processo
como características desse sentido, foi o seguinte: interior. O terapeuta tinha experiência de 15 anos em
1. ele é tanto objetivo como subjetivo, uma vez que se trata da atendimentos desse tipo;
4. Duas das pessoas atendidas eram mulheres casadas, uma
experiência do terapeuta enquanto intencional;
com um filho pequeno, e outra com dois filhos maiores que
2. é ao mesmo tempo um sentido captado e um sentido produ-
já não moravam com os pais; e a outra pessoa era um
zido: só o percebo quando o produzo como participante da relação;
homem solteiro, de 25 anos aproximadamente, que morava
3. ele é uno e múltiplo, isto é, pode se desdobrar em outros
sentidos (em atos sucessivos de expressão), assim como pode não ser com os pais juntamente com outros irmãos;
5. O que havia de comum entre eles, na intenção de procura-
percebido no primeiro momento da VS, ou numa primeira VS; e
rem terapia, era um desejo de fazer uma revisão de vida em
4. ele só aparece quando o próprio ato de o expressar fizer, ele
também, sentido (cf. AMATUZZI e col., 1991, pp.I0-12). função de problemas de relacionamento, e de um senti-
mento difuso de insatisfação;
É dificil colocar tudo isso numa instrução normativa rígida que 6. Os três atendimentos foram considerados bem-sucedidos
produza sempre VSs homogêneas. A experiência mostrou que VS é no sentido de que as três pessoas, no final, consideraram ter
algo que se vai aprendendo a fazer assim como se vai aprendendo a conseguido o que procuravam. Isso não significava,
ser terapeuta. E é dificil dizer que se é terapeuta sempre da mesma evidentemente, que todos os seus problemas estivessem
forma com qualquer cliente e em qualquer sessão. De qualquer forma resolvidos, mas que algo se cumprira ali, e que agora eles
o ponto de partida foi o de escrevermos um relato livre do sentido do podiam parar o atendimento;
encontro, tal como vivido por nós, imediatamente após o término da 7. Esses três atendimentos foram escolhidos para esse estudo
sessão, e portanto ainda sob seu clima. pela única razão de terem sido os três primeiros que termi-
Qual o valor, então, de semelhantes relatos? São relatos naram depois que o terapeuta começou a fazer Versões de
expressivos da experiência de um terapeuta, escritos o mais proxima- Sentido de seus atendimentos.
mente possível do clima do encontro. São dados tipicamente qualita-
tivos, que não podem ser tratados por crivos ou tabelas. Não podem Chamaremos aqui de Z a uma das mulheres, aquela que tinha
ser trabalhados como respostas a um questionário padronizado. É filhos mais velhos. Ela foi atendida durante 9 meses; 31 encontros.
muito provável, entretanto, que eles tenham uma fecundidade muito Não temos todas as VSs; apenas 17. Há principalmente duas falhas.
grande em relação a nos mostrar o processo terapêutico em seu movi- Entre a 5a. sessão (Z5) e a 13a. (Z13), há 7 sessões sem VS, mas a de
mento, e exatamente por ser o que são. Até aqui só podemos concluir Z 13 dá uma idéia do que vinha acontecendo. Entre Z21 e Z26
também não há VSs. Depoimentos orais de memória do terapeuta
que as VSs têm estatuto de "documento", mas não sabemos o que
pode ser tirado delas, nem como. mostram que um mesmo clima atravessa essas sessões. Também da
Outras informações sobre essas VSs que foram aqui analisadas la. sessão e da última não há VS escrita imediatamente após, mas
são as seguintes: apenas relatos orais posteriores do terapeuta.
Chamaremos de S à outra mulher, aquela que tinha um filho
1. Trata-se de seqüências de VSs do atendimento de 3 pes- pequeno. Ela foi atendida durante 7 meses, em alguns períodos com 2
soas pelo mesmo terapeuta; sessões por semana. Houve 43 atendimentos, dos quais dispomos de
2. Foram atendimentos semanais, em geral, e em alguns 34 VSs. Como no caso anterior há algumas falhas, mas, seja por
períodos mais críticos, duas vezes por semana; dados internos das próprias VSs existentes, seja por complemen-
3. O tipo de atendimento oferecido foi verbal, face a face, e o tações orais, existe a possibilidade de se reconstruir o movimento da
trabalho do terapeuta consistiu em receber compreensiva- seqüência.
94 MAURO MARTINS AMA TUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA Hu~\ANA 95

E chamaremos de L ao moço; um professor que foi atendido S 1 - ( ... ) Ela quer fazer um balanço da vida num momento de
durante 1 ano e 3 meses, em geral também uma vez por semana (mas virada. Senti-me ativo.
em momentos mais críticos, 2 vezes). Neste caso a la. VS corres- S2 - Tomara que o diálogo prossiga significativo para ela.
ponde à 13a sessão, pois foi só a partir daí que o terapeuta escreveu Sinto que sou um interlocutor muito útil. Ela tem muito
VSs. Houve 42 encontros depois dos 12 iniciais (total: 54). Dos 42, que contar e eu vou reagindo( ... )
temos 34 VSs. Aqui as falhas depois da 12a sessão estão mais S4- Como ela tem engolido sapo! Sinto que ela está com uma
espalhadas. Contudo não há registro do começo do processo (as 12 vontade de rever tudo, como se tivesse vivido sempre
sessões anteriores a L 1). errado. É muito forte. Não quer se enganar dessa vez.
Devido a peculiaridades desses 3 atendimentos e desse estudo, Isso me toca muito. Será que deixou passar a felicidade
e também por razões éticas, as VSs não serão aqui transcritas inte- em outros momentos?( ... )
gralmente na forma original. Contudo é possível darmos alguns S23 - Achei que me falou de desespero. Algo muito forte. O
exemplos de cada um dos 3 atendimentos (cuidando para que os deta- problema não resolvido com ...
lhes não venham a ferir a confidencialidade do relato). O número S26 - Estava feliz por enfrentar um trabalho árduo que gosta,
após a letra indica a sessão. Eis as amostras de VS: embora não dê muito valor a esse tipo de coisa.
S38- Não sei o que foi importante. Foi um contar novidades
Z13- Achei importante ela poder contar, reviver( ... ) São lem- ( ... )Ela lida meio diferente (com situações diárias).
branças de que não gosta. Prefere não falar nem pensar. S43 -Final feliz. Sente-se forte inclusive para dizer não quando
Mas falou. Foram coisas horríveis. Tem muito medo( ... ). necessário. Milagres( ... )
Z 15 -Senti sono. Estava devagar, nada muito envolvente, mas
muito tranqüilo. Ela contou que não se revolta tanto Ll (13a.sess1Eo)- É quando a gente não fica encucandomuito
mats com ... que a vida pode prosseguir. Está mais autoconfiante,
Z17- Chorou pela primeira vez aqui. De tristeza( ... ). Uma vida alegre, solto, sem se impor decisões ou ficar numa
sem sentido, eu diria. Compreendi muito a dor dela ... atitude crítica( ... )
Z 18 - O medo de ficar louca, e o pedido de ajuda. Quer compreen- L2 - O que me tocou foi o desejo de compreender ( ... ) "por que
der o que se passa com ela. Muito nervosa, perdida( ... ) afinal, assim?" (... )
Z28- Estava muito bem( ... ) Me disse que resolveu deixar de L5 - Quer mesmo enfrentar seu problema afetivo( ... ) Como
lado aquelas coisas, e se sente melhor. Aceitação. ( ... ) está, não está bom. Falou mais abertamente do que antes
Enfim coisas boas( ... ) sobre suas inquietações ( ... )
Z30- Senti mudança em várias coisas. Maior aceitação de si, L23 - Só para lembrar: foi bom ele ter contado o sonho com
abertura para projetos( ... ) Ficamos de nos ver( dentro de todos aqueles pontos( ... ) e as associações que fez( ... ) O
dois meses). sentimento de invasão e a mistura de dois mundos( ... )
Uma mistura ruim para ele.
Z31- Segundo depoimento oral do terapeuta, posterior a essa
L33- Chorou porque se sente distante e com medo( ... ) Devo
sessão que foi a última, Z declara que não precisa mais
ser amigo?
do atendimento.
L34- Durante muito tempo alimentou um sonho que não pode
se realizar ( ... ) Parece um beco sem saída ( ... )
96 MAURO MARTINS AMA TUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 97

L41 -F oi uma conversa solta, espontânea, bem hum orada. Conti- seja, se poderíamos descrever um movimento parecido para Z, Se L;
nua ou não? Mas se sim, diferente. Bonita a franqueza e se esse movimento poderia ser caracterizado por etapas também
dele. Eu também me coloquei mais solto. nomeáveis. Buscávamos, então, agora, uma categorização mais ampla,
abrangente, e aplicável aos 3 relatos. Chegamos, então, num primeiro
L42 - Decidiu parar. Encucar menos e viver mais. Contou ...
momento, a conjuntos de VS ou VSs críticas identificáveis em cada
Desse ponto de vista a terapia foi um sucesso ( ... ) relato, e num segundo momento às etapas comuns aos 3 relatos.
Uma outra informação importante sobre esses relatos é que Vamos enumerar, a seguir, algumas características dessa
eles foram feitos ingenuamente em relação aos resultados da análise análise, importantes para sua apreciação.
posterior: o terapeuta não tinha a menor idéia do tipo de análise que 1. Ela não foi feita cumulativamente e sem retomo. O momento
poderia ser feita, e muito menos de seus eventuais resultados. A de categorizar as etapas mais abrangentes e comuns aos 3
intenção de cada relato foi mesmo a de escrever algo de significativo, relatos às vezes obrigava revisões na categorização dos
ainda dentro do clima da sessão. conjuntos próprios a cada seqüência. Quer isso dizer que os
Ao final dessa caracterização do material, devemos acres- dados foram forçados a caber nas categorias? Não necessa-
centar que, se ele pode ter o estatuto de documento, é também riamente. Podemos também pensar que as categorias mais
verdade que ele se apresenta de forma um tanto fragmentada. Isso abrangentes, uma vez esboçadas, esclareciam os conjuntos
inviabiliza totalmente sua utilização? Cremos que não, dependendo próprios a cada seqüência, permitindo que eles fossem mais
do tipo de análise que se queira fazer. bem expressos; e esse fato, por sua vez, ajudava a dar mais
precisão às etapas mais abrangentes. Trata-se, na verdade,
de uma interação dos níveis de categoria, com clarificações
mútuas. Mas isso quer dizer também que essas categorias
ÜS CAMINHOS DA ANÁLISE não são simplesmente rótulos, mas correspondem a depu-
Ao iniciarmos a análise desses relatos não sabíamos o que rações sucessivas que revelam a natureza do fenômeno:
poderíamos encontrar. Houve tentativas iniciais de se quantificar, equivalem a aproximações de essências fenomenais;
medindo os tamanhos das VSs por número de palavras e por número 2. O encontro das etapas não foi possível sem a formulação de
de palavras novas. Trabalhamos também com o tipo de construção algumas hipóteses, tais como: a) as etapas ou fases são divi-
de frase: quem fala, de que se fala, quem é o agente quando ele não é o didas em sub fases qualitativamente diferentes; b) essas
subfases não estão sempre presentes explicitamente em
sujeito gramatical, quando é usada a voz ativa ou a passiva, como se
termos de VS, seja porque não aconteceram na sessão, seja
distribuem os tempos dos verbos etc. Em tudo isso, entretanto, ficava
porque o terapeuta não registrou esse detalhe. De novo a
faltando o essencial: o referente, o tema vivencial do encontro, ou mesma questão pode se colocar: não seria isso forçar os
algo do gênero. Era esse referente que poderia dar sentido àquelas dados? Mas também a mesma resposta pode ser dada: isso
outras análises. Assim foi que nos perguntamos diretamente se não evidenciou uma estrutura que parece dar conta dos dados;
seria possível distinguirmos nos relatos etapas do processo, identi- 3. Essa análise foi de alguma forma acompanhada pelo grupo
ficarmos momentos de mudança ou de virada. Parecia possível. de trabalho, mas não houve o procedimento de submetê-la a
O procedimento consistiu, então, em dividir cada relato em juízes neutros e independentes. Entretanto, o que tais juízes
conjuntos de VSs que teriam uma unidade identificável na seqüência, poderiam fazer seria examinar a coerência interna da
e identificar pontos de mudança. Ao mesmo tempo que isso se fazia, análise, apenas. Se fossem chamados a refazer a análise a
procurávamos frases ou títulos descritivos dos conjuntos, e das partir de nada, poderiam, no máximo, chegar a resultados
sessões críticas. análogos ou não contraditórios. Isso corresponderia a uma
Uma vez esboçadas essas divisões e nomeações, procuramos espécie de confirmação externa. Esperamos que isso venha
saber se havia algo em comum ou comparável nas 3 seqüências, ou ·
98 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 99

a acontecer, a partir de outros relatos analisados por outros 6. Re-exame de concepções e experiências, enfocando
pesquisadores. Quanto ao exame da coerência interna este valores (Z19, Z20);
estudo contou apenas com o acompanhamento do grupo de 7. Solidão e tristeza no presente (Z21, Z26, Z27);
pesquisa. 8. Questionamento máximo (Z27);
Tudo isso, juntamente com as limitações dos documentos IV. 9. Mudança repentina; aceitação, planos de mudança,
acima referidas, nos leva a considerar que os resultados aqui apresen- mudança nas relações (Z28, Z30);
tados tenham o valor de hipóteses prováveis (ou de construções úteis V. 1O. C dizendo que não precisa mais desta terapia (Z31 ).
para a compreensão dos dados). Nesse sentido outros estudos preci-
sam ser feitos para trazer confirmações ou correções a este.
Uma última observação. Essa análise descreve momentos,
ATENDIMENTO DE 5
fases e subfases de quê? A resposta seria: do processo terapêutico. I. 1. T fala de si e da intenção geral de C, segundo ele vê
Não apenas o processo de uma pessoa independente, mas seu processo (S 1);
em relação com outra pessoa, que se propõe a acompanhá-la: o tera- 11. 2. Colocando coisas para fora e sendo compreendida;
peuta. De alguma forma esse processo envolve o terapeuta, e é por isso lembranças e seu significado (S2, S3, S4);
que seus relatos podem ser válidos. Os nomes das fases levaram em III. 3. Começa questionamento do presente (S5, S6, S7);
conta esse aspecto relaciona! do objeto do estudo. 4. O presente à luz do passado (S8, S9);
5. C volta-se para a relação (S 1O);
6. T desnorteado? (S12);
ÜS RESUL TAOOS 7. Questionamento do presente de forma mais concreta
(examinando possibilidades de decisões) (S21, S22);
Transcreveremos a seguir os agrupamentos que foram feitos
em cada relato. Esses agrupamentos (conjuntos de sessões ou sessões 8. O desespero (S23);
críticas) estão designados por números arábicos (1, 2, 3 etc.), segui- IV. 9. Mudança repentina; assuntos externos da semana; re-
dos de frases descritivas. Ao final de cada frase estão entre parênteses arranjos no cotidiano; aprendendo a ser diferente
as sessões que foram nele agrupadas (por exemplo: Z19, Z20, para o (S24, S25, S26, S27, S28, S29, S30, S31, S32);
agrupamento 6 deZ). Os algarismos romanos (1, 11, III etc.) corres- 10. Compartilhando coisas boas, assumindo novo modo
pondero às etapas que são semelhantes para os 3 relatos. Notemos de ser, mais seguro e flexível (S33, S34, S35, S36, S37,
que, como L 1 corresponde de fato à 13 a. sessão do atendimento de L, S38, S39);
essa seqüência de relatos já começa na etapa 11. T refere-se ao V. 11. Desligando-se (S40, S41, S42, S43).
terapeuta, e C ao cliente.

ATENDIMENTO DE Z ATENDIMENTO DE L
I. 1. Finalizando uma etapa, sentindo-se mais solto (L 1).
I. 1. T fala de si (Z2); 2. Aproximando-se da questão central (L2, L3, L4, L5,
11. 2. C diz coisas dificeis de dizer e ser compreendido, sobre
L6, L7, L8);
concepções efatos vividos (Z3, Z4, Z5,Z6,Z13 eZ14); 3. Sentindo-se mais aceito (L9, LlO, L11, L12, L13, L14);
3. Maior aceitação de si por parte do C (Z15); 4. Vendo melhor seu desejo e seus dilemas (L15, L16,
Ill. 4. C fala da situação presente como triste, de muito isola-
L17, Ll8, L23, L24, L25);
mento e falta de amor (Z 16, Z 17); II. 5. Questionando mais concretamente seu modo de ser
5. O medo da loucura (Z18);
social (L26, L27, L28, L29, L30, L31 );
100 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 101

6. O duro encontro com sua realidade social e sexual Essa crise culminante é seguida de uma mudança repentina e
(L34); aparentemente inexplicável. Constatamos nesses relatos que o tom
111. 7. Considerando mais concretamente possibilidades das VSs muda inteiramente. A IV etapa já retrata uma pessoa
novas e enfrentando dificuldades e impasses mudada, adaptando-se com seu novo modo de ser às atuais circuns-
(L35:mudança, L37, L39); tâncias da vida. É interessante também notar aqui que nem sempre
IV. 8. Socialmente mais solto, desejando parar a terapia esse novo modo de ser é explicitamente conhecido como novo ou
para continuar seu processo só (L41, L42). diferente do anterior. É como se tivesse havido uma aceitação, um
entrar em paz, em relação a algo que de alguma forma já estava
O que caracteriza a etapa I é a sondagem mútua de Te C; essa presente como possibilidade (n.9 de Z). Mas às vezes mudanças
etapa terminaria na decisão de iniciar ou não a terapia. Ambos devem surpreendentes são relatadas ("milagres" em S43).
tomar essa decisão. As VSs aqui mostraram mais como isso foi Finalmente ambos, C e T, vão se dando conta de que aquela
vivido pelo T (Z2 e S 1). relação pode terminar, porque cumpriu o que dela se podia esperar: é
Feito isso, começa um "colocar as coisas para fora" por parte a etapa V, do desligamento.
do C. Ele fala do que estava "entalado" nele, inicialmente de forma Sumariamos essas hipóteses descritivas através de denomina-
bem próxima ao motivo de sua vinda à terapia. Sendo recebido e ções das etapas e subetapas do processo, como mostramos a seguir.
compreendido, esse contar normalmente leva a uma aceitação maior
de si (n.3 de Z), que, por sua vez, pode levar a uma extensão e I. Tomando pé.
aprofundamento dessa exploração ou expressão de si (n.4 de L). Esta,
11. Dizendo coisas-difíceis-de-dizer-sendo-compreendido.
a etapa 11.
Nos relatos a etapa III começa com uma mudança no próprio • dizendo coisas dijiceis
gênero das VSs: não propriamente assuntos novos que aparecem, • aceitação de si
mas um modo diferente de abordar os assuntos. O que predomina • dizendo mais coisas dificeis
aqui é o questionamento (não m~is simplesmente um contar), e do • aceitação
presente (não mais do passado). E como se o cliente dissesse: Se as • (entrando no questionamento)
coisas são assim (etapa 11), como fico eu agora? (etapa III). O tom não
é mais de alívio, como na etapa 11, por poder contar e ser 111. Questionando o presente.
compreendido, mas de uma angústia crescente. Pode haver aqui • questionando o presente
nessa fase uma revisão de valores e padrões de comportamento • crise
(n.6 de Z), entremeadas com duras constatações da situação • questionamento mais profundo
presente (Z21, por exemplo). Esses encontros com o real duro, no • crise
presente, e no desamparo, nós os denominamos de crises. Pode • (opção, mudança)
ocorrer mais de uma, entremeadas com questionamentos vivos, mas
normal}llente haveria uma culminante no final dessa fase (Z27, S23, IV. Aprendendo a ser diferente.
L34). E interessante notar que o T de certa forma pode participar • formulando projetos e enfrentando dificuldades
dessas crises, ficando sem ver a saída (por exemplo S 12), por mais • compartilhando coisas boas
que esteja junto dando suporte. Suspeitamos também de que esses • (começando a se desligar)
momentos sejam decisivos no processo: são eles que mobilizam as
mudanças mais profundas a partir do próprio íntimo do C; mas ao V. Desligando-se.
mesmo tempo, podem levar a pessoa a não se aprofundar mais, caso
não se sinta acompanhada com segurança pelo terapeuta.
102 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsicOLOGIA Hut\IANA 103

O conjunto desse processo pode ser caracterizado com a 1. Recusa de comunicação; extrema rigidez de concepções;
expressão: relações interpessoais encaradas como perigosas; não
reconhecimento de problemas pessoais; não desejo de
Permitindo a crise mudança;
2. Expressão um pouco maior sobre coisas externas; os
problemas são captados como completamente ext.eriores ao
indivíduo;
0 ALCANCE DESSES RESUL T AOOS
3. Começam falas sobre si mesmo como objeto, ou no pas-
sado; aparecem sentimentos e significados mas não são
Acreditamos que a maneira mais prudente de classificar esses reconhecidos; descrição de sentimentos e significados que
resultados seria, como já o dissemos, considerá-los como hipóteses não estão presentes; reconhecimento de contradições;
prováveis, a serem confirmadas, corrigidas e mais bem delimitadas, 4. Começa um questionamento de concepções pessoais; des-
por estudos posteriores a partir de uma maior diversidade de casos, crição de sentimentos do presente mas como objetos; com
formas de atendimento, e terapeutas. O estudo aqui apresentado hesitação o cliente toma consciência de responsabilidade
permite dizer que não se trata de hipóteses quaisquer. Embora aguar- pessoal quanto aos problemas; há uma tendência a
dando maior confirmação por parte de colegas psicoterapeutas, estas experimentar sentimentos no presente, mas com medo e
foram retiradas de forma sistemática de uma observação. desconfiança;
Além disso é preciso lembrar também que elas decorrem do 5. Irrupção de sentimentos no presente, com espanto; maior
atendimento de um determinado tipo de pessoa (com queixas que liberdade na expressão de sentimentos; maior flexibilidade
envolvem problemas de relacionamento e um difuso sentimento de de concepções pessoais; desejo de viver os próprios
insatisfação com a vida), e de um determinado tipo de atendimento sentimentos, de ser o verdadeiro eu;
(que poderia ser caracterizado menos como intervenção do que como 6. Sentimentos antes bloqueados (portanto novos) aparecem
acompanhamento). Generalizações maiores e analogias podem ser no presente, são experienciados; o caráter mais imediato da
possíveis, mas têm que aguardar também outros estudos. experiência é vivido e aceito; desbloqueio da vivência dire-
ta e presente; descontração fisiológica; o eu como objeto
tende a desaparecer;
CONFIRMAÇÕES EXTERNAS 7. Grande abertura ao novo; sentimentos novos são usados
como referência; grande flexibilidade, comunicação inte-
Mostraremos a seguir alguns dos resultados de nossa busca de rior clara; eseülha de novas maneiras de ser.
confirmações externas, acompanhados de breve discussão. A fina-
lidade é sempre melhor contextualizar nossos resultados. Rogers descreveu essas 7 fases de acordo com 7 aspectos do
Vejamos, em primeiro lugar, o próprio estudo de Rogers de processo, facilmente distinguíveis nas primeiras fases, mas que
que falávamos no início. Ele descreve 7 fases do processo terapêu- tendem a se confundir quando nos aproximamos do final. O desenho
tico, tais como vividas pelo cliente. É preciso, entretanto, dizer que do processo é bastante complexo, e o que apresentamos aqui é apenas
essas fases normalmente não são todas percorridas pelos clientes, um resumo. Em nosso desenho há um crescendo até um ponto crítico
segundo Rogers. Os que avançam mais começam o processo já a ce1,1tral, e depois uma espécie de resolução, diferindo nisso do de
meio caminho, na 4a. etapa por exemplo. E os que começam na Rogers. Nossa 111 etapa, que é decisiva, seria descrita com elementos
primeira etapa muito dificilmente avançam no processo. Podemos que se encontram nas 43 , 53 , e 6a fases de Rogers. As diferenças de
resumi-las na forma como segue (cf. ROGERS, 1961, pp.114-136). enfoque poderiam suscitar estudos comparativos mutuamente enri-
quecedores. No entanto, como se pode observar mesmo por esse
l04 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UI\IA PsiCOLOGIA HuMANA lOS

resumo, a linha geral de evolução descrita por Rogers converge no que não deixa de ser uma situação ameaçadora, assim também o auto-
sentido de uma maior presentificação, nesse sentido confirmando a conhecimento aprofundado acaba suscitando uma resistência por
nossa. Em Rogers o processo tende para a vivência dos sentimentos causa de seus aspectos ameaçadores, como Freud explica muito bem
no presente, sentimentos novos, escolha de novas maneiras de ser, e em seus termos metapsicológicos. A luta contra a resistência não
em nossa descrição tende para o questionamento do presente, crise deixa de ter um paralelo com o delicado trabalho do terapeuta no
vivida, mudança e novas aprendizagens. Por outro lado, nossos 3 momento da crise e de sua gestação, na abordagem que estivemos
sujeitos parecem ter começado o processo na 3" ou mesmo 4" fase de estudando. Quando Freud diz que o inconsciente nesse momento
Rogers. Isso mostra que suas 2 primeiras fases podem ser conside- vem em auxílio do terapeuta, visto possuir uma tendência ascen-
radas como prévias, ou, quem sabe, como pré-terapêuticas (como, dente, isso pode ser entendido como se referindo à tendência à vida
aliás, ele mesmo sugere). que justifica a confiança do terapeuta no processo. Apesar de ser um
·uma questão parecida com a nossa, sobre as etapas do pro- acompanhante, o terapeuta se posiciona do lado da tendência para a
cesso, pode ser encontrada em Freud quando ele fala da técnica vida.
psicanalítica no contexto do trabalho prático. Em seu Esboço de Andresen (1991 ), num artigo publicado numa revista psica-
Psicanálise (1938), obra da maturidade, ele descreve a grosso modo nalítica, vê na seqüência de eventos pelos quais passa o personagem
as etapas do trabalho. Apresentamos aqui também um resumo, bíblico Jó o padrão de transformação profunda da consciência
seguindo o mais de perto possível suas palavras, na caracterização do religiosa, para quem opta pelo caminho da tradição contemplativa ou
que seriam 4 etapas. mística. Mas, ao mesmo tempo, analisando referências da literatura
1. O pacto. A situação analítica se constitui com este pacto: o pa- psicanalítica (principalmente Winnicott, Klein e Bion, além do
ciente nos promete a mais completa sinceridade, garantimos a próprio Freud) mostra como essa mesma seqüência retrata a estrutura
ele a mais estrita discrição, e colocamos a seu serviço nossa ex- essencial das transformações esperadas durante o processo psicana-
periência em interpretar material influenciado pelo inconsciente;
lítico. E essa seqüência, para ele, é: privação e sofrimento, ignorância
2. Trabalho intelectual. O ponto de partida é uma ampliação do
autoconhecimento; oferecemos um trabalho intelectual de e obscuridade, transformação da consciência e mudança de per-
nossa parte e um incentivo ao paciente para ele colaborar; cepção; o que não deixa de ser uma estrutura de crise. E ainda, Freud
3. Luta contra a resistência. Aquele trabalho suscita resistência, o vê o padrão do fracasso do psicanalista nas atitudes dos amigos de Jó
ego luta contra nosso estímulo, mas o inconsciente vem em (que tentaram em vão convencê-lo a uma mudança). Esta seqüência
nosso auxílio visto possuir um impulso ascendente. Realiza-se (padrão do fracasso), diferente da primeira (padrão das transfor-
uma luta sob nossa direção e com nossa assistência;
mações esperadas), é a seguinte: desejo de ajudar, certeza rígida, e
4. O desfecho. O desfecho dessa luta, para Freud, é indiferente:
quer resulte na aceitação de uma exigência instintiva, quer na consciência imutável. Nesta, o que não existe é o que Jó pede deses-
sua rejeição definitiva, um perigo foi liquidado, o âmbito do ego peradamente a seus amigos: que simplesmente o ouçam, independen-
foi ampliado, um dispêndio inútil de energia tornou-se desne- temente de critérios prévios de julgamento. O padrão de mudança
cessário (FREUD, 1938, pp.223-226).
aqui referido é o de uma transformação que poderíamos chamar de
Aparentemente o que Freud descreve aqui é um processo de existencial e não apenas cognitiva. Ora, acreditamos que tal estrutura
intervenção ativa, uma estratégia terapêutica, e não propriamente um se sobrepõe, como uma outra maneira de analisar o mesmo processo,
processo de acompanhamento. Quanto a isso a comparação não pode àquela descrita acima por Freud. Ainda que por um caminho bastante
ser feita com o modelo que estamos estudando. No entanto não diverso, estamos encontrando na psicanálise também uma certa
podemos forçar muito essas diferenças. O trabalho intelectual (2" confirmação daquela nossa análise.
etapa) visa uma ampliação do autoconhecimento e tem uma certa Dentre os estudos que não vêm diretamente do campo da
analogia com nossa 11 etapa. Assim como esta desemboca natu- psicoterapia, podemos citar o de Denne e Thompson ( 1991 ). Partindo
ralmente no questionamento do presente, levando a uma crise vivida da análise de depoimentos de pessoas que passaram pela experiência
106 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsicOLOGIA Hur-.\ANA 107

de transição de uma falta de sentido e propósito na vida, para uma muitas descrições de caminhos de crescimento ou de transformação,
vida com significado e propósito, eles descrevem os elementos o que Clark chama de "estágios do caminho místico" (stages on the
constituintes dessa experiência. São eles: assumir responsabilidade mystical path).
por si mesmo e por uma vida ativa e autoconfiante, a admissão e Daremos em seguida um resumo desse itinerário, inspirado em
integração de aspectos impedidos da experiência, congruência entre uma comunicação oral do mesmo Leloup citado acima (posterior-
conceitos pessoalmente significativos e a experiência, a existência de mente publicada, cf. LELOUP e BOFF, 1997), e adaptado por nós às
decisões como ponto de virada, e um progresso em direção a uma finalidades deste estudo. Incluem-se aí elementos de várias tradições.
relação equilibrada entre si e o mundo. Implicações para a terapia são As etapas podem ser descritas como segue.
levantadas na discussão, embora os depoimentos colhidos não se 1. A experiência numinosa (ou de transcendência), que é o
refiram a processos terapêuticos. A mudança entretanto, cuja estru- ponto de partida do caminho, refere-se a uma abertura para
tura é aqui estabelecida, é, como no processo terapêutico, uma outra possibilidade de se encarar as coisas, uma percepção
mudança mais global, existencial, do que simplesmente intelectual, nova;
cognitiva, embora tenha esses aspectos também. Existe uma analogia 2. A metanóia (palavra grega que significa "conversão")
patente entre os descritores do processo de transformação para uma corresponde à reviravolta provocada por aquela expe-
vida com significado, e os que levantamos para o processo tera- riência em termos de esquema de vida e procura de um
pêutico. caminho para dar prosseguimento a uma busca;
Outro paralelo interessante é o que se pode fazer com as 3. Consolação: com a prática dessa busca, muitas vezes
análises de Kuhn a respeito da estrutura das revoluções científicas. A orientada por alguém ou por algum método, ocorrem
revolução é precedida por uma crise que consiste no questionamento experiências gratificantes. E a tranqüilização do se saber a
do paradigma vigente. Um novo paradigma surge. No período da caminho;
crise a ciência normal não tem como assimilar novos· fatos e vão 4. O deserto: é a fase das grandes tentações e dúvidas que
surgindo pesquisas alternativas, até que o novo paradigma acabe sucede à da consolação inicial;
prevalecendo. Aqui estamos no campo do social ou mesmo cultural, e 5. A passagem pelo vazio, ou "noite do espírito", correspon-
no entanto a analogia é surpreendente: trata-se sempre de estruturas de ao ponto mais profundo, ou ao cume daquele processo
de transformação (KUHN, 1962, e também CARVALHO, 1991). de questionamento, dúvida, experiência de vazio ou vacui-
Outra fonte de confirmação externa vem dos estudos de psico- dade;
logia no interior de tradições religiosas, místicas ou sapienciais. O 6. Transformação-união: do coração vazio nasce a vida
próprio livro de Jó, referido acima, se insere nessa tradição. Brandão nova; ocorre uma profunda transformação;
& Crema ( 1991 ), no livro que organizaram sobre o "novo paradigma 7. A volta à praça do mercado: corresponde à reinserção no
holístico ",incluíram uma parte intitulada "A redescoberta da sabe- cotidiano, a partir daquela vida nova.
doria mística". E no outro volume da mesma série, "Visão Holística
em Psicologia e Educação", incluem um capítulo de Jean-Yves Os paralelismos são evidentes. A decisão de iniciar a terapia
Leloup ( 1991) sobre uma forma de psicoterapia chamada iniciática, supõe uma mudança de olhar sobre a própria vida que, embora não
que se inspira nessas tradições. O livro de W. James, "As Variedades seja necessariamente uma experiência extraordinária, já é um início
da Experiência Religiosa", que é um clássico nesse campo, é de do processo. A terapia poderia ser, então, um método procurado a
1902. Mais recentemente Clark (1983) retoma essa preocupação partir de uma "metanóia". Uma vez a caminho, nossa 11 etapa, há uma
numa obra sobre os estados mentais, onde ele elabora todo um gratificante aceitação de si (subetapa) que corresponde à "consola-
modelo psicológico, uma teoria mesmo, tomando como fonte ção" descrita aqui. Mas depois sobrevêm o "deserto das provações" e
principal a literatura mística. Pois bem, nessa tradição encontramos a experiência aguda do nada (III etapa, questionamento e crises), de
108 MAURO MARTINS AMATUZZI

onde, a partir de uma transformação (passagem para a IV etapa),


brota uma "vida nova". É essa vida nova que é posta à prova no CAPÍTULO Vlll
cotidiano (IV etapa: aprendendo a ser diferente). Sem dúvida há aqui
um campo a ser mais explorado. Há semelhanças nos dois desenhos
de processo, e os dois se referem a uma transformação experiencial
ou existencial, mais do que meramente cognitiva ou de habilidades.

PsiCOLOGIA POPULAR
CONSJOERAÇÕE.S FINAIS
A intenção original de Rogers em seu estudo citado era, como
vimos, a de descrever um caminho de transformação percorrido por
pessoas quando seus recursos de vida são potencializados num
diálogo de ajuda psicológica. Essa intenção desembocou em estudos
Este capítulo foi originalmente escrito para a revista Prometeo
empíricos que tentaram medir o estágio da pessoa em relação a
-revista mexicana de psicología humanista y de sarro/lo humano, um
aspectos variáveis desse itinerário de transformação, tais como: o periódico da Universidad lberoamericana, em um número especial
tipo de relação com os sentimentos e as experiências, o grau de con- de 1997, que teve por título geral "Antes y después de Chiapas: o nos
gruência, a forma de se relacionar com problemas pessoais e o grau salvamos juntos o todos perecemos". O título completo do artigo foi:
de responsabilidade assumido em relação a eles, o tipo de relação "Salir dei consultoria para hablarmos de tú - la construcción partici-
com o terapeuta etc. Com isso, entretanto, algo se perdeu daquela pativa de una psicologia popular", e ele se encontra nas páginas 27 a
33. Por esses títulos se pode ver o alargamento de perspectivas que
intenção original: a descrição qualitativa do processo como um todo,
ele contempla, e é por isso que ele cabe bem aqui. Para além da
com a finalidade de simplesmente compreendê-lo, e com isso psicologia como clínica, num sentido restrito da palavra. Gostei muito
melhor visualizar o papel do terapeuta ou de quem quer que se pro- de ter escrito este texto. A ele se seguirá o capítulo IX deste livro,
ponha a acompanhar uma outra pessoa nesse movimento. formando como um conjunto. Utilizei evidentemente a versão original
Esse nosso estudo tenta recuperar essa intenção de pesquisa. em português, e fiz pequenas modificações para adaptá-lo à forma
Partindo da análise de versões de sentido foi possível fazer um deste livro. Achei que as notas de rodapé poderiam ser dispensadas
aqui sem que o texto fosse prejudicado. As referências que estavam
desenho do processo onde ele aparece muito mais como um
nessas notas, juntamente com alguma outra, foram acrescentadas
movimento existencial, que envolve a pessoa inteira. Nos detalhes, na bibliografia no final do livro.
esse "desenho" se apresenta aqui como um conjunto de hipóteses
prováveis, a serem confirmadas ou corrigidas por estudos poste-
nores.
Na busca de confirmações externas de nossos resultados,
ficamos surpresos em constatar que essa preocupação com o
processo de mudança é bem mais vasta do que imaginávamos, e
A história da educação popular na América Latina mostrou
que o termo "popular" não significa somente que se trata da educação
também mais antiga. O próprio esforço de pesquisar psicoterapia do povo, mas também, e talvez principalmente, que se trata de uma
construindo escalas de crescimento ainda que parciais pode agora ser educação com o povo. As pessoas comuns, na sua condição de classe
visto como se alimentando dessa fonte comum mais ampla: o desejo popular, não são apenas objeto desta educação, mas também sujeito.
de conhecer os caminhos do ser humano. E educação popular acabou por designar um modo de se pensar e
praticar educação (ver, por exemplo, BRANDÃ0,1985). Paulo
llO MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA lll

Freire resume numa espécie de fórmula que o importante numa popular, o esforço de explicitá-la é, ao mesmo tempo, o esforço de
aproximação verdadeira aos oprimidos é que o educador, despindo- comprová-la através de uma reflexão crítica da prática das pessoas
se de todo autoritarismo, comece a acreditar nas massas populares e em suas comunidades. É o ato de explicitação dela, na reflexão da
já não apenas fale a elas ou sobre elas, mas as ouça, para poder falar ação, que lhe confere cientificidade.
com elas (FREIRE, 1983, p.36). Resulta disso tudo que essa psicologia não pode ser praticada a
A partir daí é que penso a expressão "psicologia popular". Não partir de uma relação que seja básica e primariamente uma relação
se trata da psicologia das pessoas comuns, maioria da população, entre sujeito e objeto. Se como pesquisador eu tomar "pessoas do
quando elaborada por um especialista que entrevista essas pessoas, e, povo" como objeto de conhecimento, mais ou menos como um
de dentro de seu gabinete, elabora sua visão. Trata-se, isso sim, de zoólogo faz com a fauna de uma determinada região, o que eu estaria
uma psicologia explicitada na convivência, e construída num produzindo seriam conhecimentos objetivos úteis àqueles que, não se
contexto de ação conjunta a serviço dessas mesmas pessoas. E mais: vendo como povo, pretendem "tratar" ou "manipular" essas pessoas,
o tipo de pessoa que é preferencialmente enfocada neste esforço é em função de algum tipo de interesse (como por exemplo, adaptá-las
aquela que vive sob as mesmas condições que a imensa maioria da produtivamente a um sistema de vida dado de antemão). Ou, mais
população, e considerada como tal. Esta psicologia será popular, benignamente, que retirariam das condições populares de vida lições
pois, quando: que poderiam se aplicar a qualquer tipo de pessoa, mesmo que não
seja do povo, como por exemplo o próprio pesquisador ou a comuni-
1. considerar as pessoas comuns, na sua condição comum; dade científica, interessada em conhecer o comportamento humano
2. quando for elaborada no contexto de uma busca de emanci-
em geral. Mas sempre seria um conhecimento produzido por alguém
pação ou crescimento; e
que se coloca fora da condição do objeto de estudo, e portanto um
3. quando for elaborada em conjunto com essas pessoas, de
conhecimento que não assume como próprios os interesses, os
forma participativa.
problemas, e os desafios dessas pessoas, tais como vivenciados por
Poderíamos dizer também que ela será a explicitação da elas.
experiência popular no que diz respeito ao comportamento humano Em uma perspectiva diferente dessa, o pesquisador parte do
no contexto das condições concretas a que as pessoas são submetidas. pressuposto de que ele faz parte daquela condição de pessoas, e de
Partimos do pressuposto de que existe toda uma psicologia implícita que estudando esta psicologia ele estará estudando-se a si mesmo
na experiência popular. Cada pessoa já a possui e a usa, mas em parte, também. E mais: que o conhecimento obtido será mais completo e
apenas. Ela está dividida nas várias experiências das pessoas. Talvez pertinente se ele puder contar com a colaboração efetiva dessas
ninguém a possua por inteiro neste momento. E é por estar dividida pessoas, num esforço conjunto de explicitação dos problemas e
que ela não pode ser plenamente apropriada, nem pode ser critica- desafios, de sua análise sistemática, e de seu enfrentamento concreto.
mente elaborada e estar a serviço de um esforço de crescimento e A relação aqui será portanto mais complexa que a relação sujeito-
emancipação. O que existe, então, é a psicologia oficial que nos toma objeto. Trata-se na verdade de uma relação sujeito-sujeito, porém
como objetos, diz coisas a nosso respeito, e nos dificulta a tarefa vital mediada pela realidade que efetivamente envolve a ambos e se
de dizermo-nos a nós mesmos, e também dizermos nossa própria estende ante seu olhar e ação.
palavra a respeito dos acontecimentos que nos envolvem. Essa seria a perspectiva básica de se construir e praticar uma
A psicologia popular é, pois, a experiência popular explici- psicologia popular. Isso não quer dizer entretanto que dentro desse
tada. Mas não que ela já esteja pronta em seu estado implícito, intento e desse enfoque, não possa haver momentos de uma relação
bastando apenas manifestá-la: isso seria muito ingênuo e nada mais objetiva, do tipo sujeito-objeto. Mas nesse caso será o grupo de
científico. Seria a psicologia do senso comum. Nada nos garantiria a colaboradores tentando se ver mais objetivamente, em um instante
verdade de suas assertivas. Da forma como entendo a psicologia reflexivo de um processo cujo sentido, entretanto, ultrapassa o deste
112 MAURO MARTINS AMA TLIZZI PoR UMA PsiCOLOGIA HuMANA 113

momento considerado em sua especificidade. O olhar comunitário, Mas essa atitude é que de fato separa esses dois campos, sugerindo
envolvido e comprometido com a vida, pode tomar como instru- que a atuação não precisa ser acompanhada pela reflexão crítica (mas
mento, momentaneamente, o mero olhar objetivo. Entretanto a que deve apenas aplicar conclusões científicas), por um lado, e por
relação básica de onde brota essa psicologia será sempre a relação outro lado, que a ciência não pode sujar suas mãos na concretude dos
inter-humana mediatizada pelo mundo, como diria Paulo Freire. processos históricos (pois isso ameaçaria a precisão de suas
Na prática o que significa isso? Uma reflexão constante, conclusões). Estamos muito perto de uma separação de pessoas: os
exercida a partir de dentro de um processo comunitário, levada a cabo homens da ciência, de um lado, e os da prática profissional, de outro.
por agentes envolvidos por desafios comuns, numa realidade Ambos disputando o valor de seu conhecimento, um apoiando-se no
comum. método científico concebido de forma abstrata, e outro apoiando-se
Qual o papel do "técnico" (o agente, o profissional) nisso na experiência prática muitas vezes desprovida do possível senso
tudo? Essa é uma questão sem dúvida fundamental para nós psicó- crítico. Ora, a história da psicologia clínica atesta contra isso. Na
logos ou profissionais de áreas afins. Nesse momento, contudo, maioria das vezes foi a partir da prática clínica e através da mediação
quero apenas ressaltar um aspecto: ele pode ter um papel decisivo no de teorias articuladoras, que foi sendo construída uma visão psico-
processo. Quem quer que já tenha se dedicado humildemente a um lógica do ser humano, útil no enfrentamento posterior dos mesmos
trabalho popular (isto é, sabendo ouvir, sentindo-se em comunhão e problemas clínicos ou outros. Detectar aquele preconceito nos
não pretendendo ser o dono da verdade das pessoas, mas trazendo obriga, pois, a formular princípios metodológicos que se adaptem a
efetivamente sua contribuição), sabe que o técnico pode ser um essa nova situação, sem que se perca o valor científico.
catalizador fundamental para que ocorra movimento nas pessoas e Da forma como está colocado o problema sobressaem algumas
grupos, e que muitas vezes é ele, por sua presença qualificada, que indicações. O método científico precisa certamente ser concebido de
possibilita que muitas coisas venham a acontecer naquele meio. forma abstrata para melhor servir aos processos de pensamento. Mas
Existem armadilhas nas quais podemos facilmente cair nessa isso não significa que ele não possa se concretizar em situações
tarefa de uma psicologia popular. O pesquisador, mesmo se sentindo "naturais", mesmo que isso complique bastante nosso pensamento
subjetivamente identificado com a "causa popular", pode agir de tal pelo aumento enorme do número de variáveis a serem levadas em
forma que as pessoas do povo fiquem reduzidas à função de meros conta. Comparado ao bairro ou à região geográfica onde se localiza e
fornecedores de dados para a pesquisa. Por mais que ele diga que sua vive uma comunidade, o laboratório é uma super-simplificação ou
pesquisa está a serviço das pessoas do povo, o conhecimento nela mesmo uma abstração da realidade. É perfeitamente concebível que a
produzido ainda não pertence a elas, ainda é um conhecimento do trama histórica concreta de nossas ações seja iluminada e enriquecida
pesquisador, conferindo-lhe um poder retirado das origens de seus não apenas por conhecimentos prévios que podemos aplicar, mas
dados. E isso é muito comum acontecer em programas de pós-gradu- principalmente por um olhar reflexivo que pretende detectar
ação e com pesquisadores bem intencionados. E por que acontece relações significativas naquilo que está acontecendo. E precisamente
assim? Penso eu que uma das coisas que muito contribui para isso é serão essas relações significativas que irão gerando uma teoria, uma
uma espécie de preconceito em relação ao que pode ser considerado visão sempre maleável das coisas, mas capaz de provocar correções
científico. Segundo esse preconceito não é possível que uma na rota e influenciar o desenrolar dos próprios acontecimentos. Um
"intervenção" concreta, uma atuação profissional, seja considerada saber se acumula a partir dessa experiência (prática profissional)
ao mesmo tempo um ato científico (no sentido de produzir ciência). A quando iluminada pela reflexão crítica (o olhar científico). Nada nos
idéia comum é que a atuação profissional possa ser objeto de uma obriga a dizer que esse saber é menos ciência do que o que foi
pesquisa, mas nunca uma pesquisa em si mesma. É como se a produzido em situações artificiais de "laboratório". E esse saber
atuação não tivesse a mesma dignidade que a ciência. Ou, pelo qualifica e instrumentaliza a própria comunidade no enfrentamento
menos, como se fossem dois campos diferentes e irreconciliáveis. de suas situações novas.
114 MAURO MARTINS AMA TUZZI PoR u~\\A PsicOLOGIA Hlll\IANA 115

Estivemos considerando a "armadilha da ciência". Mas existe dos. E digo uma psicologia não pronta ou construída, e a ser assi-
outra: a "armadilha da prática". Se a primeira consiste em eliminar o milada, mas sim como campo de indagações muito propício à
"popular" dessa psicologia (não seria mais uma psicologia do povo e elaboração da experiência popular. O espírito com que essas reuniões
construída com o povo), a segunda consistiria em se eliminar a foram sendo conduzidas era justamente o de tomar temas referentes
"psicologia" (não haveria a preocupação com aqueles cuidados que ao crescimento humano como ponto de partida, e então compartilhar
permitiriam uma reflexão rigorosa de comportamentos e ações). Se e refletir a experiência de cada um. As anotações que foram sendo
no primeiro caso o técnico entrevista pessoas e faz "sua" psicologia, feitas permitiram sínteses mais ou menos fecundas em relação à
no segundo caso ele está preocupado somente com a ação que entre- compreensão da experiência de outros grupos e pessoas (cf. AMA-
tém as pessoas, sem nenhum esforço de detectar relações significati- TUZZJ e col., 1996).
vas, e portanto, sem nenhum ·cuidado prévio de registro fidedigno do O ponto de partida poderia ter sido bem diferente, como de fato
que ocorre. A intuição imbutida no sentimento é o mais importante, aconteceu em muitas outras experiências. A concepção de uma
acredita ele; o resto se dá espontaneamente. A ênfase no pólo expe- psicologia popular poderia até mesmo estar informando uma
riencial acaba resultando numa renúncia a qualquer psicologia como atividade de atendimento psicológico individual, de casais com
conhecimento da conduta, ou capacidade de compreender o que se problemas, ou de grupos. O que é importante para que ela venha a
passa. O pressuposto aqui é de novo uma separação entre o conheci- acontecer? Penso poder resumir com os seguintes pontos:
mento e a ação, como que acreditando que o conhecimento explícito 1. que se parta de uma necessidade concreta sentida e
fica sempre aquém da ação, não a podendo instrumentalizar. O im- partilhada num determinado espaço geográfico ou inter-
portante é desenvolver a intuição e incentivar o contato com o senti- humano;
mento. Resulta daí, no plano da pesquisa, um "relato de experiência" 2. que essa necessidade seja expressa por pessoas desse
muito superficial, despojado das precisões que a tomariam passível espaço, ou por quem possa falar em nome delas;
de discussão, e das reflexões que a poderiam aprofundar manifes- 3. que a partir daí se constitua um espaço de partilha e
tando as relações entre os acontecimentos. É o mesmo preconceito de reflexão da vida, significativo para as pessoas;
que o pensamento não pode existir no curso de uma ação. Só que 4. que nesse espaço as pessoas possam entrar em contato com
agora nos colocamos do lado da ação, e desistimos do pensamento. sua experiência, perceber a condição comum à que estão
Na verdade a idéia de uma psicologia popular aponta para submetidas (e que é a condição humana concreta, tal como
uma integração entre o pensamento e a ação, e portanto entre o existe no contexto das relações sociais em vigor); e que
esforço de racionalizar, de ver ordem, e a intuição e o sentimento. elas se sintam também mutuamente fortalecidas por esse
Como isso poderia ser feito? contato e reflexão. Nesse ponto a atuação do facilitador é
Creio que não existe um modo apenas de se fazer isso, embora decisiva;
exista algo como um espírito ou uma estrutura. Em uma experiência 5. que haja a preocupação de acumular um saber a partir de
desenvolvida em um bairro da cidade onde moro, partimos de uma relações significativas detectadas com rigor; a transfe-
rência da aprendizagem pressupõe essa preocupação, isto
necessidade sentida e explicitada num pedido por parte de algumas
é, o grupo não deve visar apenas soluções imediatas;
pessoas sintonizadas com o bairro. A partir daí iniciou-se uma ativi-
6. considero importante que essa preocupação com o saber
dade grupal de reflexão da vida, com acertos e erros, mas que resultou
resulte nalguma forma de expressão objetiva escrita (ou de
na constatação inequívoca da necessidade desses espaços populares qualquer forma gravada), e para isso é necessário que se
de partilha e reflexão, e do papel importante que a psicologia poderia apóie em registros fidedignos da experiência;
desempenhar como fio condutor de temas geradores antes bloquea-
116 MAURO MARTINS AMATUZZI

7. a partilha desse saber acumulado na experiência (na prá-


tica dos enfrentamentos da vida ou na comunicação CAPÍTULO IX
escrita) com outros grupos ou pessoas é de fundamental
importância em sua própria confirmação, evolução ou
reformulação.
Acredito que esse processo é o de uma "psicologia popular", e
que o conhecimento acumulado aí (flexível, em evolução) é também
"psicologia popular" como corpo de conhecimento e teoria a serviço PROCESSOS HUMANOS
do desenvolvimento na comunidade.

Este capítulo representa uma primeira tentativa de expressar


uma intuição que une, numa visão abrangente, o trabalho de
desenvolvimento pessoal (dentro ou fora de uma terapia), o trabalho
com grupos, o desenvolvimento comunitário e social, em harmonia
com a natureza. Na verdade é um só trabalho, e é ele que traz a
sensação de estar vivendo algo significativo. O conceito que serve
aqui como fio da meada é o de processo. Ele pode ser entendido de
uma maneira mecânica, ou de um modo envolvente da pessoa,
naquilo que ela tem de mais profundamente humano. Como
expressão de uma intuição, preferi manter o estilo mais espon-
tâneo, deixando a multiplicação de referenciais acadêmicos para
um outro momento.

0 QUE É PROCESSO
O que vem a ser um processo terapêutico? É um fato da expe-
riência cotidiana de muitos psicoterapeutas que, embora haja
condições previsíveis para que seja facilitada a ocorrência de um
processo terapêutico, ele nem sempre acontece. Nem sempre a
pessoa se envolve, assume seu próprio crescimento, toma-se ativa em
sua própria transformação. Muitas vezes o que ocorre são apenas
alguns esclarecimentos sobre o problema trazido, ou mesmo
pequenas modificações mais ou menos superficiais no compor-
tamento da pessoa. E isso como simples conseqüência de o problema
ter sido ventilado numa conversa a dois. Ou pode acontecer também
llS MAURO MARTINS AMATLIZZI PoR Li:'dA PsiCOLOGIA HUf-IANA 119

que as sessões tenham se transformado em uma orientação específica Todas as relações terapêuticas são processos onde coisas
por parte do terapeuta. Isso até pode ser positivo, se o terapeuta tiver acontecem, sem dúvida. Mas aqui estamos querendo falar de processo
bom senso e sabedoria, mas não deveria mais ser chamado de num sentido mais profundo e mobilizador. Nem sempre acontece
psicoterapia no sentido de promoção de um processo pessoal. Este processo em um processo terapêutico. A mesma palavra tem dois
envolve mobilização mais profunda da pessoa, um envolvimento sentidos. Talvez clareássemos dizendo que no primeiro sentido se
mais ativo na exploração de suas próprias vivências, que culmina trata de processo pessoal, e no segundo, de processo relaciona!. Na
num questionamento das estruturas atuais dentro das quais a pessoa relação terapêutica ocorrem coisas diferentes com o passar do tempo:
age, e abre para uma forma mais produtiva de ser. E não se trata nem ela é um processo relaciona! onde uma coisa vai decorrendo da outra,
mesmo de uma exploração ou questionamento intelectualizado. Mas uma coisa se segue a outra com um certo encadeamento e ordem.
sim de um modo diferente de abordar o problema: um modo mais Mas tudo isso pode não tocar a pessoa no nível que ela precisaria para
vivo, que recorre ao que há de mais profundo no coração humano. superar seus problemas. O processo da relação não chegou a desenca-
Quando não se chega nisso, algo deixou de acontecer. O cliente não dear um processo pessoal. Para que isso ocorra, não basta que fatos
entrou em processo. Seja porque o terapeuta não esteve à altura da externos mudem. É preciso que também estruturas internas se
tarefa que lhe cabia, seja porque isso não correspondia ao momento mobilizem, dissolvam-se, percam sua rigidez, ou mesmo desapa-
do cliente. reçam. A pessoa passa a funcionar de forma diferente. Não apenas
Um "processo" não é uma coisa, um objeto ou um estado que com outra estrutura, mas com outra relação com suas estruturas. Não
se instala na vida de uma pessoa como algo acabado e completo. quero construir conceitos nesse momento, mas apenas chegar perto
Trata-se na verdade de um movimento. É como se a pessoa tivesse dessa realidade. Se o leitor puder tocá-la, isso agora basta.
estado estagnada, e agora essa estagnação se desfaz, o gelo derrete,
algo começa a se mexer. No plano externo já havia movimentos, sim,
mas eram como possibilidades de uma estrutura estática. Quando o ÜS PROCESSOS NA VIDA
processo se instaura é a própria estrutura que se flexibiliza, se
transforma. Trata-se de um movimento qualitativo da pessoa, uma Aqui surge a pergunta: só em psicoterapia ocorre processo
mobilização interior desencadeada no contexto de uma relação pessoal? Todo mundo diria que não, e eu concordo. A própria vida é,
interpessoal facilitadora, muitas vezes a única coisa capaz de ou deveria ser, um processo de transformação pessoal, muitas vezes
promover mudanças de paradigma no funcionamento da pessoa. desencadeado por modificações na estrutura e funcionamento corporal
Quando o velho paradigma de funcionamento psicológico já não (por exemplo, as modificações que ocorrem durante a adolescência
atende às necessidades sentidas, só mesmo uma mudança radical, ou durante o envelhecimento), ou por modificações ambientais ( cul-
com novas maneiras de ver e sentir, pode apontar saídas criativas. turais, educacionais, nas relações que vivemos). E mesmo essas duas
Mas muda o jeito como se vive o problema. Muda o modo de relação linhas de desencadeamento (corporal e ambiental) não são absoluta-
consigo mesmo, com os outros, e com o mundo. Quando isso começa mente decisivas. A pessoa pode tomar um novo rumo de vida a partir
a acontecer, então está ocorrendo processo. de encontros significativos. Mas pode também aferrar-se a modos já
Poderíamos dizer, quem sabe, que todas as pessoas mudam, conquistados, resistindo a qualquer tipo de mudança. Isso vai depender
mas que essas mudanças se dão no interior de um conjunto mais ou da história passada? Em parte sim. A história do indivíduo poderá
menos fixo de possibilidades. Quantas vezes vemos um amigo mudar dizer como ele reagirá diante dos desafios da vida. Mas também esse
de profissão, mudar de casamento, até mesmo mudar de religião, mas fator (a história individual) não é absolutamente determinante. Temos
na realidade continuar o mesmo? Ou quantas vezes, para resolver um que deixar em aberto a possibilidade de a pessoa escolher, autodeter-
problema que estamos vivenciando, não é preciso mudar o modo minar-se, assumir sua vida, ou então, ao contrário, deixar-se levar
como pensamos o problema? pelas determinações externas mais ou menos mecanicamente.
120 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR u~tA PsiCOLOGIA HuMANA 121

A imagem que me ocorre aqui é a do veleiro. Ele é guiado pelo nas mãos, não se sente livre, sente um profundo "sufoco", mesmo que
vento, pelas ondas, pelas correntes marítimas. Contudo o navegador nem saiba dizer de que se trata exatamente. Seu processo pessoal está
tira proveito disso em favor de seu rumo de viagem. Mas também emperrado. Ela está funcionando a partir de fora somente.
pode não ser um bom navegador, por algum motivo qualquer. E então O que vem a ser então a psicoterapia? Um encontro significa-
acaba ficando à deriva, isto é, ao sabor dos ventos, das ondas e tivo onde o processo pessoal possa ser desemperrado. Uma ajuda à
correntes marítimas. vida, portanto. Daí a delicadeza da tarefa do terapeuta: ele não pode
Isso tudo quer dizer, então, o seguinte: a vida certamente é um fazer isso pela pessoa, pois seria contraditório, deixaria de ser um
processo relaciona/ onde muitas coisas acontecem. Mas ela poderá processo dela. Ele não pode viver por ela. O que ele pode fazer é
deixar de ser um processo pessoal. Poderá deixar, mais ou menos, de oferecer um clima de segurança tal em que a pessoa possa fazer isso,
ser um processo de descobertas pessoais, de aprendizagens verda- se quiser. E muito provavelmente ela irá querer (se encontrar esse
deiras, de encontros transformadores. E isso quando as pessoas de clima relaciona! favorável), pois existe dentro de todos nós um
alguma forma se bloqueiam ao processo de viver. Executam uma impulso natural nessa direção.
vida previamente estruturada, mais do que vivem em plenitude. A vida, se for vivida em plenitude, será um processo pessoal.
Se esses bloqueios não ocorrem (ou ocorrem mas não de forma Mas às vezes é preciso uma ajuda para desemperrar esse processo. E
tão impeditiva) a pessoa passa por desafios existenciais no decurso de isso será, mais, uma questão de desaprender os modos que se
sua vida. Esses desafios caracterizam etapas de desenvolvimento que tomaram bloqueadores, para que a vida possa se manifestar
se estruturam em tomo de verdadeiras crises, isto é, questionamentos novamente.
de formas adquiridas, e passos existenciais para outras formas mais
flexíveis de relacionamento consigo, com os outros e com o mundo.
Estudando pesquisas sobre o desenvolvimento pessoal e confron- A EXPLICAÇÃO PSICOLÓGICA DO PROCESSO
tando suas conclusões com histórias de vida, eu mesmo acabei por
descrever 9 etapas possíveis para uma vida bem vivida, desde o nasci- Já "tocamos" o processo. Mas como compreendê-lo em termos
mento até a idade avançada (c f. AMA TUZZI, 2000). Não são apenas de psicologia? O que acontece psicologicamente quando há processo
mudanças externas que aí ocorrem, mas verdadeiras transformações pessoal, e o que deixa de acontecer quando não há?
pessoais. Como as passagens decisivas na saga do desenvolvimento Teoricamente a resposta é simples. Quando há processo a
pessoal têm uma estrutura de crise, podemos dizer que ele se confi- pessoa está em contato consigo mesma, com o centro de si mesma. Na
gura como um processo. Muda o modo da relação da pessoa consigo linguagem comum, utilizada em nossos trabalhos com grupos
mesma, com os outros e com o mundo. Ela vai se abrindo cada vez populares, aprendi a designar esse centro da pessoa como coração.
mais, seu eu se transforma, o que era rígido vai se flexibilizando e Quando a pessoa perde contato com seu coração, ela bloqueia seu
relativizando. Ou não, é claro, pois essa possibilidade de enrijeci- processo, e passa a funcionar mais ou menos como autômato. Mas em
mento é real e freqüente, ao que parece. que consiste esse coração humano? Não é o sentimento, como é
O que acontece quando alguém procura uma psicoterapia? Seu comum pensar. É algo mais profundo. É o lugar de onde nascem os
processo de desenvolvimento pessoal, de alguma forma, ficou sentimentos. Mas também de onde nascem os pensamentos e as
bloqueado, e ela já não consegue facilmente, sozinha, dar conta de decisões. É o lugar onde essas 3 coisas não se separaram ainda. Lugar
tudo que está acontecendo. Corre o risco de ficar à deriva, suas ações do contato com o outro, com o não eu. Dependendo do que acontece
sendo meras conseqüências dos ventos, ondas, correntes marítimas. nesse contato, o coração humano estará aberto ou fechado. Se houver
Muitas coisas acontecem em sua vida, mas ela já não sente que se tem um acolhimento e uma confiança básica, ele estará aberto e pronto
para o desenvolvimento numa direção construtiva.
122 MAURO MARTINS AMA TUZZI PoR Ut-.IA PsiCOLOGIA HUMANA 123

A vida freqüentemente nos leva a perder esse contato com coração aberto a coração que vai se abrindo. Sem isso, só o que ocorre
nosso centro (com nosso coração). Passamos então a funcionar a são conselhos ou "truques de vida", que podem funcionar parcial-
partir dos pensamentos (que ficam, então, rígidos como precon- mente, mas não restabelecem o fluxo vivencial. O verdadeiro
ceitos), dos nossos sentimentos (que sem aquele contato com o terapeuta é uma pessoa treinada para isso, mesmo em situações onde
coração ficam mais ou menos enlouquecidos) e das decisões (que, essa relação, assim tão pessoal, fica dificil.
sem aquele contato com nosso íntimo, ficam duras como se fossem Jean-Yves Leloup, em seu belo livro sobre Fílon de Alexan-
previamente programadas). Numa linguagem popular a restauração dria, nos diz que o sentido original da palavra terapeuta não é aque-
do contato com o centro se dá quando uma outra pessoa, com o seu le que cura, mas aquele que cuida (LELOUP, 2000). Sempre houve
coração aberto, ouve nosso coração. Reaprendemos a ouvi-lo, então. "cuidadores", e é uma tremenda pretensão dizer que "terapia" é coisa
Restabelece-se o fluxo da vida. Os sentimentos, os pensamentos e as moderna. Seria negar o valor de uma antiqüíssima tradição. O que
decisões estarão, agora, em harmonia entre si e com o centro. Mesmo a Psicologia moderna fez foi olhar para isso com os olhos de um novo
se as circunstâncias exteriores forem dificeis. tipo de ciência. E, com certeza, ainda não terminou de olhar.
Que exemplos poderíamos dar desse centro, ou do coração? Há sempre algo em curso dentro de nós. Os filósofos da
Uma pessoa está falando insistentemente muitas coisas. Aparen- linguagem diriam que é uma intenção significativa, ou intenção de
temente muda de assunto. Mas continua a falar como se não tivesse significar. Espécies de garrafas jogadas ao mar. Aproximarmo-nos
terminado de dizer, como se não estivesse satisfeita. De repente de nós mesmos é chegar perto disso. É abrir as garrafas e dar nomes
percebemos, no meio de toda aguela confusão, o que realmente ela ao que tem dentro. Quando fazemos isso, entramos em processo.
quer dizer, e tudo faz sentido. E alguma coisa que está por trás de Nossas intenções são revestidas de palavras, e outras intenções
todo seu discurso, mobilizando-o como uma necessidade. Se algum podem então surgir. Isso é o desenvolvimento pessoal, isso é
amigo nesse momento lhe disser exatamente isso, se é que ele mudança de vida, ou isso é a vida prosseguindo. Quando isso
percebeu bem, essa pessoa ficará como iluminada. Dependendo do acontece não estamos sós.
caso poderá até chorar de emoção. Finalmente alguém me entendeu.
Recebeu e tocou meu coração, meu centro. Só se pode fazer isso com
sentimento positivo, com amor, com amizade. De outra forma não se PROCESSOS GRUPAlS
toca, mas se fere o coração. Mas quando tocado instaura-se o pro-
cesso pessoal. Somos como círculos concêntricos. Temos vários âmbitos.
Muitas palavras podem expressar isso que se passa em nosso Estivemos falando de nosso âmbito estritamente pessoal, e já nele
centro, a cada momento. Palavras diferentes. Mas não qualquer existe uma abertura para o outro. Não somos completos em nós
palavra. Algumas nitidamente não servem. Somos capazes de mesmos. Vivemos como parte de um ou vários grupos. Será que
identificar qual serve e qual não se adapta, sem sentir dúvida. podemos falar de processos grupais com a mesma profundidade com
Podemos até aprofundar o significado daquilo que sentimos, e o que falamos de processos pessoais?
expressarmos com outras tantas palavras. Mas quando os termos que Aquilo que acontece em nosso interior é mobilizado na pre-
de fato usamos não mais nomeiam o que se passa realmente conosco, sença (fisica ou intencional) de uma outra pessoa, ou várias. Somos
então nosso falar já estará distante, já teremos perdido o contato com parte de grupos e nosso processo pessoal se dá de forma intimamente
nosso centro. relacionada com processos grupais. Como pensar isso?
O que faz um terapeuta? Ele proporciona oportunidade para Em primeiro lugar é preciso reconhecermos a possibilidade de
que restabeleçamos o contato perdido com nosso centro pessoal. Mas processos grupais tanto no sentido profundo do termo, como no
ele só pode fazer isso a partir de seu próprio centro pessoal. O que nos sentido mais mecânico. Processo grupal não é apenas a seqüência de
abre profundamente é uma relação verdadeira, de centro a centro, de coisas que acontecem no grupo, uma depois da outra, uma provo-
124 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PsicOLOGIA HuMANA 125

cando a outra. Pode ser também uma mobilização do próprio modo bem diferentes. Grupo e pessoas se potencializam (se enriquecem) no
grupal de ser, a partir das mobilizações pessoais, e integrado com segundo caso, e se separam, ou se submetem um ao outro, no pri-
elas. Nesse sentido o processo grupal é também profundamente meiro caso.
pessoal. Um exemplo poderia esclarecer isso. Muitas vezes um Quando as pessoas se comunicam de coração, a partir de seu
grupo em que nos inserimos vai se modificando ao sabor das íntimo, manifesta-se a alma do grupo, uma sabedoria viva que é
influências que pesam sobre ele, e não temos nenhum controle sobre maior que a consciência das pessoas, mas que, de certa forma, depen-
isso. Uma coisa acontece depois da outra, ou por causa da outra. O de dela. Quando a comunicação flui, e sabemos nos abrir ao que se
grupo, como grupo, está à deriva, mesmo que as pessoas individual- manifesta, acontecem coisas sábias que não havíamos previsto, e às
mente possam manter sua liberdade individual, ao menos no sentido quais não poderíamos chegar sozinhos. Isso é o processo grupal no
de poderem "deixar o barco", sair do grupo. Isso não é ainda um pro- melhor sentido da palavra. Ele nos ajuda como pessoas e não nos
cesso grupal; é apenas um processo de ocorrências que se abatem submete. Deixa de haver oposição entre liberdade pessoal e liberdade
sobre o grupo, deixando como única margem de liberdade, as deci- grupal. O grupo passa a ser as pessoas, funcionando em sua plenitude
sões individuais. Não há liberdade integrando pessoa e grupo. Como humana.
tal o grupo não se tem nas mãos. Isso só começa a acontecer quando Assim como dissemos que existe um centro na pessoa, e que
as pessoas se abrem umas para as outras, a partir de seus centros, em devemos estar em contato com esse centro, assim também podemos
seu íntimo. A própria estrutura do grupo, então, se relativiza. O modo dizer que existe uma sabedoria grupal, um centro de energia grupal,
de ser grupal ganha vida e vai se modificando em harmonia com as que se constitui quando as pessoas se comunicam de coração aberto.
modificações pessoais. As pessoas não estão simplesmente sendo Podemos estar mais ou menos abertos ao contato com esse centro
levadas pelo grupo. O coletivo passa a ser um âmbito mais alargado grupal. Se nos fecharmos, isso significará também uma restrição à
do pessoal. Quando as pessoas são vítimas de um "processo grupal", comunicação aberta, de coração a coração. E então bloquearemos o
isso não é ainda um processo grupal. De novo temos aqui dois senti- processo grupal. A abertura a esse centro grupal supõe uma renúncia
dos para a palavra processo. Um é mais superficial, designando o que ao excessivo desejo de controle racional. Na verdade, a razão é um
acontece de fora e se impõe às pessoas, queiram elas ou não, e outro é instrumento importante, mas a serviço de outra coisa. Ela entra, mas
mais profundo, referindo-se a uma mobilização do grupo que envol- não pode matar a confiança ou uma postura aberta a algo maior.
ve as pessoas naquilo que elas têm de mais humano. Quando um Como pessoas, somos profundamente solidários. É no grupo
grupo entra em processo realmente, ele cresce muito como grupo, e que crescemos. O verdadeiro grupo é como uma extensão de nosso
ele passa a ser um instrumento de crescimento pessoal também. âmbito pessoal. O processo grupal não é uma coisa ruim, uma espécie
Quando nos deparamos com um grupo, podemos adotar uma de mal necessário, mas uma coisa boa para nós.
postura de resolver seus problemas através de dicas orientadoras.
Não estamos, então, confiando no próprio processo grupal. Se, ao
invés disso, propusermos uma abertura de todos a todos, a partir de PROCESSO COMUNITÁRIO E OUTROS ÂMBITOS
seus centros pessoais (a partir do coração), então as soluções
ocorrerão mas não como coisas prontas, e sim como um novo rumo Somos também comunidade, grupos maiores, grupo de
mais criativo que o próprio grupo acaba assumindo. Soluções grupos. É um âmbito novo. Aqui também pode ou não ocorrer
inesperadas às vezes acontecem, a partir de uma nova maneira de processo integrado. Se não, a comunidade (o social) abate-se sobre
abordar o problema, a partir de um outro paradigma. Nesse caso não é nós, fazendo-nos vítimas, deixando-nos a opção de apenas preservar
que as pessoas se submetem ao processo grupal, mas que elas nosso individualismo bem protegido. Poderíamos talvez chamar a
instauram o processo, a partir delas mesmas, juntamente com todos isso de processo social, enquanto uma realidade autônoma, inde-
os demais. O que é importante aqui é perceber que são duas coisas pendente das pessoas. Mas se for processo propriamente comuni-
126 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR Ll~\r\ PSICOLOGIA HUMANA 127

tário, ele também potencializa as pessoas e os grupos. A dito. E é nesse caso que o processo ecológico integra os outros
complexidade é bem maior, pois implica novas habilidades e percep- âmbitos: o pessoal, o grupal, e o comunitário, dando-nos o contexto
ções. Para que haja verdadeiramente processo comunitário (e não maior. Todos ocorrem ao mesmo tempo. "O que acontecer à terra
apenas uma seqüência de eventos sociais), a mesma necessidade de acontecerá aos filhos da terra". Cuidar da terra é cuidarmo-nos de nós
comunicação aberta existe, e de renúncia ao excessivo controle racio- mesmos.
nal. Só que aqui aparecem outras características. A comunicação,
mesmo sendo totalmente pessoal, não será necessariamente íntima. E
nem seria possível isso no âmbito de uma vida comunitária, com uma Ü CUIDAR
quantidade grande de pessoas. Mas se não houver pessoa/idade na
comunicação, mesmo que seja no âmbito maior da comunidade, não Poderíamos dizer, resumindo nosso percurso até agora, que
ocorrerá processo no sentido mais profundo e integrado do termo. ocorre processo pessoal quando estamos em contato com nosso
Por outro lado surge a política, como atenção e sensibilidade ao bem centro pessoal, nosso "coração". Isso não acontecendo o processo
comum, e como novo âmbito de pensamento e atuação. Mas aqui não poderia ser chamado de pessoal propriamente dito, mas talvez
também existe uma política comunitariamente vivida, que favorece apenas de relaciona!. Quando estamos em contato com nosso centro
as pessoas, e uma política apenas socialmente vivida, que massifica pessoal desencadeia-se um movimento interior, fluente, e normal-
as pessoas. Esta segunda é polarizada pelas tentativas de controle. Já mente voltado para o crescimento. Sem esse contato somos como
na primeira, existe o desejo de comunicação aberta, e a confiança no vítimas do processo. Com ele tomamos consistência no interior do
processo comunitário que envolve as pessoas. processo. Semelhantemente, ocorre processo grupal propriamente
A mesma regra que rege a ampliação dos âmbitos do pessoal quando os membros do grupo estão em contato com a "alma" do
ao comunitário deve chegar a incluir também o meio ambiente, a grupo, a sabedoria grupal, que se manifesta a partir da comunicação
natureza, o universo, como um círculo concêntrico maior. É a aberta entre eles. Isso não acontecendo as pessoas ficam sujeitas às
ecologia. E a comunicação pessoal se estende também. Será preciso leis da dinâmica grupal que atuam de modo mais ou menos cego. A
que a pessoa veja e ouça a natureza (animais, plantas, minerais ... ) a essa situação também se chama processo grupal, mas num sentido
partir de seu centro, de seu "coração". Então instaura-se um processo bem diferente. Podemos falar ainda em processo comunitário, inclu-
ecológico, no sentido forte do termo. Sim, porque aqui também existe indo um âmbito maior de pessoas unidas por uma condição identitá-
um sentido fraco: é a ecologia de medidas externas a que nos ria comum, por um projeto maior comum. Aqui também poderá
submetemos com fins de proteção de "nossas riquezas". A verdadeira ocorrer processo num sentido externo do termo, sem que as pessoas
ecologia não é meramente utilitária, mas pressupõe um senso de estejam de fato envolvidas. Para que tenha um sentido desencadeador
respeito pelo ~odo, e uma percepção (quase diria amorosa) de que das potencialidades humanas, a condição para o processo comunitá-
somos parte. E uma mudança de paradigma também. Mas que não rio verdadeiro seria de novo a comunicação aberta, não necessaria-
exclui o raciocínio e a técnica, obviamente. Não há oposição, mas mente no sentido de íntima (nesse âmbito seria impossível), mas no
uma visão diferente. Aqui também se pode falar, então, de processo sentido de pessoal, a partir do centro, e possivelmente instrumentali-
nos dois sentidos: num sentido meramente preservacionista utili- zada por estruturas intermediárias facilitadoras. Estamos no âmbito
tário (pensando exclusivamente na riqueza do homem), e num do político como referente à "polis" (cidade, nação). Poderá ocorrer
sentido mais vivo e pessoal (onde se pensa no todo, como contexto no somente um jogo de forças que tende a submeter as pessoas, ou um
qual nos r~alizamos, a partir da percepção de que somos parti- verdadeiro processo político envolvente das pessoas inteiras. Deve-
cipantes). E também quando a comunicação com a natureza se dá a mos falar ainda de processo ecológico. E ele ocorre quando as pesso-
partir de dentro, que podemos nos sentir verdadeiramente parti- as se sabem e se sentem participantes do todo que inclui a natureza, o
cipantes, membros, e falar de processo ecológico propriamente cosmos, o universo; aceitam e gostam disso. Esse sentir gera o res-
128 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR UMA PstcOLOGtA HUMANA 129

peito, e ações no sentido de um cuidar solidário do mundo como con- experiência. Todo resto, por mais importante que seja, é acessório.
texto para a própria realização pessoal. Ocorre por fim que todos Até mesmo o psicólogo, em seu fazer profissional de promover
esses âmbitos estão interligados, e um não pode ocorrer plenamente processos pessoais, deve levar em conta que nenhum desses âmbitos
sem o outro. humanos tem consistência completa independentemente dos outros,
O cuidar do processo pessoal, cuidar profissional, extraordi- e que se ele não for uma pessoa, antes de ser qualquer coisa, nada de
nário, do psicólogo, tem sido chamado de psicoterapia. E sua verdadeiro e profundo ocorrerá.
condição básica é oferecer, na relação, um clima de segurança tal que
o processo pessoal natural possa se desbloquear e seguir seu rumo.
O cuidar do grupo é também delicado, e supõe a promoção de CRIANDO BOLSÕES DE HUMANISMO
comunicações abertas e verdadeiras entre as pessoas. Um grupo
natural que funciona bem, tem cuidadores naturais dentre seus Todos nos preocupamos com a sociedade em que vivemos. A
participantes. O cuidar da comunidade não tem sido distinguido por humanidade está em guerra contra ela mesma. A violência está aí e
uma profissão especial. Talvez os políticos devessem ser isso. Mas, nos assusta a todos. Acusamo-nos mutuamente, denunciamos instân-
nas circunstâncias concretas em que nos encontramos, eles cias impessoais, procuramos culpados. Os que dão um passo além
dificilmente não são contaminados pela busca do poder. Nos meios perguntam-se o que é possível fazer além de se proteger ou fugir.
populares fala-se de agentes comunitários. Deveriam ser pessoas Creio que alguns fatos fáceis de se ver podem nos ajudar a compreen-
que, por sua própria maneira de ser, fomentam a comunicação aberta der o que se passa.
entre todos, o que, no nosso ambiente atual, supõe muita disponi- Somemos todas as possibilidades de emprego formal que
bilidade interior, e ao mesmo tempo perspicácia para não se deixar existem numa cidade. Se este número for aproximadamente igual ao
engolir e anular pelos jogos de poder. Para a ecologia existem da população ativa, teremos uma cidade razoavelmente equilibrada.
técnicos. Mas o cuidar do processo ecológico, como o nível máximo Todos os cidadãos terão um lugar, estarão trabalhando em paz. Mas
de abrangência dos processos humanos, não tem propriamente um se o número de possibilidades de emprego for menor que o da popu-
profissional designado. Não bastam técnicos, nem políticos. Se as lação ativa, muitos dos cidadãos estarão excluídos da possibilidade
pessoas, na condição básica de pessoas, não estiverem envolvidas, de trabalho. Não haverá lugar para eles naquela cidade. Pois bem, se
não haverá processo propriamente dito, mas uma simples seqüência
somarmos todas as possibilidades de emprego oferecidas em todo
de acontecimentos materiais dos quais seremos mais vítimas do que
nosso mundo atual, esse número será nitidamente muito inferior ao
agentes.
número de pessoas ativas para o trabalho produtivo. Esse cálculo já
É curioso notar que, na medida em que se parte para os campos
mais abrangentes, a especificação profissional vai se diluindo foi feito e chegou-se a essa conclusão. Há mais gente no mundo do
progressivamente, até que, por fim, não exista um profissional que ofertas de trabalho previstas. E isso, evidentemente, é mais
específico. E no entanto esse vem a ser um de nossos principais gritante em regiões subdesenvolvidas como a América Latina. Não
desafios atuais: cuidar de nosso desenvolvimento de forma integrada. há espaço para todos.
E dele pouco se fala, ou, tudo de que se fala não tem relação direta Somemos agora o produto interno bruto de todos os países do
com ele, uma vez que as formações profissionais têm sido predo- mundo, isto é, todas as riquezas de fato produzidas no mundo. Esse
minantemente técnicas. Nos níveis mais abrangentes muitos cálculo também já foi feito. E o resultado foi que esse montante
profissionais têm uma função importante. Mas o que em definitivo global de riqueza, se fosse dividido por todas as pessoas que existem
atua são pessoas envolvidas na prática, através de uma ação lúcida e no mundo, seria suficiente para que cada uma vivesse de forma digna.
amorosa (partindo do coração). E a formação para esse tipo de prática
só pode se dar também de forma prática: fazendo, e examinando a
130 MAURO MARTINS AMATUZZI PoR u~IA PsicOLOGIA Hu~IANA l3l

Há riqueza para todos viverem dignamente. Mas isso não Pessoalmente acredito que a umca saída para esse nosso
acontece. Nossa sociedade é organizada para beneficiar somente a mundo enlouquecido é envolvermo-nos em verdadeiras experiências
alguns. Não a todos. É uma contradição que gera os conflitos em que comunitárias. Participar, com a vida, da criação de bolsões de
vivemos. humanismo. Bolsões no sentido de que aí ocorrem processos
Se acrescentarmos a isso as formas de comunicação que humanos integrando todos os níveis. Não no sentido de redutos
tomam o nosso mundo uma aldeia global, e que no fundo veiculam a fechados. Espaços abertos onde se possa experienciar um modo
mensagem de que cada um deve procurar a solução para os seus completamente diferente de ser. Isso pode acontecer desde já, sem
problemas, fica fácil imaginar o quadro final. Todos procurando esperar nada, a partir da determinação de pessoas comuns.
soluções individuais, num tipo de organização social que não permite O psicólogo tem uma contribuição importante a dar nessa
uma solução para todos. Daí para a crise ética, a violência, e a espo- criação de comunidades. E isso porque ele pode facilitar a comuni-
liação dos recursos naturais, há apenas um pequeno passo, e já demos cação entre as pessoas. Mas ele (assim como todos os outros profis-
este passo. Um mundo enlouquecido pelo individualismo, pelo sionais) deve começar dando o primeiro passo, como cidadão
assalto à natureza, pela violência, pelas diferenças gritantes. Dentro comum. Pois o que pode acontecer, se o quisermos, não depende de
desta lógica algumas pessoas consideram que não há nada a se fazer papel específico nenhum.
senão esperar de braços cruzados que os excluídos, que ficaram fora, O que é então trabalhar processos humanos de forma
se autodestruam (pois a sociedade se regula a si mesma esponta- integrada, em todos os seus âmbitos inseparáveis? É tomar a inicia-
neamente). Enquanto isso não acontece, resta a necessidade de se tiva e começar já a viver segundo outro paradigma. É passar a fun-
proteger deles: aumentam os muros e as grades. cionar a partir do centro pessoal, abrindo-se ao outro. É associar-se na
Que tipo de processo é esse? É um processo que se abate sobre prática do que fazemos, e buscar o bem de todos. Se isso não fizer
nós. Não é uma mobilização em vista de uma situação mais humana parte do trabalho do psicólogo, ele estará somente contribuindo para
para todos. Sentimo-nos vítimas. A quem cabe cuidar para que esse que o mundo continue a ser como é. Transcendemos a psicologia?
processo mecânico se transforme em um processo humano e huma- Creio que a psicologia que não estiver atravessada por esses valores,
nizante? Como já vimos não há profissionais especializados para em todos os seus níveis de inserção profissional, já não tem nada de
isso. Todos somos capazes, como cidadãos comuns, associando-nos importante a oferecer a nosso mundo.
uns com os outros, a partir da prática, em tomo de um outro para-
digma, de outra visão das coisas. Uma visão mais verdadeira, que
integre os diversos âmbitos humanos. O que acontecer com a terra,
acontecerá com os filhos da terra. O que acontecer com as comuni-
dades, acontecerá com os seus participantes. O que acontecer com os
grupos terá enorme influência sobre as pessoas. Se quisermos mudar
o mundo, comecemos já, mudando-nos a nós mesmos, começando
uma forma completamente diferente de nos relacionarmos.
O contexto de um processo pessoal é o grupo. O contexto de
um processo grupal é a comunidade. O contexto de um processo
comunitário é a terra, nossa casa. Se isolarmos esses contextos nada
acontecerá, a não ser o próprio isolamento pessoal com a ilusão de
auto-realização. O psicólogo que não levar isso em conta está tra-
balhando com ilusões.
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É preciso que a Psicologia
busque se aprofundar naquilo que é
caracteristicamente humano. Do con-
trário ela não poderá contribuir no
diálogo dos que buscam saídas verda-
Mauro Martins Amatuzzi é
deiras para os problemas pessoais e psicólogo formado pela PUC de São
sociais que enfrentamos em nosso Paulo, e doutor em filosofia da edu-
mundo conturbado. É preciso que ela caçao pela UNICAMP. Foi professor
se debruce sobre os sonhos que em várias Universidades, dentre as
alimentamos em nosso íntimo, sobre
quais a USP, no Instituto de Psico-
nosso desejo de uma vida mais digna,
logia, e atualmente está vinculado à
sobre o sentido que queremos dar às
nossas vidas, sobre as formas como PUC de Campinas. Tem 4 livros
podemos de verdade dar andamento às publicados antes deste, dos quais o
nossas mais legítimas aspirações. E último é Psicologia na Comunidade:
isso não apenas em termos individuais, uma experiência (nesta mesma
mas também em termos da comuni-
editora). Colaborou com capítulos
dade que constituímos, entre nós
humanos e com a natureza mãe que
em outros livros, e tem mais de 20
nos rodeia. artigos publicados em revistas
Este livro procura resgatar para a especializadas. Mas considera que
Psicologia, como estudo e prática de o mais importante nesse seu
desenvolvimento da pessoa humana, momento de vida é envolver-se com
aquilo que nos vem da tradição
outras pessoas interessadas em
humanista. Procura o sentido que pode
pesquisar praticamente os cami-
ter o humanismo para a psicologia
(cap.1), e os fundamentos desse senti- nhos do desenvolvimento humano
do numa fenomenologia da fala e do pessoal e comunitário.
silêncio (cap.2). Busca aplicar, em se-
guida, o que foi aí levantado ao campo
da pesquisa do humano (caps.3, 4 e 6),
à psicoterapia (caps.5 e 7), à constru-
ção de uma psicologia popular (cap.l l),
e ao esforço de construir uma comuni-
dade verdadeiramente humana (cap.9).

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