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narqulsmo e
Sindi~aIismo
apresenla~ão e nolas
Roàério B. i: Nastimenlo
Florentino de Carvalho
AnarqlislDll SindicalislIl
Apresentação
Rogério H. Z. Nascimento
*
Logo no primeiro parágrafo encontramos anunciada a disposição do
escritor: expor seu pensamento sem a preocupação de ser bem recebido na
sociedade ou entre os mais próximos. Esta atitude expressa bem o grau de
altivez e de consciência de si nutrido pelo autor. O segundo parágrafo como
que intensifica sua intenção iconoclasta inicial, relacionando o "desejo de
saber" com a primeira transgressão humana, segundo o relato exposto no texto
do mito de origem cristão.
4
*
Duas palavras a mais sobre algumas questões relativas ao texto
apresentado. Primeiro, sobre a autoria. Seguramente o autor deste texto é
15
*
Para finalizar, gostaria apenas de lembrar terem sido estes escritos
publicados num jornal operário! A série de artigos aqui apresentados foi
publicada em São Paulo, nos números 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 38
e 39 no que os editores denominaram 'nova fase' do jornal anarquista A Plebe.
Isto se deu entre os meses de maio a setembro do ano de 1933. Este jornal fora
criado no ano de 1917, tendo atravessado diversas fases até início dos anos
cinqüenta do século passado. Considerando o editorial do primeiro número em
que Edgar Leuenroth afirma ser A Plebe a continuação do jornal anticlerical A
Lanterna, fundado em 190 I, A Plebe remonta ao início do século XX. Este
periódico foi sem sombra de dúvida o mais importante jornal operário
publicado no Brasil. Em suas diversas fases foi semanal e quinzenal, chegando
a ser publicado diariamente no ano de 1919.
A Plebe foi um impresso publicado a partir da iniciativa voluntária e
dos esforços dos próprios trabalhadores, sem subsídio estatal nem imposto
sindical. Lembro deste "detalhe" para que o leitor contemporâneo tenha uma
idéia da modalidade de convivência experimentado entre os trabalhadores, do
nível de discussão. da densidade das leituras como também da amplidão de
horizontes cultivados entre simples "operários". Esta observação serve como
aviso sobre os limites estreitos da escolarização atual. uma vez que é a partir
dela que os pesquisadores contemporâneos têm se debruçado sobre este
campo. Como dar conta de um caldeamento de experimentos e concepções
que transbordam com os referenciais disciplinares utilizados, via de regra,
enquanto aporte conceitual na esmagadora maioria das pesquisas sobre o
anarquismo desde os anos cinqüenta?
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Anarquismo e Sindicalismo
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I Referência a Thomas Carlyle (1795 • 1881), historiador e ensaísta nascido na Escócia. Para ele, a
história expressava a vontade de Deus. Vontade esta manifesta na vida dos chamados homens notáveis,
Conservador ao extremo. defendeu a instituição da escravidão. Religioso fervoroso combateu o
liberalismo ao mesmo tempo em que propunha o retorno à Idade Média. Escreveu vários livros entre eles
um sobre a revolução francesa, interpretando este acontecimento como um castigo de Deus por conta
dos pecados da França.
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* * *
Todo o batalhar incessante da humanidade através de mais de cem
séculos (incluímos civilizações anteriores á cristã) tem eclosão numa epopéia
culminante na história: a grande Revolução Francesa.
Os servos do campo subjugados pelo trabalho excessivo, pelas gabelas
crescentes de dia para dia e pela fome. levantados em armas contra os
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* * *
Urge reagir contra uma sociedade que fez a história mais ou menos
defeituosa das elucubrações do pensamento - não do pensamento fecundo e
construtivo - e tem feito o panegírico e pretendido assegurar a perpetuidade da
paralisia das vontades.
Hoje mais que nunca devemos consagrar o máximo empenho em
libertar-nos do jugo funesto da metafísica.
É preciso estimular nos outros e em nós mesmos a vontade renovadora,
em todos os terrenos, nas mais diversas manifestações da vida. O edifício do
progresso material e moral têm sido levantados, invertendo nisso um
manancial enorme de energias revolucionárias.
Em frente da avalanche autoritária que invade todos os campos
estrangulando as iniciativas espontâneas é necessária uma reação vigorosa das
vontades progressivas.
Propiciemos um movimento social tão vasto e multiforme no qual
possam ter ubiquação todos os espíritos independentes.
Importa sobremaneira que cada um creia em suas próprias forças e
confie. educando-as simultaneamente, em suas faculdades pessoais.
Alegremo-nos de que os temperamentos e as inclinações sejam
múltiplas. O que interessa, acima de tudo. é que aumente sem interrupção à
vontade de fazer, seguindo sempre as diretivas anarquistas.
Reivindiquemos a atividade beligerante pelas boas causas das gerações
predecessoras mais heróicas.
É tempo já de deixar escrita com fatos a verdadeira história das ações
criadoras.
III
* * *
É fecunda em ensinamentos a história das investigações científicas e a
história da filosofia que, inspirando-se sempre na experimentação e ajustando-
se aos métodos indutivos, mantêm, à medida que a cultura da razão avança,
mais estreitos vínculos com a primeira.
Assim constatamos como nascem ao mesmo tempo na Grécia e entre os
árabes as ciências físicas e as exatas, e justamente nestas duas civilizações é
iniciada também a concepção das idéias filosóficas expurgadas de fantasias
espiritualistas e tendendo em seus princípios e em seus postulados morais a
uma aproximação às leis da natureza.
Mentalidades geniais da sociedade helênica são as que, recolhendo a
herança das verdades e experiências adquiridas pelos povos do Oriente,
colocam em um esforço atrevido a primeira pedra do edificio do saber
humano.
Sócrates coloca ao homem mesmo como fim da filosofia e esta,
despojada de toda a finalidade teista, deve consagrar-se a estudar as normas da
moral e as regras da conduta.
Aristóteles é o fundador da Psicologia e da Lógica.
Euclides e Pitágoras começam o trabalho das ciências matemáticas, sem
cujo poderoso auxilio não teríamos chegado ao portentoso desenvolvimento
técnico da cultura moderna.
Arquimedes é o obreiro infatigável que estabelece os alicerces da
Física.
Heródoto empreende longas viagens pelos povos antigos, obtendo
copiosas observações e recolhendo as suas tradições e lendas é o criador da
História.
Ao meritíssimo trabalho deste no referido estudo, seguiu-se em
importância a monumental obra "Vidas Paralelas" de Plutarco.
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2 Em franco combate à explicação teológica do mundo fisico e humano, o pensamento científico opôs à
revelação divina a razão humana. O conhecimento do mundo passaria pela capacidade humana de
observação e experimentação e não pelos dogmas do cristianismo .
.1 Aristóteles (384-322 a. c.) forjou a noção de causa para explicar o movimento. Quatro seriam as causas;
material, f0I111aL eficiente e final. A causa primeira de tudo seria Deus. a forma pura, privada de matéria.
Aristóteles afirmava ser Deus 'motor imóvel' de onde partiria, encadeando-se, todos os movimentos e
toda a existência tinha como objetivo chegar a Deus.
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* * *
Como continuadores da pugna incessante na atividade do pensamento e
no trabalho paciente da elaboração da ciência, sucede aos fautores dos grandes
movimentos mencionados, uma geração de potentes mentalidades no século
XVIIl.
Com Buffon começa a escola naturalista, cujos trabalhos são
prosseguidos depois por Lamarck, Geofroy de Saint-Hilaire, Darwin, Lubok,
Russell, Wallace, etc.
Herbert Spencer é o cérebro abarcativo que edifica a filosofia
evolucionista com os materiais oferecidos por esta escola.
Laplace e Euler - este homem abnegado que continua consagrado ao
trabalho depois de cego aos sessenta anos - completam a obra de seus
predecessores na astronomia e nas matemáticas.
Franklin, Jaime Watt, Volta, Faraday, etc., são posteriormente os que
cumprem a missão importantíssima de aplicar as investigações do saber ao
trabalho e à técnica.
Ao mesmo tempo, os economistas ingleses, os Mill, Smiles, Bentham,
etc., e os enciclopedistas franceses', Diderot, D'Alernbert, Voltaire, Rousseau,
Montesquieu, Morelli, Mably, e tantos outros dão um novo impulso aos
conhecimentos humanos abrindo o caminho à primeira República burguesa.
E como corolário da revolução de si, do desenvolvimento científico e
filosófico e do progresso geral humano, aparece no cenário da vida social. das
idéias, o pensamento socialista.
IV
.jEnciclopédia ou Dicionário Lógico das Ciências, Artes e Oficias foi publicada na França em 28
volumes entre 1751 e 1772. Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond dAlembert (1717-1783)
dirigiram a realização desta iniciativa bastante significativa para o pensamento ocidental, coordenando a
colaboração de nomes expressivos do iluminismo francês. Inicialmente pensado para ser um simples
dicionário, a Enciclopédia se tomou uma importante obra de combate ideológico.
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* * *
Como já mencionamos, tem já uma história remota a reivindicação do
direito à terra.
Os chamados profetas da civilização da Judéia, Isaias, Malaquias, etc.,
já falaram de um reinado de igualdade para os seres humanos, sem que em sua
linguagem se fizesse referência - como se pretendeu falsear depois - a um
paraíso de ultratumba.
Sabe-se também que entre os Essênios era desconhecida a propriedade.
De diversas iní1uências recebidas neste mesmo sentido, toma seu
caráter e natureza comunista a propaganda social da primeira e segunda
geração dos militantes e adeptos do cristianismo.
É igualmente conhecido a este respeito o pensamento dos denominados
primeiros pais da Igreja Católica.
Este sentimento. reivindicado mais tarde pelos anabatistas e por outros
movimentos de rebelião, e - o que é mais importante - praticado por muitos
povos contra a cobiça dos príncipes e sacerdotes e contra as prédicas
usurpadoras do código romano, sobreviveu, apesar de todos os embates
recebidos, até aos tempos modernos.
E chega a incorporar-se mais vigoroso porque se associa ao pensamento
livre em novas lutas que são travadas por ambos.
Assim encontramos, pela metade do século XVI, a um pensador
original que advoga energicamente para que em nome da justiça cheguem a ter
realização um e outro. Pode-se obter comprovação deste asserto em Etiene de
La Boetie no seu "Discurso sobre a servidão voluntária".
Referindo-se ao modo como deveríamos viver em sociedade e em
harmonia com as leis naturais, escreveu o amigo de Montaigne: "Esta boa mãe
deu-nos a todos a terra por morada, e fez-nos do mesmo barro, a fim de que
cada um se possa mirar e reconhecer no seu semelhante; e, por último tendo
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querido unificar-nos, não resta a menor dúvida de que todos somos livres por
natureza, porque todos somos companheiros, e não pode caber em humano
entendimento que a natureza haja colocado a determinados homens em
servidão, tendo-os a todos posto na sociedade".
Simultaneamente, na época de haver formulado este principio de ordem
geral, Tomaz Mórus dá a conhecer a sua famosa "Utopia", livro em que
apresenta com caráter de fato concreto a idéia de igualdade. Ao utopista
decapitado por Henrique VIII, sucede outro atrevido pensador, como este
também vítima das iras de um rei fanático e cruel. Tomaz Campanella, o
rebelde atormentado durante tantos anos pelo sombrio Felipe Il, concebe
também a sua não menos interessante "Cidade do Sol".
A estas ideações de uma vida igualitária segue-se o "Telêmaco" de
Fenelón.
E após estes aparecem entre os enciclopedistas, os homens que com
especial predileção, com mais precisos conhecimentos e com maior
profundeza de conceito, começam a elaborar o que, em termos não bem
precisos ainda, se entende por filosofia social.
Até aqui, mesmo que o pensamento haja tido sempre um fermento
Iibertário, quase sempre foi exposto partindo de princípios autoritários.
Mas. por fim. as energias impetuosas da idéia renovadora chegaram a
quebrar os artificiosos canais, os rígidos moldes do autoritarismo.
Em suas duas obras "Brasiliada" e "Codigo da Natureza", concebe e
expõe Morel1y um novo sistema de convivência social em que cada membro
integrante do mesmo encontre o "livre exercício das paixões, encaminhadas
para o bem". Proclama, entre outros, estes princípios: "A unidade indivisível
do solo e da habitação comum". "Estabelecimento do uso comum das
ferramentas do trabalho".
"Uma educação completa a todos acessível". "Distribuição dos
empregos e funções segundo os gostos e as aptidões, o trabalho segundo as
forças e os produtos segundo as necessidades".
Semelhantes afirmações também às faz Mably ainda que, usando uma
linguagem em que invoca o Estado, revelando, às vezes, por conseqüência. um
espírito menos amplo.
Porém em outros momentos, transpondo estes limites, que sem dúvida a
educação lançou na sua mente. estabelece que as causas do mal estar social
residem na desigualdade de condições econômicas, nos governos com os seus
males deles derivados: a política e as leis. E assinala duma maneira bem
precisa que a mais funda raiz da árvore funesta que deverá ser cortada, é a
propriedade privada.
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* * *
À luz da Enciclopédia e aproximando-se da viva experiência
revolucionária, a idéia socialista adquiriu contornos mais precisos e fez-se
conhecer com linhas de mais relevo.
Sem embargo. não saiu ainda de seus primeiros começos.
Estão-se agora adquirindo novos materiais para uma elaboração mais
completa. Quesnay e Turgot da escola fisiocrata', assentam uma nova
premissa em matéria política: Diderot e Holbach retomam a rota materialista'
do pensamento, aberta 20 séculos antes por Demócrito e Epicuro.
À anterior escola segue-se o Positivismo? de Comte e seus discípulos.
O desenvolvimento destas escolas, juntamente com o novo conceito da
moral imanente" estabelecido por Hobbes e outros, as investigações
etnográficas, da biologia, da antropologia e da psicologia modernas oferecem,
por fim. uma base incomovível para alicerçar sobre ela a sociologia
verdadeira.
* * *
5 François Quesnay (1694-1774) nascido na França e renomado médico da corte de Luis XV. é
considerado por muitos economistas como o criador da primeira escola de economia, em que pese
alguns economistas atribuírem este fato à Escola Clássica. Talvez este entendimento se deva ao fato da
influência dos fisiocratas ter sido breve, ao contrário da Escola Clássica. Fisiocracia significa governo da
natureza. Os quatro postulados desta escola são: ordem natural, laissez-faire e laissez-passer, ênfase na
agricultura e reforma tributária. "Quadro Econômico" é o título do livro escrito em 1758, em que expõe
suas idéias para uma organização da economia. Pierre Sarnuel du Pont de Nemous publicou em 1767
uma coleção dos textos de Quesnay com o título "A Fisiocracia ou a constituição natural do governo a
mais vantajosa para o gênero humano". Anne-Robert-Jacques Turgot, um dos principais seguidores de
Quesnay, enquanto ministro das finanças da França, procurou aplicar em 1774, as idéias de seu mestre.
Com a recusa dos proprietários, Turgot foi exonerado, ocasião para o fim da fisiocracia.
(. Para estes filósofos, a matéria era composta por pequenas partículas indivisíveis, os átomos. Suas
reflexões se dirigiram na direção de explicações materiais dos fenômenos naturais, discordando da
orientação transcendental defendia por outros filósofos.
7 O Positivismo do francês August Comte tI 789-1857), personagem importante na constituição da
Sociologia, possui como uma de suas características mais destacadas a ênfase na razão e, por
conseguinte, na observação e exame humano como forma de conhecer os fenômenos naturais e os
fenômenos humanos .
x O inglês Thomas Hobbes (1588-1679) foi rejeitado por monarquistas e republicanos. Recusava a idéia
de direito divino como base da monarquia, no que desagradou aos monarquistas ao mesmo tempo em
que era crítico da idéia republicana. Para ele as instituições humanas eram resultados da vontade humana
e não frutos de algum ser transcendental.
-
32
v
Todas as revoluções através da história têm sido feitas depois de ter-se
operado previamente uma transformação mais ou menos fundamental nos
costumes e nas idéias.
Pois bem: essa mudança foi eficaz e resultou verdadeira em maior ou
menor grau na medida em que recebeu a sua inspiração em anelos de
liberdade e em desejos de progresso.
É por isto que em virtude de tantos fracassos e após muitas observações
e experiências, os povos, tantos séculos oprimidos e os espíritos emancipados
teriam de sentir a necessidade e apresentá-Ia de mudar o rumo da história para
destinos de superior convivência.
Ao socialismo que se tinha nutrido de todas as investigações do
conhecimento e constituiu, ao incorporar-se à vida do pensamento, a
expressão das vontades humanas, lutando sem cessar pela redenção dos
oprimidos, devia caber a enunciação e a solução teórica, no principio pelo
menos, de tão magno problema.
* * *
Expostas as origens da idéia socialista, definamos a sua significação
para melhor compreensão do assunto que tratamos.
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que esta por sua vez impusesse uma evolução forçosa às instituições políticas
que lhe são consubstanciais, ainda que sempre superposta em cada época.
Dos primeiros marxistas tão enfaticamente qualificados pelos seus
próprios autores e divulgadores, de científicos, inferem-se os primeiros
corolários: I ° O homem é produto e instrumento cego do meio; este influi nos
sentidos e orienta em todos os momentos e circunstâncias as faculdades e
inclinações volitivas do indivíduo, sem que nunca possa produzir-se o
fenômeno inverso. (Cremos que é Sorel quem afirma que "as invocações ao
direito e àjustiça não farão adiantar um só passo no caminho da historia.").
2° - Que em maior grau que o meio material, é o ambiente econômico e
os órgãos criados pelas necessidades do mesmo, os que fazem do individuo
um prisioneiro, impondo-lhe um cometimento inevitável e obrigando-o a ser
servo voluntário ou involuntário para a realização iniludível dos fins de cada
ciclo histórico. (Idéia mecanicista esta última, tomada em parte de Comte e de
Spencer e requentada para ser encaixada em um molde ou sistema mais
estreito ).
3° - Que os males existentes reconhecidos como tais, engendrados pela
estrutura social de cada período, só podem ser superados por um processo de
tempo durante o qual se opera o desgaste natural dos mesmos em virtude das
mudanças trazidas pelo progresso que é a negação constante do ponto de
partida. (Filiação hegeliana do marxismo).
Pois bem: daquilo que laconicamente deixamos dito, não se toma já
presumível que haveria de ser demasiado estreita a base filosófica onde os
teóricos do determinismo econômico" quiseram levantar o seu sistema
pretensamente cientifico?
Vejamos como o socialismo não podia caber dentro das quatro paredes
de tão acanhado edificio.
* * *
Negar a independência - sempre relativa, como todas as demais coisas
da vida - do homem ante o meio circunstancial que o rodeia, apagar duma
penada a sua autodeterminação, o fator denominado determinismo
') Os autores detenninistas explicam o conjunto da experiência humana a partir da primazia de alguma
instância social sobre as demais. Desta maneira os detcrministas geográficos explicam as criações
humanas a partir do meio ambiente; os detenninistas biológicos elaboram seus estudos dos grupos
humanos a partir dos caracteres do fenótipo e da idéia de raça; os deterministas religiosos o fazem a
partir do pensamento como elemento intrinsecamente religioso. O deterrninismo econômico procura
elaborar explicações da vida social humana a partir da dimensão econômica da sociedade. Assim, as
instituições jurídicas, políticas e ideológicas da sociedade humana seriam abordadas enquanto frutos de
sua base econômica.
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VI
Palavras ilegíveis.
](I
II Dialética é uma palavra grega, dialegein, que significa discutir. Marx tomou de empréstimo a Hegel o
seu sistema di al ético, afirmando fazer deste um uso inverso de seu mestre. Hegel entendia ser o mundo
uma expressão da idéia e Marx afirmava exatamente o oposto. Para Marx, portanto, as idéias eram antes
frutos do mundo material. Em sua dialética a noção de embate de contrários é fundamental, saindo desta
luta uma síntese superior ao estado anterior. Este método utilizado para o estudo da sociedade
estabelecia que as mudanças aconteceriam apenas na medida em que todas as capacidades de urn certo
estágio social fossem esgotadas. No caso, com a primazia da infra-estrutura econômica sobre as demais
dimensões sociais, haveria que ocorrer o esgotamento de um modo de produção para que o seguinte
fosse estabelecido.
38
* * *
o Estado foi através de todas as épocas e em todos os povos a resultante
nos fatos dos impulsos violentos da animalidade no homem primitivo; a
consagração do fato brutal, como fenômeno natural e como realidade
iniludível e insuperável da divisão em castas e do predomínio duma minoria
sobre o conjunto da espécie humana.
Claro está que as classes beneficiárias de tão absurdas situações
históricas, enquanto elaboravam a teoria da dominação do homem pelo
homem, viram-se sempre obrigadas a conter os embates da evolução e do
progresso pela efusão de sangue e pela moral do escarmento, para fixar na
mentalidade das criaturas a mais irracional e cega fé na invulnerabilidade das
tradições passadas e dos princípios herdados. Daqui as lutas intermitentes
entre a liberdade e o autoritarismo.
O Estado, como instituição orgânica, tem sido, pois, o Ideal convertido
em principio de realidade, da violência organizada, e os modernos sistemas,
intitulados fascista e comunistas, representam o supremo esforço do
trogloditismo sobrevivente para plasmar nos fatos a utopia autoritária.
Eis aqui a senha de Moscou e a palavra de ordem do histrião de camisa
preta: "tudo para o Estado, nada contra o Estado ou fora do Estado".
Até 1914, excetuando alguns instantes turbulentos na história moderna,
não se havia tido a pretensão brutal, o propósito ousado, de desconhecer ao
individuo de modo absoluto, de estrangular tudo o que fosse autonomia na
ação, liberdade do pensamento e respeito à exteriorização do mesmo.
Depois, porém, da mais sangrenta e desapiedada das guerras, o
autoritarismo ressurgiu agigantado e impetuoso: uma grande calamidade,
talvez a maior do século XX, serão as ditaduras sem exceção, como resultado
fatal e lógico da educação cristã, marxista, da cultura estatista, do fomento da
servidão voluntária nas multidões e da exaltação da força nas trincheiras,
durante a bestial matança de 1914-18.
Apesar disso, como se se tratasse de uma ironia cruel, segue-se não
obstante oferecendo o incenso da cultura e pedindo o tributo das energias e o
holocausto das vidas humanas para alimentar e render culto a esse monstro
feroz que as mais equilibradas individualidades humanas têm vindo
abominando.
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* * *
É de uma comprovação evidente que em mais de uma centúria de
hesitações democráticas, a luta social dos povos, longe de interromper-se ou
atenuar-se, tem sido, pelo contrário, intensificada e alargada.
Nesse período de tempo, justamente, é que se desenvolveu a filosofia
libertária.
Desde Godwin a Proudhon, desde Dejacques e Courderoy a Kropotkin,
desde Most, Parsons, Spies, Ling, etc., a Ferrer e Landauer, desde Stirner e
Tucker a Reclus e Louise Míchel, durante a vida larga e austera de
Dumartheray, fecunda e dinâmica de MeIla e Malatesta; de Bakunin a Bertoni,
Rocker e Max Nettlau'" (e quantos nomes, símbolos de laboriosidade,
II Existem atualmente disponíveis no Brasil poucos escritos de alguns destes autores. Proudhon,
Kropotkin, Bakunin e MaJatesta são os que mais foram publicados, sem que isto signifique existir uma
publicação próxima de ser completa da produção de cada um deles. Proudhon, por exemplo, publicou
cerca de quarenta livros dos quais apenas dois foram publicados completamente no Brasil. Suas
correspondências foram publicadas na França em catorze volumes. A editora L&PM de Porto Alegre
publicou nos anos oitenta do século passado uma coleção chamada "Biblioteca Anarquista" com artigos
e extratos do pensamento de Proudhon, Mal atesta, Kropotkin e Bakunin. A mesma editora publicou
também outra coletânea intitulada "Grandes Escritos Anarquistas." contendo extratos do pensamento de
diversos anarquistas, alguns deles presente na referência acima. Esta antologia foi introduzida por
40
VII
George Woodcock. De Reclus apenas o livro "A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista" foi
editado no Brasil em 2001 pela Editora Imaginário de São Paulo. Antes disso a Editora Ática publicou,
nos anos oitenta na Coleção Grandes Cientistas Sociais, uma coletânea de textos de Rec1us com uma
apresentação elaborada pelo geógrafo Manuel Correia de Andrade. Nesta mesma coleção há um volume
com textos de Proudhon introduzidos por Edson Passetti e Paulo-Edgar Resende. Verve - Revista do
Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP tem publicado tanto artigos de alguns destes anarquistas
- como Proudhon, Bakunin, Stirner - como sobre estes e outros anarquistas. Em seu número cinco (maio
de 2004), Verve publicou de William Godwin o Livro VII de seu "Um Inquérito Concernente à Justiça
Política" publicado em 1793. A Editora Imaginário de São Paulo tem publicado Proudhon, Bakunin.
Kropotkin, Malatesta e Stirner, A Editora Achiamé publicou um livro com os depoimentos dos
chamados Mártires de Chicago na ocasião de seu julgamento, com uma introdução feita por Ricardo
Mella, Se atualmente, entre interessados pelo tema como por anarquistas, o- conhecimento do
pensamento destes pensadores é bastante restrito, é fácil observar nos jornais operários anarquistas do
período aqui tratado haver por parte dos trabalhadores um conhecimento mais largo em t01110das obras
dos referidos autores. Nas colunas dos jornais e revistas anarquistas havia sempre uma seção intitulada
"Leituras Recomendadas", "O que se deve ler", "Leituras sugeridas" ou algum termo equivalente. Havia
assim a possibilidade de o leitor adquirir os livros comprando-os junto ao coletivo de editores. Para tanto
os editores estampavam, em geral, a listagem dos livros da biblioteca do grupo com os respectivos
preços. Português. espanhol e italiano eram os idiomas mais divulgados nos jornais do eixo Rio-São
Paulo. Muitos jamais, sobretudo em São Paulo, publicavam a maioria dos artigos em português. mas
com seções em italiano e espanhol. Alguns jornais foram publicados todos em italiano, tamanho era o
número de operários oriundos da Itália.
41
* * *
o regime cristão-estatal-capitalista deu à humanidade uma terrível
lição: a demonstração de que a escravização das consciências, o predomínio
sobre o pensamento e a dominação corporal, a exploração do esforço muscular
dos homens, sempre converterá num inferno dantesco a vida social e apressará
cada vez mais a degradação progressiva da espécie.
O Estado é uma entidade que se converte sempre em horrível realidade
quando temos à vista e podemos examinar detidamente qualquer de seus
agentes ou representantes: o juiz, o burocrata, o gendarme, o político
profissional.
Descristianizai e descapitalizai a atual ordem de coisas e convertei o
Estado em Deus e em patrão único.
Obtido este propósito, terá sido resolvida a grande questão?
Toda a gama de tipos autoritários, dogmáticos, cegos executores da lei,
autômatos obrigados a cumprir inexoravelmente o dever de sua função, ficam
de pé. O mal que se pretende eliminar, longe de conjurar-se, aumentou-se,
porque a instrução estatal e monopolista estenderam aos membros ativos que a
sustentam suas atribuições omnimodas.
Suponhamos por um instante que tivesse sido realizado na Rússia o
mentido comunismo do Estado. Haveria quem fascinado ante este fato tivesse
a ousadia de afirmar que simultaneamente teria mudado a sorte do povo?
Conseguir-se-á quando muito, seguindo esta via, solucionar em mais ou
menos tempo o problema econômico. Mas poderiam, no fim de contas, os
doutores da ciência econômica, os catedráticos da economia política, afirmar
seriamente que a felicidade do homem há de concretizar-se no que poderíamos
chamar o ideal do porco, que consiste em só engordar?
O homem não é um animal indômito ao que há que domesticar e cujas
necessidades se reduzem à satisfação apenas de simples instintos biológicos.
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* * *
Infere-se de tudo que fica dito que o anarquismo não é uma doutrina de
gabinete, que as doutrinas anarquistas não constituem fórmulas elaboradas
para que sirvam de decálogo às gerações do futuro.
O anarquismo é o postulado ideal que trata de interpretar a vida em toda
a sua diversidade. A anarquia será a sociedade futura em que, livre a
humanidade, ou uma parte desta, dos grandes obstáculos que impedem a livre
canalização das paixões humanas e o máximo desenvolvimento das aptidões
do homem, será começado um novo ciclo de verdadeira civilização.
De nenhuma maneira será um sistema cerrado e uniforme a organização
da vida que os anarquistas preconizam. Logo a associação do homem na
federação das agrupações livres não pode estar exposta á falência como esteve
e estará sempre destinado à bancarrota o "Estado-prisão".
VIII
Sociais e Geografia, nada vêem sobre sua contribuição particular. Ainda mais pelo fato dele ter sido
também um homem de ação, tendo participado, de armas na mão, na Comuna de Paris em 1871. Os
cursos de Ciências Sociais, por exemplo, quando apresentam os pensadores evolucionistas, limitam-se
aos "evolucionistas vitorianos'' deixando de lado os "evolucionistas revolucionários", como Reclus e
Kropotkin se definiam. Estes evolucionistas discordavam das concepções de evolução linear, da idéia de
progresso necessariamente lenta recusando revoluções e retrocesso como estabelecido pelos vitorianos.
Para Reclus a evolução não exclui a revolução, constituindo apenas no mesmo dinamismo transformador
dado em ritmos diferentes. Eles não concebem a estagnação na vida social humana. Assim a evolução e
a revolução traduzem mudanças que podem ser lentas e podem ser rápidas. A evolução não é unilinear e
comporta possibilidades de retrocesso. Ainda mais, a evolução pode ser violenta ou pacífica, do mesmo
modo que a revolução. Suas monumentais obras intituladas "Geografia Universal" e "O Homem e a
Terra" não tem publicação no Brasil.
44
* * *
o Estado é para a sociedade o que para o individuo é a prisão.
Nesta o homem deforma-se psiquicamente; para a imensa maioria
degenera progressivamente a sua fisionomia moral. E quanto mais metódica
seja a sua disciplina, quanto mais rígidos os seus regulamentos, quanto mais
l.f Aristóteles elaborou sua obra dividida em Filosofia primeira e Filosofia segunda. Tratam as duas,
respectivamente, de deus e do imutável e do mundo físico. No século I Andrônico de Rodes classificou a
obra de Aristóteles colocando a parte da Filosofia primeira depois da Filosofia segunda. Desde então
metaflsica é a parte da filosofia que trata do que está além do mundo físico.
15 Os jacobinos compunham um grupo de conspiradores que, durante a Revolução Francesa de 1789,
defendiam uma reforma da sociedade a partir de concepções centralizadoras e autoritárias.
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* * *
Não temos podido fazer mais sincera confissão.
O Anarquismo, ao contrário do que dizem os corações mesquinhos da
classe média, ao contrário do que dizem as almas taradas pelo vicio
hereditário da submissão, não é um ideal de vingança nem uma paixão
mórbida de inveja ou de terror.
É a idéia universal de justiça contida em todos os movimentos de
rebelião, é a ânsia reparadora da multidão. É a liberdade do individuo e do
gênero humano cujo extermínio a Santa Inquisição não conseguiu com as suas
fogueiras; é a verdade da ciência, o fruto do trabalho, a luz do pensamento que
hão de ser convertidos em comum patrimônio de toda a humanidade.
47
IX
* * *
Temos confirmado que o anarquismo é, antes que um postulado
doutrinário, um movimento voluntarista.
Vejamos de que modo orientar com mais acerto esta vontade, quais
meios práticos e que métodos serão mais eficazes para que as vontades
socialista-anárquicas possam influir sobre as presentes condições sociais como
uma potência de transformação.
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* * *
Desde meados do século passado. em que o capitalismo - aproveitando
invenções mecânicas, novos e mais técnicos processos dos métodos de
produção - iniciou um novo ciclo de prosperidade, um novo tato social se
apresenta na vida moderna: o aparecimento do proletariado.
Os operários industriais, aglomerados nas grandes fábricas dos centros
de população, vitimas de uma maneira cada vez mais intensa da "férrea lei do
salário", tosquiados e oprimidos dum modo sem cessar crescente em
celeridade e em extensão, chegam por fim, depois de cruéis sofrimentos, a
sentir-se irmanados pela dor.
Determinados por esta situação econômica e moral, os trabalhadores da
Europa ocidental realizaram no período de 1830 a 1860 a primeira etapa de
um movimento associativo que depois se tomaria geral. Organizações de
proletários de diversas profissões foram constituindo-se neste decurso de
tempo com fins de apoio mútuo e defesa comum.
Como resultado deste processo de fatos e de vontades, sobreveio em
1864 à formação da Associação Internacional dos Trabalhadores.
A partir daqueles anos, o movimento operário que associa aos
explorados para resistir aos embates da exploração, seguiu com incremento e
demonstrando constantemente mais vigor em seus vínculos de solidariedade.
Mas note-se bem: a velha A. L T. foi edificada sobre uma base
puramente corporativa. Karl Marx pronuncia a famosa expressão:
"Trabalhadores do mundo, uni-vos". Esta proclamação oferece-nos, com uma
face bem clara, a fisionomia moral da 1a Internacional.
O mesmo homem. alentador deste grande movimento unionista,
quebrantará depois o propósito indefinido da associação. querendo
encaminhar as ações que a integram pela estrada do refonnismo e da conquista
do poder.
Tal orientação que implicava num desvio flagrante, numa claudicação
da rebeldia exteriorizada contra o jugo patronal e contra a dominação
autoritária, devia encontrar uma resistência. Os operários espanhóis,
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jurassianos, italianos, etc., possuindo uma compreensão mais ampla dos fins
que o proletariado organizado devia traçar-se, expressaram a sua rebeldia, a
sua inconformidade contra o pensamento tortuoso do Conselho Geral daquela
entidade. Mikhail Bakunin sustentou, interpretando o pensamento de todos, a
oposição mais rude e tenaz.
É indubitável que toda agrupação humana, cujos membros se
associaram determinados por uma vontade sentida, deverá traçar-se também
uma finalidade. Lógico era, pois, que sendo um desejo revolucionário o que
unia aos trabalhadores de todos os países, se propusessem como objetivo
comum chegar a uma transformação profunda, preparar as condições
indispensáveis para uma revolução social.
O movimento orgânico dos trabalhadores que se tem inspirado, com
declarações mais ou menos precisas, em um ideal inovador, cujos
componentes aspiram a uma mudança fundamental das bases e da estrutura
orgânica da sociedade, é o que se tem qualificado com o termo sindicalismo.
Pois bem; permita-se-nos perguntar: este nome vai mais além de uma
simples e convencional denominação?
Ninguém ousará negar que antes de conhecer-se este termo - antes que
os camaradas anarquistas da França prestassem, inventando-o, um fraco
serviço às idéias - não existisse o movimento operário, as organizações
proletárias, ou bem seguindo uma trajetória reformista ou inspirada num anelo
de revolução.
Para que, então, novas classificações gramaticais? O verbalismo em
nossas atividades intelectuais é uma funesta herança do culto latino à Retórica
e do tributo rendido na Idade Media à Metafisica, cujas conseqüências
confusionistas haveremos de suportar por muito tempo ainda.
É de lastimar que os nossos companheiros franceses, Pouget, Ivevot,
Theílier, Pelloutier, Tortilier, etc., não tivessem em conta as lições de sadia
reação contra tudo que significa aparatosidades lingüísticas e complicações
inobjetivas da vida e do pensamento, seguindo o exemplo do mestre das letras
francesas e nosso grande precursor François Rabelais!
Temos impugnado nas linhas precedentes, não só o defeito da
logomaquia infiltrado na esfera do pensamento revolucionário, mas também -
e o que é pior - as complicações levadas ao terreno das determinações e da
atividade quotidiana.
Que esta observação corresponde a uma lamentável verdade comprová-
lo-emos ao examinar as direções que tem seguido a vontade de fazer,
inspirada e alentada pelo pensamento anarquista, que por sua vez - não há que
esquecê-lo - foi concebido e elaborado recolhendo experiências e consultando
fatos.
50
x
Que o sindicalismo não tem natureza própria - ao contrário do que não
há muito afirmava um camarada - prova-o o fato de que pode ser social-
democrata ou bolchevista, fascista ou católico, anarquista, etc. Não sendo mais
que o nome dado ao movimento operário, ele terá o caráter que lhe infundam
com a sua mentalidade e o seu temperamento as minorias ativas que o
orientam.
As discrepâncias de pensamento suscitadas no seio da Internacional
motivadas pela orientação que devia dar-se às "sociedades de resistência"
apresentaram um importante problema aos militantes das mesmas: a escolha
dos meios conducentes ao fim comum de transformar a sociedade.
É conhecida a diferença de critério a este respeito, quanto aos métodos
de luta a seguir entre os chamados marxistas e bakuninistas, entre autoritários
e libertários.
O congresso anti-autoritário, celebrado em Setembro de 1872 em Saint-
Imier, representa a rebeldia da liberdade - que inspirou a fundação da A. r. T.
- contra o dogma autoritário e o espírito de dominação, encarnado em Karl
Marx e os seus amigos.
Desde então até hoje, a separação das organizações proletárias em todos
os países, seguiram direções diferentes, é inevitável.
Muito empenho foi posto e muito boas intenções têm sido consagradas
ao propósito de retomar à unidade.
Grande número de companheiros anarquistas tem sofrido,
obsessionados por esta idéia, de excessiva ingenuidade.
Felizmente, parece que as duras lições oferecidas pelo tempo chegaram
a dissuadi-I os do intento vão de estabelecer um acordo dentro dum mesmo
marco de luta para alcançar o ideal comum de emancipação.
É sabido que, quando estava pra fazer-se a luz, uma nova corrente de
vontades fez a sua aparição, pretendendo incorporar às idéias socialistas, com
a denominação de Sindicalismo, uma nova doutrina social.
Cerrando os olhos ante a investigação serena do passado, ante a
realidade instrutiva do presente e em face aos verdadeiros destinos do futuro,
anunciou-se ao mundo operário, a descoberta de uma nova orientação. Para
alcançar o fim, em cuja direção tinha que se encaminhar, rotas diferentes às já
conhecidas haveria que seguir. E para não sofrer extravio, dispor-se-ia
também de uma bússola especial.
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* * *
Temos lido e ouvido repetidíssimas vezes definições expostas neste
teor:;;0 sindicalismo é o movimento corporativo das classes trabalhadoras em
luta permanente contra o seu inimigo natural, o capitalismo".
"Sindicalismo é a denominação com que se conhecem as lutas da classe
operária na defesa de seus interesses contra o capital. É o resultado fatal da
concentração de jornaleiros nas grandes fábricas dos centros de população
industrial. A passagem do artesanato à manufatura e a transmissão desta aos
estabelecimentos de dispositivos mecânicos, facultaram as condições de
dissociação entre produtores legítimos e produtores nominais: a máquina
quebrou os velhos vínculos morais que caracterizavam a vida da oficina; o
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XI
* * *
Já o temos insinuado: cada proletário que se agrupa aos demais nas
sociedades gremiais, faze-o, na maioria dos casos, alentados por um propósito
defensivo. Não se propõe destruir a cadeia da exploração, libertar o pescoço
da gargalheira do salário; crê religiosamente que aquela será eterna e aspira
simplesmente a conseguir maiores forças para que lhe resulte menos pesada;
deseja unicamente não ser estrangulado por este. Conforma-se em permanecer
jungido ao carro da miséria, desejando apenas não suportar o jugo da fome.
É esta a que poderíamos qualificar de matéria prima, com que em suas
bases estão formados os sindicatos.
A cada sindicato profissional concorrem os operários considerados
como elementos de um oficio determinado: alfaiates, sapateiros, pintores,
padeiros, tecelões, etc. Mas haveriam de ser subjugados na oficina e na
fábrica, pela profissão, e escravos fora dela por uma sempiterna mania
profissional?
Lopes Arango disse com grande acerto: o indivíduo vale pelo que pensa
e não pelo que produz. Quer dizer, seu valor distintivo está no que o homem
supõe como unidade consciente e determinante do progresso e não como fator
cego e forçado da produção.
Não terão os operários padeiros, por exemplo, um valor nem individual
nem coletivo para a marcha ascendente de um povo, pelo fato de prepararem
as massas do pão, de trabalhar até ao esgotamento, atendendo com seu esforço
uma necessidade iniludível da população. Mesmo sentindo o orgulho de
elaborar o manjar mais indispensável à vida, não passaria, quem tal
necessidade sofrera - se não tivesse outra virtude - de instrumento de
trabalho, de motor de sangue, de animal de tiro no carro da produção.
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* * *
São incontáveis as tolices que se têm intentado fazer passar por
princípios filosóficos.
Calino pretendeu, às vezes, valorizar as de menos sentido e de menos
bom gosto, ilustrando-as, para maior compreensão, com alguma estupidez.
Algo disto ocorreu com respeito ao assunto de que nos estam os
ocupando.
Tem-se dito: o sindicalismo é a doutrina da ação como o anarquismo o é
do pensamento.
O sindicalismo é o braço, enquanto que o anarquismo é o cérebro da
revolução.
O sindicalismo libertário será, é já de fato, o veículo em que devemos
embarcar-nos; a anarquia é o longínquo e luminoso ponto do horizonte ao qual
nos devemos dirigir.
Ungüento de retórica, incenso literário, verborragia!
Por acaso a doutrina da verdadeira ação revolucionária não é o
pensamento anarquista, e este não se traduz em sentimentos e em fatos como
já temos dito e provado mais de uma vez?
O anarquismo não é um fluído etéreo que se corrompe em contato com
as coisas dos mortais e se converte em pó e lodo quando desce das alturas.
O descontentamento momentâneo e circunstancial dos explorados deve
ser convertido em raciocínio critico, em sentimento criador, e projetado em
aspirações de liberdade: deve traduzir-se no desejo constante de chegar a uma
fundamental transformação das relações econômicas e morais. Eis ai o dever
dos anarquistas.
Onde deverão cumprir esse dever senão em todos os lugares em que
prestem o concurso de sua atividade pessoal?
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* * *
Quer-se um materialismo grosseiro e rastejante, senhores sindicalistas
catalães?
Em resposta a tão mesquinha pretensão, aconselhamos - permita-se-nos
este atrevimento - a leitura do folheto de R. Rocker "A maldição do
praticismo". Entretanto, aplaudimos aos anarquistas espanhóis que. depois de
repelir o marxismo pela porta, não permitiram que penetrasse no movimento
operário pela janela.
Pelo contrário vós, anarquistas, quereis a idéia sem mancha?
A posse desta só pode ser privilégio de raras individualidades: de um
Reclus, de Louise Michel, Fermino Salvochea, E. Malatesta. Poderá
encontrar-se integra em um Max Netlau, mas nunca em agrupamentos
humanos.
Não estejamos iludidos.
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* * *
Insistamos pela última vez: o sindicato - ou como se queira chamar -
enquanto está no seu papel de agrupação de homens que estão vinculados
estreitamente à vida social, como elementos indispensáveis à sociedade
capitalista, julgamo-Io um dos meios mais eficazes de atividade
revolucionária.
Naturalmente quando homens de pensamento e de temperamento
revolucionário e dinâmico influam na sua orientação.
Vejamos: se os assalariados agrupados nas associações proletárias; se os
escravos do capitalismo, ligados pelo interesse comum e estimulados pela
solidariedade na luta, se declaram em rebeldia contra o capital, não será
afetado o seu equilíbrio de uma forma mais real dentro das atuais condições de
vida?
Se o Estado quer impor aos trabalhadores uma lei mais ignominiosa que
as demais, com as mesmas forças de ação anti-capitalista poderá ser travada a
luta anti-estatal.
Assim que seja à torça, estamos ligados, como trabalhadores que
somos, ao regime que pretendemos destruir.
O vínculo que nos une (o Trabalho) - quem o ignora? - pode ser
convertido numa ferramenta utilíssima de luta defensiva e ofensiva, sabendo-a
esgrimir.
O que nos une e confunde com o mundo atual na qualidade de
anarquistas?
No primeiro caso, ainda que tentássemos por de lado uma das partes, ou
mesmo que tentássemos por simultaneamente as duas, não haveria
possibilidade de solução de continuidade entre nós e o nosso inimigo.
Que atitude negativa equivalente à greve, por exemplo, poderíamos
assumir no caso de uma luta defensiva num movimento anarquista
especificado contra o capitalismo ou contra o Estado?
Contam os anarquistas e simpatizantes nalguma parte do mundo em
nalgum pais com forças para declarar a guerra ao mundo burguês e incitar
depois a todos os que o não são à luta pela Revolução Social?
Mesmo que os anarquistas pudessem sozinhos fazer a revolução e por
temor ao fracasso ou por negligência não se decidissem a começá-Ia, que outra
coisa poderão fazer hoje - enquanto não se descubram novos métodos e
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* * *
Cremos que se haverá compreendido, pelo que acabamos de expor, que
a nossa intenção é somente expressar o nosso descontentamento por tudo que
signifique unilateralidade.
Ao contrário, entendemos que é preciso seguir todos os caminhos,
recusando-nos, claro está, a seguir aqueles que por experiência ou por razões
de consciência temos a certeza de que nos irão extraviar.
Não poderemos resistir a este respeito, à tentação de dar a palavra ao
nosso mestre e sábio Max Netlau.
Ouçamos o que ele diz com mais profundidade de conceitos e com
maior beleza de expressão:
"Uma idéia viva não pode ser nunca acabada, aperfeiçoada, sublimada
em quintessência, numa fórmula, num programa ou numa plataforma,
encarnada num homem.
Isto significa precisamente encerrá-Ia numa prisão onde languescesse
em vez de florescer, abrir-se e estender-se. A idéia libertária tem necessidade a .
cada instante de ser alimentada em terrenos novos e amplos, pela experiência
de aplicações novas; imaginar-se que partindo de alguns grupos e periódicos
ela irá um belo dia, em linha reta, a regenerar a humanidade, é de um
simplismo apergaminhado. Não; a sua missão e trabalho a defrontam no
grande mundo, onde ainda há, apesar dos maus tempos, uma grande
quantidade de homens cheios de vitalidade, que saberão ser-lhe tão úteis fiéis
guardíões, mas que não devem converter-se em seus seqüestradores,
pretendendo monopolizar as idéias.
Levemo-Ia ao grande mundo dos progressos humanos que é o seu
ambiente fraternal e favorável.
Não devemos recear que se desnaturalize ao contato do ar livre; teria
mui pouco valor se qualquer contato pudesse prejudicá-Ia".
Identificamos o anelo comum de estabelecer um mundo novo?
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(*) N. do A.: Era nosso propósito comentar e opinar sobre outros aspectos em tomo deste tema, que, de
maneira improvisada, temos vindo analisando. Mas a limitação das possibilidades para a saída regular de
"A Plebe" nos obriga a desistir. Não devemos ocupar com um escrito pesado, por extenso, wn espaço
que se torna indispensável, agora mais do que nunca, para tratar de assuntos de maior atualidade. Em
todo o caso voltaremos a dar nossa opinião, quando as circunstâncias o requeiram, sobre estes problemas
que oferecem - quanto se criticam ao menos opiniões desatinadas - algum interesse.
Impren MarJ!inal