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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SUBJETIVAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: ARTE, PENSAMENTO E
TECNOLOGIA

A subjetividade é um território: corpos, máquinas e ficção científica

Alana Soares Albuquerque

Porto Alegre, dezembro de 2015.


Se é verdade que Daedalus construiu o gigante Talos,
ou como outros dizem que ele foi a criação de Hefesto,
o que podemos ter certeza é que ele foi feito de bronze,
e só tinha uma veia, dentro da qual fluía uma
substância líquida como sangue, que alguns afirmam
ser mercúrio, e outros afirmam ser licor, como corre
nas veias dos deuses. A perda de líquido o levou a
morrer, como um homem morre quando perde o seu
sangue. Não podemos, então, dizer que Talos, embora
criado como uma máquina ou um brinquedo, tinha
todas as propriedades essenciais de um homem? Ele
mudou-se de sua própria vontade. Ele falou e podia ser
falado, tinha desejos e vontades. Na verdade, no conto
dos Argonautas, aquilo foi a causa de sua queda. Se,
então, uma máquina pode ter todas as propriedades de
um homem, e agir como um homem enquanto
impulsionada apenas pelo plano engenhoso de sua
construção e da interação de seus materiais de acordo
com os princípios da natureza, em seguida, não se
segue que o homem pode também ser visto como uma
máquina? Isso contradiz todas as escolas da
metafísica, mas mesmo o filósofo mais fiel não pode
viver sem seu sangue.

(The Talos Principle, jogo para computador, 2014)

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A subjetividade é um território: corpos, máquinas e ficção científica

Podemos observar na atualidade que nosso cotidiano é tomado cada vez mais por
pequenas máquinas que se acoplam intimamente ao nosso corpo e a nossa subjetividade.
A emergência de hibridizações cada vez maiores entre humanos e não-humanos –
entendendo aqui as máquinas tecnológicas como entidades que atuam na realidade social
– atualizada para a contemporaneidade, nos remete à condição da hiperconectividade,
possibilidade de conexão contínua e em rede, como pela internet, através dos dispositivos
móveis de comunicação. Nesse cenário, corpos e máquinas se confundem, materialidade
e imaterialidade se alternam pelas conexões sem fio e no labirinto infinito do ciberespaço.
Partindo de tal cenário tecnológico, temos como objetivo, neste breve ensaio,
analisar os agenciamentos entre corpos e máquinas na contemporaneidade voltando nosso
olhar para o universo da ficção científica. Atentamos à potência dessas ficções como uma
forma de leitura do contemporâneo, assim como Donna Haraway (2013), autora que,
partindo de uma imagem da ficção científica – a imagem do ciborgue – realiza uma
problematização da conjuntura política e social de nossa época. Para a autora, um
ciborgue, além de ser uma criatura da ficção, é uma criatura que mapeia nossa realidade
social e corporal, e também um recurso imaginativo que pode sugerir que caminhos estão
tomando os frutíferos acoplamentos entre humanos e não humanos na
contemporaneidade.
Ao voltar o nosso olhar para a ficção, não nos interessam mais o estado das coisas
existentes, as definições gerais, os objetos já dados, mas sim a palavra tomada como ação
e como relação, atentando aos efeitos que ela produz no mundo, ao devir e ao virtual.
Assumimos, dessa maneira, uma outra postura diante do falso e do verdadeiro, não
considerando a ficção como algo menos real, pois sempre há a realidade dos sentidos
afirmados. Acreditamos que através do uso da ficção conseguimos tornar nossa realidade
mais complexa, densa e intensa, livrando-nos das amarras moralistas da verossimilhança
e apostando na possibilidade da criação. Saímos, assim, do campo da mera representação,
reconhecendo a produção de conhecimento como uma operação concreta do ser (COSTA,
2014).
Entendemos aqui que as ficções científicas e seus futuros imaginados, prometidos
ou temidos, remetem a um desejo que antecipa possíveis, que joga com tendências que já
se desenham de alguma forma no presente, mas que se lançam no sentido de uma
antecipação do que poderia vir ou do que está a caminho. Ao voltar nosso olhar para essas

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ficções, acreditamos que não se trata de ver suas profecias como verdades, mas como
rastros de possíveis, desenhados tanto pelo que já sabemos e que está em nós, como pelo
que intuímos ou sentimos.
Diante dessas ficções, perguntamo-nos: o que falam sobre sua época? Ou melhor,
o que fala através delas? Acreditamos que se tais ficções nos apresentam a futuros pós-
apocalípticos, robôs que convivem em sociedade ou ciborgues que são uma verdadeira
realização do “pós-humano”, é porque leem algo de nosso presente. Como nos fala Walter
Benjamin (2012), assim como o passado, o futuro também está inscrito nas linhas do
presente, e não precisamos ser nenhum tipo de vidente para que saibamos lê-lo e
interpretá-lo. Para o autor, observar com exatidão o que se cumpre em cada segundo é
mais decisivo que saber de antemão o mais distante. Signos, pressentimentos e sinais
atravessam a todo momento o nosso organismo. Como interpretá-los? Eis a questão de
Benjamin. Quanto à nossa tentativa de leitura das ficções, lançamo-nos a seguinte
pergunta: que signos elas estão lendo do nosso presente?
Somos tomados por uma inquietação quando nos vemos diante das imagens
produzidas pela ficção científica. Entendemos aqui que as imagens, possuindo uma outra
semântica, nos possibilitam desvios de interpretação expressiva, levando-nos a sair do
campo da representação conceitual para pensar em outras formas de produção de saberes.
Ao associarmos as imagens podemos fazer delas formas que pensam, ou que forçam
nosso pensamento a pensar. Etienne Samain (2012) nos indica, dessa maneira, que
devemos tentar resolver “imagens cruzadas”, da mesma maneira que resolvemos
“palavras cruzadas”, atentando à potência da associação de imagens umas com as outras.
Escolhemos, então, para esta breve análise, dois filmes de ficção científica do final
dos anos 90, Matrix e Existenz, ambos lançados em 1999, e dois filmes atuais, lançados
respectivamente em 2014 e 2015, Transcendence e Ex Machina, para pensar que imagens
produzem sobre o corpo e seus agenciamentos com as máquinas tecnológicas, e que
possível leitura estética e política realizam, a partir de seu imaginário, sobre o cenário
tecnológico de suas épocas. A partir desses filmes de ficção, voltamo-nos a pensar em
como se dão essas hibridizações no cenário tecnológico atual. Como pensá-las a partir do
imaginário das ficções científicas do cinema?
Em plena virada do século, momento marcado pela expansão e popularização do
acesso à internet pelo mundo, o temor do homem escravizado pelas máquinas, com seu
corpo sugado por plugues e sua mente capturada pela realidade virtual, é retratado em
filmes como Matrix, em que as máquinas passam a sobreviver de forma autônoma

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utilizando os humanos como meras pilhas que lhes fornecem energia, e Existenz, filme
sobre um estranho jogo em que, para se conectarem e imergirem em uma realidade
artificial, os humanos introduzem cabos diretamente em orifícios da sua pele. Ambas as
ficções produzem um acoplamento orgânico e visceral entre humanos e máquinas,
acoplamento esse que permite que as personagens experimentem uma realidade artificial
distante da realidade concreta em que vivem. Em ambas as tramas há uma clara distinção
entre um mundo real, verdadeiro, e outro que é mero simulacro inventado por mecanismos
artificiais. Um certo medo paira no ar: de que uma suposta natureza humana seja
corrompida pelo artificialismo das máquinas.

(Matrix, 1999)

(Matrix, 1999)

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(Existenz, 1999)

(Existenz, 1999)

Dando um salto temporal de 15 anos e analisando brevemente dois filmes de


ficção científica de nossa época, podemos perceber que suas imagens nos falam de um
outro tipo de agenciamento entre corpos e máquinas: uma forma de conexão que é mais
imaterial do que orgânica, uma conexão para o qual corpo orgânico e vivo já é
prescindível, dispensável. Enquanto no filme Transcendence, um neurocientista consegue
sobreviver depois de sua morte com a sua consciência em uma máquina, acoplada, por
seus circuitos, à rede mundial de computadores, em Ex Machina, um experimento de
inteligência artificial põe em cheque os limites entre o humano e a máquina: vemo-nos
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diante de um robô cuja inteligência é alimentada por todas as informações dos sites da
internet. Uma verdadeira inteligência coletiva formada pela conexão de bilhões de
cérebros em rede.

(Transcendence, 2014)

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(Ex Machina, 2015)

(Ex Machina, 2015)

(Ex Machina, 2015)

Diferente dos corpos imobilizados das duas ficções anteriores, é a ideia de rede o
que predomina nessas duas ficções atuais. No cenário contemporâneo, a partir da difusão
das tecnologias de acesso à internet móvel e sem fio, estamos cada vez mais imersos na
rede digital, que já nos envolve em quase todos os lugares que frequentamos,
proporcionando-nos uma condição de conexão generalizada. Diante desse cenário, a

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metáfora pós-apocalíptica do homem sugado como pilha através dos plugues das
máquinas ou a imagem orgânica e visceral da conexão com os videogames já não se
aplica: o agenciamento com as máquinas tecnológicas já nos envolve em quase todos os
lugares que frequentamos, e não precisamos de quinquilharias pesadas para nos
conectarmos a esses objetos e uns aos outros.
Hoje a condição da ubiquidade da conexão à internet dispensa os aparatos de
conexão em um ponto fixo. Na conectividade ubíqua, cria-se um tipo de navegação em
que o usuário pode circular pelo espaço físico enquanto se desloca ao mesmo tempo,
virtualmente, pelo ciberespaço, criando dessa maneira um tipo de território híbrido ou
informacional. Não sendo mais preciso se deslocar até o computador para se conectar à
rede (o corpo imobilizado em frente à tela), a miniaturização dos dispositivos
tecnológicos tem demonstrado uma tendência de uma relação cada vez mais
“desmaterializada” com esses aparelhos. Os modelos atuais de smartphones, notebooks,
tablets, etc., cujos nomes carregam expressões como slim, air, touch, remetem a essa
condição de liquefação da materialidade de tais objetos, que reduzem a sua forma até
mínima espessura de uma folha de papel e aprimoram suas tecnologias de reconhecimento
cada vez mais sutil de toques e movimentos.
Estamos falando aqui de uma relação desmaterializada com os objetos e, através
das ficções, de uma desmaterialização também do próprio corpo pelos circuitos das
máquinas. Porém, quando falamos em tal desmaterialização, devemos nos perguntar: de
que corpo estamos falando? Que corpo é este que está dado a priori? Se adotarmos uma
visão de que não exista um modo “puro e natural” de ser do humano, ou algo que possa
se chamar de natureza humana – entendendo que toda natureza já passa, por si, por uma
cultura e por uma série de artificialismos – não podemos afirmar que haja alguma perda
da essência do corpo nessa desmaterialização.
Costa (2012) realiza uma reflexão sobre essa desterritorialização da presença
através das tecnologias de comunicação e afirma que nesse processo, na verdade, o corpo
não some, mas se transforma, pois não há essência, substância ou coisa em si sobre a qual
versem interpretações representacionais. As imagens e simulações são elas mesmas
operadoras da construção do nosso mundo vivido.

(...) como ação o corpo transmuta-se na modulação telemática,


transformando-se, sutilizando sua corporeidade em ondas e números,
mas sem deixar de ser ação e corpo, posto que estes não dependem aqui
de um agente ou essência para serem (COSTA, 2012, p. 195).

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Pelbart (2000), com base em Stone, também coloca que a questão suscitada pelas
tecnologias não é a perda do corpo, mas novos corpos, incorporações, encarnações
possíveis. Nessa perspectiva, o deslocamento cibernético entre o self e o corpo não se
inscreve em uma dicotomia cartesiana mas, ao contrário, anuncia uma reviravolta, “onde
uma espécie de reencarnação virtual estaria em vias de reconfigurar o espaço corpóreo e
incorpóreo, reembaralhando corpo e mente ao mesmo tempo que desafia a unidade do
self” (p. 18).
Quando nos vemos diante dos futuros distópicos da ficção científica, percebemos
que há um certo temor em torno do desaparecimento do ser diante do mundo maquínico,
de um esvaziamento completo da sua natureza. Na verdade, todas as máquinas sempre
produziram processos de dessubjetivação no humano, porém esses movimentos fazem
parte do próprio processo de produção da subjetividade, pois o próprio devir é
“dessubjetivante”. Pelbart (2013) retoma as ideias de Agamben e Foucault para pensar
que não há processo de subjetivação que não contenha em seu avesso a dessubjetivação.
Podemos tomar como exemplo a prática do cuidado de si que, para Foucault, pode conter
ao mesmo tempo um paradoxal desapego de si.
Enfim, a subjetividade enquanto devir sempre envolve processos de
desterritorialização e reterritorialização. Em um acoplamento simbiótico entre dois seres,
como o da orquídea e da vespa, os devires asseguram a “desterritorialização de um dos
termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando e se revezando
segundo uma circulação de intensidades que empurra a desterritorialização cada vez mais
longe” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 26).
A partir dessas concepções sobre os agenciamentos maquínicos que articulam
humanos e suas tecnologias, é possível lançar novos olhares sobre essas relações e, diante
de um “aterrorizante” devir-máquina, não chegar a uma solução catastrófica de
desconexão total e retorno à condição original da natureza humana. Uma desconexão do
homem com as máquinas seria impossível porque esses objetos agenciam e produzem
nossa própria subjetividade e nossos modos de ser. Diante desse dilema, poderíamos
formular uma outra questão, que seria: de que forma esses agenciamentos estão
produzindo a subjetividade contemporânea, ou que afetos estão deixando passar? Que
novos agenciamentos estão emergindo aí? Corpo pós-orgânico, corpo pós-humano,
corpo-sem-órgãos?
Do corpo cuja carne é penetrada por cabos e eletricidade, ao corpo
desmaterializado e distribuído pelas redes digitais, a subjetividade se apresenta sempre

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como um território que se hibridiza a outros. Em meio às conexões fusionais entre os
humanos e suas tecnologias, a subjetividade se agencia em diversas maquinarias assim
como o cavaleiro inexistente de Ítalo Calvino (2005) precisa de sua armadura metálica
para estar entre as coisas do mundo, já que, apenas como “força de vontade”, como
potência virtual prestes a se atualizar, o cavaleiro não é nada mais do que um pensamento
invisível.
Através das pequenas máquinas que acoplamos ao nosso cotidiano e que nos
conectam com presenças desterritorializadas, como uma voz no celular, um rosto que fala
na tela do tablet, uma fotografia de um pôr do sol de uma cidade distante – olhar
desterritorializado de um amigo com saudade – produzimos o que somos, constituímo-
nos por diferentes tecnologias que modelam o eu. Enfim, se a subjetividade é um
território, ele é híbrido e dele brota uma infinidade de elementos heterogêneos que a
fazem existir nesse entre. Diferentes elementos que desenham contornos momentâneos
para um inquieto devir. Pensamentos revestidos de metal que dão novas formas à
complexidade da subjetividade humana.

Referências:

BENJAMIN, W. Rua de mão única: obras escolhidas vol. II. São Paulo: Brasiliense, 2012.

CALVINO, I. O cavaleiro inexistente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

COSTA, L. A. Desnaturar desmundos: a imagem e a tecnologia para além do exílio no


humano. Tese (Doutorado em Informática na Educação). Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2012.

COSTA, L. A. O corpo das nuvens: o uso da ficção na Psicologia Social. Fractal, v. 26, n.
especial, p. 551-576, 2014.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 01. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1995.

HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do


século XX. In: SILVA, T. T. da. (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-
humano. Belo Horizonte: Autêntica: 2013.

PELBART, P. P. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo:


Iluminuras, 2000.

PELBART, P. P. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições,


2013.

SAMAIN, E. Como pensam as imagens. Campinas: Editora da UNICAMP, 2012.

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