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srirativ()
(L) l-t..rrir.lrrclt,c, si l.r-rcs,r,,
uvc,tu'lt cr. rlrc 1r alrtr.r.czir r)()s rrr,s
'r))'l qLrs p()upar, c que so experimenta
tlt,s t'xcc1-rci()llalnlellte, pclis o
que temos diante de nós, ,rrtra"l-"rrr",
ist'ó' pr:rgm:rticamente, é o mundo visível
das articurações confiáveis,
(''r quc o tempoé uma linha a pr rtir da qual Tcnrpo e acontecimento
podemos .epresentar a
trtaliclade de uma presença
absoluta, na qual o fururo ( l,;w;rklo Giacoia Junior
J)()r'lntecipação. "r,r.r" f..r.rrr"
( ) clue aprendemos
com a concepção bergsoniana
do tempo e com
t'sr.r lil,sofia que pretende
p.rrrn. r_, ontologia do movimen,i,
vr.r'tlade do devir ou uma o,, ,r,,"
- tem apenas
realidade do vrr a ser' nao
('pistcmologia ou com a ver com
conhecimento.
,rcrto do tempo não se explica apenas ta'
ção objetivamente estável, mas, talvez ':Cle
cic rccalcar o desejo irrearizáverde
i nortalidade,
esta frustração que nos
clcÍine em profundidade e da O tempo é a substância do acontecimento. É na intersecção entre
qual a obsessão da permanência
e da subs-
t'r,..,cialidade seriam as manifestações tempo e acontecimento que se pode fazer, no presente, uma decisiva
exteriores. Desde a Antiguidade,
tlt-tc mais nos inquieta a respeito o experiência do sentido. O acontecimento é vÍntopos central da ontologia
do futuro não é a sua imprevisibilidade
()' as surpresas que nos aguardam, fundamental de Martin Heidegger, um de seus mais persistentes proble-
mas antes uma ceÍtezatão absoruta
(rLrc nos assusta pelo mas; enquanto também uma produtiva contribuição para a fllosofia con-
seu excesso, por uma verdade
que transborda e de-
v'r:r todas as expectativas de uma temporânea, de modo que a referência a Heidegger, nesse campo de ques-
vida sempre pequena e insignificante
cliante do horizonte da tões, significa muito mais do que um tributo à erudição e à necessidade de
sc,croamaisforter.iffi citar autores incontornáveis - ao contrário, o conteúdo espiritual da no-
para uma dimensão indefinida
;';:;::"L:1.,il;:::i:,"H:1::1i:.:::
de incerteza que diria respeito ção heideggeriana de acontecimento constitui o desafio mais importante
a argo como
rum Íuturo absoluto. paraatarcfa atual do pensamento. Com seu conceito de acontecimento,
Heidegger não pretende identificar nem situar um evento no âmbito dos
fatos que marcam o tempo cronológico; o acontecimento não pode ser
suficientemente perscrutado no quadro teórico da historiografia. E, no
entanto, a história (Geschicltte) no sentido em que a entende Heidegger,
só pode ser meditada em relação ao acontecimento, mais precisamente,
ao acontecer (Geschehen), pensado como remessa/envio (Geschick) e,no
vetor dessa mediação, também como destino e destinamento (Schicksal).
Pensar o acontecimento é colocar-se no caminho que, sulcado no
presente, reata com o passado originário da experiência cultural que nos
constitui, bem como descerra a perspectiva futura de nossa destinação.
A diretrjz para pensar o acontecimento, em toda sua envergadura, não é
unidimensional, mas perfaz a circularidade hermenêutica, retornando às
rabes gregas do lo go s fiLo s ófic o, pat a resgatar o acontecimento memorável

0 visÍvel e o invisÍvel do ternpo

I 75
(lLr(, nla r.(.il silrrr_rl1r
da c cJo Ocidente. O neologismo
l.ristorial ,_r, .1.r,r,,,,",tilr(,nt(,irrslituir,:ão
r a rnerrra I (ge s chich
,rlr,rrtrrtrrtlos Schicht: camada, extrato, e Schickung: envio, destinamento)
tlich, ge s chicklich) conora
rrlclrto como o elemento o a conte ci- (
lr riurt() rr clcrivação latina germanizadade Historie. Esta última é a história
que determina o sentido (em
que adquire uma era do acepção vetoriar) , or r ro clisciplina científica, a historiografia dos historiadores - registro cro-
tempo ou uma figura do
se pode
mundo. Assim, não rrolírgico objetivo de séries de acontecimentos, causalmente ordenados,
tomar como idêntica a acontecimento,
em nossos dias, a pro- ( ( )nr sLrLls circr-rnstâncias, condições determinantes, fatores causais e con-
gramação tecnológico_genedco-industrial
que disponibrfo" Ji.oa,rru,
c reprodução de organismos st't1r.rêrrcias de ordens variadas (econômicas, políticas, sociais, culturais,
humanos machos e fêmeas,
Itcordo com as exigências estocáveis de lror'cxemplo). Por sua vez, Geschichte designa o acontecer adventício, os
cJe planejamento
das respectivas demandas.
Acontecimentr , ,rt-«rntecimentos singulares que impregnam a configuração e determinam
o scntido de uma era do mundo. Com apoio no termo Geschick (o que
':;#'-i;i:["::r;;;?',W:'::;::'.,!^::::':r.;:::#: i' cr.rviado, destinado, concluído com êxito e propriedade), Heidegger
a ar"'lij;f,i:*ffi j;*::;,t tlt:nomina tais eventos "destinação"' ou acontecimento "destinamental",
preparado p ar
trumentalização no cárculo ;
estratégico, no circuito tecnológico
ff ,ff :X: llrra cuja tradução os franceses empregam o termo evénementiel: o que
tração/exploração, transformação, da ex_ ( )corre e tem importância para os homens.
ãt*Uriçao, comuração, consumo
reprodução reiteradva do e O substantivo Geschick e o verbo schicken significam, pois, enviar, re-
cicro que reariza tecnorogicamente
mundo como vontade de poder a figura do nleter, dispor numa ordem, instalar as duas últimas acepções derivadas
e eterno retorno do mesmo,
mação contemporânea da a transÍôr- cla ligação de schicken respectivamente com os verbos anordnen e einichten;
metafísica em cibernétrca.
Pensar o aconter . tlo mesmo étimo deriva o substantivo Schiclesal (destino). Nesse circuito,
posroque.,.."..,;:I;1';:1ti:'jJ:ffi:',;#*::;::..ri; Ci,eschichte remete a Geschehnis (acontecer, acontecido) e Ereignis (acon-

do elemento que lhe é mars tccimento apropriador, evento pregnante, que confere a um tempo do
essencial . p.aprio (eigentrich).É isso que rnundo lZeitalter) a marca de sua figura). O signo desse acontecer não é
Heidegger nomeia r": nreignis - aconreclmento
'palavra
Apropriador porque descobre apropriador. o rempo corno Kronos, nem é a finitude (zeitlichkeit) própria do ser-o-Aí,
çarétheii) o ipsissimumdo tempo histórico
no interior do qual fomos mas o que Heidegger denomina de ternporaneidade do Ser. É nela que o
e somos constituídos
rica da verdade do ser como - uma experiência histô_ Ser se dá e se mostra no horizonte da história, que sua verdade (aletheia)
presentidade, que está na
grega, ou seja, da história raizda metaÍísica vige como acontecimento apropriad or (Ereignis).
da filosofia e da cultura
europeia,
fica, hoje em dia, o Ocidente
em escala firr*a.i". " n". ,*, A palavra Ereignis remete a um extrato profundo do idioma alemão;
Apropriador também porque Ereígnis deriva do gótico augan, e do Mhd'. Ougen(ouge, Auge), de onde pro-
."roÁá_lo pelo pensar faliás, a única
possibiridade de fazê-rol "im Blicken zu sich rufen, an-eígnen" (ffazer
vêlra ereugen, er-dugen, er-blicleen,
é tamúém o ."-r.rho para
a superação de nos- à vista, apropriar-se). Para manter essa ressonància tradrzo Ereignis por
sa alie,ação e apatridade,
de recuper"çao á, Verdade
tcmpo (ontologia do presente), de nosso próprio acontecímento apropiador, designando um advento que vinca uma época
mas também da essência
Dasein como correspondência originária do da historia, confere a ela uma cunhagem própria e essencial (Eigenschafi),
ao Ser, que doa a dádivado
História da verdade do ser é acontecimenro. um sentido no qual os entes, em sua totalidade, são acolhidos no mundo
um tírulo que se aplica com
IJeidegger de Tempo e ,ser tanto acerro ao humano. O acontecimento apropriador confere direção a uma era do
como anarítica existencial
nrental aplicam_se a Ser e Tempo. ou ontologia funda_ mundo (Weltgeschick), pensada como um destinamento, um desoculta-
Convém atentar, porem, para
, o fato de que a palavra .história,,
duz tanto Geschichte (do verbo tra-
grrrhrhin,r-.rr"..., ao qual remetem t Mittelhochdilrsch: alto-alemão médio, ou seja, o idioma alemão nâo àlaletal (Hochd.eutsch) entre o pe-
os ríodo antigo e conlemporâneo de sua história

Tempo e acontecimento

0swaldo Giacola Junior 77


r)1(',[() cia cs.sô.cia cr's crrtcs
cl,-. sLra vcrclade (aretheia).É
nessa acepção ,rtltrilo quc clc dcla e a si mesmo, na medida em que ele dá existência
que Heidegger interpreta a Scr ;
metafísica como história do ser
como história do esquecimento ou, antes, rlr.r, t'xistc, o ente); esse dar é, portanto, um dar-se do Ser, um abrir-se
d
Desde platão, possrbilitlclor clo desvelamento dos entes em sua verdade, no vigor da
a (essência ou forma
inteligível) sobre ,'ssi'ncia 11r.re lhes é própria.
forma do eidos, o ti A claic'liva acontece na temporalidade própria do Ser, que não é o tem-
cstin (o que é) emlugar do ser,
de modo que, antes de tudo,
(was-sein)"ser como Ser-argo ser é Ser_algo po lincar e cronológico dos relógios, nem causalidade da históría dos
(a id-eia ,oÀo ontórdn)
proporciona aos en- lrist«rriadores, mas o acontecer que irrompe do desvelar-se (aletheia) do
tcs rnais espaço que ao próprio
ser. "o privilégio do s;r-"lgo
ar prrccedência do próprio
traz consigo St'r'. O Ser é abertura evazio - Es gibt Seiendes: os entes são, existem -, são
ente a cada á naquilo que ele
(l(' erlte fixa o ser como élA precedência rrr«rclo de envios do Ser, sempre no horizonte temporal de um aconteci-
o koinóna partir d,o én. Estádecidido o caráter
clistintivo da metafísica' o uno nr('nto apropriador, como a essência metafísica da técnica moderna, por
.o-à unidade unificadora torna-se de-
terminante para a destinaçâo " .'xcrnplo. Um aberto, uma clareira onde os entes vêm à luz em sua ver-
posterior do ser,,3.
Na fllosofia moderna, a verdade .lrrcle. A técnica é, essencialmente, um modo de ffazer àltz, deprod:uzir,
do ser dos entes passa a identificar-se
com acerteza da representação, de t'trja origem, essência e destinação estão ligadas aproducere,hervorbringen,
modo que olrypokeimenon (substrato)
se
transforma em subjectum; e a
verdade, d. .à..espondência entre lroicsis, que são camadas ou extratos na temporalidade em que se inscreve
to e as coisas, torna-se a cTarezae o interec- rr lristória da verdade (alétheia, desocultamento) do Ser.
a distinção das percepçoes.
Representar
éa unidade unificadora dos entes
em sua verdade. D.r.".t", e
que preconiza a ttansformação oi.rrrrao. O que diz Heidegger, finalmente, "sobre" o Ser? Na medida em que
metafisica na essência da verdade,
bendoaKantareco ca- "acontecimento apropriador" ("Ereignis") e, desde 1936, sua "palavra-
rranscenden,,rL.ib:;:::1lffii"J:J;Xi"TJ.:i:#i::1"ã:: -chave", essa pergunta tem de ser precisada: Como compreende ele
o Ser dos entes como mônada, o acontecimeltto apropiador? Heidegger destaca, com toda a clareza,
pensada como perceprjo (pensamento)
4!:ilrus (vontade), prepara a rransição e que, como palavra-chave de seu pensamento, o termo "acontecimento
para o conceiro de Absoluto
Schelling' Hegel e finalmenre em apropriador" não compreende mais aquilo que se costuma denominar
a rd..rtrficação da vontade
de poder em acontecer (acontecimento, diz Heidegger), evento, e termos que tais.
Nietzsche como essência do mundo
Como história d,
Ele aponta para o que essa palavra originalmente significa: er-iiugen
metarísicaingressa.:j'i[,,ff :::iH"?1,:fi,:j:::"1",i1#];l (trazer diante dos olhos), isso significa rnirar, trazer a si diante da vis-
de poder torna-se essência ta, apropriar-se. Depreende-se de seus ulteriores esclarecimentos que
metafísica do mundo, e o eterno
retorno é
degger,
o modo

isso doa)
L:?iIij,ll:H'i1.I1,_:,::"i,J"T,
ele interpreta "acontecimento apropriador" apenas a partir da palavra
ergen (próprio). Mais adiante, ele compreende "acontecimenro apro-
priador" unicamente corno singulare tdntum!.
aassociaçãoenrreexistirrr.."ttJ.';::i':r?;*t;l':":tr;ffi
"Es" remete
ao Ser como sujeito da ação
:::::; Esse é o sentido das imagens poéticas às quais Heidegger liga tais
verbal: isso (es) dâ (gíbt);ísso
éo noções: linguagem (lógos), em sua determinação (Bestimmung), é desve-
z Cl. Marrin Heideggel ,.Die Metaphysik lamento. Metaforicamente, ela pode figurar como a clareira, em que se
als Geschichte des Se:ins" Nietzsclle' z Bãnde, Pfullingen:
lag Grinther Nesül ,s6r, u.-
u, pp.tss-ars. ' ver- mostra a essência dos entes, que se tornam fenômenos para o Dasein, seu
' y".il#ff:,:il:;T}:':,-" des seins ars Metaphvsik", I{i
etzsche, zBànde,pfullingen:
,:,":;chichte
4. Lorenz Puntel, SeinunclGott,'Íibingen: Mohr Siebeck, zoro, p- 85

Tempo e acontecimento

0swaldo Giacoia Junior 79

il
('Lu'rrc1()r'. A lingrLirgcnr ó, portaurto, a "casa do Ser", e o homem é o ente rt.ttlt.tisitltctrttll-.ttrltscsuarrecledeenergiademandadaparaatrans-
da
nriss:ttt ,lc t'rttlgia' No âmbito das consequências interconectadas
qr-rc habita po(i)eticamente essa morada. Ex-sistir ê corresponderlinguagei-
também aParece como algo
ramente a esse chamamento do Ser, ao descerrar-se do Ser aos entes em ,lcttt;tttttrt tlc cllcrgia elétrica' o rio Reno
construída no rio Reno' como
seu desocultar. O Ser acontece em seus adventos, mas não se confunde tlt'ttrttttlrttlcl. A ccntral elétrica não está
,r :rrrtigrt Porlte de madeira, que
há séculos une uma margem à outra'
com eles; para que haja um desvelar - uma alétheia -, é primeiro necessá-
está construído na hidreiétrica'
rio um estar oculto, não há desvelo semvelamento anterior. Nada é doado Ant('s (' pclo contrário, é o rio que
( ) tlt'socultal que domina a técnica moderna
tem o caráter do pôr
que antes não se tenha subtraído. Nesse sentido, há que se pensar uma oculta na
no sct.tticlo do desafio' Este acontece pelo fato de a energia
interpenetração entre Ser e Nada - Ser é nddd de erúe, nenhuma entidade
ser transformado' do transfor-
da qual se possa predicar uma propriedade qualquer; é antes um vazio, ll:.ll,rlrcza ser explorada, do explorado
ser novamente distribuído e
o imponderávelapartir do qualyem a ser até mesmo o gesto mais fugaz. rrrecltr scr armazenado, do atmazenado
clo clistribuído ser renovadamente
comutado' Explorar' transformar'
O Ser desvela os entes no modo de ser que é próprio deles, ao mesmo
tempo em que se subtrai, furta-se tanto ao desvelamento quanto ao que irl lltàzenar e distribuir sáo modos do desocultaru'

nele é desvelado.
na instalação dos entes como variáveis
A cssência da técnica mostra-se

PENSAR A ESSÊNCIA DA TÉCNICA .lt.clrlculonoprocessocircularacimadescrito.AesseconjuntoHeidegger


A essência da tecnica mo-
tlcrr«rntina GesteLL- armação ou dispositivo'
tlt'rna consiste na subsistãt"i" ""tgt'rada
da açáo
Pensada na chave do acontecimento, a técnica moderna é desvela- ição'
do dispositivo de produção' arm
mento e produção. Trata-se de um tÍazer à luz, um pôr e dispoq um l)('r'rnanente
'A palavra 'subsistente-s ressâ
tornar manifesto, que tem a "forma do desafio (Herausforderung), que t'ornutação e desgaste'
nada menos que o modo que vige
estabelece para a natureza a exigência de fornecer energia suscetível rrll()ra na posição de um tíLlo' Designa
de ser extraída e arrnazenada enquanto tal"t. Como modo da poiesis, a rr.,.to que é tocado pelo desocultar desafiador"''
"qoilo n.um desafar que instala a na-
técnica moderna dispõe os entes como objetos num processo reiterati- O novwmna técnica moderna consiste
trlt'czana condição de manancial
de energia suscetível de ser extraída'
vo formado por extração, transformação, prepara ção, ar rnazenamento,
comutada' de modo que o
distribuição, comutação, consumo, desgaste: numa circularidade sem ru'rnazenada, distribuída e renovadamente
determinado desse processo, mas
começo nem fim. .ssenciar não é o resurtado objetivo
do próprio processo de conversão
rilltes a dinâmica e a lógica imanentes
comutável' A confrguração
O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o forne- ('rn estoque armazenâvele permanentemente
essencialmente da atualização do
cimento de minérios, o minério, por exemplo, para a produção de rrtr-ral de nossas sociedades depende

energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico ou à llotencialtecnológico,esteConstltuiamaisdeterminanteforçaproduti-


o domínio
va em nossas sociedades'A verdade da metafísica moderna é
destruição [...] A central hidrelétrica está posta no rio Reno. Ela põe
tecnológica das galáxias'
o Reno em função da pressão de suas âgtas, fazendo com que, desse planetário da cibernética, a exploração
modo, girem as turbinas, cujo girar faz com que funcionem as má-
quinas que geram energia elétrica para a qual estão preparadas as

6' Maftin 'PP'57-59'


Verlag' \g82'p 16 À tradução
5' ed'' Pfullirgen: Neske
5 MartinHeidegEer,Aquestaodatémim,trad. MarcoAurélioWerle,CadernosdeTraduçoon z,SáoPatlo: 7. Marrin
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, gg7,p 57 dessa P

81
0swaldo Giacoia Junior
Tempo e acontecimento
GESC'IICK (DESTINAMENTOI E GEFAHB (PEBIGOI
rrrrr,r Íirlrrn cla vcldadc, a técnica se funda na história da metafísica.

Em sua acepção originária, a técnica é uma lisl.r i rurrrr Í'rrsc privilegiada da historia do ser e a única da qual, até
modalidade depro-ducere,
de her-yor-bingen de *azer à luz, desvelar, .r1r rr ;r, potlt'rn()s ter uma visão de conjuntoe.
- desoculta, _, q,r.
nâo correspondem às noções correntes
da técnica .o,,o
"..pçõ",
-.io pr." .r- ( )r':r. s(' história da metafísica é também a história do esquecimento
fim (concepção instrumental), ou como incremento
do poder fazer hu_
mano (concepção antropológica). , 1,, scr t' tlt' sua substituição pelo ente, só um pensamento que ultrapas-
,,, ,r r .r nrt'trrfisica pode abrir-se paÍa a rememoração do sentido do ser e,
Se,portanto, o homem, ao pesquisar e observar, l r t ,ull ( ), pâra pensar originariamente a essência da técnica como uma
),
persegue a natureza
enquânto uma região de seu representar, então ,llstirrrrçíio (Geschick) na história da verdade do ser. Justamente disso o
elejá é convocado por
um modo de desabrigamento que o desafia lrrrrrr:rrrisrlro, em qualquer de suas modalidades, êincapaz, pois ele é es-
a ir ao encontro da natureza
enquanro um objeto de pesquisa, até que rambém ',i rrt'irrlrnr:r.rtc metafísico e, portanto, só compreende a técnica em chave
o objeto desapareça
na ausência de objeto da subsistência. Assim, ,rrrtropoltigica e instrumental, ou, dito modernamente, como vontade de
a técnica moderna, en-
quanto desabrigar que requer, não é um mero lr.tk'r', isto é, como potencialização da capacidade humana de produzir.
fazerhumano. por isso,
(l«rnsLrma-se com Nietzsche o acabamento da metafísica; esta se
devemos também tomar aquele desafiar, posto
pelo homem para re-
querer o real enquanto subsistência tar como rr'.rlizrr historicamente como instalação de todos os entes nos circuitos
se mostra. Aquele desafiar
reúne o homem no requerer. Isto que é tt't'rrokigicos de produção, consumo e desgaste. Essa objetivação técnico-
reunido concentra o homem
para requerer o real enquanto subsistência r rcrrtíÍica dana:ulreza engloba tudo num único processo de fabricação e
[...] Denominamos agora
aquela invocação desafiadora que reúne ,lcsgrrste, que tudo redtz à condição de variável de cálculo: 'Agricultura
o homem a requerer o que se
descobre enquanto subsistência de armação(Ge-ster), r' .rA()râ indústria alimentar motoizada; em essência, o mesmo que a fa-
como fabricaçãor.
lrr i«'rrção de cadáveres em câmaras de gás [...] o mesmo que a fabricação

Para Heidegger a técnica não é meio, nem ,lt' bortbas de hidrogênio"'".


instrumento posto a ser-
viço do homem - pelo contrário, ela trazà Irm condições tais, o humanismo não seria uma alternativa para a
tona a determinaçao prOpria
do homem moderno, como requisitado rrr«'taÍísica, na medida em que concebe arrat.)Íeza humana a partir das
e determinado ,.. p.lo modo r':rtcgorias metafísicas de substância e acidente, gênero próximo (animal)
de desabrigar que constitui a essência da "
técnica como desafio; o homem
moderno é convocado para desafiar e explorar c rliÍbrença específica (racional). Daí decorre, para Heidegger, que
a nai)tezacomo reserva
de energia. A respeito da essência da técnica,
observa Heidegger,
todo humanismo ou funda-se numa metafísica, ou ele mesmo se pos-

multo se escreve, mâs


tula como fundamento de uma tal. Toda determinação da essência do
pouco se pensa. A técnica é, em sua essência,
um homem que já pressupõe a interpretação do ente, sem a questão da
destinamento ontológico-historial, um desvelam
ento (arétheia) do ser,
que, enquanto tal, tanto se oferece quanto verdade do ser, e o faz sabendo ou não sabendo, é metafísica. Por isso,
se subtrai, em sua verdade.
A técnica não remonta, na verdade, apenas com mostra-se, e isto no tocante ao modo como é determinada a essência
seu nome, até a tékne
dos gregos, mas ela se origina do homem, o elemento mais próprio de toda metafísica, no fato de ser
ontológico-historialmente datékne como
um modo do alethúein, isto é, do tornar manifesro
o ente. Enquanto
,r Martin Heidegger, "Carta sobre o humanismo", uad. Ernildo Steir, Corfrêrciu e esnitosflosófros, São
Paulo: Abril Cultural, 973, p.36t (Coleção Os Pensadores).
8. Martin Heidegger, á qaes tã.o d.d témica, op- cit., p 65-
r o. Apud Reinhart Maurer, "O que existe de propriamente escandaloso na filosofia da técnica de Heideg-
ger", trad Osaldo Giacoia Junior, N atrrezo Humana, v. Í, n z, zooo, p 406.

Tempo e acontecjmento

Oswaldo Giacoia Junior 83


"hunranística"
I)c acorcr, com isso, quarquer humanismo
permanece , .rlr trlrrlírrio, a nrcditação preocupada não deixa de ser determinante, nem
metafisico,'.
,,('('rill()ll t'rrr rcverência ao fato; a palavra serenidade não é sinônimo de
rl,sillrrrrçftr. (lom ela, Heidegger pensa um agir amadurecido, liberado da
Ora, contando com seus próprios
recursos categoriais, nenhuma
tafísica, seja ela idearista, cristã, me_ rrrs,lniir compulsiva do ativismo, do falatório vazio e pomposo vigente na
ateísta ou marerialista, pode ..atingir
reunir, através do pensar, o que agora e lsÍ«'r'l p(rblica contemporânea:
é do ser, .r.r_ ,..r'rrdo pleno,,,..
assim, a despeito de suas "boas E
intenções,,, o humanismo .o.rt",,,po.â_
rreo dá seguimento à compreta Nio ó por ele irradiar um efeito ou por ser aplicado que o pensar se
objetivação da natureza,transmudando a
cssência e a destinação do homem, tlirnsforma em ação. O pensar age enquanto se exerce como pensar.
que, ..pastor
de do ser,,, preocupado llstc agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo, o mais
com o cuidado dos entes, tornou-se "mais
a importante materia-prima,,
a ser consumida no desgaste (Vernutzung)universal
clcvado, porque interessa à relação do ser com o homem. Toda eficá-
do ente. cia, porém, funda-se no ser e se espraia sobre o ente. O pensar, pelo
contrário, deixa se requisitar pelo ser para üzer a verdade do ser. O
Quando tiver êxito o domínio da energia atômica,
e este êxito ocorre- pcrlsar consuma este deixar. Pensar ê l'engagement par l'Êne pour l'Être.
râ, então se iniciará um desenvolvimento
totalmente novo do mundo lgnoro se, do ponto de vista linguístico, possível dizer ambas as coisas
é
técnico' o que conhecemos hoje
como técnica cinematográfica e tele-
("par' e "pour') numa só expressão, a saber: penser c'estL'engagement de
\,.rslva, como técnica de ffansportes,
das comunicações, como técnica
t'Êne. Aqti, a palavra para o genitivo del'1...1visa a expressar que o
médica e de nutrição, representa,
supostamente, apenas um estágio genitivo é ao mesmo ternpo genitivus subjectivus e objectitus's.
inicial e grosseiro. Ninguém pode
saber as reviravolras que estão por
vir' Enquanto isso, o desenvolvimento
da técnica se dará em um curso
cadavez mais rápido e não poderá
Em plena hegemonia do sentido instrumental e antropocêntrico da
ser detido em parte alguma,3.
tí'cr-rica, o progresso tecnológico compulsivo subverte a lógica da ética hu-
rrranista. As pesquisas biogenéticas instrumentalizarn a base somática da
O credo antropocêntricohumanista é uma ilusão ingênua e perigo_
e
sa' pois concebe a tecnorogia ;rcrsonalidade, tornando-a disponível para fins incompatíveis com o ethos
como instrumento à disposição e controle
qLre, âté aqui, constituiria o espaço de habitação do homem no mundo, o
da racionalidade humana. para
Heidegger, ..nenhum indiüduo, nenhum
grupo humano, nenhuma comissão horizonte de sua autocompreensão. Fantasias estéticas narcisistas sobre o
de relevantes estadistas, pesquisa_
dores ou técnicos, nenhuma conferência consumo mercantil do homem seriam uma réplica cínica da Vernutzung
de dirigentes da economia e da (desgaste) do "material humano".
indústria consegue frear ou direcionar
o curso histórico da época atômi- Como afirma Heidegger, num tempo em que a tecnologia, cuja es-
ca. Tudo se passa como se o homem
de hoje, em face do pensamento sência é armação (Ge-stell), exerce um domínio planetário, aí também
meramente ca]curatório, renunciasse
a inserir o pensamento meditativo
cspreita um perigo (Ge-fahr). Mas é justamente à sombra do perigo que
num papel determinante"'a. Heidegger
confia na potência silenciosa da Llrge retomar
palavras dos poetas e pensadores, da arte e da fi.losofi.a.
as
meditação: embora não tenha .rr.r-"
eficácia instrumentar do pensar Nesse caso específico, a poesia de Hõlderlin: "Wo aber Gefahr ist, wiichst
"
das Rettendeauch" (Lâ onde há perigo, cresce também aquilo que salva)'6.
rr MartinHeidegger,"sobreohummismo",trad.Ernildostein,obruescorhidrc,sãopaulo:Abrilcultu_
À dicçao do poeta, Heidegger acrescenta uma palavra de filósofo: sereni-
ral, ry73, p. 35r (Coleção Os pensadores)
rz Idem, ibidem-
r:. MartinHeidegge\GeLtssenheít,pfullirgen:VerlagGüntherNeske,rggz,p r5. MartinHeidegger,"Sobreohumanismo",trad ErnildoStein,Obrasescolhiàu,SãoPaulo:AbrilCultu-
19 ral, ry7,p.347 (Coleção Os Pensadores)
t4. Martin Heideg ger, Gelusenheit,
op. cit., p. 2os.
r6 MartinHeideggelDieFragenachd.rTechnik,5 ed., Pfullingen: NeskeVerlag, rg1z,p 28.

Tempo e acontecímento
Oswaldo Giacoia Junior 85
rladc. Nâo lrrl lan.
e,cprenunci,"_i"Jlil;#l:il:J:',itr:::J:.T::.?il:,:,:H.:: (rnrr)slist;rclos,crrlinr,c()nrasangrentareviravr»ltlt,('nrllt.rrrrlt'r'..trlo,,l,r.,
essência da técnica. A palavra ( ,lr ulur:rs rla socicc'lade e do Estado. É o entusiasmo pcla ielrirr tk. trrrr,r
de Heidegge r diz: serenid.od., poro com ds
coisas, cuidado preocupado i onsrIIrrrçlrI jtrríclica auto-outofgada que constitui o acontecimellto rcv()
com o _.r.rào, deixar ..r, para o lio
segredo - ethos de meditação sobre os
destinamentos do ser, nascidos de "b..tr., lrr, r, rrrri c <l sinal d<ts tempos modernos. Como Nietzsche reconhecerá
L,r pensamento que é, em si mesmo, nr.rrs t:rrtlc: 'As palavras mais quietas são as que trazem a tempestade.
ação. "se crescem em nós
rritlacle
para com as coisas e a abertura
a sere- ll rrs,urrt'rrtos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo"'e.
pr., o segredo, então nos é rícito 'l'r rclos os
e Ircgar a um caminho
que condu z au.,novo fundam ento acontecimentos decisivos não são tagarelas, eles acontecem
(Grund)e solo.
Nt'sse solo' o criar de obras que rr.rs ltot .ts tlt' maior silêncio.
permanecem pode fincar novas raizes,,,7.
conside'o que devemos levar muito
a sério o depoimento de Mi-
che I Foucault, que faz de ( )s rr)Jiores acontecimentos e pensamentos - mas os maiores pensa-
Heidegger um acontecimento decisivo
"Tbdo em sua nl('ntos são os maiores acontecimentos
vida' o meu devir firosófico foi determinado - são os últimos a serem com-
por minha reitura
clc Heidegger; é importante 1rr-ccnclidos: as gerações que vivem no seu tempo não viyenciam Íaís
ter um pequeno número de autores
com Ocorre algo semelhante
os quars se pensa, com os quais
se trabalha, mas sobre .não
rrt-ontccimentos - elas passâm ao largo deles.
os quais se
cscreve' e que se constituem em .instrumentos rro rcino das estrelas. A luz das estrelas mais distantes é a última a che-
de pensamento,,,,8. pensar
o acontecimento seria prestar giu aos homens; e, enqlranto ela não chega, os homens negam qte alt
ouvidos ao que Foucaurt nos ensina
o que significa essa tarefa, bem
sobre lraja cstrelas'".
como sobre como e quanro sua rearização
remere às lições da ontologia fundamental
de Heidegger. para Foucault,
r acontecimento é fu.damentalmente
aquiro que nao * poa, mais esquecex
l;. scmpre na temporalidade própria do acontecimento que advêm os
De acordo com umâ oe.irl i-r^-^-^.^^ ',rlrr,rs cle um processo no qual o pensamento, a filosofia e o conhecimen-
rôrmurouaresposraffi::',ilã:::H:il::,T:::Jl;[:::-,r.1, t( ) sJ() concernidos ao mais alto grau, pois nesse movimento aquele que se

também à questão a respeito do ,lrspõc a pensar o que acontece no seu próprio tempo não pode deixar de
sentido do presente. para fazê-lo,
carecia de um acontecimento ou evento
Kant ( st:u'como que "entusiasmado", na medida em que ele mesmo fazparte
com função de signo diagnóstico,
re trospectivo e prospectlvo ,1, l.rrocesso que descreve e sobre o qual medita. Muito mais do que isso
- permitindo auscultar dgo ãrr.r.ij no des- (.()rno pensador, ele tem um papel a desempenhar nesse processo, no
rino histórico da humanidade; portanto,
um aconteclmento que fosse
tarnbóm urn sinal dos tempos. ,;Lr:rl ele se encontra, portanto, implicado, tanto como elemento quanto
Acontecimento que era, em essência,
grr,clc pensamento: um t orno ator e protagonlsta.
ideia de uma constituição jurídica
a
repubricana, que
r)r'()sc'cvc a guerra ofensiva. Esse pensamento, Por causa disso, impõe-se pensar agora a intersecção entre tempo
universalmentecompar- ( ircontecimento, na medida em que nessa encruzllhada fazemos nós,
tillracl<r registro humano afetivo d,o etttusiasm,
'ro é a medula espiritual
(r.,(' transforma a Revolução lrt'r'clciros dos bons europeus da época das Luzes, uma radical experiência
Francesa no ícone a,
t,política. -oa".rrii"ã. .t",r"., tl,r historicidade do universal; pois a Europa é uma regiâo determinada
Esse advento com valor de signo não ,lo rnundo, na qual, numa época determinada da história, produziu-se
se confunde com o fato bruto
c ruidoso da reviravolta dos poderes, () ilcontecimento decisivo que ainda hoje determina o perfil de nossa
com as catástrofes pelas quais pere-
r/ M.rÍtin I leidcgger C,,lasscn/rat. op crt.
p zô r,r lrrrcclrichNictzsche,, ssimfàlotZarttustra,parreu: 'Ahoramaisquieta'',trad PauloCésardeSouza,
rs cilles Barbecrette e André Scara, "Entrevista Siri Paulo: Companhia clas Letrasi 2or r, p r4o
com Micher R,rcauit,,,
Foucault (D2(rj9E4) O Dossier_ ultimtrs enlÍevisLas,Rio
re.s Nouve,es, z9 maio ry84 Michel
delanerro: Taurus, r,, lrricdrjchNietzsche,Álirudobmedomo\parâgraf-ozS5,trad.PauloCésardeSouza SãoPaulo: Com-
1984
lrrnhia das Letras, 2oo5, ? 174

B6 Tcmpo e acontecimento

0swaldo Giacoia Junior

T
ttl.ttlttlrttlt ' ilssill) ('()lll(),lt'rt't't'()s
('st (.lll ltr( )s
l)r'rr(.il()s intlít-i,s cl:rqrril, qLre t:rlvez I Ir ,rl,t.r /'l íltíllr'()l(rqit rlo stlltcr, Micl-rcl liotrclrtrll lt'rrr:rtiz.rr rr rclrtçrirr
it p( )n t() clt, clt,ixlr r. ric sc,r
A lrtrropa ":rprescnta , ,rr,r tr nrl)() ( () ir('()ntccinrcnto n() horizorrtc tlcsccrlltdcl cntre "alín-
a particurlariclade de criar
uma categoria uni- , r r ,lrr, rlllirrt o sistt'nrn clc construção das Íiases possíveis, e o corpus,
vt'r'sul tluc caracteriza o
mundo moderno. A Europa é o lugar
da u^iversalidade".,. E em vista
de nasci- ,lri r, , , rllrr' p.rssivrrntcnlc zts palavras pronunciadas", problemattzando a
'r('r)1() dessa historicidade Jo unive.sal,
sr'rctudo em face da crise atuar e permanente rrrl,rrl.u r,l.rtlc tlos rrcc»rtccimentos por meio do conceito de arquivo'. este
dos conceitos ocidentais
tlt' r.cvolução, de homem, de sociedade ,1, r i ,,r r :;rtrr,rrlo n«r rcgistro de uma prâtica discursiva, aquele de
e de política, que se repõe para
rrírs .r tareÍà de dete ctar os
eventuais sigros diagnósticos
e premÀnitórios
tk rs rcmpos. rrr,r l)r,itrr rr rluc faz surgir urna multiplicidade de enunciados como
r)orque é na Europa que se institui um r rrri )\ .r( orr(rcimentos regrlares, como tantas coisas oferecidas ao tra-
quadro categorial de universa_
litlrrcJc que é teorica r nt() t ri rtralripulação. Não tem o peso da tradição; não constitui
rrr
, r, u rop a n gura,,
cla universalidade, tal como "ffi:: T:TT:]ffi J.: :,'#T
a conhecemos,
Í;; i: :: :,T.:::
lrrlrlrort'tr scm tempo nem lugar de todas as bibliotecas, mas não é,
r
r,ilrrl),)rr(0. o esqtLecimento acolhedor que abre a qualquer palavra
,(,v,r () ('irrrpo de exercício de sua liberdade; entre a tradição e o es-
a crise do pensamento europeu r
lu, ( r r r( nt(), ela faz aparecer as regras de uma prática que permite aos
atrar a atenção de todo o mundo e ela
concerne ao mundo inteiro. É
:urrra crise que influencia ' run( ir(l()s subsistirem e ao mesmo tempo se modificarem regular-
os diferentes rrrr rrrt' Ij o sistema geraldaformação
pensamentos de rodos os países e datransformaçao dos enutcíados'|.
do mundo , asslm como o pensamento
geral do mundo. por exemplo,
o marxrsmo nasceu numa época
de_ Ncss:r acepção, o arquivo é a lei de o que pode ser dito numa deter-
terminada, numa região determinada:
ele foi fundado po..irà".,. po.
meio.le conraros r,rrr,rrl,r socicdade, numa certa época de sua história, é o sistema que
com um punhado de operários.,.ro'r"
apenas uma forma ideológica,
á.r", iro r r y,r o srrrgirrento dos enunciados possíveis, que se efetuam como o que
mas uma visão de mundo, uma
orga_ I ,,rr,,rrrlt clenomina de acontecimentos singulares:
nização social [...] Ora, o marxismo encontrâ_se atualmente
em uma
crise indiscutívei: a crisc do pensamento
ocidental, a crise do conceiro
ocidental que é a revolução, a crise lr rviclcnte que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de
do conceito ocidental que são o
ho rrrrrr sociedade, de uma cultura ou de uma civílízação; nem mesmo.
mem e a sociedade. É uma crise que
concerne ao mundo inteiro, e que
concerne tanto à tJnião Soviética st nr clúrvida, o arquivo de uma época. Por outro lado, não nos é possível
como ao Brasil, à Tbhecoslováquia,..
tlt'scrcver nosso próprio arquivo, já que é no interior de suas regras que
É com essa mesma crise que Í,rl.rrros, já que é ele que dá ao que podemos dizer próprio, ob- - e a e1e
contlnuamos comprometidos,
nranecendo enredados, na nela per_ yt to de nosso discurso seus modos de aparecimento, suas formas de
medida em que ainda exige de nós
o máximo t ristôncia e de coexistência, seu sistema de acúmulo, de historicidade
crnpenho de atividade intelectual
. política. Nesse horizonte, a firo-
srrfi2 66-o "çao
exercício, ensaio, tertativa, t' ilcsaparecimento. O arquivo não é descritível em sua totalidade e é
faz umesÍorço para discernir os
signos de uma silenciosa mutação irrt'ontornável em sua atualidade'a.
em curso, as primícias do acontecimen-
to que se anuncia para um pensamento
a vir.

rr Michel Foucault, Dirr cr l.rirs uI(1976'1919),Paris;Callirnard,t994,p621


::.lclcrr,ibidcm. NIr, lrcl lirrrrerult, A trqueologLt do sabcr, trad Lrris Felipe Bacta Ncvcs, Petrópo)is: Vozes, rg7z, p t62
I l,lr rrr rbirlt.nr

limpo e acontecimento

Oswaldo Glacola Jun or 89


retoma' num
de sua vida' Michel Foucault
l't irxittto clo tirrrll prcc()ce obsessiva com o
A irrqucologia praticacla por Foucault pode ser caracterizada como
lr! r/,()r.rt(. li'rs.[ic. algo modificado, sua preocupação
r clcscrição dos discursos em sua positividade de práticas especificadas
rr
se pergunm Pelo elemento
oill(.(.inre nt'.,
,rr o ,"rrruo do presente. Ele
pela lei do arquivo, considerado como o sistema geral de relações entre " o campo acontecimen:': *""]11t^exPeriências
,1rr. rlt'littt' ,r attralidade' "onto-
o dito e o não dito. Considerado em seu estatuto e função, o arquivo é do presente' uma
tentat'u"dt f""'lf*a ontologia
rssivt'is, r'lLlfila Foucault'
o elemento em cujo âmbito são pronunciados, fixados, transformados,
; ;" é a atualidad., pttgo""-te então
1,,
r,,1,,i,r .lc u<is mesmos"
acumulados e conservados os eilrnciados que determinam o conjunto do flo de Ariadne para
de acontecimento como
saber de uma sociedade, numa certa época; que determinam, portanto, r' ,rr lrtzô-lo toma o totttito É em
d;';"blt-"s que definem a nossa atualidade'
l)('r('trrrr no labirinto tal
tanto os objetos e conceitos como os métodos, regras e procedimentos
acontecimento que Kant
ressurg:.toto pensador decisivo'
para sua apreensão, bem como o sujeito desses saberes, do ponto de vista r t'l;rçito ao Foucault' cuja
carreira filosófica de Michel
da função que ele desempenha na produção de enunciados, ou seja, a , ,tttoiá ocorrera "t;t-tt; escrita
foi justamente a célebre antropologia
l t'st' cloutoral complementar
função enunciativa do sujeito na linguagem. Kant' cuja Pergunta
Por essa razão, o acontecimento, em suas coordenadas espaciais e .lt'stlc o ponto de """ r'"'*ático por Immanuel de si mesmo ao
podefazer
...rr.rlirral é: o que o homem, como ser moral,
temporais, produz-se, reproduz-se, transmite-se, modifica-se e se con-
serva no elemento do arquivo, que é o campo próprio da atualidade do ,,,
"
*;i'#', y;:;:;r,Fou autt inicia sua probtem atização
c
retomando
que se pode saber e üzer. Nesse sentido, não podemos descrever nosso para
dada por Kant à pergunta: O que é Esclarecimento?'6'
próprio arquivo, já que é nele que podemos pensar e üzer o que conhe- .r rcsposta publicado eÍ]r1784'
de Kant' nesse opúsculo
nr()strar que a peculiaridade ou à filo-
cemos e falamos. Por causa disso, quando nos perguntamos pela nossa
apenas em colocar questóes atinentes à história'
rrlto consiste
atualidade, é porque já principiamos a deixar de ser quem somos, é por- ores -' mas em haver
st»Íia da história - o
que 1âfrzetaem textos antel
do ocidente' um certo tipo
que, de certo modo, já nos encontramos em processo de mutação. É em de
I.rrnulado, p"t" pti'o'Jil :;;^história
virtude disso que Foucault encerra a introdução à sua Arqueologia do saber num gesto
do presente e do acontecimento'
tlttestionamento a respeito
com um fulminante exercício de ironia filosófica, que coloca em questão
teorico que toma " 'á
t"*o seu prôprio presente' Para transformá-lo
o acontecimento de sua própria obra:
t'm Problema filosófico d ?Ígunta:
de Foucault' em Resqosta Pt
De acordo com a interpretação esforça-
Acredita que eu me teria obstinado, cabeça baixa, se eu não preparas- de Kant reside em ter-se '

com as mãos um pouco febris o que é Esclotecimettt;;;;*tiidade distingui-lo'


se - - o labirinto onde me avenfurar, acontecimento no presente'
deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele tlo por reconhecer um certo na atualidade' elefaz
clccifrá-lo o' outÍos' na medida em que'
"""t'oao' o portador e
mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percur-
areflexão filosófica' posto que se revela como
sentido para
so, onde me perder, e aparecer finalmente diante de olhos que eu não à filosofia e ao co-
que concerne ao Pensamento'
o signo de um processo
teria mais de encontrar. Mais de um, como eu sem dúvida, escreveu em que e como aquele
nhecimento' Naquele opúsculo' trata de mostrar
para não ter mais fisionomia. Não me pergunte quem sou eu e não me parte desse processo que
que fala - enquanto fe""d11- f"'' ele-1esmo' do que isso como esse
diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege e multo mars -
descreve e sobre o qual medita; - no qual
nossos papéis. Que ela nos deixe livres quanto se trata de escrever".
tt'to p"ptl a desempenhar nesse processo'
pensador tem um

z6crrmmanuerKant,..BeanrworrLrngderFrage:wasistAufklârung?"(rz8l)'werlce'wilhelmweische-
del(cd),Frmkfurtlu'r"'av*f"g'1964'Bandvr'pp52-6r(448rÁ494)'
25. Idem, ibidem, p. z6s.

0swaldo Giacoia Junior

Tempo e acontecimento
r.lt st. t.rrt ()nlr.t,
l)()t t,utt(), rrrrlll;1,11j11 1111 lt() ('()l)l() ('lclllcllt()
ilr()r ('J)r.otlll.,ristrt - qllarlt() conr()
',( ( r)('rrx'grr ck'cnunciar o sentido dessa atualidade, para especificar o
Nr.ssc scnticjr
magisrral de Kant teria ,,r,,,1o rlc rção que ele ê capaz de exercer no interior dela. Dizer o que
r)r(.rralmcnr", consisrido, funda-
;,ri.ril;ação ,t Arrl -
tomada como acontecimento que tem função de signo
kliirung
íirzcr crc seu próprio
presen ;:*1fr"1.1[;ffi'i: ( tempos implica, ao mesmo tempo, abrir uma distância em
lr )s n()vos

rr'l.rçrio ao próprio tempo, de certo modo deslocar-se de si, para colocar-


esse presente, a respeito
:;t' t'rl condr'ções de dizer também quem somos nós qual é o lugar de
,,rrtit' fàlamos.
'lhlvez seja possível compreender melhor o problema formulando-o
r rr rs seguintes termos: ao tomar como objeto de reflexão o texto de Kant,

Irr rtrcault faz dele, ao mesmo tempo, ocasião estratégica para reconstituir
n.r s(' (-omo tarefa
enunciar o sen ,r scrrealogia não tanto da noção de modernidade, mas damodernidade
r))(.sltta toma parte,
o valor, a singU t tttno qhestão. Nesse sentido, BeanLworhtng à,er Frage: Was ist Aufkkirung?
(.n(.ontrar, ao
mcst sua propna tazão de ,rl)rlrece como ponto de emergência dessa questão e como fazendo parte
claquilo que ela rrr:o '"*oo' ser e o fundamento
,lt' nm processo histórico mais largo, do qual seria necessário tomar a
"Esclarecimento
é a saída do homem tlt vida medida.
d.a menoidade de
culpari"o. Menoridade que ele próprio e
é a incapacidade de Nas palavras de Foucault, a modernidade seria a primeira época da
servir-se do próprio entendi-
,rcnto sem a direção de
outrem,,,8. portan lristória qLre se autodenomina através de certo evento que concerne a
s, nruarmenr. a AUJ'kkirung- esse proces-
.,,r-".1':j:'-",^::t'anto'
"- ('l.r e provém de uma história geral do pensamento, darazão e do saber;
t.<,,r,1ição o. ._",.;;;;J: j:H:il,:rosresslva do holem para sua
( vcnto no interior do qual o próprio presente da filosofia desempenha
('c o paÍa
r,".:;tj'::,ílllrff
,r ss are sp o ra s obre o ( ('r to papel, eÍn yez de simplesmente se caracterizar como período de
s
es raruro
T; L:,:,:;
trivilegiada de superficre 1,r'osperidade ou decadência.
de reflexão: trata_
Fazer com que a razão filosófica se obstine na interrogação sobre o
scntjdo do presente, no qual deita raízes o próprio pensamento que se
rnterroga, nisso consiste a originalidade da pergunta kantiana: ela indica
se reporta a
('crto modo de filosofar que determinará os rumos da filosofia nos pró-
t«r cr-rlturar cara-erísdco da um conjun-
atuaritra;::.:"t ximos séculos, posto que, de acordo com a avaliação de Foucault, uma
*.,1 * ; fi: :H Tj;,:':;::' :::T j; tl.rs grandes funções da filosofia moderna (sobretudo a parrir do final do
:ii:: :l' :1 J :ff :il:''.." si'culo xvru) consistirá na interrogação sobre a própria atualidade.
l.sso signi
,ema filosófico constituído É.ro -esmo sentido que, para Foucault, Kant retoma, mais de dez
rr.clt.rniclad" pela
palte daquele que trela está rrnos depois da publicação do opúsculo sobre o Esclarecimento, a pergun-
.rrrzuclo, pois en-
1'ria at.raridad ffi;i::ffi:;;THr_:.
ta pelo sentido do acontecimento revolucionário de ry89, como ocasião
lrerra problematízaÍ o presente. Trata-se, dessa vez, de um texto publicado
r:tt-rr794'e, escrito na mesma chave que empregara quando empreendera a
.7 trk nr, ibidem, p
35
rti ldcrrr, ibidern, a48r,
p 53
rq Cl Lrúanucl Kanr, "Der Srreit der Fakult:iten", Werkc, Wilhelm Wcischedcl (ed ), FrankÍirr/M: Insel
Verlag, 1964, Band vr, pp 267-393 @y
^zo5)
lcrnpo e acontecimenlo

0swaldo Giacoia Junior 93

3
tlccili'ação da Aufkkirungcor.r-ro evenro consritutivo da modernidade. De llllll('l(tt).llll('tlttltrr<rrarlcltlgêtrcrtlhurtratl<l?or-rtlt.1.xttlcri.11111;1;L||Sccr.r]ir
acorclo com a interpretação de Michel Foucault, emo conflito dasfocutda- r, nr.rr r,ts tlt' sttit cll'tivitladc?
permltlsse
rícs, a pergunta pelo sentido de um acontecimento do presente não pode ( ()nr) isolilr c rcconhecer um evento no Presente que
,lr r r,lrr sc t'xistt'cssa causa, que deve
persistir como atuante' tanto no
scr obtido simplesmente através da interpretação da "rrama teleológica
('()tlt() llo presente e' prospectivamente'
permitindo endossar
que torna possível um progresso; é necessário isolar, no interior da histó- 1,,r.,.,,r,1,r
,,, ,',',,,', .'sl)('l'rlllças no futuro? E
aqui que se apres
ria, um evento que terá valor de signo":..
Para que tal tarefa possa ser levada a efeito, como veremos logo em ,r , ,,r r rplt'xitlrtclc da problemática do direito' Será a
scguida, a indicação e decifração desse elemento portando valor simbó- , , ,',r r rr rp,lit rl ot-ganizada sob a égide de uma perfe
realização integral do conceito
racional do direito -
lico somente pode ser rcalizada por alguém que se insere a si mesmo r, l,rrl,lrt rtttrt como
de um sentido apiori
na questão, cuja resposta procura. Eis por que, segundo a interpreta- ,,,,, .,tr,.'r",,,ará o fio condutor para a descoberta
l,,rr,r .r lristtiria
humana'
ção de Foucault, Kant formula sua tarefa com o cuidado e a prudência deve interpretar o
convenientes: não se trata de uma exaltada e extravagante exigência de l )t. lletrrdo com Foucault, é nessa chave que se
de Filosofia e de Di-
comprovar empiricamente a existência de uma disposição moral do gê- , ,,rrllilo figurado por Kant - entre as faculdades
em questão seria justamente essa vertente
nero humano. Mesmo porque o sistema crítico invalida, no domínio de r rrl o Nt'ssr.l disputa, o objeto
que a concreção empírica
questôes éticas, a própria pretensão a esse gênero de comprovação. A ,1, r r ,nt't'ito racional do direito, na medida em
universais auto-outorgadas - na
figura de
tarefa só pode consistir, portanto, em circunscrever, na experiência e na ,l.r r,k'irr cla liberdade sob leis
elxo
atualidade, um signo sensível - ou seja, um sinal cuja presença seja histo- rrrr r,r pt'r'li'ita constituição
jurídica republicana - apresenta-se como o
ajúzos
ricamente identificável, e que ao mesmo tempo possa fazer remissão a ,l.rrrrrt rcflexão op,o''i,qotpt'nl'*conferirrealidadeobjetiva
da história humana'
uma causa que explique o sentido da história do gênero humano como ,l( n,rtUlcza moral, tendo como objeto o sentido
dessa ideia' a reflexão não tem
de se limitar ao âm-
um progresso moral infinito. Ao Íio condutor
constituição jurídica de um povo
organizado emestado nacional'
Essa questão pode ser formulada nos seguintes termos: seria o pro- lrrrr r tlrt
o âmbito do direito das
gresso moral infinito o sentido da história do gênero humano, considerado r,r,rs 1'rode legitimamente alargar-se' para incluir
no direito'
de uma sociedade cosmopolita fundada
não apenas singul.orum (ou seja, tomando-se isoladamente uma de suas lJ nt('s c, no limite,
r.r. iottalmente compreendida como
meta e caminho que conduz à reali-
partes), mas, como o afirma Kant, também segundo o todo da humani-
do homem para o bem'
dade (universorum) - isto é, entendida esta última como sendo o gênero z,rçio integral das disposições naturais
( lrso não fosse assim, teríamos de nos contentar
com a resposta dos
humano distribuído socialmente sobre a superfície da Terra na forma de
de Direito' no
comunidades políticas? yrrriscottsultos (portanto dos representantes da faculdade
conta daquilo que é de àirato
Para que o progresso infinito pudesse ser razoavelmente admitido ,,,rrllit<r clas faculdades), que 'À pod" dar
(Jru)'-a saber
como constituindo esse sentido totabzador, seria necessário reconhecer rrír' irrris), mas não do que é o direitc
pergunta pelo conceito racional do dire
uma causa que fosse determinante do próprio curso da história. por essa r('sl)()sta à
razão, torna-se necessário indicar quais seriam os sinais, constatáveis no r rrrrrr clisposição moral da humanidade' enquanto
o plano empírico das
presente, que poderiam revelar e atestar a existência dessa causa per- ,k' scres racionais, e ultrapassa necessariamente
desse concurso constitui a
manente (uma Anlage, ou disposição) que atuasse como promotora do lcgislações positivas' fxpticitar a necessidade
d.r.-penhada dl'pot" pela faculdade de Filosofra'
1,,,,," "' filosófica da disposição natural para
o Bem'
f)esse modo, ,
"t.rt"çãà
rr. gônero humano, to*o uma espécie de corolário' a tese do pro-
3o ldern, ibidem, p 37 "*igt'

0swaldo Giacoia Junior 95

Tempo e acontecimento

!
('s( rrl('. A gcrrcalogia clo presente constitui' ao mesmo tempo' a onto-
gr'('ss() nl()ral inÍinito col)t() scrlticlo cla história humana. Somente com I'r
iss() cstârianr derrogadas as hipóteses terroristas e abderíticas de inter- 1,,1',irt tlt' si tlrcsnlo. .
que seja L de-
prcturção da história, pois se a marcha da história tivesse a configuração (.)rltttclo sc trata de identificar um evento no presente
progresso moral da humanidade,
circular, então a humanidade permaneceria numa repetição cíclica de ,()l,rtiv() clc uma causa atestatória do
de sua história' Kant tem de tomá-lo
ascensão e decadência, ou então o vetor de sua marcha seria indicado , ,r r rsir liclaclc que determina o sentido
( . ,1() (:xtensível às três dimensões da
temporalidade. Portanto, exlge-se
pelo pior - por uma catástrofe final que a tudo aniquilaria.
ro s p e ct iv am' pr ono stialm'
Com essa hipótese de uma loucura circular, ou de terrorismo histó- r rrr t I rr rr en os
r do que tm signum Íememordtivum' P

rico, rcstaria revogada toda interpretação otimista da história, no sentido


que lsso sempre foi assim (é o
clc aventura de autoconstituição da humanidade como um todo moral; l'i preciso que seja um signo que mostre
si14ro rememorativo), que enfim mostre que as coisas se passam atual-
talvez então, no interior daquelas alternativas de compreensão, pudesse
mostre enfim que isso permane-
ter cabimento uma resposta de tipo empírico, como a que podem oferecer [nellte assim (é o demonstrativo)' que
que poderemos estar seguros
os jurisconsultos, para a realidade objetiva da ideia do direito. ccrá assim (signo prognóstico)' É assim
progresso não agiu simplesmente
Para Foucault, entretanto, o que Kant parece querer sugerir é que tle que a causa que torna possível o
uma tendência geral do espi
o modo de resolução da disputa enre as duas faculdades depende de num momento dado, mas que ela garante
no sentido do progresso'
uma história antecipatória do futuro da humanidade. Não podendo ela rito humano em sua totalidade para marchar
Eis a questão: existe à nossa volta
um evento que seria rememoratlvo'
ser uma profecia sobrenaturalmente inspirada - na medida em que se
progresso permanente que envol-
trata de uma tarefa a ser cumprida pela razão filosófica -, essa história demonstrativo e prognóstico de um
antecipatória só seria possível no caso do próprio historiador tomar parte ve o gênero humano em sua totalidade?r'
nela e, por assim dizer, fazê-la. ao mesmo tempo em que a antecipa, ao passado'
A saber, a pergunta se dirige para uma causa que atuou 11o
empreender sua escritura. no
presente e que assim será também
Temos aqui, pois, do ponto de vista da interpretação de Foucault, que continua a produ'ir efeitos no
já contida no texto sobre a AufkUirung'
um importante segmento a unir os dois textos separados por uma década lr-rturo. Simetricamente à exigência
pensador no processo cujo de-
de distância: repete-se, no plano das relações entre o direito e a história, r tarefa requer a participaçãà do próprio
profecia filosófica' Também nesse
aquilo que já se apresentara como tese, no texto sobre o Esclarecimento: scnrolar futuro .lt "pt""t'ta como
do presente' uma decifração
somente um Aufkliirer pode responder à pergunta p ela Aufkliirung, enten- (:aso, o diagnóstico p"f^'uma genealogia
de onde profedzamos'
dida como signo distintivo da modernidade. clo sentido do tempo e do lugar
o evento com valor de signo
De modo análogo, pode-se dizer que somente aquele que toma parte Por isso, do ponto de visia de Foucault'
nesse acontecimento do presente - que justamente se trata de identificar nãopodeserofatobrutoeruidosodareviravoltadosimpérios'asgrandes
Estados mais firmemente estabelecidos'
como portador de um signo do progresso moral da humanidade - pode catásüofes Pelas quais perecem os
potestades consolidadas efazem
apreendê-lo pela reflexão e decifrar o seu sentido, na medida em que asreviravoltas d" fo'tot'a que derrubam
revolução' sob o aspecto de revi-
também toma distância reflexiva em relação a ele. Assim, é novamente surgir outras novas em "" l"g"t' enf,m'
da sociedade e do Estado'
a filosofia que se coloca em questão, como prática discursiva, quando ravolta em grande estilo das estruturas
toma sua atualidade e seu presente como objeto de problematização.
Nesse sentido, esses textos de Kant poderiam ser entendidos como uma
espécie de Esclarecimento do Esclarecimento, em que o próprio fllósofo
ascende à consciência de si mesmo pela resposta que dá à pergunta pelo Ir ldem, ibidem

0swaldo Giacoia Junior 97

Tempo e acontecimento
r),'r',ir-r1',.r'ta, criz crt'(Kirrrt), sc a rcvorução
de um povo pleno de rI
cspíriro, quc vi,ros se clàttrar em ,ossos r..r,r, r.rrrrlrirrr trrrr.s[qrram pronosticum, pois se há resultados da Re-
dias (trata_se, po.t".rto, d,
Ilcvolução Francesa), pouco importa r,,lur,.rr (lu(. l)()Llcnr scr postos em questão, não se pode esquecer a
se era triunfa o, f.r.rr.r, por.o
importa se ela acumula miséria e atrocidade, rlr,.lr' t\rr\.r() t;rrt. st. rcvclou por meio de1a3,.
se ela as
acumula , no.rro
de que, se um homem sensato a refizesse
com a esperança de leváJa a
bom termo, ele, entretanto, jamais se l, rlttttlrrrrr t()mar parte, tomar partido, compartilhar, ser coafetado
resolveria a tentar a experiência
a esse preço3,. I',,r unl nr(,sl)r() afêto, qural seja, o entusiasmo pela causa da Revolução e
1', l,r rr tlircito que ela encerra. Trata-se, pois, de um acontecimento
lcr:r .lt'

Paradoxalmenre, o essencial se passa ' rrfrr( l('iloi'clcnaturezafundamentalmente estética. Oqueesseaconteci-


no níver do modo que a Revo-
lução faz esperáculo, a maneira pela r r( n t( ) l
)r r ('('c problematizar, de acordo com a leitura de Foucault, é uma
qual é acolhida, po. ,oà" parre ao
seu redor, pelos espectadores que r ,,r( r r( rr suí gcneis dos efeitos da Revolução. Qual, porém, é o autêntico
dela não participam, mas que olham
assistem ao desenrolar dos acontecimentos,
e ,lr;r'ro rrroltilizador do compartilhamento afetivo? Por que sentem os
que se deixam arrebatar por , ',lx ( r,lrl( )rcs o mesmo que sentiam os revolucionários, mesmo não sen-
ela' o significadvo não é o sucesso
ou o fracasso do processo revorucio-
nário, mas a afecção moral por ela ,lo os .rgt'ntes dos eventos ruidosos que levam à reviravolta completa da
despercada no ânimo daqueles que ,,,
não são seus atores diretos. ,lrcr ;uriu instituída?
'l'r'irtrl-se do entusiasmo pela constituição auto-outorgada, que pros-
Aquilo que faz sentido e constitui o signo
do progresso é que há, em
torno da Revolução, uma simpatia de ( r('v('l guerra ofensiva. Embora isso não esteja em Foucault, creio que
aspiração que beira o entusiasmo:
aquilo que se passa na cabeça daqueles ',,' potlclitr,a justo título, afirmar no mesmo espírito de seu texto: trata-se
que não a
que não são seus protagonistas principais _ .r,;rri tkr entusiasmo pela ideia do direito compreendida em seu papel de
a rel
eles mantêm com essa revolução l,'riisl:rção autônoma, sob a qual a liberdade de cada um pode conviver
d. qrr. não são
liberdade de todos sob a égide de uma lei universal autoinstituída,
, , ,rrr ir

O entusiasmo pela Revolução é o signo, t,rrrrbóm no plano do direito das gentes e do direito cosmopolita. Eis o
segundo Kant, de uma dis_
posição moral da humanidade; ,;rrt' pode signifi.car uma constituição política perfeitamente republicana
essa disposição se manifesra perma-
nentemente de duas maneiras; primerramente ,,,rrro base de uma ordem jurídica em que se realize na efetividade a
no direito de todos os
povos de dar_se a si próprios a constituição ,rrrtoridade universal da lei.
política que Ihes convém
e, em princípio, conforme ao direito lr, pois, nesse sentido que, para Foucault, a Revolução se apresenta
e à moral de uma constituição
('()n1o o prosseguimento e o acabamento da Aufkliirung, de modo que
política tal que evite, em razão desses
mesmos princípios, a guerra
ofensiva. Ora, é certamente a disposição ,rrnbos podem ser vistos como os eventos propriamente significativos
levando a humanidade em
direção de uma tal constituição que tla rnodernidade - como os dois eventos que não podem cair no esque-
é significada pela Revolução. A
('in1ento. A eístência da Revolução atesta urna virtualidade permanente,
Revolução como espetáculo, e não como
gesticulaçáo, comofoyer do
entusiasmo para aqueles que a assistem, t1r.rc não pode mais ser esquecida: para a história futura, é uma garantia
e não como princípio de revi_
ravolta para aqueles que dela participam, tlc continuidade de wrna démarche em direção ao progresso.
é tm signum rememordlivum,
pois ela revela essa disposição presente Para Foucauh, O que e Aufkliirung? e O que é a Revoluçãoi são as duas
desde a origem; é w signum
demonstrdtiruln, porque ela mostra Íirrmas pelas quais Kanr formulou a questâo de sua própria atualidade.
a eficácia presente dessa disposi-
Nessas duas questões tem origem um processo de reflexão que não cessou

3z Idem, ibiden, p 38
lr Idem, ibidem

Tempo e acontecimento

0swalrlo Giirr;ria .lrrnior 99


a uma pergunta do filósofo
italiano
l Íilosoíia tttoclt'r'rlr tlt'stlc o sócr-rlo xrx. () csl,atuto filosófico Itrr t,er.ta o(:asião, em fesposta
clc rtsscclirtr
àt Michel Foucault declarou:
da Aufkliirung- já que isso c, pt'ccisltnlcnte, o qr-re se encontra em ques- ll*ohr ( lrtt'ttso sobre o "t'tido "'trabalho'
tão - consiste num processo permanente que se manifesta na história da ver com filosofia:
meu trabalho tenha algo a
Razão, no desenvolvimento e instauração de formas de racionalidade e de Í( trtttlto bcnr possível que
à menos desde Nietzsche - comPete
filosofia - pelo
técnica, de autonomia e autoridade do saber, de modo que, nesse duplo roltttttttlo porque
e não mais a de buscar
drzer uma verdade que
sentido, ela não pode mais ser, para a consciência fllosófica, apenas um É tÊltlil elo diagnosticar'
Eu procuro jusmmente diagnosticar:
episódio da história da ideias. relu vrllitla para todos os tempos' hoje' e
rllrlgnosticar o ptot"'o dizer aquilo que nós somos
presente'E"
Para Foucault, como resultado final desse seu Un cours inedit, não se nós dizemos' Este escavar
o qttc significa dizer aquilo que
(: clLre agora
trata de preservar intactos os restos da AufkLtirung, mas é preciso manter e
rtrlr os próprio' pé' tu'"tttt
iza' desdeNietzsche' o moderno Pensar'
presente e guardar para o espírito aquilo que, nela, deve e merece ser
ttetsc scntido eu posso
me designar como filósofcÉt'
pensado: a própria questão colocada por esse evento e por seu sentido, a
saber: "a questão da historicidade do universal"34.
Aqui se coloca, pois, a partir desse efeito estético da Revolução sobre
o sentimento, a questão daRazão como problema histórico: sob a forma
da Revolução, enquanto efeito e realizaçáo da Aufkkirung, tomada como
ruptura, reviravolta e fracasso e, ao mesmo tempo, como signo de uma
disposição para o progresso operando na história. Aqui é que se coloca,
paÍaa posteridade, o problema de se saber o que é preciso fazer dessa
vontade de revolução, que vem à luz, no mundo empírico, sob a forma
do sentimento de entusiasmo pela ideia da constituição jurídica auto-
-outorgada, que proíbe a guerra ofensiva.
Para Foucault, essas questões definem o campo da interrogação que
incide sobre aquilo que nós próprios somos, em nossa atualidade, ou
seja, oferecem a direção inicial para as duas tradições críticas em que se
partilhou a filosofia moderna: a obra crítica de Kant formula a questão
das condições mediante as quais um conhecimento verdadeiro é possível.
E, com isso, instirui uma analítica da verdade, como programa da filosofia
moderna a partir do século xrx.
Por outro lado, O que e Aufklàrung? e O que é aRevolução\ colocam o
problema fllosófico de o que seja a atualidade, de qual seria o campo atual
das experiências práticas possíveis. Em ambos os casos, estamos em face
de uma genealogia da atualidade e de uma ontologia do presente, de uma
ontologia de nós mesmos, como diz Foucault.

àq Stbttsim àes Wissms' Frankfurt/M: Fischer


Michel FoucaulC" Yon
y; l)aolo Caruso, "Gesprách mit U' MursiaS{Cia' 1969)'
'f'aschenbuchVerl
34 ldem, ibidem, p 39 ^g'9a7'p "i<i"í"*'*'""'"tM'Fotrotlt'M\lano:

t01
0swaldo Giacoia Junior

Tempo e acontecimenlo

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