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rilrl.ri'rho, nada é puro meio, nada é só instfumento.

o que há é crign<r
clc ser apreciado, desfrutado, e num
rempo que é regulado pela própria
cxpcriência do desfrute e do saber, não pela
pressa da rearização d,o téros.
o presente eo percurso não podem ser sacrificados em sua
murtiplicidade
para a redução ao único da chegada. 0 Íuturo da ideia de autor
O destino, ao final do poema, se pluraliza. Sábio, Francisco Bosco
agora , sabes o que
'signifcam Ítacas' Ítacas, se são projeções do desejo presente,
tornam-se
cntidades menrais que, por mais que brilhem
na expectativa que faz so_
prar a vela do barco, tornam_se pálidas
quando se alcança o po.to d.
rlcstino. Mas tal palideznão é atributo do l,gar
a que se chegou, e sim a
c'nsequência do ofuscamento traiçoeiro produzido
p.r" .rpJt"tiva, pero
clcsejo do vir a ser. Ítacas são o que são,
vidas reais, humanas, nos rimites
do que nos é dado ser. Não há redenção, não
há salvação, nem o triunfo Se a arte recusdr qualquer tipo de relação com o mundo, ainda
final da verdade' da felicidade , do gozototal.
o que há é a tensão perma- que íegdtiva, ou se, ao contrário, pÍocilror uma identifcação
,ente entre a expectadva e a experiência, entre
o que foi, o que é ã,, qra total com o mundo, então a arte perde sua ruzão de ser.
projetamos como o dever ser. Mas nada disso
deve ser lido como um mero LoRslvzo Mentui
rcgistro da decepção. É o reconhecimento
do que há e do que pode haver,
rrssim como da distânc1a '
entre o que se qurs encontrar e onde se chegou. Não aqedite em originalidade, mas não vá acreditar tdmpouco
Não se trata, portanto, de uma ode ao desencanto.
Até porque o nabanalidade, que é a oigíntlidade de todo mundo.
poema me permite desvelar outra dimensão
de fururidade que não está Cenros Dnur,Iuono np Alloneop
associada ao télos da chegada, mas à possibilidade
de a viagem se dar. Tem
Lodo o tempo Ítaca na mente, pois,
sem ela, por que haveria de sair do por_ Num discurso pronunciado em Mântua, em setembro do ano zooo,
to? Esta outra Ítaca que se apresenta no
início da viagem é a inspiração, Umberto Eco abordava a então novidade da escrita coletiva de obras na
é o princípio que orienta a ação. É o que
nos faz agi.. Neste po.rto, .rao internet. Nela, descreve o autor de A obra aberta, "encontram-se progra-
se trata mais nem de um rilos imaginado,
nem d.a Ítaca que o via.lante mas com os quais se pode escrever histórias coletivamente, participando
encontrou ao chegar, mas daquela com a qual,
e pela qual, saiu do porto. de narrativas cujo andamento pode ser modificado ao infinito"'. E se é
E é essa dimensão plural e não objetific
ada dafuturidade qr" .rr.rito _. possível escreverhistórias interativas, sem um autoÍ central, por que não
r'nteressou no poema. É a possibilidade
de recusar o dupro cronocídio: também reescrevê-las, pergunta-se Eco, alterar a trama de "textos lite-
aquele do futuro como coisa que anula a experiência
do p..r".rt.; aquere rários já existentes, adquirindo programas graças aos quais seja possível
do presente estagnado, da repetição infinita
do mesmo, da rotinização mudar as grandes histórias que nos obcecam, quem sabe há milênios?"'.
da mudança que abandonou qualquer imaginação
do que pode vir a ser. Assim, leitores reescritores poderiam salvar da morte o príncipe An-
dré, de Guerra e paz; reconciliar Emma Bovary com Charles; impedir que
Julien Sorel dispare contra a senhora de Renal. "Seria ruim?", prossegue
interrogando Eco. "Não, porque a literatura também já fez isso, e bem

r- Umberto Eco, "Sobre algumas funçóes da Jiteraatra" , Sobre ahttatura, São Paulo: Record, zoo3, p 18

z [dem, ibidem, p r8

Futuíols) presente(sl
403
identificar o pensamento
iurtcs d()s hipertextos"r. Ele então lembra práticas literárias modernas quc clemonstrá-lo. O mais importante é, entretanto'
t()r'naram instáveis as noções de obra e autoria: os cadawes exqais dos sur- subjacente que engendr' t outras práticas da cultura contemporânea'
"t"
pela tecnologia' pelas novas formas de socialidade
rcalistas (processos de escrita automática coletiva), as inúmeras variações e.p.lha.tdo:se Pela arte,
cstilísticas de Queneau e as improvisações do jazz, que mudam a cada ,-r" irrr.r.r", e pelo entretenimento de
massas' No fundo' o que legitima
da arte interativa' como o
i

r.r<litc o destino de um tema. "Mas", ressalva, "o fato de que eísta a prática (para eles mesmos; não apenas os praticantes
c1lt iam session [...] não nos desestimula a comparecer às salas de concerto a interatividade ern geral na cultura
(que vai desde as tecnologias
"p"f" "participação do internauta" em programas
crlr que a Sotlatd em sibemolmetlor op.3j acabará toda noite exatamente do wiki, na web, atê a irritante
de democtacía' É essa ideia que se deve
compreender e
n-rcsmo modo"a. Por quê? O que há de experiência irredutível em obras de rv), é certaideia
lcchadas, que começâm e acabam sempre do mesmo modo? submeteràcrítica.Paraela,todaformadeautoria'emsuasmanifestações
Para Eco, trata-se de uma lição de fatalidade. "É a descoberta de que "tradicionais", isto ê, náo participativas' é percebida como autoritária'
as coisas aconteceram, e para sempre, de uma certa maneira, além dos Esse é provavelmente o seu equívoco
fundamental' pois a relação entre
comum convida a supor'
clcsejos doleitor", ao qual cabe acatar essa frustração e experimentar, autor e autoridade, ao contrário do que o radical
e até de oposição'
assim, "o calafrio do destino"'. 'A verdadeira lição de Moby Dick é qae a não é de continuidade, e sim de descontinuidade
baleia vai para onde quer"u. As obras fechadas, transmitidas de geração
Keen' um ex-
em geração na sua forma imutável, encerram portanto uma "educação Em um conhecido livro, O culto do ümador' Andrew
apostasia do que se pode
ao Fado e à morte"7. Sua trágica grandeza está em que nelas "as coisas -empreendedor do Vale do Silício, declara sua
revelou em um
rrcontecem como acontecem"t. Submetendo-nos ao destino, preparam- .h"àr. a ideologia dawebz'o' Tal ideologia' relata' se lhe
lros para a morte. encontronumacidadezinhaagicoLanonortedaCalifórnia'emsetembro
Triste argumento. Defenderei adiante que, ao contrário, se há uma dezoo4,reunindo,,oestablishmentantiestablishmentdoValedoSilício','"'
"um evangelizadot da inovação junto a
razão para desconfiarmos da criação de obras de arte interativas está Promovido pela O'Reilly Media,
evento' chamado Foo Camp'
justamente em que elas tendem a não ltermitiÍ que as coisas aconteçam uma congregação mundial de tecnófilos"' o
de outro modo. Fundados numa pseudoliberdade de ordem estritamente reunia..ospartidáriosdacontraculturadosanos1960,,com..osentusiastas
sociológica e empírica, esses processos de criação costumam ser muito dolivremercadodosanosrg8o,,e..ostecnófilosdosanosÍ9go',''.
não eram novidade
menos livres e criativos do que se acredita. Keen conta que conferências no Vale do Silício
"quando o boom da irr-
Por hora voltemos uma última yez ao texto de Eco. E em outro mo- para ele, que tinha até mesmo organizado uma'
mento que ele toca, de passagem, no âmago da questão: 'Alguém disse ternetdavaseusúltimossuspiros""'"MasoFooCamperarealmentedife-
apenas participantes"'3' O
que jogando com mecanismos hipertextuais se foge de duas formas de rente. Sua única regra era: não há espectadores'
"segundo princípios participativos' de fonte aberta'
repressão, a obediência a acontecimentos decididos por um outro e a con- evento eraorgarizado
clenação à divisão social entre aqueles que escrevem e aqueles que leem. ao estilo da Wikipédia"'+'
"IJma palavra estava em todos os lábios no Foo
'democratizaçáo""5'
1...] Isso me parece uma bobagem"e, arremata. Concordo; e procurarei Camp ernsetembro de zoo4' Era

3. Idem, ibidem, p 19
O amodor, Rio deJaneiro: Zalta! zoog' p t7
4. lclem, ibiclem, p 19 ro. Andrew Keen, cubo ào

5. ldcm, ibidem, p. zo II. ldem, ibidem, P. 17.

6. ldcm, ibidem, p zo. 12. Idem, ibidem, P r7


7. )clcrn, ibide m, p zr 13- Idem, ibidem, P. t7
8. Iclcm, ibidem, p. zo 14. Idem, ibidem, P. 17.

9. ldcrl, ibidem, p 19. t5. Idem, ibidem, P. 17.

Francisco Eosco 405


0 Íuturo da ideia de autor
samples' edições de
se sabe, não se reduz à
linguagem verbal: mashups'
Essainformação explicita a ideologia que fundamenta a web 2.o, essa criação liberadas pelas no-
yo"Tuíe ão técnicas de
nova geração da internet caracteizada pelas redes sociais, ferramentas vídeo amadoras no a criação a par-
Essas técnicas têm em comum
wilei, sites de compartilhamento de vídeo e áudio e instrumentos de re- vas ferramentas digitais' entre sr'
preexistentes' combinando-as
criação de obras existentes (por meio de cut andpaste, mashups, edições de tir do aproveitamento de formas sem que para isso
ressignificando-as' enfim'
vídeo, em suma, todos os recursos para o que Nicolas Bourriaud chama deslocando-as de contexto'
seja necessário trabalhar
com uma matéria-prima'
de pós-produçâo). No fundo de todas essas possibilidades, há o mesmo de pós-produção. conforme
ele
princípio de democratizaçáo, compreendido como esvaziamento da au- Bourriaud .h"*oo .rras práticas formas: em
..os artistas atuais não compõem, rflas programanr
toria, nivelamento das hierarquias, indiferenciação entre autor e público, explica: uti-
bruto (a tela branca' a argila)' eles
cspectadores e participantes, atividade e passividade. É preciso entretan- vez detransfigurar um elemento O modo que a
com uma matéria-prima"'8'
to dissociar essas ferramentas, efetivamente liberadoras, de um ideário lizarno dad.ol"lJânão lidam de "un-
é o que Goldsmith chama
democrático homogeneizante e reconciliá-las com certa ideia de autoria. pos-produção se efetiva na literatura a crítica literária
creaiíve wríting' , ortescrita
rcciativa' Essa escrlta' reforça
As atuais reformulações da ideia de autoria, bem como suas práticas
gnrius"'ê a forma lógica da 'escrita'
Marjorie Perloff IJnoiginal
correlatas, extrapolam portanto a esfera da arte. Todo autor se torna "* "' móvel ou ffansferível - texto
que pode
em uma era de texto literalme"te
suspeito de autoritarismo, e logo de trair o princípio democrático da igual-
de um site pata outro ou
do impresso para a
,., deslocado
dade. Assim, arte interativa, formas de pós-produção, redes sociais, ferra- fro.rr"rrrente escondido por diversos
tela, que pode seruptopt"ao' transformado' ou
mentas wiki, vídeos enviados para o Fantastico, reality shows e a inflação
A escrita recriativa Promove
um des-
generalizada da intimidade (pois qualquervidaprivada pode ser igualmente meios e para di""otp'opósitos"'e' A produção de
conteúdo Para o contexto'
de interesse público), participam todos da mesma mentalidade, de uma locamento do ato artísticà' do preens-
da recontextualização de formas
mesma ideia de democracia. Para compreender essa ideia devemos pro- novos sentidos surge por meio
afirma Goldsmith'
ceder por partes. tentes. " C ontert is the new content"'o' xx
e o pensamento do século
com a arte
Qualquerleitorfamiliarizado
Um dos conjuntos de práticas no campo da arte que vêm questionan- Duchamp' Picasso' Warhol'
do a ideia de autoria é aquele designado pelo termo pós-produção. sabe que estamos t*ãud"'Iápalmilhadas' téc-
dos autores que empregaram
Em seu livro Uncreative wríting, Kenneth Goldsmith (poeta, ensaísta Benjamin, Eliot e Pound foram 'tgt"" memória' O
ioializá-las' para refrescar a
e fundador do site Ubu Web, com yasto material das vanguardas artís- nicas "recriativas"' f opo'*"o mic-
ready-madeinaugural *
ticas do século xx) lembra que "desde a aurora da mídia tivemos mais gesto de Duchamp, tÀ o ?:'::t:::.so de um
impacto. A mera transposição
tório, tarvez tenha sido o de maior
a esfera simbólica da'l:
em nossos pratos do que jamais poderíamos consumir"'u. Esse excesso
objeto utilitário, industrial' para "-
L::::t""sobre
de linguagem, entretanto, não apenas se multiplicou, como sofreu uma esfera e lançou uma questão
transformação de ordem qualitativa: "Nunca antes a linguagem teve tanta curto-circuit" t;;;;t"'uo d""'
""qteatá ho'1e ressoa' Picasso' em sua fase cubista' utilizou
a sua narure za
mateialidade - fliidez, plasticidade, maleabilidade - implorando para
prontas em seus quadros' combinando-os
ser ativamente manuseada pelo escritor"". Goldsmith está se referindo à pedaços de objetos e formas
com materiat pi"t"ao ttt' Warhol relançou o gesto duchampiano
fot 1a
natuÍeza da linguagem verbal no mundo digital, pela qual, por meio de
ferramentas coÍno cut andpaste, podem ser deslocadas grandes massas Martins'
como o dÍle rePíogtoad o
ffirào contffipotdteo' Sáo Paulo:
de textos, integralmente, sem qualquer esforço. A possibilidade, como 18. Nicolas Bourriaud' Pós-proàtçao:
2oog' pp' $ e The univers§ of
uea*ç tit the tefr cmtury' chicago:
nth't mear
h' other
' . " poetty
etrlo fr' IJnoi§nol' gníu;
'^^'*^' by
r9 la"4oie
17
Chicago Press' 2oror P'
r6 KennethGoldsmith,Urqeotirewieing,NovaYork: ColumbiaUniversiryPress,zorr,p.z5.
zo. Kenneth Coldsmith' oP cit ' P 3
17 [dem, ibidem, p z5

Francisco Bosco 407

0 Íuturo da ideia de autor


,Lrrlâr cf2r cle radicalização da repetição de imagens
e fez daprópria rcpc_ lsso posto, examinemos alguns problemas que dizem respeito à ar-
tição uma verdadeira poética.
ticulação das noções de diferença, valor e autoria no campo da escrita
Na poesia, o poema talvez mais importante de língua
inglesa no sé_ recriativa e da pós-produção em geral.
cul. xx, "The waste land", foi composto por meio de um sem-número
de Os princípios de onde partem Perloff e Goldsmith são irrefutáveis. 'A
citações, egressas de línguas, culturas e códigos diversos,
entremeadas e lição aqui é que o contexto sempre transforma o conteúdo"a, diz ela. "A
fir.ralme.re costuradas por Eliot. Atmosfera simborista
à parte, pound, il supressão da expressão de si é impossível", üz ele; "até quando fazernos
miglior fabbro, re aliz ou operação s emerhante em seus
c ontos, orquestran- algo tão aparentemente não criativo quanto redigitar algumas páginas,
cftrideogramas chineses, línguas vivas e mortas, citações
da política, entre nos expressamos de diversas maneiras. O ato de selecionar e reposicionar
()utros materiais. pode-se dize\ com
Goldsmith, que as operações de pi_ dtztanto sobre nós mesmos quanto uma história sobre a operação de cân-
casso, Eliot e Pound são "sintéticas": trata-se
de combinar escrita criativa cer da nossa ÍÍrãe"'5 . Essas afirmações se dirigem, refutando-as, às noções
c rccriativa; fragmentos de formas preexlstenres
com outros, originais; e de originalidade, expressividade e escrita criativa (as oficinas de "creatíye
c()mpor rudo isso no todo que é a obra.
witing' são um verdadeiro gênero na instituição literária americana).
Já a póstuma e controversa obra de Walter Benjamin, passagens, é
Como lembra Perloff, "originalidade é frequentemente definida pelo que
construída segundo outros procedimentos. Ela, como
se ,"b., ã.o__ não é: não derivativa, não surgindo de, ou dependente de qualquer outra
posta principalmente de citações ("das 250 mil palavras
que perfazem coisa de seu tipo, não derivada"'u. É uma noção parente daquela de "ex-
a edição Tiedmann, pelo menos poÍ cento
75 são transcrições diretas pressividade" entendida como fonte da obra: o artista externalizando ao
clc textos que Benjamin coletou por mais de 13
anos,,.,): anúncios de mundo seus sentimentos, sua "alma", sua especial verdade interior, que
-i<r.r-ral, cattazes, nomes de lojas, fragmentos de guias de viagem, versos
é o sentido da palavra "ciaçáo" na expressão "escrita criativa".
tlc poemas, letras de canções populares etc. Embora
não hala consenso Mas é preciso lembrar que essas noções foram sistematicamente des-
srbre a intenção de Benjamin, tudo leva a crer que o projeto
ftri pensado montadas por levas progressivas de obras e teoÍizaçóes desde a segunda
como um livro inaugural de escrita recriativa, feita em
,r" _"io. p".r. metade do século xrx e ao longo do século xx. Para fazer trnabrevíssima
cle citações - e não como
um materiar de pesquisa revantado para servir
história: Poe, com afirmando uma concepção
A filosofia da composição,
a um livro de interpretação a ser ulteriormente
escrito de forma tradi- racional e materialista da literarura; Mallarmé, com seu poema impes-
cional. O próprio Benjamin anorou: ..Método deste projeto;
montagem soal, sem sujeito lírico; Rimbaud, com stas lluminações, poemas sem su-
literária. Eu não preciso dizer nada. Apenas mostrar"22.
certa imagem da jeito nem referência realista, em que a linguagem é contemporânea de
Paris capital do século xrx seria formada, ou vislumbrada,
por Ãio do si mesma; os formalistas russos, com seus conceitos de desvio e proce-
conjunto imenso desses fragmentos. Assim, como sugere perlofl
o livro dimento, situando na linguagem - e não no eu do escritor - a nat:uteza
reproduziria, em sua forma, a experiência das passagens
parisienses, com da literatura; a célebre frase de Gide, "com bons sentimentos se faz rnâ
seu desflle de citações-mercadorias. Da perspectiva
do método histórico, literatura"; a não menos célebre estrofe da 'Autopsicografia" de Pessoa,
abandonavam-se os documentos oficiais e os grandes
acontecimentos "O poeta é um fingidor..."; e assim sucessivamente, além dos já citados
em favor dos dejetos e detritos, "prestando atenção
nas margens e peri- Eliot, Pound e Benjamin. Tudo isso formou a sensibilidade do século,
ferias, em vez de no centro",r.
para a qual não deve causar nenhuma surpresa que obras literárias pres-
cindam de um autor entendido como sujeito expressivo, a plasmar uma
zr Marjorie Perloff, op. cit, p. z7
z: Walrer Benjamin, apud Marjorie perloff, op cit., p 24. Marjorie Perloff, op. cit, p. a8
zO
zr l(cnncth Goldsmith, op cit , p rr4 25. Kemeth Goldsmith, op. cit., p. e.
z6 Marjorie Perloff, op. cit., p zz

í)8 0 Íuturo da ideia de autor

r Francisco Bosco 409


matória-prima (como se fosse possível considerar a linguagem verbal uma mente nürrr mashup. Não há diferença essencial entre a pós-produção e a
rnatêria-prima). arte que lida com uma "matéria-prima"' Culturalmente falando, uma tela
É precisamente toda essa movimentação do século que levou Barthes nunca é branca, a argila nunca é intocada- Na origem da produção está o
a proclamar, no famigerado texto homônimo, "a morte do autor". O consumo. Todo artista êwnbicolzur,toda escrita resulta de um conjunto
autor de que Barthes assinou a certidão de obito é o autor como "pessoa de leituras (de um tipo de leitura especialmenre ativa, que Harold Bloom
humana", que "reina ainda [o texto é de 1968] nos manuais de história chamou de misreadin§').
literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas e na pró- Em suma, apÍdtica dapós-produção revela, explicita, moterializa dnature-
pria consciência dos literatos, preocupados emjuntar, graças ao seu diário zd da Mte "tradiciontl", que, assim compreendida, desfaz os Preconceitos tradi-
íntimo, a sua pessoa e a sua obra",7. A morte do autor era, portanto, a cionalistas contra aytós-produção. Logo, a radic ahzação e a disseminação das
lrorte de certa ideia de autor. No mesmo momento em que morria, o técnicas de pós-produção não deveriam afetar uma ideia de autoria que
aLrtor renascia como um orquestrador de códigos, um compositor de veio se formando ao longo dos séculos xlx e xx e encontra sua formula-
fragmentos, um arranjador, urn intérprete, alguém cujo trabalho, em A ideia
ção sintética em Barthes; anres deveriam ajudar a compreendêla.
suma, nunca é original: "O texto é um tecido de citações, saídas dos mil moderna de autoria está vinculada não à origem, mas ao destino: autor é
ftrcos da cultura. Parecido com Bouvard e pécuchet, esses eternos co- quem produz diferença - por meio de processos de seleção, combinação
pistas, ao mesmo tempo sublimes e cômicos, e cujo profundo ridículo e interpretação, implícitos ou explícitos - a partir do que a tradição e a
clesigna precisamente a verdade da escrita, o escritor não pode deixar de contemporaneidade lhe oferecem. como já colocava Mary shelley, citada
ir,itar um gesto sempre anterior, nunca original: o seu único poder é o porJonathan Lethem em seu ensaio "O êxtase da influência": "Invenção,
tic misturar as escritas"'8. deve-se admitir humildemente, nâo consiste em criar do nada, mas do
O mais lírico dos poeras românticos é tributário das escriras, das caos"". E o próprio Barthes, também citado por Lethem; "Qualquer texto
ideias, das representações, das formas de seu tempo e da tradição. O é tecido inteiramente de citações, referências, ecos, linguagens culturais,
mais revolucionário dos poetas modernistas, idem, mesmo recusando que o atravessam de cabo a rabo em uma vasta estereofonia. As citações
a tradição. Não haveria Picasso sem Cézanne. Não haveria Machado de mobilizadas num texto são anônimas, ilocalizáveis, e entretanto já lidas;
Assis sem Sterne e De Maistre. A diferença é metodológica e não funda- são citaçôes sem asPas"r2.
mental'e: enquanto Cézanne está implícito, digerido e reprocessado em A ideia de autoria enquanto expressão de uma interioridade, de uma
Picasso, Nerval aparece explicitamenre no poema de Eliot, a voz de .orn singularidade original, virginal, foi portanto desmontada durante o século
cantor ou a progressão harmônica de um violonista aparecem explicita- xx. Como aflrma Foucault em seu texto "O que é um autor?": "Pode-se
dizer de saída que a escrira de hoje se libertou do tema da expressão: ela
z7 Roland Barthes, 'A morte do autor", O rumor dolitgua Lisboa: Edições 7o , pp. 49 50.
só se refere a si mesma [...] trata-se da abertura de um espaço em que o
28 Idem, ibidem, p 52. sujeito escritor não cessa de desaparecer"3s' O autor, ou mais exatamente
z9 Na verdade, a diferença pode ser fundamental, mas não o e necessariamente Perloff distingue as
escritas orientadas por uma "confiança na invenção", de "forte alcance individualista", e cujas técnicas o que Foucault chama de "função autor", não se situa do lado da vida
podem ser "tradicionais" (aspas miúas) ou recriativas, das escritas, "no clima do novo século", para pessoal do escritor, mas sim do lado das características clos textos qlle a
as quais "invflrio está cedendo Jugar à apropriação" Nesse último caso, os escritores não almejam
produzir uma diferença radical, mas "participar de um discurso mais público e de maior amplitude"
30 Equesedevetraduzirpordesleittra,jáqueoprefixonis-,aqui,nâoclesigrrrLttllttlo,tsilttttttt,tlt'i.rr,irr
Essa diferença não é apenas metodológica, mas modifica decisivamente a noçáo de autoria, pois os
que requer uma espécie de abandono dos usos ou das pcrspectivas rprtscnl ir(lits ;r'l,rs lc it t t r .rs I tist i,r r

textos que daí surgem renunciâm ao (ou são incapazes de produzi-lo) "poder de criar uma pa role úuca
cas de uma obra em favor de uma persPectiva ou uso diferente
a partir da piscina verbal da culrura" O diagnóstico (não necessariamente, veremos, quanto à intençào,
3r Mary Shelley apudJonathan Lethem, "The ecstasy of irrfluencc", Iltrpu's MtitzinL, r0o7, I I r.l
mas muitas vezes quanto ao resultado) é verdadeiro, mas são justamente as consequências culturais e
3z Roland Barthes, apudJonathan Lethem, op. cit , p I tr
subjetivas dessa proposta que submeterei à crítica. MichetFoucault,"Qu'estcequ'unauteur?",Dit§ctétritst,19t4-75 Paris:ciallirrrrtrtl,a(r,r,PlrtlroSrr
l:

0r0 0 Íuturo da ideia de autor I l;ttl:trr:tl lltt:r tt 4il


cla são iclcntificados. Esscs textos
se definer:
clcrnarcamemrelaçãoaosdiscursoror""rr'u"iÍill1::';:::U;:K"y::, Outro exemplo. Um artista inglês decide redigital a ccliç:ão origir.r:rl clc
"Enfim, o nome On the road, uma página por dia, em um blog intitulado por ele "Entrando
de autor funciona para caracte izar
certomodo de ser na cabeça de Kerouac". Durante mais de quatrocentos dias, redigitou e
do discurso: ["'] esse discurso ,ão é uma paravracotidiana, indiÍêrente,
uma palavra postou cada página do livro, reproduzindo-o integralmente. Ao final,
que se vai, que flutua e passa, uma
palavra imediatamente disse de sua experiência ter sido "a mais excitante leirura/caronalread/
cor.rsumível, mas se trata de uma
paravra que deve ser recebida de
certo nde) da minha vida". O fato de ter redigitado cada palavra do livro e de-
rrodo' e que deve, em determinada cultura,
receber certo estatut o,'3a. A
íirrrçâo autor identi6 rca, portanto, pois relido e revisado cada página lhe proporcionou uma experiência de
os conjuntos de textos agrupados pelo
rr.me de autor, caracterizados pela "ruptura leitura minuciosa, por sua vez descortinadora de características da prosa
que instauram em certo de Kerouac, "que em meu estilo habitual de leitura estou certo de que
grLrpo de discursos"35.
Ora, contrariamente ao que acreditam não teria percebido"o. É essa a obra.
seus paladinos, é essa ideia
clc aLrtor como produtor de diferença Eis ainda um relato de Goldsmith sobre sua prática como professor:
clue seria chutar
e não como - criado r ex-nihilo, o
cach
crescaminho,d,id.i"::;ffi:;;::fi:iil:j:ff r#T,Hr":::: Nós redigitamos documentos e transcrevemos clipes de áudio. Faze-

práticas arrísricas de pós_produção mos pequenas alterações em páginas da Wikipédia (mudando um o


e sua compreensão. Senão, vejamos.
Goldsmith chama de ..apropriação,, por um a ou inserindo um espaço extra entre palavras f...-l Nós temos
um método radical de escrita aulas em salas de ch4f e passamos semestres inteiros exclusivamente no
rccriatl'va' Tiata-se, não de combinar
fragmentos de formas preexistentes,
,ras de simplesmente deslocar r-, Second Life [...] E depois de ver o quão espetaculares sâo os resultados
forL, integral, movêla de um con_ disso, o quão completamente engajada e democrática é a classe, estou
rcxto a outro' Gesto rearizado na arte
do século xx por Duchamp e pelos
situacionistas' E que com as ferramentas mais convencido de que não posso jamais voltar a uma pedagogia de
d.e cut and paste se abre agora
também paÍa aliteratura. Examinemos sala de aula tradicional3'.
dois exemplos.
Em uma obra sua intitulad,aDay, d.ezoo3,Goldsmith
redigita, palavra Em outro momento, ele afirma que práticas como as de pós-produ-
por palavra, página por página, a edição
de uma sexta-feira d.o jornar The
New York Times' o projeto se resume ção "desmontam os mitos gêmeos do autor todo-poderoso e do leitor
a isso: deslocr. o .o.rt.úão integrar
de uma edição do jornal para um passivo"4o. É a ideia afirmada por Bourriaud, ao declarar que o
-es-a
livro. A questão que o moveu foi a se_
guinte; "Quando reproposto como um tratamento dado a formas já produzidas representa uma mudança cultu-
livro, teria o jornal propriedades
literárias que não podemos ver em nossa ral no sentido de "atenuar a fronteira entre recepção e prática"; opor-se ao
leitura diária dele?,,3u. Mas, para "esquema clássico de comunicação que supõe um emissor e um receptor
Goldsmith' a simplicidade do procedimento
é enganosa e "envolve duzias
de decisões autorais"' tais como: "o passivo"; abolir, em suma, uma suposta distinção tradicional entre pro-
que fazer coma fonte, com os nú-
meros das fontes, e a formatação? dução e consumoa'. Mas já vimos que essa separação nítida entre autor e
i...1 onde colocar as quebras de linhas?
leitor, atividade e passividade não descreve de modo algum o que se passa
["'] devo permanecer fiel às colunas estreitas or, .oro.o cada artigo
longo parágrafo?"37, entre outras da
num na experiência de obras de arte modernas lscriptible), "tradicionais", em
mesma naü)teza.

34. Idem, ibidem, p. 826


35. ldem, ibidem, p. 826. 38. ldem, ibidem, p. r5z.
36. Kenneth Goldsmith, op cit., p rr8 19. Idem, ibidem, p. 8.

37. Idem, ibidem, p rr8. 40. Idem, ibidem, p r53

41. Nicolas Bourriaud, op. cit, pp r5 e ro2, respectivâmente

12 0 futuro da ideia de autor


Francisco Bosco 413
surrla' obras não interativas ()u
,â() rc(-r.iativas4,, Nunca houve
autor sem que é privilegiado, mas o da igualdade: a sabcr, rrrlrrcla cluc cstabclccr:
haver
entre autor e leitor, professor e aluno, produção e consumo uma relação
ma de
de horizontalidade, nivelando-os entretanto por baixo. E do fato de que
o álibi
dos campos da arte e da qualquer llrn ê capaz de fazê-las, e não da produção de uma excepciona-
cultura.
Goldsmith nega_o: ..Concord lidade que obrigaria a conhecê-las, que essas obras na verdade retiram
julgamento e a qualidad sua legitimidade e valor.
é bom para o youTube, Há ainda nisso tudo uma confusão de outra ordem. Se admitirmos
quando se trata de arte,,43 isso - confoÍme procurei demonstrar, que as práticas contemporâneas
prática trai o seu valor declarado. de pós-produção não abalam a noção moderna de autoria, pelo menos
Retomemos os dois exemplos quanto aos aspectos das relações entre autor e leitor, atividade e passivi-
que dei de apropriação, as
obras Day dade, produção e consumo na experiência da obra de arte -, a diferença
- em que Goldsmith redigita uma ediçao do
The New york Timese
textualiza no espaço do livro _ a recon_ que existe nessas práticas é apenas de ordem metodológica. Ora, sabemos
eac
em um blog. Não há dúvida road' publicada
desde as vanguardas que não se podem estabelecer métodos a priori paru
(isso aliás é a lei opelo contexto a produção de obras de arte, tampouco para o jubo sobre elas. Chamo
estrutural
aqui de "métodos" os materiais, as técnicas, os recursos utilizados numa
nçade.contex'"""";:ã;::;I;:
Ht.tff':;';:i'*'n"' obra. O "saldo cognitivo"45 das vanguardas, à revelia de sua própria crença,
rodo varor , ,J,:';;#:j: ff"H::::Hj:;TjL,, se anrma
é esse: depois delas fica estabelecido que se podefazer poesia com ver-
deve ser explicitado (é
um valor caro à modernidade, sos livres e formas fixas; música tonal ou atonal; quadros figurativos ou
épocas e sociedades como mas não a ourras
, se sabe); a força de um
abstratos; e também escrita criativa ou recriativa, cavaquinho ott sampler,
interesse auto! a qualidade eo canto o cappella ou mashup, e assim vai, irrestritamenteau.
inada cultura se medem pela
sua
de de intensida_ Ao contrário do que ocorreu antes delas e no interior dos seus pro-
perada e desestabiliz adotaéa
produzid t;.I;T:.tffi
diferença cessos, depois das vanguardas a diferença de método não garante mais
a diferença artística. Diante de uma mentalidade pré-moderna, contra
re cu s ar), as obr as de
crira ...ri r;t
débil, pois as produções de
e
"
s
:l"Hf *.,, ffi:: a qual o moderno e as vanguardas se ergueram, as novidades técnicas
diferenç,
contrário do que afirma Gordsmith
q.r" .tr, rcalizamsão mínimas. Âo
produziam diferenças por si sós, pois se chocavam conffa as normas,
1"c..,r-"rr,e suas escorhas - o modo
como você [...] quebra as linhas demolindo-as. Mas o "saldo cognitivo" das vanguardas é precisamente a
etc. _ serâo diferentes a"
zindo um trabarho compretamente *_ir, p.oar_ consciência definitiva dessa demolição, isto é, da ausência de critérios a
diferente" 4), nãoé o valor
da diJàrença piori para a produção de obras e o juizo sobre elas. A partir daí, o surgi-
mento de uma nova técnica não mais contém valor artístico a pioi. O
4z Aoc
valor não resulta da prática de uma técnica nova, mas da diferença que

Hffiffij:jl"zãoqueostextosmodernistaslPorsuascaracte- 45 Utitzo aqui a expressão de Antonio Cicero em seu ensaio "Poesia e paisagens urbanas", cujos argu-
o que
mentos sigo nesse parágrafo e no seguinte In: Antonio Cicero, Finalidades smfm,SãoPaulo: Compa-
forço
nhia das Letras, zoo5
e consumo, autor e leitoq
revela_se especialmente 46. Isso não significa, claro, que as formas não tenham uma relação com a história, mas sim que elas são
i
4i. Kenneth Goldsmith, op. cit.,
p. ro. vazias (no mesmo sentido em que se diz que um significante é vazio) e que podem ser preenchidas de
44. ldem, ibidem, p. rz9.
sentido histórico Assim, hoje em dia um soneto pode ser tão contemporâneo ou mais quanto umâ
poesia digital, desde que seja mobiJizado com consciência hjstórica.

14 0 íuturo da ideia de autor

Francisco Bosco 4t5


se é capaz de produzir seja com que técnica
for. portanto as técnicas de
pós-produção são tão aceitáveis :rpl'csentam estrutura aberta, que só se complcta conr u 1'rIIlit'ipaçIo
um21
rr.rr,.rr.
outras. Lethem corrobora-o,,. " "",;",;;^;:'^::^'.^
o*pià;üfiT':H do público. Exemplo: numa sala, o artista dispõe um fogareiro, uma pa-
como qualquer ouúa, neutra
o,
por si só],+r. Negá_las em princípio
:ilil:HH:; nela com água fervente e um cesto repleto de macarrão. As pessoas são
incorrer em um conservadorismo significa
arbitrário (ou em um positivismo convidadas a fazer e comer seu próprio macarrão enquanto conyersam
co' como fazernos críticos tos_
de música tradicionais que com o artista e entre si próprias. Trata-se de uma prática que se considera
recusam o estatuto
de artistas a DJS com o argumento primordialmente política, e que se acredita mais democrática do que a
de que "eles não tocam nenhum
rrumento")' Mas afirmá-ras, rambém ins- arte moderna. Será?
em princípio, atribuindo-lhes
por si só, significa incompreensão ..saldo valor A estética relacional assenta sobre pressupostos políticos e artísticos.
do cognitivo,, a"" rr.rfr.a", .
repetição delas como farsa. Os primeiros são, em geral, pertinentes; mas os outros, a meu ver. intei-
Logo na abertura de seu rivro, ramente equivocados.
Goldsmith cita o artista conceitual
Douglas Huebrer: "o mundo Alguns dos pressupostos políticos principais são: vivemos, os países
está cheio de objetos, mais
teressantes; não quero lhe ou menos in-
acresce rtar outros". E subscreve ocidentais, em sua maioria, em democracias individualistas, cujos laços
deslocando-o para o campo esse desejo,
verbal: "o mundo está cheio sociais são precários; no lugar das utopias modernas, devemos apostar em
de textos, mais "microutopias" cotidianas, em ações não institucionais que nos permi-
ou menos interessantes; não
quero lhe acrescentar outros,,4s.
Mas não se
pode dizer que a escrita recriativa
deixe de acrescentar textos ao tam "habitar melhor o mundo"*'; a sociedade do espetáculo impõe uma
uma vez que ela os faz recircular, mundo,
em diferer gramática engessada e limitada de formas de socialidade, cabendo à arte
-os. o que ela não raz- elaborar "modos heterogêneos de socialidade"5o. A estética relacional se
acrescentar ao mundo textos
quando
-"r,r;;t','.;JÃ:: ililTr'..,:l: propõe então a "preencher as falhas do vínculo social"5', inventar formas
diferentes, em sentido .*ig..rt".
resposta é a um tempo contraditória lor isso essa
e redundante. A resposta
de convívio diversas das que nos são impostas e, assegurando um lugar
priada é a tentadva de construção mais apro_
de mais ativo e importante ao outro, ao espectador ou público, reahzar urna
ntensamente diferentes, por
meio de técnicas recriativas ou arte verdadeiramente democrática.
de-se destacar do palavrório
banar e infinito do mundo.
Text calar a algaravia reinante _ Que vivemos em democracias individualistas, isso é certo. Há uma
cujas palavras são uma espécie e
relação constitutiva entre democracia e individualismo. Tocqueville a
explicou bem: as sociedades aristocratas, fundadas na posse da terra, na
outra prática que vem questionando distinção nítida e na imobilidade das classes, faz corr, que os laços sociais
a ideia moderna de autoria
uma vertente da arte contemporânea é
sejam muito fortes no interior de cada classe. Na democracia, o princípio
denominada por Bourriaud, seu
principal teórico, de "estética da igualdade, que engendra a mobilidade social fazendo os indivíduos
relacional". Esse nome designa
têm duas características fundamentais: obras que
r) diferentemente das obras de competirem entre si, quebra os elos geracionais e horizontais, levando
arte modernas' elas não produzem os indivíduos a defenderem-se em unidades mínimas, como a família. O
um objeto (urnquadro de picasso,
uma escultura de. Rodin), m individualismo é um efeito colateral da democracia. Quanto ao fracasso
uma forma de socialidade; um consenso, até poucos anos atrás.
das utopias, talvez tenha havido aí
z)
sentam uma esftutura fecha Desde Guattari e sua "revolução molecular", nos anos r97o, tenta-se ima-
ginar formas de experimentação política diversas dos movimentos cole-
47. Jonarhan Lethem, op cit p rrr
,
49 Nicolas Bourriatd, Estéticarelocional, São Paulo: Martins, 2oo9, p r8
48 Kennerh Goldsmith, op cit., p r.
5o. Idem, ibidem, p. 44
5r Idem, ibidem, p 5r

{16 0 Íuturo da ideia de autor

Francisco Bosco 411


tivos revolucionários. Hoje, com
a crise do capitalismo, as revoltas
países europeus e as revoluções
em empírica, concreta, de diálogo pode resultar em esterilidade subjetiva,
nos países árabes, a possibiridade
de uma conforme procurarei demonstrar.
revolução sistêmica no ocidente
voltou a se abrir, se não na realidade,
menos nas formulações teóricas. ao Finalmente, é uma tolice dizer que uma obra de arte é autoritária. A
se seus pressupostos poríticos são arte nunca pode ser, por definição, autoritária. No momento em que o
em geral pertinentes, as consequên-
cias políticas da estética relacionar espírito é encarnado numa linguagem, o vivido se separa do meio e a obra
ent.etàto me parecem estéreis: reali_
zaÍ'na siruação social excepcional assassina sua origem. Sabe-se, por exemplo, o quanto as culturas antigas
da obra, o horizÀt" dr. relações
sociais desconfiavam da escrita. Como mostrou Derrida, a escrita tem um poten-
igualitárias, em nada altera a manutenção
das rerações sociais àesiguaisr..
Mas são os seus pressupostos e cial libertário constitutivo: nela, diferentemente da fala, os significantes
consequências artísticos que nos inte-
ressam mais diretamente. podem ser interpretados livremente pelos sujeitos, não havendo quem
vejamos como eles problem
ideia de possa resguardar um significado único. Assim, as instituições podem ser
autoria. ^tir^ina
Segundo Bourriaud, as obras de autoritárias, em certas circunstâncias (desde um professor num exame de
arte modernas são ..autoritárias,,,
ne_ qualificação de tese até o Estado soviético obrigando artistas a se enqua-
gam o diá,0go e consrituem um "espaço
simbórico autônomo e privado,,s:.
são afirmações insustentáveis. primeiro: drarem no realismo socialista), mas a obra de arte nunca o ê.
o sintagma ..espaço simbórico
privado" é uma conrradição em rermos. Portanto, no âmbito da relação entre obra e público, autor e "espec-
O simbólico é, por definição, o
registro
do coletivo, do transpessoal. É o tador", a estétice relacional não é mais democrática que a arte moderna.
código
que depende de um acordo prévio Essa pretensão se funda numa série de pressupostos equivocados. E acaba
para haver co
da comunicação, por sua vez, num postulado subjetivamente desastroso: é melhor ser igaal aos outros do
como na boutad.e
mal-entendido", ou seja, pressupõe que diferente de si mesmo. Para compreender o alcance dessa afirmação,
uma relação bilateral, na qual quem
cscuta deforma, interpreta o escutado. devemos antes compreender melhor o que é a alteridade na experiência
Depois: afirmar que uma obra da obra de arte. O denominador comum dos equívocos quanto à com-
d
é aberta, estruturalmente, à partici preensão da alteridade nessa experiência consiste em tratar a questão sob
tudo o que está em jogo num mes uma perspectiva empírica e sociológica. A alteridade se apresenta na obra
passa a existir, enquanro sentido de arte antes como experiência da subjetividade e da verdade.
(que é para onde ela se dirige),
no mo_ No final da segunda parte de No caminho de Swann, Proust escreve
mento em que é aunlizadapero outro.
Essa atuarização é o lJg"..orrrti-
tLrtrvamente reservado ao outro, páginas inesquecíveis sobre música. O ponto de partida é uma pequena
a
em qualquer obra de o"bi.t". q.r. frase musical de uma sonata de Vinteuil (o compositor fi.ctício da Recher-
csse pfocesso não caracteriza
um diálogo, na medida em"rt".
que ná'o ptoduz
Lrmaresposta direta da obra de arte, che).Ao ouvi-la pela primeira vez, Swann sente abrir-se-lhe a alma "como
é redutor em dois níveis. primeiro,
as obras de arte são, sim, como certos odores de rosa, circúando no ar úmido da tarde, têm a propriedade
na famosa frase de Borges, influencia_
das pelos seus leitores (uma obra de dilatar-nos a narina"5a. Essa abertura de alma está na origem de seu
não se separa do acúmulo de leituras
depositadas sobre ela ao longo amor por Odette, amor que se tornaria desde então vinculado à pequena
dos anos). Depois, e mais importante
para a argumentação em curso, frase da sonata. Alguns anos depois, exaurido pelo ciúme e pelo desprezo
defender uma forma ,.."rrrir-.rra.
da amada, Swann, numa recepção, ouve novamente o pequeno trecho da

5z Para uma análise mais dctida sobre sonata, e o sente presente "como uma divindade protetora e confidente de
a dimensão pol í
o artigo ''parrilha da crise: ideologia arelacional, recomendo
e idealismàs,,, seu amor, e que, para poder chegar até ele no meio da multidão e tomá-lo
Tarrí, nírmero ru. DisponÍvel em: <htrp:/ Diniz, na revisre virrual
/revistata larissa-diniz/>.
:-r Nicolas Bourriaud, op .it,.oo9, pp 8o-8r er9.
54 Marcel Proust, No camirh o de Swann, patte z, Rio deJaneiro: Ediouro, zooz.

l|B 0 Íuturo da ideia de autor

Francisco Bosco 419


àparte para lhe falar, adotara aquele disfarce de uma aparência
sonora,,55. É .ressa c,,lusão cntre o social e o subjetiv<-l clrtc it-tco't'c tl cst(rticr
em
A partir daí começa uma reflexão magnífica sobre o que é
a música, qual relacional. Motivada pela ideia democrática, para ela o decisivo está
o seu sentido, qual sua relação com a vida e a morte. que artista e público sejam iguais. Mas, tornando-os iguais um ao outro'
"Ela [a pequena frase] pertencia
a uma ordem de criaturas sobrenaru- condena-os a não se tornarem diferentes de si mesmos'
rals e que nunca vimos, mas que, apesar disso, reconhecemos Ofereçamosumexemplo'AobraEudesejooseudesejo,daartistaRi-
deslumbra_
vane Neuenschwander, apresenta-se assim: três paredes de uma sala
dos quando algum explorador do invisível consegue caprar são
uma, trazê_la
Em
do mundo divino a que teve acesso para brilhar por poucos
momentos ocupadas com centenas de fitinhas coloridas do Senhor do Bonfim'
sobre o nosso"t6. Mas por que essas criaturas são sobrenaturais? porque cada uma delas, está escrito um desejo:
"Eu queria ter minha própria
elas não existem na experiência cotidiana da comunicação casa", "Eu queria poder contar a meus pais que sou gay" etc'
O público é
humana. Elas
não pertencem ao mundo social das o convidado a retirar uma dessas fitinhas e colocar em seu lugar um papel
"situação" - se apre-
mundo recalca ou simplesmente desco em que escreverá o seu próprio desejo. A obra - ou
senta como uma declaração múltipla e coletiva de desejos' Os
dor do invisível", do que ainda não está desejos

não são do "autor", mas do "outro", do outro qualquer, o outro sem


e capturá-las. Esse explorador é o artista. Um artista pré-
é quem está enga-
jado, fielmente, na procura da virtualidade da experiência -requisitos, a que corresponde um "autor" também sem pré-requisitos, o
humana, de
seu possível ainda não realizado. A ética do artista, da autor ideal dessa ideia democrática.
obra de arte, que
daqui desprende pode ser chamada de etica de umayerd-ad"e,em
se
senrido Não se prodtz,desse modo, nenhuma diferença subjetiva' nenhuma
próximo ao que lhe atribui Badiou: a fidelidade à interrupção, à verdadeira alteridade. As pessoas apenas comunicam seus desejos umas
às
ruptura,

outras. Mas esses desejos são variações do senso comum, do sabido'
àquilo que não está aí e que, ultrapassando o plano empírico e são
social das
trocas entre pessoas, é aquele que figuras do outro, isto é, da massa de representaçóes de que toda cultura,
também se afirma pel ncíni., .l - a cadamomento, no campo do desconhecido, mas
se faz. Não estamos
ceder em seu desejo. ::'ü.T.T: sim da opinião, que é "a matéria-prima de toda comunicação"58' como
inconsciente", observa Badiou, "'não ceder em seu desejo, significa .não diz Badiou, lembrando sua relação estreita com a ideia contemporânea
ceder naquilo de que de si mesmo se desconhece,,'57. de democracia: "Sabe-se a fortuna desse termo [comunicação]
hoje e que
A experiência da alteridade, no contexto de uma obra de arte, situa- alguns veem nele o enraizamento do democrático e da ética"5t.
A ética
-se nessa interrupção, nesse desconhecido. É por meio dele que o ourro, contemporânea, assim, tende a ser proPosta como uma ética do outro'
e logo não é de estranhar que uma estética do outro, como a
o público, poderá desconhecer o mundo, a sociedade e a si estética
mesmo. so-
mente quando o outro se torna outro de si mesmo,por um movimento
de relacional, se funde também na comunicação e se realize em âmbito so-
ampliação ou descontinuidade subjetiva propiciada pela obra "obriga as opinióes a um tal
- e não por ciológico. Emvezdisso, a ética das verdades
ser reconhecido como igual pelo autor, em uma dimensão
empírica e so- afastamento que ela é propriamente associal"6o. Mas, de novo, diferente-
cial - é que se pode falar em arteridade. A arreridade é po.t"rrto
,rm efeito mente da ética proposta por Badiou, fundada no caráter associal de uma
imagens
da obra de arte, mas da obra de arte engajada na captura de "criaturas verdade ("essa associalidade é desde sempre reconhecida: são as
sobrenarurais", fiel a uma ética do '.explorador do invisível,,. de Tales, que cai num poço porque procura sondar o segredo dos
movi-
mentos celestes, é o provérbio 'os amantes são solitários no mundo"
o

55 Idem, ibidem 58. tdem,ibidem,P 8o.


56 Idem, ibidem 59 ldem, ibidem, P 8o
57 Alain Badiou, L' éthique: essai sur la conscince du mal Cen: Nous, 2ort, p 6o ldem, ibidem, P 83
75

420 0 futuro da ideia de autor Franclsco Bosco 421


destino isolado dos grandes militanres
revorucionários, o rema da .solidão
do gênio' erc."6') e na fideridade ao desconhecido .scr(o revelar da arte é essa própria passagem do que é, do que se sabe,
(..toda verdade depõe ao que passa a ser, passa a se saber). A arte, ao contrário do que propõe
os saberes constituídos-ez;, "âs opiniões
são representações sem verdade,
detritos anárquicos do saber circulanre,,ur. Umberto Eco, não ensina a lição do que não poderia nunca ocorrer de
Assim, meramente trocando opiniões,
outro modo, mas mostÍa que nossa subjetividade pode tornar-se diferen-
sem sair do registro da comu- te, pode desconhecer-se, e com ela o mundo. A verdadeira lição de Moby
nicação, os outros que participam
da siuação relacional permanecem
sendo, cada um, seu próprio eu. São Dick não é "que a baleia vai aonde quer", mas que as paixões humanas
vários eus e nenhum outro, ou vá_
üos outros sem arteridade, dá no mesmo. podem levar os homens aonde eles não querem.
suprimindo-se a singularidade A pequena frase da sonata, que tanto lhe revelou sobre si mesmo,
do autor e sua capacidade de capturar
as "criaturas ,obr.rr"'.Irris,,, por
causa do desejo democrático de
faz com que Swann pense em Vinteuil como "um irmão desconhecido e
serem todos iguais, suprime_se jr.rro
alteridade' É esse o paradoxo da arte orientada
, sublime"6t. Sim, os artistas são nossos irmãos, mas irmãos desconhecidos.
por uma ideia de auror e Eles nos apresentam ao que, em nós mesmos, desconhecemos, e assim
público que os reduz às suas dimensões
empíricas e sociais. Contra essa
ideia deve-se propor a noção d.e democracía nos elevam a alturas maiores da vida, livrando-nos do vazio e do nada.
essencialda obra de arte. Toda
obra de arte forte, reveradora do desconhecido, Para isso, devemos desejar não que os artistas sejam iguais a nós, mas
é feita contra o ourro e que sejam sublimes.
para Ninguém' Ninguémsignifica rodos,
numa dimensão não sociorógica.
convoquemos proust uma úrtima yez, para
concluir essa parte do Num interessante ensaio, o escritor Bernardo Carvalho identificou
argumento. A passagem sobre a música
e o músico prossegue
dois aspectos importantes da articulação entre mundo digital, democra-
"rri_,
cia e ataques à ideia de autoria (por meio da "tendência crescente de
[...] o campo aberto ao músico não é um teclado mesquinho
de sete associar valores subjetivos e qualitativos de exceção ao autoritarismo"*).
notas, mas um teclado incomensurável
ainda quase totalmente desccr_
nhecido, em que apenas aqui e ali, separados
O primeiro aspecto diz respeito ao interesse das grandes corporações
por espessas trevas inex_ da internet - tanto as telefônicas, provedoras de banda larga, como as
ploradas, alguns dos milhões de roques
de ternura, de paixão, de cora_
fornecedoras de conteúdo gratuito, como Google e Facebook - em desie-
gem, de serenidade que o compõem,
cada um tão diferente dos outros
rarquizar o conteúdo por elas oferecido. Para Carvalho, a lógica é simples:
como um universo de outro universo, foram
descobertos por alguns "Enquanto tudo for percebido como equivalente, não haverá necessidade
grandes artistas que nos prestam o serviço,
"-.ró, *o._
despertando
de pagar (mais) pela diferença"67. Assim, a proposta de horizontalizaçáo
respondente do tema que encontraram,
de nos mostrar quanta riqueza,
das relações de produção artísticas e culturais, defendida pelos tecnófilos
quanta variedade, sem que saibamos,
oculta essa grande noite impene-
trada e desencorajadora da nossa alma
contemporâneos, é muitas vezes comprometida com a defesa de seus
que tomamos po r vazio e nadaa.
interesses. i\ morte do autor, anulado pela inespecificidade de sua função
em uma concepção em que ele se equivale ao "outro", corresponde a
Ao artista não cabe menos do que revelar,
para nós mesmos, quanta morte do direito àe autor.
riqueza oculta nossa própria arma, que
tomamos por vazio e nada. É a
arte que revela ao público, ao outro, Embora óbvia, nunca é demais lembraruma contradição gritante des-
não o que ele é, mas o qtre elepod.e se processo: o Google (assim como o Facebook), que se propõe a compar-

6r. Idem, ibidem,


tilhar o conhecimento universal, recusa-se a compartilhar o seu próprio
p. s3
6z Idem, ibidem, p 79.
6: Idem, ibidem, p 79 65 Idem, ibidem
64 Marcel Proust, op. cit., parre 2
66 Bernardo Carvalho, "Em defesa da obra", Píarí. número 62, novembro de zorr
ó2. tdem, ibidem.

422 0 iuturo da ideia cle autor


Francisco Bosco 423
a tendência atual de considerar
conhecimento: "O Google, por exemplo, não pretende tornar disponível A cssa altul'tl t:spcro ter demonstrado
no campo da cultura - entre elas a ideia
a usuários e competidores o saber por trás de seus serviços - e não é por qualquer distinção hierarquizante
Mas democracia e hierarquia devem
acaso que mantém sigilo desse saber, a ponto de nenhuma informação de autor - um ataque à dàocracia'
Não', P" ttl:t":t::1:* t'
sobre a empresa aparecer no próprio Google, que em princípio deveria ter ser considerados princípios inconciliáveis?
simultâneos numa sociedade
acesso a tudo"t'. Jâ o Facebook tem em seu inventor um dos dutorcs rnars defender a existência de dois movimentos
da
democrática. Um movimento horizontal e outro vertical' O princípio
incensados do novo século. Mark Zuckerberg, na casa dos vinte anos, já
as pessoas são iguais perante
teve sua biografia narrada em cinema. É uma celebração ostensiva do eu ig.rdaua. é horizontal; segundo ele' todas
da diferença é vertical; segundo
e da autoria. E que envolve uma disputa milionária justamente sobre a o Estado, perante ", lelt'"O princípio
ere, todas as pessoas devem ter
garantidas as condições objetivas para
autoria do Facebook. Seria interessante que a mesma lógica aplicada ao
o seu engajamento no processo de
se
compartilhamento de áudio e vídeo gratuitamente fosse aplicada à vexa- seu aperfeiçoamento próprio, para
e melhor que seus pares' A ideia
ta qud.estio da autoria da rede social. Ou à bilionária disputa entre Apple tornar melhot- melhor qt"'i-t'to
numa sociedade democrática' deve
portanto ser penetracla
e Samsung pela patente da tecnologia do iPhone, em que o Android é de diferença,
pode ser percebida e defendida apc
acusado justamente de copiar o iPhone. pela ideia de valor. A diferença não
movimento horizontal da igualclrrtlc'
Mas, para Carvalho, a estratégia de aplainar os valores só se consuma nas como se pertencesse ao mesmo
com um ataque não apenas à ideia de autor, mas também à ideia de obra. mastambémcomomovimentoverticaldedistinção,deseparaçíitl'tlt. (t'trt tr'
a diferença não hierárquic:rt
Se a obra é a concretizaçáo de uma diferença, cuja existência garante superação da igualdade' Há, portanto'
t' ltr r
pessoas de cor preta e pt"o" de cor branca' entre heterossexurtis
a autoria, deve-se desvincular autor e obra, propondo em seu lugar o
vínculo entre autor e vida pessoal. Com efeito, a intimidade, o privado, mossexuaisetc.)eadiferençahierárquica(entreautoresfortcs(.lttl[()1.(.s
os gostos pessoais são uma moeda de troca frequente nas redes sociais. fracos, Por exemPlo)'
jogo é a coexistôrlt'in th' 'lt'tttr'r
Ora, ao contrário da obra, que é a prova da diferença, a intimidade é Em outras palavras, o que aí está em
a diferença abolida, rlma vez que é comum a todos. Mais uma yez, se (povo) eaistos(oexcelente,omelhor)'Emuitoimportantccltrt'rrigrr'rltl'r
meio d«ls ttroviltrt'ttlt ts
todos têm, se tudo é igual, por que pagar por isso? Assim, "também
é à. .tao procureanular a distinção' É so'tnte por
indMduos se propí>crl t'ottro l'ttt'l'l'
compreensível que a obra, já não sendo exceção, tampouco exista, uma de autoaperÍêiçoamento, que certos
do "progresso" (rt cssrt 'tltttt't
vez que foi igualada à vida, ao que é comum a todos"ue. Além disso, a que uma cultura avança - não no sentido
intimidade como moeda de troca serve a outro fim, igualmente interessa- desacreditado),masnosentidodaampliaçãodaexperiôrlt'irtlltttrt'ttt't'tlt'
do: Google e Faceboole vivem de publicidade, logo do conhecimenro que revelaraoshomensaquilodequeelesprópriossãocapaz't's'llssití';rtst't
detêm sobre os gostos das pessoas, e consequentemente devem estimular mente uma definição possível de autor'
tlt' ttt I t,t olt ttt
apttblicizaçáo desses gostos, que são registrados por eles e transformados para além dos interesses comerciais em jogo, é efeito 1rt

entre a internet t' rts v'tlt'l


da incompreensão a oposição criada 'tçot's 't
em moeda de troca ou melhor, nesse caso, de venda.
- digital trouxe potencialiclatlt's tlt'tttr )t l"lllt 'lh
As observações de Carvalho üzern respeito a interesses e contradi- tivas. o advento do mo.tdo
ções no interior da relação entre a web z.o e as ideias democráticas pra- inestimáveisdedescentra|izaçaoeigualdade.Masailltt.t.tlt.ltt,irttlt.vt.
ticadas e defendidas por ela. É preciso entretanto ir além e criticar essas serdefendidacomooesPaço-modelodademocracias(.llllli(.|'.ll(llllIl\,1.
ideias democráticas por si mesmas. simcomooespaço-moa"toaodcessomaisLiwe'log<ttrrrtistlt'ttlrrrt''tllro'
ao munào dos valores'
deve garxrllir''r tlir,ctlil tlr'
A democracia é origem' não destino' Ela
68. Idem, ibidem. as leis e ao acess() ir bt'rrs r
ttllttt 'tlrr
69 Idem, ibidem. todos os cidadãos a iguiaade pefante

I t'tttt l'l tt lltr"r rr I ltt


424 0 Íuturo da ideia de autor
alunos de Harvard' e chamam
Ztckerberg
e sociais (saúde, moradia, educação etc.). Mas essa igualdade deve ser o rrrnir rccle s<rcial exclusiva para
Esse alôgica'aristocrática' da exclusividade
ponto de partida para que os sujeitos se engajem num processo de su- prla desenvolvê-la' 'Lbt'"ttt logo se transforma em febre naci^onal e
peração de si mesmos. Era assim na Grécia antiga, berço da democracia t' cria uma rede social aberta que
mais importante que os gemeos
(é claro que se tratava de uma democracia falha, em que a "igualdade" r-nundial. Com isso, torna-se socialmente pela
bem-nascidos' É a encenação
triunfante da igualdade' comprovada
era para poucos), como esclarece Hannah Arendr "Pertencer aos pou- de Har-
os gêmeos recorrem ao reitor
cos iguais significava ser admitido na vida entre os pares; mas o próprio rrrobilidade social. Desnorteados,
audiência' servem-se de uma prerrogatlva'
domínio público, a póLís, era permeado por um espírito acirradamente vard. Para conseguirem uma
de sua família). o reitor repudia
essa
agonístico: cada homem tinha constantemente de se distinguir de todos $Ína.oezmais, excrusivista (o nome manl-
o princípio democrático'
os outros, de demonstrar, por meio de feitos ou façanhas singulares, que manobra e lhes joga na caÍa novamente
era o melhor de todos"7". Portanto a hierarquia não ataca a ideia demo- festadoagoraporoutrodeseuscoroláriosfundamentais'oempreende-
outra coisa' já que "em
que inventem
crâtica:' em sua origem, é antes parte constitutiva dela. dorismo. Se se sentiram enganados'
um emprego a procurar por ele"'
Talvez nenhuma outra história recente exemplifique melhor que a Harvard os alunos preferem inventar da so-
a celebração da ideia cenffal
trajetória do próprio Mark Zuckerberg, inventor do Facebook. Retorno, A invenção do Facebooké' assim'
Tocqueville' nos EUA "a igualdade
de
para concluir, ao filme que narra a sua vida. O roteiro estrutura-se basi- ciedade americana' Como escreveu
resultar"T''
que cada fato particular parece
camente sobre os dois processos a que Zuckerberg tem de responder: a condiçóes é o fâto gerador de
nesse ponto' pois a história
é
acusação, por parte de três alunos de Harvard, de que ele lhes teria rou- Não há necessidade de aprofundamento da
vieram se estabelecer nas colônias
bado a ideia; e a acusação, por pafte de seu ex-único amigo, de que ele o conhecida: "Os emigrantes que
às classes abastadas de sua
pátria-mãe'
cnganou, reduzindo brutalmente sua participação na empresa, da qual Nova lnglaterra pert;nciam tàdos família;
por aventureiros sem
r:ra cofundador. Por meio desses dois processos é narrada a história da t...1 As outras
colônias haviam sido fundadas
traziamconsigo elementos de ordem
e
invenção do Facebook. Cada um desses processos permite um vislumbre os emigrantes da Nova Inglaterra a
das doçuras da pátria por obedecer
sobre a democracia na América (e os dois juntos formam o retrato com- moralidade' [..'] EIes '" "i""""* exflio'
uma necessidade puramente
iotelectual; expondo-se às misérias'do
plexo dessa democracia, com sua virtude fundamental - a igualdade - e Da
ídeia'n'' Essa ideia é a da igualdade'
seu pior efeito colateral, o individualismo). eles queriam fazer ttíwfar uma
de partida para o autoaPerfeiçoamento
Zuckerberg é .trnnerd, desprovido de carisma, beleza e nome de famí- igualdade, portânto, como ponto
Há' assim' a aristocracia do
dos indivíduos e' com ele' o
da
lia. Se encararmos Harvard, onde estuda, como um microcosmo social, 'otLd'dt' e a aristocracia do esforço'
ele está no fundo da hierarquia. O topo, por sua vez, é a sociedade privada sangue, princípio a que se opõe a democracia'
Phoenix, que reúne, por assim dizer, a aristocracia da Universidade. Ser um prúipio que a igualdade democrádca asseguraTr'
membro dessa sociedade e participar de suas festas é o que todos em Har-
Flammarion'r98í'p57'
vard desejam. Os representantes da Phoenix são os gêmeos Winklevoss: 7r AlexisdeTocqtevrlle'DeladémouatieenAméiquet'Paris:
trata o ou-
altos, belos, esportistas, de família rica e renomada. Com esses elementos l't"'ot p'oa"' entretanto' eÍêrtm rcraterais
smi"l:l::'"'"*::".::soqre
11. ltlT#l} contra Zuckerberg Por seu ex-amigo'
Eduardo Saverin Esse
já está esboçada uma das dinâmicas fundamentais da sociedade americana. tro eixo do filme, qut t t Ottttt"
t""tdo
encena o problema do individuali
O que se vê, aqui, é a reencenação do embate entre aristocracia e Processo
ca
ville, sendo as classes distintas e imóveis'
democracia, vencido pelo ideal democrático, nos EUA, desde antes de pátria, mais visível e estimada que a
pequena
ela' o
sua fundação, ainda como colônia. Os gêmeos Winklevoss desejam criar à"á. propitt" mobilidade social e' com
que sePara os indivíduos tanto
uma dinâmica
um portador dessa pat
Zuckerberg age como
no atual momento da história americana'
7o Hannah Arendt,Acotdiçãohumam, Rio deJaneiro: Forense Universitária,2oro, p.50 quânto

Francisco Bosco 427

2G 0 futuro da ideia de autor


A facc mais visível da crise atual da ideia de autor é a crise
dos clircitos
tle autor. A redefinição desses direitos pressupõe uma noção
amadurecida
ckr que seja um autor. Mas as novas práticas e ideias
de autoria devem
scr cstudadas pelos efeitos que podem ter (e vêm tendo) sobre
a expe-
da obra de arte - e não apenas por suas consequências jurídicas Sexo não é mais o que eÍa
'iôr.rcia
c comerciais, no campo dos direitos de autor. Nesse, os partidários Jorge Coli
mais
dafree culture tendem a abraçar as ideias democráticas que
'aclicais des-
c'evi ao longo deste texto, na medida em que elas esvaziam a autoria,
e
t'.nr ela seus direitos. Estou entre os que desejam transformar as leis
de
clircitos autorais, no sentido de uma maior liberação das formas
e ideias,
rro Brasil ainda enrijecidas ao ponto do absurdo. Mas não
é necessário,
para isso, proclamar novamente a morte do autoq dessa
vez no sentido de
sua indistinção em relação ao outro, ao público. Deve-se
antes reafirmar a
ideia moderna de autoria, na qual o autor é a um tempo
singular e tribu-
tário da sua cultura. Essa base é mais verdadeira da perspectiva Sou eu quem deve agradecer aarnizade e a generosidade que Adauto
teórica e
corresponde melhor ao princípiojurídico do equilíbrio, que Novaes sempre demonstra ao me convidar, com frequência, para estes ci-
deve orientar
clos e, neste caso, neste ciclo específico e nesta conferência específica, essa
rr .edefinição dos direitos de autor, um problema complexo, a
envorver
t r'ôs interesses igualmente legítimos:
generosidade, essa amizade, se revelaram ainda mais fortes pelo seguinte.
o da sociedade (público), o do autor
(indivíduo) e o do intermediário (empreendedor)7a. Vocês sabem que o pessimismo tem uma longa e prestigiosíssima

O esforço de argumentação que realizeiaqui tem como objetivo


carreira na história do pensamento e da história da filosofia. Do profeta
aler_
tar que o esvaziamento do autor como estratégia para a liberação Jeremias até a Escola de Frankfurt existe aí uma lista extraordinária de
das
formas e a promoção da igualdade entre os sujeitos pode ser um pensadores críticos que estão centrados numa visão pessimista do mun-
tiro do. Adauto, como pensador elevado que é, se inscreve nessa visão, e eu,
pela culatra: as formas liberadas e os sujeitos niyelados tornam-se
mera percorrendo os resumos das diversas conferências apresentadas aqui, me
repetição, diferenças mínimas. Liberam-se as formas, mas as
formas têm
menos poder de liberar os sujeitos. Nivelam-se os sujeitos, mas convenci de que todas elas iam nesse sentido superior da crítica pessimista
assim
ao futuro.
nivelados não podem ultrapassar a si mesmos.
Por outro lado, os otimistas têm uma tradição muito mais duvidosa.
Ela vai do Dr. Pangloss, de Voltaire, até as trágicas filosofias evolucionistas
que investiram no amanhã. Muitas filosofias do século xtx, de Auguste
Comte ou Marx, até todos os projetos políticos autoritários do século
xx, viam no futuro algo de brilhante, de luminoso. Vocês sabem quão
trágico foi o resultado.
Assim, essa tradição otimista é bem menos elevada e muito menos
nobre que a tradição pessimista. Mas trata-se de uma questão que não
passa apenas pela racionalidade. Adauto é um pessimista convicto e eu
74 A propósito dos direitos de autor, cf , por exempro, Lawrence Lessig, Free urture: thegtuÍe tndfuture sou um otimista convicto. Quer dizer: eu me incluo na longa sequência
of neativity, Nova York penguin Books, zoo4.
triste dos otimistas. Creio que há modos de perceber o fascínio que a

t?8 0 futuro da ideia de aulor


42l)

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