Você está na página 1de 2

Agrupamento de Escolas de Ribeira de Pena

FICHA DE AVALIAÇÃO FORMATIVA- MEMORIAL DO CONVENTO DE JOSÉ SARAMAGO

1 A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-


se um rangido geral, eram as lamelas de ferro, os vimes entrançados, e de repente, como se a
aspirasse um vórtice luminoso, girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara
ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de
5 gaivota, lançou-se em flecha, céu acima. Sacudidos pelos bruscos volteios, Baltasar e Blimunda
tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o padre Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um
dos prumos que sustentavam as velas e assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível,
já mal se distinguia a quinta, logo perdida entre colinas, e aquilo além, que é, Lisboa, claro está, e o
rio, oh, o mar, aquele mar por onde eu, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vim por duas vezes do
10 Brasil, o mar por onde viajei à Holanda, a que mais continentes da terra e do ar me levarás tu,
máquina, o vento ruge-me aos ouvidos, nunca ave alguma subiu tão alto, se me visse el-rei, se me
visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso, se o Santo Ofício me visse,
saberiam todos que sou filho predilecto de Deus, eu sim, eu que estou subindo ao céu por obra do
méu génio, por obra também dos olhos de Blimunda, se haverá no céu olhos como eles, por obra da
15 mão direita de Baltasar, aqui te levo, Deus, um que também não tem a mão esquerda, Blimunda,
Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenham medo.
Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria coragem. O padre ria, dava
gritos, deixara já a segurança do prumo e percorria o convés da máquina de um lado a outro para
poder olhar a terra em todos os seus pontos cardeais, tão grande agora que estavam longe dela,
20 enfim levantaram-se Baltasar e Blimunda, agarrando-se nervosamente aos prumos, depois à
amurada, deslumbrados de luz e de vento, logo sem nenhum susto, Ah, e Baltasar gritou,
Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida, um soldado
que andou na guerra, que nos Pegões matou um homem com o seu espigão, e agora soluça de
felicidade abraçado a Blimunda, que lhe beija a cara suja, então, então. O padre veio para eles e
25 abraçou-se também, subitamente perturbado por uma analogia, assim dissera o italiano, Deus ele
próprio, Baltasar seu filho, Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu, Só há um Deus,
gritou, mas o vento levou-lhe as palavras da boca. Então Blimunda disse, Se não abrirmos a vela,
continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol.
[…] De cara fechada, o padre avalia os esforços de Sete-Sóis, compreende que a sua grande
30 invenção tem um ponto fraco, no espaço celeste não se pode fazer como na água, meter os remos
ao ar quando falta o vento, Para, não dês mais aos foles, e Baltasar, esgotado, senta-se no fundo da
máquina.
O susto, o júbilo, cada qual de sua vez, já passaram, agora vem o desânimo, subir e descer
sabem eles, estão como homem que fosse capaz de levantar-se e deitar-se, mas não de andar. O
35 sol vai baixando para o lado da barra, já se estendem as sombras na terra. O padre Bartolomeu
Lourenço sente uma inquietação cuja causa não consegue discernir, mas dela o distrai a súbita
observação de que se orientam para o norte as nuvens de fumo de uma queimada distante, quer
isto dizer que, próximo da terra, o vento não deixou de soprar. Manobra a vela, estende-a um pouco
mais, de modo a cobrir de sombra outra fileira de bolas de âmbar, e a máquina desce bruscamente,
40 porém não o bastante para apanhar o vento. Mais uma fileira deixa de receber a luz do sol, a queda
é tão violenta que o estômago parece querer saltar-lhes pela boca, e agora sim, o vento colhe a
máquina com uma mão poderosa e invisível e lança-a para a frente, com tal velocidade que de
repente fica Lisboa para trás, já no horizonte, diluída numa bruma seca, é como se finalmente
tivessem abandonado o porto e as suas amarras para irem descobrir os caminhos ocultos, por isso
45 se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os esperam, que adamastores, que fogos-
de-santelmo, acaso se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas-d’água que vão sugar os ares
e o tornam a dar salgado. Então Blimunda perguntou, Aonde vamos, e o padre respondeu, Lá onde
não possa chegar o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar.
(SARAMAGO, José, Memorial do Convento, págs. 197-199 e 201-202)
1. Para que o momento narrado neste excerto fosse possível, foi necessário, primeiro, construir a
passarola.
1.1. Clarifica o papel de cada um dos elementos da “trindade terrestre” ─ Baltasar, Blimunda e
Bartolomeu ─ na construção da máquina voadora.
2. Identifica os recursos que conferem vivacidade à cena narrada no início do texto (ll. 1-16).
3. Considera, agora, as cinco últimas linhas do primeiro parágrafo.
3.1. Explicita os sentimentos expressos pelo padre Bartolomeu.
3.2. Esclarece o sentido do seguinte trecho: “(…)aqui te levo, Deus, um que també, não tem a
mão esquerda(…)” (l. 15).
4. Relê o último parágrafo.
4.1. Justifica o sentimento de enorme alegria que invade as três personagens.
4.2. Identifica a causa da perturbação que o padre Bartolomeu experimenta ao abraçar Baltasar
e Blimunda.
5. Explica a simbologia da passarola no contexto da obra.

BOM TRABALHO!!!
A PROFESSORA: Lucinda Cunha

PROPOSTA DE CORREÇÃO (ficha de trabalho e proposta de correção retiradas do manual “Entre


margens, 12º” da Porto Editora, pp. 235-237)
1.1. Blimunda representa o saber espiritual, Baltasar o manual e Bartolomeu o científico. Os 3 saberes
conjugados, na perfeição, permitiram a concretização do sonho- a passarola voadora.
2. Salientam-se os seguintes recursos: osverbos que expressam movimento, como “oscilou”, “girou”,
“lançou-se”…; o uso do advérbio de predicado “subitamente”; da locução temporal “de repente” e das
conjunções temporais “mal” e “logo”; o recurso à adjetivação expressiva(“bruscos, incrível”); à
comparação (“como se a aspirasse um vórtice luminoso”) e à hipérbole (“nunca ave alguma subiu tão
alto”)…
3.1. Os sentimentos do padre Bartolomeu nesta passagem podem definir-se como um misto de orgulho,
vaidade e desforra. El-rei, que sempre protegeu o seu projeto, ficaria, certamente, orgulhoso ao ver a
máquina voar; a vaidade é “merecidamente” sua, pois nasceu graças ao seu “génio”; a desforra tira-a ele
de Tomás Pinto Brandão e do Santo Ofício que tem vindo a persegui-lo.
3.2. Esta referência explica-se nas páginas 67-69 de Memorial do Convento, quando, através da
comparação entre Deus e Baltasar- “a este falta-lhe a mão esquerda, Aquele não a terá porque nunca dela
se fala nas escrituras”- se dá uma espécie de divinização da personagem.
4.1. As três personagens vêem, finalmente, concretizado um sonho em que trabalharam arduamente e que
se consubstanciou graças à conjugação das capacidades de todos.
4.2. A perturbação do padre tem a ver com um problema teológico que o tem inquietado – a questão da
unidade ou da trindade de Deus. Ao aceitar a analogia de Scarlatti que refere o grupo como sendo “uma
trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo” Bartolomeu sabe que está a cometer uma heresia. Por
isso grita “Só há um Deus”, “mas o vento levou-lhe as palavras da boca.”
5. A passarola representa a capacidade libertadora alicerçada na vontade dos homens. É pela conjugação
de vontades/ saberes que ela sobre, são as “vontades” recolhidas por Blimunda que dão o contributo final
ao projeto de Bartolomeu. A máqina voadora simboliza, também a concretização do sonho.
A passarola é, ainda, o símbolo da libertação de um povo oprimido- representado por Baltasar e Blimunda-
e a criação de um espaço antipoder.

Você também pode gostar