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O PROLETÁRIO APARECE
Uma das m ais fascinantes palavras dos tem pos m odernos tem
raiz profunda e longa tradição. Perdeu, entretanto, de u n s tem pos
para cá, em razão de circu n stâncias já sabidas, parte de seu fascí
nio. É bem verdade que, no Brasil, a força expressiva de proletário
não operou nem prosperou. D escaracterizou-se. Serviu a m uitos de
pretexto e a vários, de expediente; m uito pouco a boas causas. Aquele
a que designa talvez o ignore e m ais o estranhe. Tem aspecto d esa
jeitado de estrangeiro e soa um pouco áspero, desacomodado. Ga
nhou um valor depreciativo e sofre dos m esm os preconceitos que
m arcaram su a origem e histórica trajetória. Ocorre em língua por
tuguesa como em vários o u tras e por isso pode até m erecer notori
edade: contribui, a seu modo, p a ra unir, feito desenho da própria
contradição.
(1) Lembra-me, em boa hora, o Prof. José Antônio Pasta Júnior, a propósito, da
menção de Aulo Gelio: ... id est classicu s adsiduusque aliquis scriptor,
non ploletarius”, comentada por E. R Curtius em sua Literatura Européia e
Idade M édia In tina, p.316.
(2) Karl Marx e Friedrich Engels. M anifesto do Partido Comunista. 5a ed. Rio de
Janeiro, Vitória, 1963.
220 CESCHIN, Osvaldo Humberto L. O proletário aparece. L ín gu a e L ite r a tu
r a , n° 23, p. 21 7 -2 3 8 , 1997.
O VOCÁBULO
No fra n c ê s do sécu lo XIV o co rre j á n a fo rm a evoluída, o q u e
n ão se d á n o p o rtu g u ê s, em q u e p e rm a n e c e a p e n a s com o e m p ré s ti
m o. T am b ém n o fra n c ê s a p re s e n ta e x te n sã o de sen tid o , com o c o n
se q ü ê n c ia de u so , a p a rtir do séc. XVIII. É p o r e s s a lín g u a q u e re to
m a s u a v italid ad e e n tre a s lín g u a s m o d e rn a s d a E u ro p a . No p o r tu
g u ês, a p re s e n ta -s e em d icio n ário s, n a lin g u ag em técn ica, s o b r e tu
do, m a s sã o r a r a s a s o p o rtu n id a d e s a té a divulgação do M anifesto
C o m u n ista . B lu te a u , n ã o o re g istra , a p e s a r de in d ic a r prole O n o s
so M orais j á o in clu i n a edição de 1813. U tilizou-o Rebelo d a Silva
n o s F a sto s d a Igreja: "... sa cia n d o a p lebe m en d ig a dos p ro le tá rio s...”
no séc. XIX, em P o rtu g al. Na e x p re s sã o literária, o v o cáb u lo co rre
n a p e n a de M achado de A ssis, talvez n a m ais p ró x im a p re s e n ç a do
M anifesto de q u e se tem n o tíc ia n o B rasil, com v alo r de adjetivo, e
n u m a d a s m a is in cisiv as c rô n ic a s q u e ele p u b lico u . Pelo v alo r h is
tórico e literário e s s a p e ç a m erece a tra n s c riç ã o in teg ral. Não só
pelo u s o do v o cáb u lo em q u e stã o , n e s s e contexto, m a s p e la o p o rtu
n a a tu a lid a d e d e s s a p á g in a m a c h a d ia n a com o d o cu m en to , com o
exem plo e com o m en sag em . É tã o e lo q ü en te q u e em ociona.
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“Uns e outros vivem em certa mediania, que não é a miséria, mas também
não é a fabulosa riqueza [refere-se aos grandes agricultores e pequenos
lavradores]. Seguem-se os trabalhadores rurais, propriamente ditos:
antigos homens livres que vivem de seu serviço braçal, e antigos escra
vos, hoje livres, que praticam de igual sorte.
Esta gente não se queixa e nem lhefalta o que fazer. O mesmo, em regra,
dá-se com os colonos estrangeiros.
Depois aparece a turbamulta dos vadios, dos c a fa je ste s, dos pernósticos
que, neste abençoado clima, passam perfeitamente, sem ocupações nem
preocupações, à la b e lle é to ile , como perfeitos boémios e felizardos
poetas...
Será isto o proletariato estrugidor e tonitruante?
Dizê-lo, seria o mesmo que conferir igual predicado aos quatrocentos ou
quinhentos mil índios que habitam os altos recessos do país.
A conclusão a tirar dos fa to s é que um partido político e social operário
no Brasil é uma criação prematura, artificial, que pode aproveitar a al
gunsjeitosos, porém de certo, não vai servir ao operário, ao trabalhador
riacionaL
Quereis uma prova? Não dispusessem os operários do direito de v o ta r,
não pudessem eles levar com seus sufrágios algum pretendente ao Con
gresso, e, com certeza, não teriam agora tantos amigos...
Karl Marx dizia: *Uni-vosf p r o le tá r io s V Nós dizemos aos nossos tra
balhadores: tA b ri o s o lh o s , a m igos!... Eis o caso."7
do século XIX até hoje: “Por proletários com preende-se a classe dos
trabalhadores assalariados modernos, que privados de meios de pro
dução próprios se vêem obrigados a vender su a força de trabalho
p ara poder existir.”8
N essas ocorrências em textos memoráveis da literatu ra b ra
sileira não se encontra o esboço da depreciação que o vocábulo ex
perim entou em seu uso corrente no século XX. Talvez esse apelo
final de Sílvio Romero pudesse alertar p ara esse acidente, ou talvez
a argum entação dialética de M achado n a su a crônica prenunciadora
pudesse conter, n u m a das su a s expressões de ironia, um indício
d essa crise n a palavra e n a su a principal m anifestação da época
como proposta para a propaganda da dem ocracia e p ara a liberdade.
Malévola faculdade - a palavra, diz Machado. “Será ou não o escolho
das aristocracias m odernas este novo molde do pensam ento e do
verbo?” Ele espera das classes ínfimas, das inteligências proletári
as. Mas e o jornal? A resposta não é m uito otim ista. “É verdade que
o jo rn al aqui não está a a ltu ra de su a missão; pesa-lhe ainda o
últim o elo.”
Ainda se espera, neste século, a concretização dessa espe
rança, pois o que restou p ara a classe proletária no Brasil pode-se
entender de u m a passagem m uito expressiva do conto “Primeiro de
Maio” de Mário de Andrade, já bem posterior ao grande evento revo
lucionário de 1917 e consagrado à d ata símbolo da consciência polí
tica do proletariado neste século. As asp a s do texto inspirado de
Mário de Andrade lem bram esse jogo de conceitos, que opera em
m uitas circunstâncias da vida m oderna, em que a palavra sofre
tam bém um a forma proletária de existência, a mercê das vicissi
tu d es de interesses e das relações de conhecim ento, meio e poder:
“Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais
que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os
jornais tinham anunciado que se esperava grandes motins do Primeiro de
Maio...’,
E m ais adiante:
“O 4 8 6 era muito valentão de bòca, o 35 pensou. Pararam bem na frente
do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via
que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até
moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque
onde êles estavam
Foi uma nova sensação tão desagradável que êle deu de andar quase
jugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem
p a sseia Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos,
cinco, seis, escondidos na esquina querendo a descrição de não osten
tar força e ostentando. Os grilos ainda não fa zia m mal, são uns (pala
vrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada entrar lá dentro,
eu!... O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres
horrendos de ‘p roletários’ lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade
dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os policias
lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota
(9) Mário de Andrade. “Primeiro de Maio” em Contos Novos. São Paulo, Livraria
Martins Editora, 1947
228 CESCHIN, Osvaldo Humberto L. O proletário aparece. L ín g u a e L ite r a tu
ra, n° 23, p. 2 17-238, 1997
(10) C arlos G óes. Diccionario de raizes e cognatos da língua portugueza. 2 a ed. Rio
d e J a n e ir o , A lba, 1 9 3 6 . p. 2 2 1 .
(11) A. E m o u d e A. M eillet. Dictionnaire étymologique de la langue latine. 4 a ed .
P a r is, K ly n k sie c k , 1 9 6 7 . s .v .
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r a , n° 23, p. 2 1 7 -2 3 8 , 1997.
vida, seu próprio perfil e su a interm inável forma. Uma voz que soa
em boca alheia, às vezes estran h a, m as às vezes m uito fam iliar e
solidária, como a s m ensagens recolhidas n as páginas de algum as
das m ais h u m an as inspirações. Como nestes poucos versos da com
posição de B. Lopes.
O casebre esburacado
É pobre como senzala;
Tem mesmo o fogo n a sala
E o picum ã no telhado.
A COMPOSIÇÃO
O texto com que se introduz a voz proletário substantivam en-
te n a poesia brasileira é um exímio trabalho de síntese de elem en
tos divergentes, confluindo no produto estético. Três aspectos do
m inam o plano do poema: o am biente, o hom em e o trabalho. No
am biente, o físico e o social; no homem, su a origem, c u ltu ra e con
dição; e no trabalho, a s circunstâncias e su a significação.
(12) B. Lopes. Cromos. Poesias Completas. Rio de Janeiro, Ed. Valverde, 1945.
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O VOCÁBULÁRIO E AS EVOCAÇÕES
Também com o m aterial léxico de que se compõe o poema,
tão pobre como o tem a que expressa, B. Lopes conseguiu m ultipli
car os seus efeitos e os seu s sentidos graças não só à acum ulação
persistente desses efeitos, m as principalm ente à valorização de su as
convergências com o tem a da pobreza. Daí, nesse processo e n essa
m ultiplicação, um resultado precioso de rendim ento estético alcan
çado até com abundância.
Uma d as habilidades da composição desse poem a é a relativa
pobreza do vocabulário, principalm ente do que concerne às rim as
como: esburacado, metido, encardido, postas, dispostas, adjetivos de
origem verbal. E ntretanto, pelas conotações no contexto e pelas evo
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BIBLIOGRAFIA
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