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Espaço T, 2019
Parte I – Estas paisagens não existem – Filipe Romão dixit – Quase Galeria
Afinal estas paisagens existem. A presença de uma árvore única acontece. É a utopia
que preside à assunção de toda uma série de paisagens-desenhos com que Filipe Romão
brinda o nosso imaginário. De algum modo, lembrando Perajaume: “Paisagem e eu fugimos
para a pintura…”2 Seguindo o exemplo do artista catalão, a paisagem e eu fugimos para dentro
dos desenhos. Cada pessoa tem as suas peculiaridades. Nalguns caibo mais apertada, noutros
o espaço é mais propício. A paisagem na sua multiplicidade cabe em formatos diferentes,
diversificando-se e, todavia, sendo una. Por vezes a paisagem é muito, muita uma natureza
pensada. Com tal intensidade que nunca seria possível fosse real. Porque a realidade nunca é
assim tão convincente.
Estas paisagens não existem: nem de outra forma poderia ser, ou estariam a atraiçoar
os seus pressupostos epistemológicos. Tanto não existem pois são iluminadas de dentro para
fora. Estando fora uma luz noturna que o imaginário potencializa, enaltecendo fantasias e
ilusões. Predomina uma estética do artifício que se toma emprestada a Bernardo Soares, em
missão estética pessoana. São visões quase alquímicas, inventadas como bem lhes compete,
Quanto se sabe, o termo paisagem integrou, pela primeira vez, num dicionário de
latim- francês em 1549, na edição de Robert Estienne. Nessa definição o termo indicava ao
mesmo tempo quer a representação pintada de uma vista, quer a realidade em do país
(campo) representado – numa aceção de algo que era observado à distância. Assim, o termo
remete para a imagem e para a coisa, ainda que se perceba seja dada maior enfase à
representação em si. Deriva, etimologicamente, de país em vários idiomas latinos europeus –
paisagem (PT), paysage (FR), paisatje (CAT), paisaje (ES), paessagio (IT), enquanto na língua
inglesa e na alemã, a título de exemplo, país cede lugar a terra, ou seja, respetivamente
Landscape e Landschaft. Paisagem era então frequentemente usada entre os pintores, tendo
Garnier (1573) em Hyppolyte (v.1224), atendido à palavra, associando-a a olhar: “De uma
paisagem inigualável, vista ao longe.” 3 Relembre-se o ditado popular que diz: “Pintura e
peleja, de longe se veja.” Assinale-se que à ideia de paisagem, se associa a ideia de distância,
por certo aferida à perspicácia do olhar que vê, assim como a intenção de afastamento e de
aproximação, por parte do observador – que não é um participante.
3Philippe Desan, “Montaigne paysagiste”, Nature et paysages, Paris, Publications de l’École nationale des chartes,
2006, p.40. Do mesmo autor veja-se também “Paysages”, Montaigne: les formes du monde et de l'esprit, Paris,
Presses Sorbonne, 2008, p.93
que se qualificar uma cultura como paisagística. Deveria existir numa dada língua, um ou mais
termos que designassem paisagem; verificarem-se práticas de organização estética em jardins
(acrescentaria eu, os bosques ou locais afins); deparar-se na literatura oral e/ou escrita
respetiva com referências laudatórias - descritivas, evocativas; constatar-se a conceção de
representações pictóricas de paisagem ou elementos constitutivos da mesma.4 Ciente de que
tais condições – para que se qualifique uma cultura paisagística - sejam questionadas ou
esclarecidas, não se deixa de considerar pertinente como determinaram o reconhecimento
pela História da Arte Europeia Ocidental, de uma pintura em que a paisagem se bastasse a si
mesma sem mais adereços figurativos.
Por outro lado, não se olvide quanto a natureza se transmutava em paisagem, por
exemplo, nas representações dos meses, dos ciclos e estações do ano, como se observa nas
4 Augustin Berque, Cinq propositions pour une théorie du paysage, Paris, Champ Vallon, 1994, p. 16 e ss.
Les très Riches Heures du Duc de Berry (1411-1416) em França ou na obra de Mestre
Wenscelas (séc. XV), Itália. Na Idade Média, sublinhe-se, a celebração da natureza ocupava um
desígnio teológico, a paisagem tinha por missão de refletir a excelência da Criação divina.
Assim, o tema configurava-se em termos de beleza exaltada em cores e detalhes, sendo
relevante mas não exclusivo em si.
5
Christophe Imbert et Philippe Maupeu, Le Paysage allégorique – entre l’image mentale et le pays trasnfiguré,
Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2011
Estudem-se pois seções nas composições, excertos gráficos, fragmentos destacados
que demonstram o rigor no tratamento de detalhes com o teor da abordagem que em Filipe
Romão vai além da celebração mimética, avançando nos territórios dos seres vegetais e
atmosféricos (também) imaginários. Tudo parece estar num estado de contenção, podendo
dinamizar-se a qualquer instante, ultrapassando o pseudo-hieratismo, avançando para um
turbilhão psico-estético.
Em Estas paisagens não existem vemos arbustos, flores, árvores, nuvens, terra, pedras
exaltadas. São representações mas não existem reais, exatamente assim, quanto a disposição
ou concatenação de dados figurais. Pensa-se quase de forma inevitável na lucidez de Gaston
Bachelard ao indicar o reconhecimento criacional subsumido, por privilégio, a um dos 4
elementos. Água, fogo, ar ou terra não são assim tão explícitos, não se plasmam por
exclusividade a esse ponto, na obra do artista português. Todavia, reconhecemo-los, sabemos
de algumas lembranças ou efabulações parecidas. Sejam referências internas singulares,
provenientes, formatadas na ordem da memória ou da imaginação, o fato é que fornecem asas
a qualquer imaginário individual que queira festejar o desígnio. Reais, imaginárias, idealizadas
[est]as paisagens são sempre simbólicas. Em alguns casos, adverte-se quem leia ou veja,
existem sob causa de uma intencionalidade alegórica. Que concatenações se promovem,
quando é plausível ultrapassar as consignações significantes de circunstância?
Estas paisagens não existem porque são alegorias de si mesmas, residem num
território – parafraseando – situado entre a imagem mental e um país transfigurado.6 Como se
sabe, na tradição e prática ocidental da pintura, a dimensão alegórica oscila entre o que
emana de um pensamento adquirido, que é normativo, e uma ativação introspetiva
flexibilixadora e é capaz de acionar, de infligir, sem restrições, impulsos transfiguradores,
determinantes, impondo a transmutação. A paisagem alegórica viaja entre dois polos: “uma
paisagem mental propriamente alegórica que fornece o enquadramento necessário à
figuração e a um desembrulhar da ideia; e uma paisagem natural – real – que se converte em
6Christophe Imbert et Philippe Maupeu, Le Paysage allégorique – entre l’image mentale et le pays trasnfiguré,
Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2011
espelho da alma, a paisagem simbólica da crítica pós-moderna.”7 Excluem-se ou clamam por si,
pois, os princípios dominantes que poderiam corresponder, respetivamente, à matriz, à
radicação medieval – afeta a uma estética sensibilizada pelo vocabulário visual descodificável –
e a uma indexação romanticista eivada de conotações psicoafectivas, impregnadas por
contaminações pulsionais.
As paisagens simbólicas, imaginárias, alegóricas tornam-se mais reais, o que não lhes
garante serem, possuírem uma existência reificada. Todavia, mediante a perceção estética que
suscitam, tornam-se em algo mais efetivo do que qualquer ousadia latente. Dir-se-ia que
“afinal as paisagens existem” na sua vida privada de pintura, de desenho. Padecem dessa
circunstância, dessa categoria ainda que atribuída a posteriori e não sendo condição a priori
para como tal se concretizar. A existência chegou depois, através da convicção que o artista
soube outorgar-lhe; pelo dom de transpor as suas imagens ou mentais ou simbólicas ou
imaginadas devidamente tratadas com o poder das ideias. Mas o poder das ideias não anula o
poder das imagens, pois se implicam e adensam.
7
Op. Cit.
O enfoque percetivo solicitado ao espetador pede a deslocação física. Há o
movimentar-se, elevando os olhos e obrigando-os a exercícios de aferição, de [re]focagem; há
a precisão de se distanciar e tornar próximo, consoante o ritmo de observação que se queira
(ou disponha) para ver. Os princípios mínimos dinamizam a perceção totalizadora, dirigindo
caminhos inventados, em excertos de estrada a corta-mato em que se sousa penetrar. É uma
via exploratória que estimula. À semelhança de uma pedreira, de um pântano ou de um
enorme bosque, suga-nos para dentro, para conhecer o que é impercetível para cada um e
para outrem. As paisagens que não existem determinam sentimentos que se disfarçam. São,
afinal reinos genuínos e paisagens ambicionadas e temidas. Por isso não existem, embora
sejam mais poderosas por isso mesmo. Aparentam fragilidade, clareiam-se na luz focada de
uma ascensão.
Estas paisagens [que] não existem inscreveram-se – sem retorno - na pintura, com tal
intensidade que parece terem-se-lhe gravado, embrenhado, cavado na pele profunda – como
escarificações, incisões preenchidas por pigmento noturno. Adquirem uma identidade única.
Assim como ninguém vê as paisagens da mesma maneira, tampouco estas pinturas poderiam
retratar algo a ser na efetividade do real percecionado em termos visuais. Foi o pintor e cada
um daqueles que as veja, a exercer a sua capacidade de as incorporar como realidade
existente na pintura, plasmando a verdade que se confunde quase sempre. Além de ser um
enigma da ordem representativa (do artístico) coloca outras ordens de problemáticas:
fenomenológica, gnoseológica, epistemológica, estética…clamando por conhecimentos que se
extraem e revisitam da filosofia do imaginário e da antropologia cultural simbólica.
Parte II – No Museu Nacional Soares dos Reis: Estas pinturas não existem e as pinturas de
Henrique Pousão
8Pierre Reverdy, Nord-Sud, Self-Defence et autres récits sur l’Art et la Poésie (1917-1926), Paris, Flammarion,
1975, p.73
Questiona-se como – no contemporâneo e no atual – a paisagem poderia ser
recuperada pelo olhar, narrando a cidade, narrando o território, sem procurar a sua descrição.
“É ainda possível pintar paisagens?” perguntava Nelson Brissac-Peixoto, considerando que o
recurso de Italo Calvino, ao estilo efabulatório das histórias clássicas de aventuras, lhe servia
exatamente por isso. Assim, as suas personagens desenvolvem relatos, à semelhança dos
tempos em que as narrativas sobre as terras distantes substituíam as viagens e os viajantes as
incorporavam, tornando-se narradores e cartógrafos – “o narrador benjaminiano que é o
viajante”. Para concluir que “Neste género tão anacrónico – como o paisagismo – mas ao
mesmo tempo tão atual, a literatura encontra a pintura.”9
Dos Lugares onde nunca estive, é o título da Série de obras que integram o projeto
Estas paisagens não existem. Depois de ter visto os desenhos e as pinturas, deixemos os
lugares onde nunca estivemos residirem na nossa memória. Visitemo-los a qualquer momento,
quando assim nos aprouver. Provavelmente lá encontraremos, numa dessas paisagens que
não existem, o artista - Filipe Romão.
Fichas Técnicas
Na parede
Série Dos Lugares Onde Nunca Estive
#35 – carvão sobre papel, 56 x 76 cm, 2019
#12 – carvão sobre papel, 76 x 56 cm, 2018
#31 – carvão sobre papel, 25 x 16 cm, 2018
Na vitrina
Série Dos Lugares Onde Nunca Estive
9Cf. Nelson Brissac-Peixoto, Paisagens Urbanas, São Paulo, Senac Editora, 2003 in
https://books.google.pt/books?id=z7xG6XSmg18C&pg=PA26&lpg=PA26&dq=Nelson+Brissac-
Peixoto+olhar+do+estrangeiro&source=bl&ots=AOOj-9ng-s&sig=noEjnIagwPml41R-hsLvyQNrHTI&hl=pt-
PT&sa=X&ei=PCafVM3CLoOuUcHQgKgL&ved=0CFEQ6AEwBw#v=onepage&q=Nelson%20Brissac-
Peixoto%20olhar%20do%20estrangeiro&f=false (pdf. p.26/31)
# 40 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019
# 41 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019
# 42 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019
# 43 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019
# 44 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019
# 45 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019