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Maria de Fátima Lambert – Quase Galeria – Porto, Ed.

Espaço T, 2019

Parte I – Estas paisagens não existem – Filipe Romão dixit – Quase Galeria

“imito a paisagem como se te imitasse, ou te escrevesse


teu corpo dilui-se nos ossos das páginas, contamina as cartilagens das
sílabas”1

Afinal estas paisagens existem. A presença de uma árvore única acontece. É a utopia
que preside à assunção de toda uma série de paisagens-desenhos com que Filipe Romão
brinda o nosso imaginário. De algum modo, lembrando Perajaume: “Paisagem e eu fugimos
para a pintura…”2 Seguindo o exemplo do artista catalão, a paisagem e eu fugimos para dentro
dos desenhos. Cada pessoa tem as suas peculiaridades. Nalguns caibo mais apertada, noutros
o espaço é mais propício. A paisagem na sua multiplicidade cabe em formatos diferentes,
diversificando-se e, todavia, sendo una. Por vezes a paisagem é muito, muita uma natureza
pensada. Com tal intensidade que nunca seria possível fosse real. Porque a realidade nunca é
assim tão convincente.

Estas paisagens não existem: nem de outra forma poderia ser, ou estariam a atraiçoar
os seus pressupostos epistemológicos. Tanto não existem pois são iluminadas de dentro para
fora. Estando fora uma luz noturna que o imaginário potencializa, enaltecendo fantasias e
ilusões. Predomina uma estética do artifício que se toma emprestada a Bernardo Soares, em
missão estética pessoana. São visões quase alquímicas, inventadas como bem lhes compete,

1 Al Berto, Vígilias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.26


2 Perejaume, “Pintura Caminada”, Oli damunt paper, Barcelona, Ed. Empuriès, 1992, p.11
pois falamos de paisagens e não de sonhos. Porque os sonhos existem, mas as invenções
precisam de matéria. A incongruência dos termos é complexa e sedutora. Impregna-se de uma
aridez que corresponde a destino, a geografias indefiníveis. As paisagens que não existem
tomam a palavra e assumem a prioridade de serem imago. Mas as imagens também não
existem sem mais. O que complica as reflexões irreversíveis que se projetam até ao espetador.
A paisagem é ou não uma invenção? A paisagem existe ou está em falta?

Quanto se sabe, o termo paisagem integrou, pela primeira vez, num dicionário de
latim- francês em 1549, na edição de Robert Estienne. Nessa definição o termo indicava ao
mesmo tempo quer a representação pintada de uma vista, quer a realidade em do país
(campo) representado – numa aceção de algo que era observado à distância. Assim, o termo
remete para a imagem e para a coisa, ainda que se perceba seja dada maior enfase à
representação em si. Deriva, etimologicamente, de país em vários idiomas latinos europeus –
paisagem (PT), paysage (FR), paisatje (CAT), paisaje (ES), paessagio (IT), enquanto na língua
inglesa e na alemã, a título de exemplo, país cede lugar a terra, ou seja, respetivamente
Landscape e Landschaft. Paisagem era então frequentemente usada entre os pintores, tendo
Garnier (1573) em Hyppolyte (v.1224), atendido à palavra, associando-a a olhar: “De uma
paisagem inigualável, vista ao longe.” 3 Relembre-se o ditado popular que diz: “Pintura e
peleja, de longe se veja.” Assinale-se que à ideia de paisagem, se associa a ideia de distância,
por certo aferida à perspicácia do olhar que vê, assim como a intenção de afastamento e de
aproximação, por parte do observador – que não é um participante.

O género [pictural] de paisagem, na pintura ocidental surge tardio em diferentes


culturas, relembrando com Augustin Berque, que carecia cumprirem-se cinco condições para

3Philippe Desan, “Montaigne paysagiste”, Nature et paysages, Paris, Publications de l’École nationale des chartes,
2006, p.40. Do mesmo autor veja-se também “Paysages”, Montaigne: les formes du monde et de l'esprit, Paris,
Presses Sorbonne, 2008, p.93
que se qualificar uma cultura como paisagística. Deveria existir numa dada língua, um ou mais
termos que designassem paisagem; verificarem-se práticas de organização estética em jardins
(acrescentaria eu, os bosques ou locais afins); deparar-se na literatura oral e/ou escrita
respetiva com referências laudatórias - descritivas, evocativas; constatar-se a conceção de
representações pictóricas de paisagem ou elementos constitutivos da mesma.4 Ciente de que
tais condições – para que se qualifique uma cultura paisagística - sejam questionadas ou
esclarecidas, não se deixa de considerar pertinente como determinaram o reconhecimento
pela História da Arte Europeia Ocidental, de uma pintura em que a paisagem se bastasse a si
mesma sem mais adereços figurativos.

Se, na literatura, a famosa descrição da subida ao Monte Ventoso, empreendida por


Petrarca (26 de abril 1336), é um dos textos que inaugura a consciencialização da paisagem –
natural e humanizada, na pinturas desse tempo constata-se que o tema ainda não era
frequente (tido como isoladamente), quanto mais autossuficiente (quer a nível estético, quer
artístico). As tomadas de vista sobre jardins que se destacam nos murais de Pompeia foram
precursores das veduto e dos panoramas que séculos mais tarde adquiriram a maior relevância
e que persistem até hoje. Por outro lado, os fundos virtuosísticos de paisagem, reconhecem-se
em iluminuras e retábulos, ainda que servindo propósitos específicos, que não se esgotavam
per se. No caso das manifestações pictóricas da cultura romana, estar-se-ia mais próximo de
uma identidade cultural paisagista do que nos séculos seguintes, durante o período medieval.
Destacam-se nomes, donde o de Joachim Patinier, seja o mais evidente, entre os pintores que
atribuíram nas suas composições maior destaque aos tópicos paisagísticos do que as
figurações e temáticas que, supostamente eram protagonistas e motivos dominantes. Mas,
trata-se de um pintor que exerceu atividade em finais de séc. XV, inícios de XVI (1483-1524).

Por outro lado, não se olvide quanto a natureza se transmutava em paisagem, por
exemplo, nas representações dos meses, dos ciclos e estações do ano, como se observa nas

4 Augustin Berque, Cinq propositions pour une théorie du paysage, Paris, Champ Vallon, 1994, p. 16 e ss.
Les très Riches Heures du Duc de Berry (1411-1416) em França ou na obra de Mestre
Wenscelas (séc. XV), Itália. Na Idade Média, sublinhe-se, a celebração da natureza ocupava um
desígnio teológico, a paisagem tinha por missão de refletir a excelência da Criação divina.
Assim, o tema configurava-se em termos de beleza exaltada em cores e detalhes, sendo
relevante mas não exclusivo em si.

O que prevaleceu em Petraca, questiona Christophe Imbert5, conforme ia escalando o


Monte Ventoux, o que vivenciou quando atingiu o cume? E, sobreudo ,o que persistiu,
reverberou em si? Distinguia a completude da vista panorâmica – de teor geográfico que
supomos, ou preponderava na sua mente o que advinha de um percurso autognósico, de
personalização e busca? Após Imbert, acredito que na paisagem, ambas perspetivas se
entrelaçam, ou pelo menos, não se exlcuem. Talvez a noção da distância contribua para o
mergulho hermenêutico de si.

Artistas como Leonardo, Albrecht Dürer e Albrecht Altdorfer organizaram as suas


preferências estéticas no tocante à assunção de fragmentos de paisagem: nas pinturas do
italiano; nas gravuras, aguarelas e guaches dos alemães.
Na abordagem à obra de Filipe Romão, cabe mais a referência ao pintor de
Nuremberga, destacando peças específicas a relacionar: a densidade do traço, modelação de
volumes e formas, uma saturação mesmo como se analisa num fragmento, seção inferior da
gravura Némésis (1502); parte do setor esquerdo superior no guache e aguarela de Caminho
de Montanha (1494). Numa distância próxima do observador, a gravura Paisagem com canhão
(1518) possui a trama de modelação, traços e sobreposições que a respiração se retém, algo
que sucede perante a saturação de pigmento em pinturas de Filipe Romão. Afirmar a não
existência, talvez seja demasiado impositivo, talvez. Por outro lado, e muito em particular, a
estratégia que coordena a aproximação no formato de desenho, é quase um zoom, ago que
dialoga, como se pode apreciar, a eleições compósitas de Durer, analise-se o canto inferior
direito da gravura Madonna com o símio (ou o canto inferior direito de Casa isolada num
estanque (1495). Ainda o maciço de árvores (lado direito) Moinhos de água em Peignitz (1506),
os ramos de arbustos, aparentemente calcinados, mortos em Pedreira (1496); o detalhismo de
flores tal como é celebrado em Botão-de-ouro, trevo vermelho e banana-da-terra (1526) e,
sobretudo, a densidade existencial das plantas em O Grande tudo de ervas (1503) e em
Pequeno tudo de ervas – igualmente no Museu Albertina de Viena. Pois, eu acredito, as
plantas, as árvores, a vegetação são sobremaneira existenciais na pintura e desenho de Filipe
Romão. É condição, origem e destino em simultâneo.
Albrecht Altdorfer (1480-1538) legou-nos pinturas e gravuras notáveis, aqui
ponderando acerca das últimas que dialogam com o anteriormente analisado quanto a Dürer.
Gravuras como Paisagem com cidade à beira do lago (c. 1520) a atmosfera desenhada agarra
linhas mais leves que estruturam o arvoredo, sem a densidade e tensão que se vê no pintor de
Nuremberga e, muito menos, na acentuação dramática que Filipe Romão determina. Contudo,
averiguando outras peças como: Paisagem com abeto duplo em primeiro plano (1521-1522); a
fusão da vegetação com as figuras em São Jorge a matar o dragão (1511); a árvore que se
ergue solitária no canto superior direito de O sonho e julgamento de Páris (1511); a seção
superior esquerda quer em O sonho de Paris (S/d), quer em Piramus e Thisbe (S/d). Nestes
fundo que são afinal atores principais nas gravuras do gravador bávaro, as encenações
atmosféricas são dramáticas, empolgando os espetadores que se adentram na imagem.

5
Christophe Imbert et Philippe Maupeu, Le Paysage allégorique – entre l’image mentale et le pays trasnfiguré,
Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2011
Estudem-se pois seções nas composições, excertos gráficos, fragmentos destacados
que demonstram o rigor no tratamento de detalhes com o teor da abordagem que em Filipe
Romão vai além da celebração mimética, avançando nos territórios dos seres vegetais e
atmosféricos (também) imaginários. Tudo parece estar num estado de contenção, podendo
dinamizar-se a qualquer instante, ultrapassando o pseudo-hieratismo, avançando para um
turbilhão psico-estético.
Em Estas paisagens não existem vemos arbustos, flores, árvores, nuvens, terra, pedras
exaltadas. São representações mas não existem reais, exatamente assim, quanto a disposição
ou concatenação de dados figurais. Pensa-se quase de forma inevitável na lucidez de Gaston
Bachelard ao indicar o reconhecimento criacional subsumido, por privilégio, a um dos 4
elementos. Água, fogo, ar ou terra não são assim tão explícitos, não se plasmam por
exclusividade a esse ponto, na obra do artista português. Todavia, reconhecemo-los, sabemos
de algumas lembranças ou efabulações parecidas. Sejam referências internas singulares,
provenientes, formatadas na ordem da memória ou da imaginação, o fato é que fornecem asas
a qualquer imaginário individual que queira festejar o desígnio. Reais, imaginárias, idealizadas
[est]as paisagens são sempre simbólicas. Em alguns casos, adverte-se quem leia ou veja,
existem sob causa de uma intencionalidade alegórica. Que concatenações se promovem,
quando é plausível ultrapassar as consignações significantes de circunstância?

Estas paisagens não existem porque são alegorias de si mesmas, residem num
território – parafraseando – situado entre a imagem mental e um país transfigurado.6 Como se
sabe, na tradição e prática ocidental da pintura, a dimensão alegórica oscila entre o que
emana de um pensamento adquirido, que é normativo, e uma ativação introspetiva
flexibilixadora e é capaz de acionar, de infligir, sem restrições, impulsos transfiguradores,
determinantes, impondo a transmutação. A paisagem alegórica viaja entre dois polos: “uma
paisagem mental propriamente alegórica que fornece o enquadramento necessário à
figuração e a um desembrulhar da ideia; e uma paisagem natural – real – que se converte em

6Christophe Imbert et Philippe Maupeu, Le Paysage allégorique – entre l’image mentale et le pays trasnfiguré,
Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2011
espelho da alma, a paisagem simbólica da crítica pós-moderna.”7 Excluem-se ou clamam por si,
pois, os princípios dominantes que poderiam corresponder, respetivamente, à matriz, à
radicação medieval – afeta a uma estética sensibilizada pelo vocabulário visual descodificável –
e a uma indexação romanticista eivada de conotações psicoafectivas, impregnadas por
contaminações pulsionais.

Entre a alegoria e o mítico-simbólico estar-se-á no paraíso ou no tempo apocalíptico.


Saliente-se que nas paisagens que não existem, o tempo não se presentifica pleno, deixando
brilhar a decisão espacial. Mas a organização do espaço que é, na realidade, lugar de nenhures,
parece estabelecida por camadas vividas de tempo demorado e consistente. Impenetrável:
quer o tempo, quer o espaço, nos previnem dessa imposição, desse estado, porque a matéria
ideada da pintura os suplantou, dominou-os e quase os excluiu, de tão poderosa e definitiva
que sobrevém.

As paisagens simbólicas, imaginárias, alegóricas tornam-se mais reais, o que não lhes
garante serem, possuírem uma existência reificada. Todavia, mediante a perceção estética que
suscitam, tornam-se em algo mais efetivo do que qualquer ousadia latente. Dir-se-ia que
“afinal as paisagens existem” na sua vida privada de pintura, de desenho. Padecem dessa
circunstância, dessa categoria ainda que atribuída a posteriori e não sendo condição a priori
para como tal se concretizar. A existência chegou depois, através da convicção que o artista
soube outorgar-lhe; pelo dom de transpor as suas imagens ou mentais ou simbólicas ou
imaginadas devidamente tratadas com o poder das ideias. Mas o poder das ideias não anula o
poder das imagens, pois se implicam e adensam.

7
Op. Cit.
O enfoque percetivo solicitado ao espetador pede a deslocação física. Há o
movimentar-se, elevando os olhos e obrigando-os a exercícios de aferição, de [re]focagem; há
a precisão de se distanciar e tornar próximo, consoante o ritmo de observação que se queira
(ou disponha) para ver. Os princípios mínimos dinamizam a perceção totalizadora, dirigindo
caminhos inventados, em excertos de estrada a corta-mato em que se sousa penetrar. É uma
via exploratória que estimula. À semelhança de uma pedreira, de um pântano ou de um
enorme bosque, suga-nos para dentro, para conhecer o que é impercetível para cada um e
para outrem. As paisagens que não existem determinam sentimentos que se disfarçam. São,
afinal reinos genuínos e paisagens ambicionadas e temidas. Por isso não existem, embora
sejam mais poderosas por isso mesmo. Aparentam fragilidade, clareiam-se na luz focada de
uma ascensão.

Estas paisagens [que] não existem inscreveram-se – sem retorno - na pintura, com tal
intensidade que parece terem-se-lhe gravado, embrenhado, cavado na pele profunda – como
escarificações, incisões preenchidas por pigmento noturno. Adquirem uma identidade única.
Assim como ninguém vê as paisagens da mesma maneira, tampouco estas pinturas poderiam
retratar algo a ser na efetividade do real percecionado em termos visuais. Foi o pintor e cada
um daqueles que as veja, a exercer a sua capacidade de as incorporar como realidade
existente na pintura, plasmando a verdade que se confunde quase sempre. Além de ser um
enigma da ordem representativa (do artístico) coloca outras ordens de problemáticas:
fenomenológica, gnoseológica, epistemológica, estética…clamando por conhecimentos que se
extraem e revisitam da filosofia do imaginário e da antropologia cultural simbólica.

Parte II – No Museu Nacional Soares dos Reis: Estas pinturas não existem e as pinturas de
Henrique Pousão

No contexto da programação Ações estéticas quase instantâneas o projeto


desenvolvido por Filipe Romão consistiu na escolha de obras, dentro da série em epígrafe, em
convívio com as pinturas na Sala de Henrique Pousão. A paisagem preside na pintura do pintor
nascido em Vila Viçosa e que o destino conduziu para uma Itália mediterrânica, ensolarada e
vibrátil – muito em particular a ilha de Capri. Ainda que por infelicidade sua, a estadia no Sul
de Itália e Capri coincidiu com a idealização reificada de um universo capaz de ser visto,
absorvido e a ser plasmado numa obra onde se reconhecem lugares [in]existentes.
Após Henrique Pousão, a pintura de paisagem em Portugal adquiriu outras
circunstâncias, qualidades e exigências. Transpôs uma singularidade lumínica que apenas uma
personalidade convicta sabe transmitir. Os seus enquadramentos, a ilusão e a verdade do
inacabado, o jogo persistente entre o desenho e a pintura realizam paragens inéditas para os
espetadores.
Na parede, os formatos dividem a nossa escala, ainda que o nosso visor sobre o
horizonte se dimensione e regule como que automaticamente. Daí ter escolhido trabalhos de
diferentes dimensões no imaginário de Filipe Romão para esta adição na Sala Pousão. O fato
de dois dos desenhos não estarem emoldurados (os maiores) e um outro estar com moldura é
componente de um jogo que alude à própria diversidade de apresentação das tábuas e
pinturas de Henrique Pousão. À parede vemos pequenas pinturas, com recantos e excertos de
vistas com molduras que as recolhem. Depois, respeitando formatos e medidas análogas,
vemos as pinturas na horizontal, sem moldura e dentro de expositores com vidro. Mas, quer
numa, quer noutra situação, a ser-lhes proporcionada, o interesse e a volúpia do olhar
persiste. Assim as olhamos deitadas, em descanso dentro das vitrinas. São pequenos formatos,
concentram uma parcela muito grande do mundo, que aparentemente lá não caberia.
Também os desenhos de Filipe Romão se simulam a si mesmos, glosando uma verdade
artística que lhes confere peculiaridade. Os seis desenhos compõem uma visão debruçada,
onde o nosso corpo se deixe seduzir pela necessidade de ver para além do que se saiba para
enxergar. Estabelecem-se entre todos os trabalhos de Filipe Romão e entre estes e as obras de
Henrique Pousão narrativas adicionadas que, de outro modo, não existiriam. Então o
confronto entre autores de épocas distando entre si permite acumular novas doses de verdade
e experiência às existências admitidas. Ou seja, residirá também em nós, enquanto público
uma razão interpretativa que é polissémica, heterogénea.
“L’image est une création pure de l’esprit. Elle ne peut naître d’une comparaison, mais du
rapprochement de deux réalités plus ou moins éloignées.’ ‘Plus les rapports des deux
réalités rapprochées seront lointains et justes, plus l’image sera forte, plus elle aura de
puissance émotive et de réalité poétique.’ ‘Deux réalités qui n’ont aucun rapport ne peuvent
se rapprocher utilement. Il n’y a pas création d’image.’ Deux réalités contraires ne se
rapprochent pas, elles s’opposent.”8

Atribuir qualificativos à paisagem pintada ou desenhada, encaminha por vezes para a


sensação de domínio de quando se vêm fotografias cujos conteúdos são paisagem. O
questionamento da razão representativa passa não apenas por aquilo que de fora se
internalize e devolve em obra feita, independendo do registo, da receção e da colocação do
corpo do artista que desempenha o seu processo. Todos esses tópicos são invisíveis de forma
explícita na obra. Mas teima-se em descodificar intenções e desvelar procedimentos, pois nos
reconhecemos anda que não sendo autores nas visões e nas ideias de quem cria as obras.
Estas paisagens não existem é [também um mantra.

8Pierre Reverdy, Nord-Sud, Self-Defence et autres récits sur l’Art et la Poésie (1917-1926), Paris, Flammarion,
1975, p.73
Questiona-se como – no contemporâneo e no atual – a paisagem poderia ser
recuperada pelo olhar, narrando a cidade, narrando o território, sem procurar a sua descrição.
“É ainda possível pintar paisagens?” perguntava Nelson Brissac-Peixoto, considerando que o
recurso de Italo Calvino, ao estilo efabulatório das histórias clássicas de aventuras, lhe servia
exatamente por isso. Assim, as suas personagens desenvolvem relatos, à semelhança dos
tempos em que as narrativas sobre as terras distantes substituíam as viagens e os viajantes as
incorporavam, tornando-se narradores e cartógrafos – “o narrador benjaminiano que é o
viajante”. Para concluir que “Neste género tão anacrónico – como o paisagismo – mas ao
mesmo tempo tão atual, a literatura encontra a pintura.”9
Dos Lugares onde nunca estive, é o título da Série de obras que integram o projeto
Estas paisagens não existem. Depois de ter visto os desenhos e as pinturas, deixemos os
lugares onde nunca estivemos residirem na nossa memória. Visitemo-los a qualquer momento,
quando assim nos aprouver. Provavelmente lá encontraremos, numa dessas paisagens que
não existem, o artista - Filipe Romão.

Fichas Técnicas

Na parede
Série Dos Lugares Onde Nunca Estive
#35 – carvão sobre papel, 56 x 76 cm, 2019
#12 – carvão sobre papel, 76 x 56 cm, 2018
#31 – carvão sobre papel, 25 x 16 cm, 2018

Na vitrina
Série Dos Lugares Onde Nunca Estive

9Cf. Nelson Brissac-Peixoto, Paisagens Urbanas, São Paulo, Senac Editora, 2003 in
https://books.google.pt/books?id=z7xG6XSmg18C&pg=PA26&lpg=PA26&dq=Nelson+Brissac-
Peixoto+olhar+do+estrangeiro&source=bl&ots=AOOj-9ng-s&sig=noEjnIagwPml41R-hsLvyQNrHTI&hl=pt-
PT&sa=X&ei=PCafVM3CLoOuUcHQgKgL&ved=0CFEQ6AEwBw#v=onepage&q=Nelson%20Brissac-
Peixoto%20olhar%20do%20estrangeiro&f=false (pdf. p.26/31)
# 40 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019
# 41 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019
# 42 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019
# 43 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019
# 44 – carvão sobre papel, 21 x 29,5 cm, 2019
# 45 – carvão sobre papel, 29,5 x 21 cm, 2019

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