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Marguerite Yourcenar – O Tempo esse grande escultor, Lisboa, Difel, 1984

No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida.
Fechou-se a primeira fase em que, pela mão do escultor, ela passou de bloco a
forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar-se a
adoração, a admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus sucessivos
de erosão e desgaste, até chegar, pouco a pouco, ao estado de mineral informe a
que o seu escultor a tinha arrancado.
Já não temos, hoje, todos o sabemos, uma única estátua grega tal como a
conheceram os seus contemporâneos; já só ao de leve apercebemos, na cabeleira
de uma Koré ou de um Kouros do século VI, traços avermelhamos que hoje nos
parecem um pálido hena, a provar a sua antiga qualidade de estátuas pintadas,
vivas dessa intensidade quase assustadora de manequins e de ídolos que eram
obras-primas, por acréscimo. Esses objectos duros trabalhados para imitar formas
de vida orgânica sofreram, à sua maneira, o equivalente do cansaço, do
envelhecimento, da desgraça. Mudaram como o tempo nos muda. As sevícias dos
cristãos ou dos Bárbaros, as condições em que viveram soterradas durante séculos
de abandono até que as redescobrimos, os restauros sábios ou desajeitados por
que passaram, bem ou mal, as sucessivas camadas, verdadeiras ou falsas, que
nelas se foram sobrepondo, tudo, até a atmosfera dos próprios museus onde hoje
se encontram encerradas, marca o seu corpo de metal ou de pedra para todo o
sempre.
Algumas destas modificações são sublimes. À beleza, tal como a concebeu um
cérebro humano, uma época, uma forma particular de sociedade, elas juntam a
beleza involuntária que lhes vem dos acidentes da História e dos efeitos naturais do
tempo. Estátuas tão bem quebradas que de cada fragmento nasce uma obra nova,
perfeita pela própria segmentação: um pé descalço inesquecivelmente pousado
sobre uma laje, uma mão pura, um joelho dobrado contendo em si toda a
velocidade da corrida, um torso que nenhum rosto nos impede de amar, um seio ou
um sexo em que reconhecemos melhor que nunca a forma de flor ou de fruto, um
perfil onde a beleza subsiste numa total ausência de história humana ou divina, um
busto de contornos gastos, a meio caminho entre o retrato e a cabeça de morto.
Um corpo fruste parece um bloco moldado pelas ondas; um fragmento mutilado
mal se distingue do calhau apanhado numa praia do Mar Egeu. O perito não hesita
no entanto: esta linha apagada, esta curva desaparecida aqui e logo reencontrada,
não pode vir senão de uma mão humana, humana e grega, que viveu em tal lugar
em tal século. O homem inteiro está aí, a sua colaboração inteligente com o
universo e a sua luta contra ele, até à derrota final em que o espírito e a matéria
que lhe serve de suporte acabam por perecer juntos. A sua intenção afirma-se até
ao fim na ruína das coisas.
Estátuas expostas ao vento marinho apresentam a brancura e a porosidade de um
loco de sal a esfarelar-se; outras, como os leões de Delos, deixaram de ser efígies
de animais para se tornarem fósseis, ossos do sol à beira-mar. Os deuses do
Parténon afectados pela atmosfera de Londres convertem-se pouco a pouco em
cadáveres e fantasmas. As estátuas refeitas e recobertas pelos restauradores do
século XVIII para ligarem bem com os soalhos brilhantes e os espelhos polidos dos
palácios dos papas e dos príncipes têm um ar de aparato e de elegância que não é
antigo, mas que evoca as festas a que assistiram, deuses de mármore retocados ao
gosto do dia ombreando com efémeros deuses de carne. As suas parras parecem
vesti-los com trajes de época. Obras menores que ninguém se preocupou em
conservar em galerias ou pavilhões especiais, docemente abandonadas sob um
plátano ou à beira de uma fonte, ganham com o tempo a majestade e o langor de
uma árvore ou de uma planta; um fauno viril torna-se um tronco coberto de musgo
e a inclinação de uma ninfa parece-se com a da madressilva que a envolve.
Outras há que devem a sua beleza nova apenas à violência humana: ao gesto que
as empurrou do pedestal, ao martelo iconoclasta que as tornou o que hoje são. A
obra clássica impregna-se assim de patético; os deuses mutilados tornam-se
mártires. Por vezes a erosão do tempo e a brutalidade dos homens unem-se para
criar uma aparência única que não pertence a nenhuma escola e a nenhum tempo:
sem cabeça, sem braços, separada da sua mão recentemente encontrada, gasta
pelos vendavais das Espórades, a Vitória de Samotrácia tornou-se menos mulher e
mais vento do mar e do céu. Um falso ar de arte moderna surge destas
transformações involuntárias da arte antiga: a Psique do Museu de Nápoles, de
crânio cortado cerce horizontalmente, parece um Rodin; um torso decapitado
girando no seu pedestal faz lembrar um Despiau ou um Maillol. O que os nossos
escultores imitam por desejo de abstracção, utilizando hábeis artifícios, está aqui
intimamente ligado à aventura da própria estátua. Cada ferida ajuda-nos a
reconstituir um crime e por vezes a reconhecer-lhes as causas.
Um rosto de imperador foi martelado num dia de revolta ou tornado a esculpir para
servir ao seu sucessor. A pedrada de um cristão castrou um deus ou partiu-lhe o
nariz. Um avarento arrancou os olhos de pedras preciosas a uma cabeça divina
deixando-a com expressão cega. Um cavaleiro em noite de pilhagem gabou-se de
deitar abaixo um colosso com um só empurrão. Ora são os Bárbaros, ora são os
Cruzados, ora são, com pelo contrário, os Turcos os culpados; ora é a infantaria de
Carlos V, ora é a artilharia de Bonaparte, e Stendhal comove-se com o pé
fracturado do Hermafrodita. Um mundo de violência gira em torno destas formas
calmas.
Os nossos pais restauravam as estátuas; nós tiramos-lhes os narizes falsos e as
próteses que lhes acrescentaram; os nossos filhos farão com certeza outra coisa. O
nosso ponto de vista actual representa ao mesmo tempo um ganho e uma perda. A
necessidade de refazer uma estátua com membros postiços poderá ter
correspondido ao desejo ingénuo de possuir e de exibir um objecto em bom estado,
característico em todas as épocas de uma vaidade de proprietários. Mas esse gosto
exagerado do restauro que caracterizou todos os grandes coleccionadores a partir
do Renascimento, e durou quase até aos nossos dias, tem razões mais profundas
do que a da simples ignorância ou o convencionalismo ou gosto grosseiro do
arranjo. Talvez mais humanos que nós, pelo menos no campo das artes, em que
procuravam sensações mais felizes, possuidores de uma outra sensibilidade, os
nossos antepassados não gostavam das obras de arte mutiladas, das marcas de
violência e morte nos deuses de pedra. Os grandes amadores de antiguidades
restauravam por piedade, por piedade nós desfazemos a sua obra. Talvez nos
tenhamos habituado de mais à ruína e aos ferimentos. Duvidamos de uma
continuidade do gosto ou do espírito humano que torne possível a Thorvaldsen
reparar Praxíteles. Aceitamos mais facilmente que essa beleza, separada de nós,
abrigada em museus e não já em nossas casas seja uma beleza etiquetada e
morta. O nosso sentido do patético compraz-se nestas imperfeições; a nossa
predilecção pela arte abstracta faz-nos amar estas lacunas, estas fissuras que
neutralizam de algum modo o poderoso elemento humano desta estatuária. De
todas estas modificações causadas pelo tempo, nenhuma afecta tanto as estátuas
como a alteração do gosto daqueles que as admiram.
Uma forma de transformação mais impressionante que qualquer outra é a que
sofreram as estátuas naufragadas. Os navios que transportavam a encomenda
executada por um escultor, as galeras onde os conquistadores romanos
empilhavam os despojos gregos, de regresso a Roma, ou, quando Roma se tornou
pouco segura, os levavam com eles para Constantinopla, afundaram-se muitas
vezes; alguns desses bronzes naufragados, repescados em boas condições, como
afogados salvos a tempo, conservam da sua permanência no fundo do mar uma
admirável cobertura esverdeada, como o Efebo de Maratona ou os dois atletas de
Erice, mais recentemente encontrados. Frágeis mármores, pelo contrário, saíram
roídos, comidos, ornados de volutas barrocas esculpidas pelo capricho das ondas,
incrustados de conchas como as caixas que se compravam na praia quando nós
éramos pequenos. A forma e o gesto que lhes impusera o escultor não foram mais
que um breve episódio entre a sua incalculável duração como rocha que eram no
seio da montanha e a sua longa existência de pedra jazendo no fundo das águas.
Elas passaram por essa decomposição sem agonia, por essa perda sem morte, essa
sobrevivência sem ressurreição que é a da matéria entregue às suas próprias leis.
Elas já não nos pertencem. Como o cadáver de que fala a mais bela e misteriosa
das canções de Shakespeare, elas sofreram uma transformação oceânica tão rica
como estranha. O Neptuno, boa cópia de oficina, destinada a ornamentar o cais de
uma pequena terra de pescadores onde lhe seriam oferecidas as primícias da
pesca, desceu ao reino de Neptuno. A Vénus celeste e dos caminhos diversos
tornou-se a Afrodite dos mares.

1954
1982

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