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MARTINHA MAIA – POÉTICA DO OBTUSO: aforismos quase perfeitos – exposição

QUASE GALERIA – Porto, 2019


Maria de Fátima Lambert

…Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,


que a aceita impassível: um ciclo de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias…
Cesare Pavese – “Mania da Solidão”, Trabalhar cansa

0. Formas prévias a qualquer sequência:

As matérias-primas organizam-se a partir do pensamento da Artista que assim decide o que


a obra será.
A ductilidade dos materiais conduz os movimentos que serão estabilizados pelo peso
pousado no chão.
O que é translúcido reverbera quase em acuidade lumínica e as costuras em suspensão
transformam-se em linhas firmadas no ar.
O interior converte-se em exterior porque não receia plasmar-se, arrastar os sentidos à
frente das ideias mais convincentes.
De que cor é a pele que se imagina dentro das roupagens de uma alma una e desmembrada?
Como se define uma paisagem que encena os vestígios de corpos usados e que apenas se
reciclam porque convictos da verdade plasmada no ar, do sol, na terra e da água. Todos os
elementos primordiais se apresentam.
O desenho progride, penetrando em territórios insuspeitos, pois imprevistos, acolhendo
materiais e procedimentos inusitados. Tais ações são contingências de quem domina a sua ação
com mestria.

1. A epopeia das formas enigmáticas

A obra de arte afunda-se na mobilidade do tempo e pertence à eternidade. É


particular, local e individual, ao mesmo tempo que é testemunho universal.
Henri Focillon, Vida das Formas, p.11

Henri Focillon escreveu a Vida das Formas. A que segue, no mesmo volume, O Elogio da
Mão. Quando refletiu sobre a vida das formas, o filósofo francês distinguiu que, no mundo das
formas, estas podiam ser consideradas: no espaço, na matéria, no espírito e no tempo. As quatro
categorizações ajustam-se na observação do projeto concebido por Martinha Maia para a Sala
da Quase Galeria. O âmbito da forma é o espaço intervencionado, como sublinhou Focillon. O
espaço intervencionado “por uma técnica que se define como matéria e como movimento. A
obra de arte é ponderação do espaço, é forma…” 1
Significando que as suas peças de escultura surgem da doação que as mãos demoram no
tempo - aquele que é, na sua duração, o efetivamente necessário. Que se concretizam ao serem
desenhadas num espaço que o corpo fenomenológico habita – parafraseando Merleau-Ponty.
Que se nutrem de subtis desenhos, e quase barrocos, concebidos em materiais dúcteis.

2. A poética do obtuso – morosidade concentrada

Have you not heard that our hearts are old,


That you cal in byrds, in wind on the Hill,
In shaken boughs, in tide on the shore
O sweet everlasting Voices be still
William Butler Yeats, “Everlasting Voices” (1889), The Poems: A New Edition,
New York: Macmillan Publishing Company, 1983.

1
Henri Focillon, Vida das Formas, p.10
Os desenhos da artista portuguesa habituaram-nos à morosidade, roçando o extremo do
rigor e dádiva. A matéria-prima transmutou-se, integrando linhas/costuras que fluem e
suspendem. Geram pequenas protuberâncias e assemelham-se a pequenos organismos.
Também sugerem formas que tenham sido habitadas por um corpo que decidiu abandonar o
seu invólucro, tornando-se autónomo.
O marido de Penélope, Ulisses, tardava demasiado. Carecia que a casa tivesse a sua
liderança assegurada por um poderoso senhor. Penélope deveria escolher um novo marido,
como se sabe da lenda. As suas estratégias para adiar novo consórcio estavam a esgotar-se. Será
que ainda alguém acreditava que a tapeçaria tinha vontade própria, complexo de Sísifo ou
Prometeu: que se cumpria para se dissolver quase de seguida?

As obras de Martinha Maia ensinam uma consciência resolvida na lentidão exata com que
pensa e concretiza as suas propostas. Uma vez iniciado o processo de criação, e apos terem
adquirido a sua identidade, as ideias permanecem e usufruem todos e seus plenos direitos. Cada
peça acede à categoria de ser único. É nesse usufruto e condição que passa a integrar uma
coleção íntima que é da Artista, mas, de certa maneira, passa a ser a coleção imaterial na
memória de quem a vê, de quem a receciona. A singularidade que a carateriza, deriva da
personalidade irregular e coesa que lhe sabe instaurar, que lhe atribui. Apenas pelo exercício da
concentração feliz de quem sabe novas configurações, mediante a exímia consciência da
passagem do tempo, se proporcionam fortunas estéticas como estas.

3. A poética do obtuso – centímetros e intervalos

A escolha de uma escala de observação hiperfina gera uma descrição


pontualizada, excessivamente complexa – e consequentemente a informação
que proporciona torna-se pletórica [excessivo].
Jean-Claude Chirollet, Esthétique du Détail – peinture-photographie, Paris:
Connaissanes et Savoirs, 2016.

As duas grandes peças instaladas que constituem Poética do Obtuso assinalam pontos no
espaço. São estímulos de descoberta, propulsores de aventuras que o pensamento visual
propicia de modo compulsivo. Empurram-nos para a conquista cumprida, após um desafio
artístico que se afigura, antes de mais, instigante. Não são barreiras intransponíveis, antes nos
alertam para a assunção corpórea que nos possui como oferenda. Uma, atravessa-se como uma
cortina. Torna difusa a vista para o exterior, habitualmente disponível quando se enfrenta a
grande janela com vista para a rua. A obra instalada negoceia a nossa capacidade de dialogar
entre dentro e fora, pois, o próprio material é vivido pelo nosso corpo atendendo à condição de
intruso. Esbarra-se com uma escultura dúctil que se abre no espaço sobre a pele. Não sendo
uma pele, duplica-a, sendo uma espécie de barreira no ar que circunda o ser.
Na parede, uma rede circunscreve o seu lugar. É constituída por camadas vividas que deixam
entrever episódios antigos e recentes. O desenho é o todo percecionado na primeira visão.
Depois, o espaço revela-se um enraizado e fino absorvente de situações. As camadas dos
desenhos recortados são mágicas. Obrigam-nos e desvelar as camadas sobrepostas, a tocar o
passado no espaço. Assim se acede a uma feliz coincidência de espaço que instaura formas e
intervalos trasvistos – o espaço privilegiado para que se possa ver através.

4. O espírito do detalhe vivido – leveza imponderável

The first and the simplest emotion which we discover in the human mind, is Curiosity. By
curiosity, I mean whatever desire we have for, or whatever pleasure we take in, novelty.
Edmund Burke, On the Sublime and Beautiful. London: The Harvard Classics, 2012.

Talvez seja uma ambição desmedida, provocada por um excesso de confiança que emana
das obras de Martinha Maia. De tão precisas que estas se apresentam, porque efetivamente o
são e não apenas se mostram a ser, pensamos ser capazes de as contemplar e regressar a casa
leves e felizes. Pois que, em última instância, aceder a estes campos desenhados, nos permite
extrair pequenas vivências maiores, aquelas que legitimam todos os instantes perdidos
diariamente. Assim falam ao espírito as obras de Martinha Maia. Tomámos, para nós e como
nossa, a ambição [pretendida, almejada] de ser capazes de partilhar, experimentando por
transposição as emoções imaginadas do fazer artístico; de absolver a matéria das coisas
[totalizadoras] e ocupar espaços mínimos do vazio completo desenhado pela Artista. Projeta-
se e introjeta-se e vice-versa – e assim por diante, tendo sempre, sob mira, a vida que pulsa
nas suas obras paradas, suspensas e enraizadas, tudo isso em simultâneo. Trata-se de uma
dessas primeiras e simples emoções de que falava Edmund Burke: a curiosidade, a novidade
que, diria eu, consiste na surpresa em conseguirmos, de nos deixarmos ser elevados pelo
imediato mediado e profundo da obra que se plasma perante nós. A novidade surpreendente
da solicitação pelo ínfimo em que, finalmente, cabe tudo. A curiosidade novel que se associa,
que concilia mesmo as aporias de Hermes Trismegisto, quando este nos ensina que o Todo é o
mínimo e que tudo está naquilo que se pensa ser quase nada.
Ser quase nada pode equivaler a denominar o que apelidamos de detalhe. Os detalhes são
disruptivos e conciliadores; são autónomos, assumindo maior nitidez pelo confronto com a
opacidade de sua vizinhança. Destacam-se e determinam-se na proximidade, quer pela sua
afinidade, quer sua estranheza. Superam-se e, assim, tornam-se mais exatos e consistentes: a
sua vida afirma-se, propulsionando a voos maiores mesmo que a distância seja mínima. Os
detalhes são poderosos e submetem a beleza superior que as obras exalam a quem possa
entendê-las. Isso contam os artistas desde que iniciaram suas demandas.

5. Poética do Obtuso: pois que das obras exala uma experiência inédita, imponderada
que nos atinge no tempo-espaço, obrigando a que a nossa atenção seja interpelada
por novas configurações de saber como existir. É obtuso, é brutal, estar aqui sem ter
consciência de ser.

Maria de Fátima Lambert

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