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Nuno Henrique

Frutífera

Curadoria de Maria de Fátima Lambert


9 maio >>> 14 junho de 2019
Depois do Espaço t, surge a Quase Galeria

Espaço t, espaço de integração pela arte, numa perspetiva de inclusão total, sem tabus,
estereótipos, preconceitos e tudo aquilo que segrega o valor humano. Valorizamos apenas
a aceitação incondicional do outro.
Numa perspetiva transversal da sociedade, dos ricos dos pobres, dos coxos aos
esteticamente intitulados de belos, todos cabem no conceito.
Num mundo cada vez mais desumanizado, solitário, onde todos são “colocados em
gavetas”, verificamos que o homem apenas representa o papel que lhe é dado, e quase
nunca mostra o seu verdadeiro interior.
Com o Espaço t, aqueles que por ele passam ou passaram, crescem e entendem que o
verdadeiro homem não é o do “gaveta” mas o do seu interior e entenderam também o que
há na sua verdadeira essência, quer ela seja arte bruta, naïf ou apenas arte de comunicar,
é por si só a linguagem das emoções, a linguagem da afirmação do maior valor humano.
O pensar e o libertar esse pensamento crítico sobre uma forma estética. Esse produto
produz uma interação entre o produtor do objeto artístico e o observador desse mesmo
objeto; promovendo assim sinergias de identidade e afirmação melhorando dessa forma a
auto estima e o auto conceito daqueles que interagem neste binómio e se multiplica de uma
forma exponencial.
Este é o Espaço t,
E apesar de sempre termos vivido sem a preocupação de um espaço físico, pois sempre
tivemos uma perspetiva dinâmica, e de elemento produtor de ruído social positivo, ruído
esse que queremos que possa emergir para além das paredes de um espaço físico.
Apesar de não priorizarmos esse mesmo espaço físico, pois ele é limitador e castrador foi
para esta associação importante conseguirmos um espaço adaptado às necessidades reais
e que fosse propriedade desta associação que um dia foi uma utopia.
Com a ajuda do Estado, mecenas, e muitos amigos do Espaço t, ele acabou por
naturalmente surgir. Com o surgir do espaço do Vilar, outros projetos surgiram tendo uma
perspetiva de complementaridade e crescimento desse espaço, que apesar de real o
queremos também liberto desse conjunto de paredes, fazendo do espaço apenas um ponto
de partida para algo que começa nesse espaço e acaba onde a alma humana o quiser
levar.
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Surgiu assim a ideia de nesse lugar criarmos outro lugar, também ele figurativo embora
real, chamado Quase Galeria.
Uma galeria de arte contemporânea com um fim bem definido: apresentar arte
contemporânea Portuguesa nesse espaço, dentro de outro espaço, onde cada exposição
será uma fusão de espaços podendo mesmo emergir num só espaço.
Com este conceito pretendemos criar uma nova visão do Espaço t, como local onde outros
públicos, outros seres podem mostrar a sua arte, desta vez não terapêutica mas sim uma
arte no sentido mais real do termo que forçosamente será também terapêutico, pois tudo o
que produz bem estar ao individuo que o cria é terapêutico.
Com o apoio das galerias: Graça Brandão, Carpe Diem – Arte e Pesquisa, Carlos Carvalho,
Presença, Reflexus /Nuno Centeno, Modulo, 3 +1, Jorge Shirley, Alecrim 50, Ateliê Fidalga
(São Paulo/BR), Progetti (Rio de Janeiro/BR), Ybakatu (Curitiba/BR), Mercedes Viegas (Rio
de Janeiro/BR), Waterside (Londres/UK), Módulo, Vera Cortês (Contemporary Art Agency),
Filomena Soares, Fernando Santos, Galeria Sete e com a Comissária e amiga Fátima
Lambert, temos o projeto construído para que ele possa nascer de um espaço e valorizar
novos conceitos estéticos contribuindo para a interação de novos públicos no espaço com
os públicos já existentes promovendo assim, e mais uma vez a verdadeira inclusão social,
sem lamechices, mas com sentimento, estética e cruzamentos sensoriais humanos entre
todos.
Queremos que com esta Quase Galeria o Espaço t abra as portas ainda mais para a cidade
como ponto de partida para criar sinergias de conceitos, opiniões e interações entre
humanos com o objetivo com que todos sonhamos – A Felicidade.

Jorge Oliveira
O Presidente do Espaço t

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Frutífera – Nuno Henrique

“As coisas são como são.”


“Todas as coisas têm uma alma.”
Ludwig Wittgenstein – Lecciones y conversaciones sobre estética, psícologia y creencia
religiosa

“Je note mes souvenirs quando ils viennent. Je ne les recherchent pas, je les attends.”
Henri Bosco, Un oubli moins profond
“Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?...”
Clarice Lispector, A Hora da Estrela

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1.
Os desenhos que Nuno Henrique apresenta na Quase Galeria em articulação às
peças em vidro que se instalaram na Sala de Jantar do Museu Nacional Soares dos Reis,
remetem para a fusão entre a morfologia das plantas e a morfologia dos objetos que as
sustentam. Foram realizados a partir da observação de antigos frascos e garrafas romanas.
Todavia a forma dominante é muito nitidamente anatómica, totémica. Questione-se se os
conteúdos iconográficos se enquadram na tipologia natureza-morta…seguindo a
nomenclatura circunstancial.
Desde Pompeia e Herculano que se conhecem pinturas que retratam objetos do
quotidiano. Ainda que vulgares, tornando-se eternos. Testemunham a existência de quem
os possui e a identidade de quem as concebeu. Essas iconografias foram designadas por
rhyparographos, termo avançado por Plínio, o Velho, na sua História Natural. Ann Gallagher
escreve que são “as evidências de naturezas-mortas que antecedem o seu próprio
estabelecimento como género autónomo.”1 Piraeicus, artista grego cuja data e localização
efetivas de desconhecem, ficou conhecido como o pintor das coisas banais, baixas,
aquelas que cabia menosprezar. A Natureza-morta foi, portanto, um género de pintura mal
reconhecido, durante bastante tempo, como menor, ainda que dos mais amados sem
porquê.
O público, em geral, ficava agradado pelo fato de se deleitar na contemplação de
coisas que lhe estavam próximas, que se relacionavam com as imagens do seu mundo
circundante. Obter e conviver, dentro de suas portas, com imagens de exuberâncias
regularizadas, era um privilégio menor mas significativo: flores, frutos, vidros e porcelanas,
estatuetas, animais empalhados, ossaturas, pedras e brutas ou preciosas, instrumentos
musicais e partituras, livros e gravuras enroladas, sirgarias, fitas e laços, drapeados,
drapejamentos e toalhas ou vestígios mais diretos de presenças dignas…
Consoante a tipologia predominante na composição (unidade de seu todo) algo
comum subsistia: o clamor pela ausência de movimento; a assunção congelada do impulso;
a exaltação da inércia sublime de coisas/naturezas mortas. Como se, nas demais
representações pintadas de elementos, houvesse movimento efetivo ou a letargia na
aparência não fossem um paradoxo. Atenda-se à questão adstrita na ordem ontológica. O
que requer a ponderação quanto à validade de estereótipos, a fidelização a preceitos viso-
concetuais, de onde emana a ilusão alcançada pela capacidade de mimetizar que o artista
possua – trompe l’oeil. Os pensadores, os espetadores transportam em si essa
identificação entre a verdade da coisa (aceitando que existe) e a verdade da coisa
representada. Sendo que coisa representada engloba figuras, retratos, paisagens e tudo o
mais que se habituou em termos de géneros pictóricos aferidos a conteúdos semânticos.

1 Ann Gallagher, “Still life”, Still life, São Paulo, Itáu Cultural, 2004, p.19
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Atendendo à diversidade de conteúdos tratados tradicionalmente nas naturezas-
mortas, perante esta panóplia de existências pictóricas - que viriam a tridimensionalizar-se
ao longo do séc. XX e no presente -ainda mais surpreende o teor da designação atribuída
por André Félibien (1667) no séc. XVII e que persiste nas línguas latinas. Por sua vez,
Diderot mencionava-as como “coisas inanimadas”. Como “encaixar” numa expressão tão
impositiva e inclemente, a fruição de coisas, que embora breves e transitórias na vida,
proporcionam a gerações sequentes? Como aceitá-las nesse conversão e confronto de
algo perene, plasmado num hieratismo estético voluptuoso, carregado por condição
irreversível? Talvez a transparência real das peças de vidro desenhadas por Nuno
Henrique, redima a quietude e permita que a luz reverbere numa adesão gnosiológica, ao
expandir os seus conhecimentos através de uma botânica concetual tocada pela vida. Os
elementos, privilegiados neste género de pintura, reverberam dinamismo. Neles subsiste
um élan vital suspenso, uma existência adormecida capaz de ser acionada num ambiente
artístico propício. Tratava-se de um género secundarizado que se veria imprescindível no
séc. XVIII e seguintes, cultivando diletantes, acompanhando-se das mutações estilísticas e
reiterando as tendências dominantes.

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O exercício de desenho e pintura de naturezas-mortas serviu para explorar novas
linguagens – caso da sua presença e receção nas vanguardas históricas. Tomou razão
escultórica, materializando-se e demonstrando as forças exploratórias do cubismo, do
futurismo, do expressionismo. Apelou à objetualidade, quando os artistas introduziram na
concetualização artística, artefactos, elementos fabricados, em atos de apropriação. Aliás,
já nos séculos anteriores, a condição de ornamento mais frequentemente associada às
naturezas-mortas exaltara o seu virtuosismo e inventividade; ultrapassara o estímulo mais
básico, condutor a uma fruição estética imediatista. A reflexão crítica era instigada,
carecendo que as composições fossem lidas não somente em termos iconográficos
(formalistas) mas iconológicos e mesmo herméticos. Foram aceites, encorajadas como
visões artificiosas e enigmáticas de uma requintada arte de agrado superior,
complexificadas e propulsoras de infindas inventividades autorais.
Por outro lado, relembre-se que a expressão Stilllife, vigente nos ambientes anglo-
saxónicos, advém do holandês Stilleven, em alemão Stilleben, que encaminha para a
consignação de silêncio. A que adicionaria, na minha perspetiva, a ideia, a condição de
algo que “ainda é vida”, que parecerá imóvel, estabilizando-se como inerte, todavia e
portanto capaz de “respirar” perante os seus contempladores, numa espécie de morte lenta,
suspensa. O silêncio é inerente à condição de algo que (silente) ainda vive, ainda respira
malgrado a sentença inevitável sobre seu destino enquanto objeto.
O entendimento do silêncio estava contido na expressão francesa nature morte,
originando uma variante chamada “vie coye” - vida quieta por analogia à vida silenciosa. O
termo adotado no mundo latino apresenta uma subordinação mais dramática, mais
inquietante: natura morta. Anteriormente, no séc. XVI em Itália a expressão usada era
natura in posa. Em Espanha, todavia, são mais habituais os termos: Bodegón, Floreros ou
Fruteros.
Analisando a iconografia subsumida a natureza-morta, constata-se que se distribui
por sub-tipologias, organizadas numa concatenação de viso-ideias que deambulam e

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oscilam na completude. São fruto de um equilíbrio entre razão epistemológica, axiologia
deliberativa e vontade estética de gosto. As variações múltiplas, desenvolvidas sob tal
auspício, persistiram, testemunhando a sua presença quieta e estoica, estabilizando-se na
história da arte ocidental e seu pensamento. Nuns países, foi um género mais rapidamente
validado e celebrado, noutros houve que perdurar sem vacilar até se impor como tema
superior autónomo. O rigor e a exigência dos artistas contribuíram e revelaram-se prova
decisiva ao nivelamento virtuosístico e à exequibilidade retórica.

O território das naturezas-mortas é povoado por seres indiscretos e sugestivos,


gerados tanto pela capacidade de “copiar” a visão do real, como pela autoridade em
imaginar, ludibriar ou jogar com verdades antigas e recentes. Nos murais de Pompeia, e
antes nos frisos perfilados dos egípcios, atenção celebrava não apenas figuras humanas e
animais, mas também arquiteturas, paisagens – jardins e natureza frondosa – assim como
objetos e flores tratadas como sinais visuais estabilizados. À noção de natureza-morta
subjaz quase imediatamente a ideia de quietude, de tangibilidade provocatória e de
poder/domínio. Durante séculos os títulos das pinturas adstritos a este género e tema eram
com frequência descritivos, assinalando a identificação mais direta e indiscutível.
A escolha dos elementos, a serem representados nas composições, procedia de
acordo ao gosto estético do artista, às suas afinidades eletivas, acertado pela conveniência
atualizada, pela adesão de espetadores, diletantes e colecionadores, sem menosprezar o
impacto que se ponderava viesse a persistirem ou em devir. Necessariamente, a ideia de
tempo implicava-se na de espaço, designadamente naquilo que o habitava, nele se
infiltrava ou impunha.

2. Frutífera no MUSEU NACIONAL SOARES DOS REIS – Ciclo Ações estéticas quase
instantâneas

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Uma das primeiras representações de caveira, que se saiba, foi encontrada num
mosaico de uma casa em Herculanum, inaugurando a tipologia que se intitularia vanitas.
a. Não terá sido por acaso que as paisagens, antes de sua concetualização
surgem – à semelhança, como se mencionou antes, de Rhyparographer, as “evidências das
naturezas-mortas” – em frescos de Pompeia. Tratam-se excertos de jardins frondosos, onde
distintos planos iconográficos se estabelecem- em linhas paralelas, perspetivadas em
contínuo. Nalguns casos alongam-se como vedutas ou panoramas, predominando motivos
naturais; noutros intercalam-se com motivos arquitetónicos e urbanísticos mesmo. São os
primórdios, a antecipação de arquiteturas paisagísticas, assim como de paisagens
edificadas. O registo de jardins revela a consignação de uma cultura paisagística que se
dissiparia, maioritariamente, nos séculos seguintes.
As paisagens são naturezas-mortas mais amplas e com vista para o horizonte?
Talvez as coisas frutíferas – objetos e seres natureza - sejam claras e distintas como
asseverou Descartes. Uns e outras são existências. As coisas, os objetos e os organismos
naturais são – de modos diferentes – concisos, precisos ou instáveis. Sendo do mundo
reificado, advindo da intenção humana ou geradas sem causa, tomam essência; adquirem
uma substância iconográfica a partir do momento em que se plasmam e volumetrizam
segundo as circunstâncias.
Traços gravados de paisagens breves alongam-se e circunscrevem-se nos moldes
soprados do vidro: refiro-me às garrafas, de diferentes morfologias, que Nuno Henrique
criou e agora se apresentam na Sala de Jantar do Museu Nacional Soares dos Reis. Uma
bela cumplicidade entre natureza-morta e paisagem norteia as 3 obras do artista
madeirense radicado em Nova Iorque. Três paralelepípedos atuam como conteúdos e
continentes. Pontuam o espaço, insinuando um trajeto que o visitante realizará,
circundando as 5 vitrinas da Exposição permanente.
Os três paralelepípedos só têm sentido agregando as partes que os constituem. Não
são uma vitrina com vidros e campânula que sirvam de expositor. Foram pensadas na sua
inteireza. Cada um deles é uma peça compósita – expressam, sinalizam três pontos
cardeais na Sala Verde, onde os estuques acolhem o brilho do vidro destas oito esculturas
algo enigmáticas. Oito é igual a: 3 + 2 + 3. Uma vez que cada paralelepípedo contém estas
unidades, respetivamente e fazendo o trajeto pelo lado direito da Sala, quem sobe a
escadaria.
Todas as peças de vidro corporalizam a ideia de uma árvore invertida, sugerindo que
se olhe “o outro lado do equador”. O todo (cada paralelepípedo) é composto por unidades,
pensadas para se unirem sem dividir, ainda que possam viver separadas. Mas seriam
infelizes e incompletas, como quando se ama alguém que partiu.
Distinguem-se, em cada uma das peças- paralelepípedos, algo me fez pensar no
“símile da árvore” relatado por Paul Klee, quando pretendeu expor a sua teoria acerca da
Arte Moderna, no relativo à subjetividade, à dimensão identitária e singular da criação.

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He has such good orientation in it that he is able to bring order to the flux of appearances
and experiences. This orientation in the things of nature and of life, this order with all its
limbs and branches, I would like to compare to the root structure of the tree. From that
structure juices flow upward to the artist, passing through him, through his eye. He is
therefore standing in the place of the trunk. Moved and compelled by the power of those
streaming juices, he conducts what he is looking at into the work. Like the crown of the tree,
unfolding into visibility in every direction through time and space, that is how it also goes
with the work. It would not occur to anyone to demand of the tree that it
shape its crown exactly like its root structure. Everyone will understand that the below and
the above cannot mirror one another perfectly.
(Paul Klee, Philosophical Vision: from Nature to Art, Boston College in
https://ia800804.us.archive.org/34/items/paulkleephilosop00klee/paulkleephilosop00klee.pdf)

Como poderia a copa de uma árvore assemelhar-se às suas raízes, distanciada pelo
tronco? E quando esse tronco pode ter um tal diâmetro que é a copa invertida, dir-se-ia
com Nuno Henrique?
Por certo, o pintor suíço não pensava em Dragoeiros (Dragon Tree), mas em alguma
outra espécie de árvore mais europeia. Mas árvore é árvore, ainda que nestes desenhos, e
no pensamento, de Nuno Henrique repercuta a ancestral e milenária criação da natureza,
cuja dimensão parecia desafiar os deuses: o dragoeiro. Traços da paisagem relacionam-se
com a natureza-morta, aqui entendida como o(s) objeto(s) de vidro, o espelho transversal
que lhe(s) permite reflexo(s), a campânula que tudo protege e o plinto que tudo sustenta.
b. Não terá sido por acaso que as paisagens, antes de sua concetualização
surgem, à semelhança de Rhyparographer, vide as “evidências das naturezas-mortas”, em
frescos de Pompeia. Tratam-se excertos de jardins frondosos, onde distintos planos
iconográficos se estabelecem- em linhas paralelas, perspetivadas em contínuo. Nalguns
casos alongam-se como vedutas ou panoramas, predominando motivos naturais; noutros
intercalam-se com motivos arquitetónicos e urbanísticos mesmo. São os primórdios, a
antecipação de arquiteturas paisagísticas, assim como de paisagens edificadas. O registo
de jardins revela a consignação de uma cultura paisagística que se dissiparia,
maioritariamente, nos séculos seguintes.
c. Os objetos – quase totémicos – da série Frutífera – são pequenos
jardins, quase bonsais, guardados do vento, do ar, da humidade, da água, da terra, da
areia, do fogo e do hálito dos deuses e dos humanos…
Na Sala de Jantar do MNSR, na vitrina central vemos algumas peças do Serviço do
Bispo, como habitualmente é denominado, para onde convergem e de onde partem as
cores dominantes no espaço: o verde, o branco e o dourado. O vidro das campânulas das
obras de Nuno Henrique, quando a luz incide nas arestas, regista linhas verticais
luminescentes, pois trazem o conhecimento do que é invisível.
As vitrinas laterais, que integram peças do acervo do MNSR, expõem um conjunto de
acessórios ornamentativos de prata e um conjunto diversificado objetos de vidro e cristal.
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Imagina-se como seria uma mesa comprida povoada por estes acessórios de excelência,
cumprindo a volúpia da beleza que é, por certo, intemporal. Numa certa perspetiva, uma
“mesa posta” é também uma paisagem, não apenas uma variante, uma tipologia de
natureza-morta, motivo de sucesso instaurado pelos holandeses, em inícios do século XVII.
Nas mesas dispunham-se pratos, copos e talheres. Toda uma panóplia de objetos e
utensílios que, povoam de civilizacional, os ambientes mais despretensiosos.

“Os objectos, as vozes, a realidade, todas essas coisas sedutoras que nos atraem e nos
guiam, que perseguimos e sobre as quais nos precipitamos…será isso no entanto a
realidade autêntica, ou apenas se tratará de um sopro imponderável pairando acima da
realidade proposta?”
(Robert Musil, "O homem sem qualidades", Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p.155)

Nos objetos de vidro desenhados por Nuno Henrique [e soprados por outrem]
inscrevem-se excertos de paisagens inventadas e reais. Resguardam uma marginália aos
diálogos entre linhas e traços subtis – consonantes à série de desenhos expostos na Quase
Galeria. Olhando os paralelepípedos, a translucidez, a transparência e a opacidade leve
configuram sinais detalhistas da natureza. A vegetação é imóvel, porém fluirá ao vento, a
um sopro de alma de árvore antiquíssima, de raiz expandida ou de planta a brotar.

Detalhe de O Jardim das Delicias Terrenas de Hieronymus Bosch (1504)


Detalhe de Fuga para o Egipto de Albercht Durer (c. 1504)

Os objetos de vidro contêm particularidades visualmente identificadas (extraídas e


interpretadas) a partir de obras escolhidas criteriosamente pelo artista que assim viaja no
tempo iconográfico da Arte ocidental. Nuno Henrique selecionou representações de
dragoeiras, patentes em criações europeias, quiçá estruturadas pelo imaginário e não tanto
pelo contato direto com os dragoeiros. Escolheu um dragoeiro representado na pintura O
Jardim das Delicias Terrenas de Hieronymus Bosch (1504); um outro, baseado na gravura
Fuga para o Egipto de Albercht Durer (c. 1504) e, finalmente, especificando a gravura

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intitulada The Dragon Tree (c. 1745) G. Child - realizada a partir de desenho de autor não
identificado.
Nuno Henrique foi cativado por tópicos mínimos que desenvolveu, estabelecendo-
lhes rigor e precisão poética, no vidro que tomou a forma de recipientes vazios. A ideia de
vazio, num objeto onde é suposto haver conteúdo (água ou um outro qualquer liquido),
adiciona uma nota identitária. Ou seja, os objetos de vidro soprado – atingidos após morosa
pesquisa sobre garrafas e frascos romanos - plasmam o ar na matéria configurada,
preservando as imagens ínfimas, delas ausentando a essência de atos quotidianos. São
objetos contemplativos, onde os desenhos se dissimulam e obrigam um olhar atento.
Frutificam ilações poéticas, antropológicas e botânicas no pensamento visual do espetador
e do estudioso, pois estes continentes de memórias escolhidas (cruzando a história da arte
e a botânica) evocam o requinte exigente do desenho científico interpretado, na sendo de
autores que tomavam como objetivo de vida proporcionar novos conhecimentos a mundo. A
ideia da viagem está igualmente implícita. Não apenas a viagem na história compósita pela
assunção de motivos localizados num espaço de abrigo ou de partida – ainda que de
chegada porventura – que subjaz à ideia de ilha. As pinturas e gravuras eleitas que são
locais de abrigo no cômputo geral da Arte, assim como tópicos incisivos na geografia
humana e na memória coletiva – vide imaginário visual e cultural.
Na obra de Nuno Henrique a presença dos Dragoeiros [Dracaena draco], como se
depreende, é referencial. Da memória de um universo frondoso extraiu a configuração
escultórica de uma árvore que há muito extinta nas ilhas do arquipélago da Madeira. Essa
árvore, de espécie milenar, é nativa das ilhas da Madeira, Canárias e Cabo Verde. O
Dragoal, “ancestral bosque de dragoeiros”, terá desaparecido por alturas da colonização
das ilhas da Madeira, tal como o artista refere num dos seus textos. As árvores milenares
são estímulos de memória, de celebrações e seres mitológicos ausentes. Remete, segundo
alguns, para a Lenda do Jardim das Hespérides, quando o sangue do dragão Ladon,
escorrendo pela terra, fez brotar repentinamente as árvores. Uma das primeiras referências
ao Dragoeiro, tanto quanto se sabe, coube a Jean de Bethencourt, que o avistou quando da
sua expedição em 1402.

Alexander Von Humboldt, “Dragon Tree”, La Orotava, Atlas Pitoresque, 1810.


Maria Callcott, “Árvore Dragão & Pico de Tenerife”. In Diário de uma Viagem para o Brasil, 1824.

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Curiosamente, assinale-se quanto a representação de dragoeiros continuou a seduzir
cientistas como Von Humboldt (1799) ou artistas viajantes como Maria Graham [assinando
também Maria Calcott, apelido do segundo marido], em inícios do séc. XIX. Ambos registos
consistem em desenhos poderosos, simbólicos e detalhistas, que evoco ao pensar a obra
de Nuno Henrique. A inglesa intrépida estava em viagem quando, no trajeto que a levaria
ao outro lado do Oceano, aportou à ilha de Tenerife, deparando-se com a árvore milenar. O
desenho gravado ilustra o Journal of a voyage to Brazil, and residence there, during part of
the years 1821, 1822, 1823, publicado em 1824. Donde, exaltar o fascínio que as árvores
ancestrais exerce sobre quem investiga e cria, vividas nos excertos de pinturas e gravuras
antigas. Os desenhos concebidos por Nuno Henrique constituem um novo acervo, uma
coleção de memórias eletivas que seduzem num ambiente onde as próprias paredes da
Sala de Jantar, os estuques do teto e as decorações sobressaem para maior fruição de
quem visita o Museu.
Tanto os 15 desenhos de Nuno Henrique, apresentados na Quase Galeria/Espaço T,
como a sua transposição interpretada nos continentes de vidro soprado, tomam por modelo
as variações de objetos históricos, que investigou ao longo de vários anos. Convergem
pois, para uma aceção morfológica que articula vislumbres de paisagem, natureza-morta e,
de certo modo, a tipologia de conversation piece. Os elementos coincidem numa visão que
regulariza as formas observadas, devidamente apropriadas pelo olhar mental que as
traduz, exprimindo algo único e subjetivo.
A instalação (instaurar, localizar) das vitrines-obras-paralelepípedos, que abrigam as
figurações invertidas de árvores em vidro – Série Dragoeiro Invertido - adquirem uma outra
reflexão, residindo na Sala de Jantar do MNSR. Incluem-se, ainda que temporariamente, no
ambiente museal. Absorvem-no, distinguem-se, de outra apresentação colocada em
espaço mais neutro. Designam um trajeto através de uma natureza inventada, ainda que
rememorada, vinda das profundezas dos assentos cartográficos, geográficos, tanto assim
como das evocações artísticas de tempos anteriores.
Maria de Fátima Lambert

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Detalhe da série Dragoeiro Invertido, 2018.

FICHA TÉCNICA – MUSEU NACIONAL SOARES DOS REIS

CONJUNTO_1
sem título, da série Dragoeiro Invertido, 2018.
Três peças em vidro soprado com gravação2 em torno, vitrine em vidro com película e
pedestal em MDF pintado.
60 x 60 x 164 cm

CONJUNTO_2
sem título, da série Dragoeiro Invertido, 2018.
Três peças em vidro soprado com gravação3 em torno, vitrine em vidro com película e
pedestal em MDF pintado.
60 x 60 x 164 cm

CONJUNTO_3
sem título, da série Dragoeiro Invertido, 2018.
Duas peças em vidro soprado com gravação4 em torno, vitrine em vidro com película
e pedestal em MDF pintado.
60 x 60 x 164 cm

2 A partir da gravura Fuga para o Egipto, c. 1504, Albercht Durer


3 A partir da pintura O Jardim das Delicias Terrenas, c.1503–1515, Hieronymus Bosch.
4 A partir da gravura The Dragon Tree, c. 1745, G. Child a partir de um desenho de autor desconhecido.

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

15
Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

16
Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

17
Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Sem título, da série Frutífera, 2017
Grafite e lápis de cor sobre papel, com montagem em passepartout
45,7 x 61 cm

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Nuno Henrique, Funchal, 1982

Vive e trabalha entre Portugal e Nova Iorque.

Em 2005, licenciou-se em Escultura na FBAUP. Foi assistente de produção da Porta


33, 2008. Frequentou o Projecto Individual na Ar.Co, Lisboa, 2009/10. Em 2016,
concluiu MFA no Pratt Institute, NY.

Das exposições que participou destacam-se, as individuais: Senciente n’O Armário,


Lisboa, 2018; “desconhecem-se picos, encontram-se montes” no Módulo, Lisboa,
2018, Revolvendo pedras e cobras, Módulo, Lisboa, 2017; o livre uso dos elementos,
Museu do Dinheiro, Lisboa, 2016; ЯATƧ, Rooster Gallery, NY, 2015; Flores; Frutos;
Hojas; Savia; Tallo. O Grande Atlas do Mundo, Twin Gallery, Madrid, 2014; O Grande
Atlas do Mundo, Módulo, Lisboa, 2014; As Saudades da Terra, Módulo, Lisboa, 2012;
O velho Dragoeiro que existia na Ponta do Garajau caiu ao mar durante uma chuvada
intensa de sudeste, ocorrida no equinócio de Outono de 1982, Porta 33, Funchal,
2010; Quarenta Calcos, Módulo, Lisboa, 2010.

E as colectivas: Studiolo XXI, Fundação Eugénio Almeida, Évora, 2019, Our


Anthropocene: Eco Crisis, The Center For Book Arts, New York, 2018; Me, Myself and
I, 2º Prémio no IV Certamen de Dibujo Contemporáneo Pilar y Andrés Centenera
Jaraba, Madrid, 2013; Estradas Secundárias com Samuel Silva, Laboratório das
Artes, Guimarães, 2013; Paisagem e Natureza na Arte Contemporâna Portuguesa,
Museu de Évora, Portugal, 2013; Linha de Partida, comissariada por Alexandre Melo,
Casa das Mudas, Calheta, 2009.

Foram-lhe atribuídas as seguintes bolsas: Ar.Co/Porta 33, 2009/10; Jovens Criadores


do CNC, Lisboa, 2011; Fundación Botín, Lothar Baumgarten Workshop, Santander,
2012; FCG/FLAD residência artística, Location One, NY, 2012; FCG/MFA no Pratt
Institute, NY, 2014/16.

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Ficha Técnica
Diretor Geral – Jorge Oliveira
Curadoria – Maria de Fátima Lambert
Relações Públicas – Cláudia Oliveira
Produção e Montagem – Leonel Morais

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Promotor:

Apoios:

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