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Fernando Marques de Oliveira: Ostinato Rigore1 – lines on plain landscape

Maria de Fátima Lambert

1. A foogy day in London Town et allie

“…I viewed the morning with alarm


The British museum had lost its charm
How long, I wondered, could this thing last?...” 2

Os desenhos pintados de Fernando Marques de Oliveira que dialogam em Ostinato


Rigore – lines on plain landscape, regem-se por uma exatidão de traço, linha e cor. Nada está
além do que fosse necessário ser presença nas composições. O equilíbrio entre o
representativo e o geométrico abstrato é uma evidência. Cada um dos desenhos potencia
leituras iconográficas e divagações semânticas que cada espetador pode desenvolver de
acordo com as suas circunstâncias. Curiosamente, a marca identitária do artista é de uma
razoabilidade tal que a polissemia é mais uma ordem nítida desse rigor obstinado na
composição. O olhar presidido pelo pensamento arquitetural alia-se a uma perspetiva concisa
nos desenhos, alguns sendo povoado mais diretamente por tópicos paisagísticos e/ou figurais.
A ideia de habitar impõe-se, ainda que possa apenas indiciar a passagem num local
que se poderia entender como um museu. Um museu sem as consignações organizacionais
que o legitimam como um equipamento cultural. Um museu que pode ser a casa do artista, ou
o seu ateliê ou a fachada de casas que fluem ao passear numa rua de uma cidade inominada.

1 …Que me quereis,/Se me não dais/ O que é tão meu? “Rigor obstinado”, parafraseando o título do livro de Eugénio
de Andrade, Lisboa, Guimarães Editores, 1964.
2 Título da canção composta por George Gerhswin em 1937 para o musical Damsel in Distress, e popularizada na

versão de Ella Fitzgerald.


O desenho que intitula esta seção é uma das sínteses possíveis para explanar
reflexões: a da obra reúne três perceções da experiência pensada, concatenadas entre si, num
tríptico atual e, paralelamente, também plausível em diferentes décadas do séc. XX. Evoca:
uma acuidade histórica onde linhas mais estuais se fecham numa forma arcaica; um centro de
paisagem de fragmentos de nuvens que convoca Jogo de Nuvens de Goethe e a lembrança de
Michael Biberstein; uma forma quadrangular distorcida como cabe à ação singular sobre a
geometria.

A ordem do pensamento visual exerce sobre as coisas como no fluir cinematográfico,


lembrando-nos os cenários privilegiados pelo protagonismo de Jacques Tati. Fernando
Marques de Oliveira brinda-nos com essas viagens familiares por um universo coletivo,
apreendido por gerações sucessivas, onde tudo afinal persiste e muda. Se caminharmos ao
longo da linha que os desenhos instituem, organizam-se prioritariamente dois caminhos.
Aquele que corre ao longo da superfície dos desenhos à parede e aquele que estará –
magicamente – dentro e por detrás dos desenhos. Pela capacidade da imaginação encontra-se
a poética do espaço ficcional e impossível, residindo dentro dos desenhos. Imaginam-se os
interiores das fachadas, casas e museus dentro de casa. As personagens aquietam-se ou foram
congeladas em movimentos intimistas – sem que suspeitassem que o artista os estava a gerar.
Evocando frases de Lawrence Ferlinghetti – que o artista transcreve num dos
desenhos, olhem-se as paisagens povoadas com figuras, paisagem e abstração, um walk the
line, sem que a deriva espreite ou talvez…estes desenhos sejam o destino desse deambular
estético que o século XX tanto celebrou para colmatar as imposições dos conflitos e da
opressão.
“A poem is a mirror walking down a street full of visual delight. /…
Poetry is the sun streaming down in the meshes of morning. /…
Poetry is the street talk of angels and devils. /…
Poetry is the anarchy of the senses making sense. /…
Poetry is all things born with wings that sing. /…
Poetry is what exists between the lines.
Poetry is made with the syllables of dreams.”3

Fernando Marques de Oliveira deixa o “poema viver-se” na sedução dos episódios que
partilha nos 12 desenhos, aos quais adicionou 2 telas. Estas, em “modo quase subversivo”,
surgem de um processo de pensamento por “extração iconográfica”. Ou seja, as telas
desenvolvem motivos autónomos, pois corporalizam em pintura duas formas desenhadas que
correspondem às tábuas laterais do desenho A foogy day in London Town. Em todos os
desenhos, salvaguardando as suas especificidades representativas, à ideia de planificação de
imagem sem espessura associa-se a noção compósita de tópicos visuais de natureza diferente.
São assemblages da maior exigência, apenas plasmando o essencial, num equilíbrio tremendo
entre o grafismo e a pintura incorporada. Em algumas destas composições assinala-se a
circunscrição de imagens dentro da imagem do desenho como todo. Essas imagens “internas”
são detalhes e lembranças do vocabulário visual do artista, trabalhadas em diferentes séries ao
longo da sua atividade. Nesta perspetiva, para além de se recuperar a ideia de “fundação” da
memória pessoal, mais do que de gabinete de curiosidades. Será um arquivo de imagens,
constituído por aquelas que concebe e outros elementos de que Fernando Marques de
Oliveira se apossa. Essas conversas como que fluem entre os desenhos para coincidirem em Le
flâneur des deux rives [tomado de Guillaume Apollinaire], onde os postais da mente do artista
português organizam um festim para o olhar que imagina os ruídos e os sons: as casas, as
nuvens, o barco que sobressai da linha do horizonte, as ânforas glosam requintes com
morfologias orgânicas e geométrico-abstratas.

2. É o mito do eterno retorno, como preveniu Octavio Paz.

Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que
nunca, se sofre a própria grandeza.

3Lawrence Ferlinghetti, “What is poetry?” excerto do texto publicado online pelo poeta a 16 janeiro de 2000 in
https://www.sfgate.com/politics/article/What-Is-Poetry-2810665.php
[Fernando Pessoa, “Morre jovem o que os Deuses amam”]
Não ouço mais do que a estrutura oculta
desta música, e outras eras e lugares
acorrem pressurosos
[Jorge de Sena, “Arte da Música”]

Estou a ouvir Glenn Gould a interpretar as Variações Goldberg num registo que
demora 39’19. E a pensar como para um pianista é compulsivo tocar.
É um exercício ouvir sem ver imagem, quando as imagens me seduzem por demais e admiro a
capacidade de enxergar detalhes mínimos. Cada nota se expande e persiste, distintamente
uma e decidindo qual a sua duração sozinha, antes de instigar as seguintes.
Como pode o pianista entoar sons, assim, acompanhado de todo o seu corpo, mãos e seu
pensamento sobre as teclas? Como lhe doem as mãos quando esteja impedido de tocar. Como
um pianista é humano e usa o corpo todo como performer. Como o corpo do pianista está
convocado e sentirá as contraturas e estremecerá a sua cabeça ao tempo que entoa e toca,
mergulhado no seu afazer - que o afasta e entranha mais em si mesmo, tornando-se outrem.
As insinuações manifestas por Glenn Gould preenchem o imaginário de quem ausculta
a definição de artista/autor advinda do Romantismo, estimulado ainda que por orientações
antagónicas, em diferentes estéticas do séc. XX. Precisam manter-se como deuses que morrem
cedo e os deuses presentearam, extrapolando a partir de Fernando Pessoa4 refletindo a
propósito de Mário de Sá-Carneiro.
A notação, se olhada como peça visual, não subsiste sem a razão verbico-sonora dos
completos entendimentos, que apenas podem ser descodificados por quem domina a leitura
de linguagens específicas. Olhando a página de uma partitura de Bach – no caso as variações
Goldberg – a perceção visual retém já essa vibração iconográfica, de intempérie estoica, e que
de forma obstinada um músico de excelência obtém. A interpretação (performance), o
desempenho atingido por um bailarino, músico ou ator rege-se por códigos, adesões estéticas,
fruto de decisões ponderadas [e concisas] sobre “como fazer” – equilibrando-se entre o

4 Ver Fernando Pessoa, Textos de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Ática, 1980, p. 149.
ímpeto racional e a fidelidade subjetivada ao autor. Em tempos diferentes, em contextos
vivenciais efetivos, o modo de aproximação e posse da partitura - como registo - possui algo de
transversal e recorrente, garante de reconhecimento não apenas interpares e – desde que os
leigos saibam ouvir.

No ato de escuta – que é um ato silencioso – o desenrolar de certos fragmentos


frásicos, sucessões e/ou ordens, por estímulo, alguns fruidores podem desenvolver cinestesias
ou convocar insights. As frases musicais permitem a ondulação de formas, linhas, traços –
isentos de cor ou policromos. Uma das formas geométricas que melhor visibiliza Bach baseia-
se no círculo que pode ser esvaziado ou preenchido, por empastamento cromático espesso,
talvez estruturado a partir de linhas mentais que unem os instantes. Os fios, traçados sobre
cada uma das imagens fotográficas, sendo quase impercetíveis, unem a incessante exigência
de Fernando Marques de Oliveira que, com precisão científica, é capaz de aliar quer disciplinas
artísticas concomitantes e díspares, quer alusões poéticas justas. Donde as formas geométricas
precisarem pela delimitação e contorno a evanescência de tonalidade saltitantes de Bach. O
pintor aquieta-as e pede-lhes lentidão. Que se demorem o suficiente para mastigar o tempo
sem autofagia.
O tempo mítico é circular, o dos humanos é linear, sempre em frente ainda que
recheado de sinuosidades, quebras, reinícios e dissidências maniqueístas consigo mesmo.
Entre Kronos e Kairós. Como o tempo se subverte nas sucessivas repetições sempre que,
durante o estudo das peças musicais, o pianista não se contenta com as sonoridades invisíveis
ou as medições osciladas pela nuca, pelo braço, pelo torso, por todo o corpo afora. É causa e
consequência de tocar, lembrando que tocar é um dos sentidos preteridos perante a
supremacia da visão e da audição…Todavia tocar, supõe a intimidade e a ousadia de firmar
visões insistentes, acompanhando as mutações, as reverberações e os ecos internos que se
atingem [ou não]… Noli me tangere.
O pianista canadiano começou a gravar o início das Variações Goldberg (as variações
para o Sr. Goldberg…) em junho de 1955.
“…e se tudo existiu na música para que tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido – COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (…)
Quando, no fim,
aquele tema torna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção…”5

Agora estou a ouvir “outras” Variações Goldberg gravadas por Glenn Gould em 1981.
Ora são algo mais lento, ora se apressam.
Cada nota persiste como um movimento desenhado e preso no espaço. Ou suspende-se,
interrompe-se mas continua, diferente na mesmidade, salvaguardadas a duração e a
desistência. Se acreditasse com persistência, atingiria a plataforma que W. Kandinsky
estabeleceu quanto à atribuição de correspondência entre as cores e os sentimentos, ao se
acrescentam as frases musicais. Ou, retrocedendo mais ainda, evocar-se-ia a ambição de
Poussin ao pretender transpor os modus da composição musical grega, para sequências
pictóricas ajustadas, que expressassem temas e fossem detentoras de uma semântica
consolidada.

Cada nota ecoa e demora a deixar chegar a próxima sequência. Como se o tempo
perdurasse mais, se o tempo fosse demorado em cada tecla acionada, em cada
desenvolvimento controlado do corpo da bailarina, como se fosse possível domesticar o
tempo. Como se o gesto de uma secção do corpo dançante pudesse ser dominado a partir da
consciência das entranhas e respondesse a apelos de solidão – mesmo quando acompanhado

5 Jorge de Sena, “Bach: Variações Goldberg”, Arte da Música, Lisboa, Moraes Ed., 1968, pp. 19-20
e não se acomode a estar sozinho. Esse é o círculo de uma dosagem de notas, de frases, de
posturas, de gestos, de finas motricidades quase mínimas, que se agarram e como que se
aniquilassem, espécie de Ouroborus desenhado no congelamento das imagens internas e
consecutivas. É o círculo, são os círculos de dimensões e cores diferentes que anunciam uma
espécie de epifania.
Um dos grandes poetas do séc. XX, Jorge de Sena, dedicou às Variações Golderg um do
poema, publicados no volume Arte de Música6. Segundo Teresa Tomás Ferreira, poeta Jorge de
Sena teria assistido às Variações Golderg no “Concerto em Madison, Wisconsin, interpretado
por Rosalyn Tureck. Durante a composição do poema, Jorge de Sena teria ouvido”, não alguma
das gravações de Glenn Gould, mas “a interpretação de Peter Serkin (Victor Records)". 7
Eis algumas das “afinidades eletivas” a identificar entre Glenn Gould [um dos pianistas
abordados no livro O Naufrago de Thomas Bernhard (1980)] e as imagens fotográficas do
pianista canadiano, em pleno momento interpretativo, que Fernando Marques de Oliveira
escolheu e intervencionou. As 20 imagens repetidas, de tanto o serem, registam a flânerie dos
[sempre] movimentos suspensos do pianista que são uma alegoria da intimidade psicoafectiva,
partilhada com a humanidade. O artista sabe tecer-lhes a unidade, reconstruindo sonoridades
inaudíveis que cada espetador extrairá da sua idealização, usufruindo de impulsos subtis e
lúcidos.
Maria de Fátima Lambert

6Jorge de Sena, Arte da Música, Lisboa, Moraes Ed., 1964


7Teresa Isabel de Oliveira Figueiredo Tomás Ferreira, A Transfiguração Poética em Arte de Música de Jorge de
Sena (dissertação de Mestrado), Porto, Universidade do Porto – FLUP, 2002, p.76

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