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1 …Que me quereis,/Se me não dais/ O que é tão meu? “Rigor obstinado”, parafraseando o título do livro de Eugénio
de Andrade, Lisboa, Guimarães Editores, 1964.
2 Título da canção composta por George Gerhswin em 1937 para o musical Damsel in Distress, e popularizada na
Fernando Marques de Oliveira deixa o “poema viver-se” na sedução dos episódios que
partilha nos 12 desenhos, aos quais adicionou 2 telas. Estas, em “modo quase subversivo”,
surgem de um processo de pensamento por “extração iconográfica”. Ou seja, as telas
desenvolvem motivos autónomos, pois corporalizam em pintura duas formas desenhadas que
correspondem às tábuas laterais do desenho A foogy day in London Town. Em todos os
desenhos, salvaguardando as suas especificidades representativas, à ideia de planificação de
imagem sem espessura associa-se a noção compósita de tópicos visuais de natureza diferente.
São assemblages da maior exigência, apenas plasmando o essencial, num equilíbrio tremendo
entre o grafismo e a pintura incorporada. Em algumas destas composições assinala-se a
circunscrição de imagens dentro da imagem do desenho como todo. Essas imagens “internas”
são detalhes e lembranças do vocabulário visual do artista, trabalhadas em diferentes séries ao
longo da sua atividade. Nesta perspetiva, para além de se recuperar a ideia de “fundação” da
memória pessoal, mais do que de gabinete de curiosidades. Será um arquivo de imagens,
constituído por aquelas que concebe e outros elementos de que Fernando Marques de
Oliveira se apossa. Essas conversas como que fluem entre os desenhos para coincidirem em Le
flâneur des deux rives [tomado de Guillaume Apollinaire], onde os postais da mente do artista
português organizam um festim para o olhar que imagina os ruídos e os sons: as casas, as
nuvens, o barco que sobressai da linha do horizonte, as ânforas glosam requintes com
morfologias orgânicas e geométrico-abstratas.
Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que
nunca, se sofre a própria grandeza.
3Lawrence Ferlinghetti, “What is poetry?” excerto do texto publicado online pelo poeta a 16 janeiro de 2000 in
https://www.sfgate.com/politics/article/What-Is-Poetry-2810665.php
[Fernando Pessoa, “Morre jovem o que os Deuses amam”]
Não ouço mais do que a estrutura oculta
desta música, e outras eras e lugares
acorrem pressurosos
[Jorge de Sena, “Arte da Música”]
Estou a ouvir Glenn Gould a interpretar as Variações Goldberg num registo que
demora 39’19. E a pensar como para um pianista é compulsivo tocar.
É um exercício ouvir sem ver imagem, quando as imagens me seduzem por demais e admiro a
capacidade de enxergar detalhes mínimos. Cada nota se expande e persiste, distintamente
uma e decidindo qual a sua duração sozinha, antes de instigar as seguintes.
Como pode o pianista entoar sons, assim, acompanhado de todo o seu corpo, mãos e seu
pensamento sobre as teclas? Como lhe doem as mãos quando esteja impedido de tocar. Como
um pianista é humano e usa o corpo todo como performer. Como o corpo do pianista está
convocado e sentirá as contraturas e estremecerá a sua cabeça ao tempo que entoa e toca,
mergulhado no seu afazer - que o afasta e entranha mais em si mesmo, tornando-se outrem.
As insinuações manifestas por Glenn Gould preenchem o imaginário de quem ausculta
a definição de artista/autor advinda do Romantismo, estimulado ainda que por orientações
antagónicas, em diferentes estéticas do séc. XX. Precisam manter-se como deuses que morrem
cedo e os deuses presentearam, extrapolando a partir de Fernando Pessoa4 refletindo a
propósito de Mário de Sá-Carneiro.
A notação, se olhada como peça visual, não subsiste sem a razão verbico-sonora dos
completos entendimentos, que apenas podem ser descodificados por quem domina a leitura
de linguagens específicas. Olhando a página de uma partitura de Bach – no caso as variações
Goldberg – a perceção visual retém já essa vibração iconográfica, de intempérie estoica, e que
de forma obstinada um músico de excelência obtém. A interpretação (performance), o
desempenho atingido por um bailarino, músico ou ator rege-se por códigos, adesões estéticas,
fruto de decisões ponderadas [e concisas] sobre “como fazer” – equilibrando-se entre o
4 Ver Fernando Pessoa, Textos de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Ática, 1980, p. 149.
ímpeto racional e a fidelidade subjetivada ao autor. Em tempos diferentes, em contextos
vivenciais efetivos, o modo de aproximação e posse da partitura - como registo - possui algo de
transversal e recorrente, garante de reconhecimento não apenas interpares e – desde que os
leigos saibam ouvir.
Agora estou a ouvir “outras” Variações Goldberg gravadas por Glenn Gould em 1981.
Ora são algo mais lento, ora se apressam.
Cada nota persiste como um movimento desenhado e preso no espaço. Ou suspende-se,
interrompe-se mas continua, diferente na mesmidade, salvaguardadas a duração e a
desistência. Se acreditasse com persistência, atingiria a plataforma que W. Kandinsky
estabeleceu quanto à atribuição de correspondência entre as cores e os sentimentos, ao se
acrescentam as frases musicais. Ou, retrocedendo mais ainda, evocar-se-ia a ambição de
Poussin ao pretender transpor os modus da composição musical grega, para sequências
pictóricas ajustadas, que expressassem temas e fossem detentoras de uma semântica
consolidada.
Cada nota ecoa e demora a deixar chegar a próxima sequência. Como se o tempo
perdurasse mais, se o tempo fosse demorado em cada tecla acionada, em cada
desenvolvimento controlado do corpo da bailarina, como se fosse possível domesticar o
tempo. Como se o gesto de uma secção do corpo dançante pudesse ser dominado a partir da
consciência das entranhas e respondesse a apelos de solidão – mesmo quando acompanhado
5 Jorge de Sena, “Bach: Variações Goldberg”, Arte da Música, Lisboa, Moraes Ed., 1968, pp. 19-20
e não se acomode a estar sozinho. Esse é o círculo de uma dosagem de notas, de frases, de
posturas, de gestos, de finas motricidades quase mínimas, que se agarram e como que se
aniquilassem, espécie de Ouroborus desenhado no congelamento das imagens internas e
consecutivas. É o círculo, são os círculos de dimensões e cores diferentes que anunciam uma
espécie de epifania.
Um dos grandes poetas do séc. XX, Jorge de Sena, dedicou às Variações Golderg um do
poema, publicados no volume Arte de Música6. Segundo Teresa Tomás Ferreira, poeta Jorge de
Sena teria assistido às Variações Golderg no “Concerto em Madison, Wisconsin, interpretado
por Rosalyn Tureck. Durante a composição do poema, Jorge de Sena teria ouvido”, não alguma
das gravações de Glenn Gould, mas “a interpretação de Peter Serkin (Victor Records)". 7
Eis algumas das “afinidades eletivas” a identificar entre Glenn Gould [um dos pianistas
abordados no livro O Naufrago de Thomas Bernhard (1980)] e as imagens fotográficas do
pianista canadiano, em pleno momento interpretativo, que Fernando Marques de Oliveira
escolheu e intervencionou. As 20 imagens repetidas, de tanto o serem, registam a flânerie dos
[sempre] movimentos suspensos do pianista que são uma alegoria da intimidade psicoafectiva,
partilhada com a humanidade. O artista sabe tecer-lhes a unidade, reconstruindo sonoridades
inaudíveis que cada espetador extrairá da sua idealização, usufruindo de impulsos subtis e
lúcidos.
Maria de Fátima Lambert