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E N T R E V IS T A

“O estresse provoca muito ruído


cerebral e afeta capacidades como a
memória”
Raquel Garzón

MARIANA ELIANO

30 JAN 2018 - 17:54 CET

O prestigiado neurocientista Tomás Ortiz Alonso,


especialista em educação, dedicou boa parte de sua
vida a decifrar os mistérios do cérebro. Nos
próximos 30 anos, acredita, a ciência enfim terá
certezas sobre o modo como funciona
“ QUARENTA ANOS ”, responde com um entusiasmo eterno e
como se falasse de dias Tomás Ortiz Alonso , médico e
psicólogo , quando lhe perguntam há quanto tempo o cérebro
é sua grande paixão . Nascido em Guadalajara há 67 anos e
catedrático de Psicologia Médica na Universidade
Complutense de Madri , é um especialista de prestígio
internacional que desenvolve programas neuroeducacionais
em crianças para “ ativar os mecanismos cerebrais que
processam a informação e que permitem construir
autopistas neuronais de aprendizagem ”. Soa complexo , mas
Ortiz Alonso explica sem perder o sorriso com uma imagem
que , além de simples , é radiante ; “ A diferença entre um
cérebro que se exercita na escola de forma ordenada ,
regular e sustentável e outro que não o faz é a mesma que
existe entre uma árvore vista no outono e na primavera ”.

Divorciado e pai de três filhos (“ uma é neurorradiologista em


Harvard ; outra , especialista em neuroeconomia , e o outro ,
advogado que se prepara para ser juiz ”), Ortiz Alonso dirige
também a coleção Neurociência e Psicologia que o EL PAÍS
começou a publicar no domingo , em espanhol . Quarenta
títulos sobre as descobertas mais recentes que exploram as
relações entre o cérebro e o entorno , os processos cognitivos
e emocionais e a conduta humana . Uma prévia dessa
compilação é este diálogo , mantido ao meio - dia de uma
quinta - feira em Buenos Aires , onde está desenvolvendo o
Visão Tátil , um projeto digno de um escritor de ficção -
científica , mas com efeitos muito reais : tecnologia
mediadora , o programa permite que crianças cegas de
nascimento possam “ ler a meio metro ” graças a um sistema
que capta informação visual e a traduz em impulsos táteis .
MARIANA ELIANO

Quando e por que o cérebro começou a interessá - lo ?


Estudava Psicologia , mas era fascinado por saber como
pensamos , quais são nossas emoções e como isso se reflete
no cérebro . Os conhecimentos das teorias psicológicas não
chegavam a responder a essas perguntas . Por isso fiz
também Medicina .

Se tivesse que traçar um mapa do mais importante que


aprendemos sobre o cérebro nessas décadas , o que diria ?

Antes uma pessoa sofria um acidente , perdia a fala e


deduzíamos que isso poderia se relacionar com a zona
cerebral onde se produzira a lesão . Esse conhecimento era
indireto . Agora temos informação direta e em tempo real
enquanto o cérebro realiza uma função . Esse foi o grande
salto . Estamos conversando e poderíamos ver quais são as
áreas ativadas enquanto escutamos ou falamos , mediante
uma série de técnicas de registro . A ressonância magnética ,
por exemplo , permite ver qual é o metabolismo dos
neurônios quando realizam uma função . Com mais
metabolismo se supõe que haja mais atividade e isso se
correlaciona diretamente com as funções que são
executadas .

“A diferença entre um cérebro que se


“A diferença entre um cérebro que se
exercita na escola de forma ordenada e
outro que não o faz é a mesma que existe
entre uma árvore vista no outono e na
primavera”

No imaginário cultural o cérebro parece ter substituído o


coração , de onde se supunha provinham as virtudes e
fraquezas . Hoje , a neurobiologia e o inconsciente
explicam tudo . O que há de mito e o que há de realidade ?

Ao longo da história , às vezes se transmite um erro científico


porque quem o difundiu inicialmente foi uma grande pessoa .
Aqui o erro provém da filosofia de Aristóteles . Ele acreditava
que as funções cognitivas que nos permitem receber ,
selecionar , armazenar , elaborar e recuperar informação do
meio estavam no coração . Esse erro explica que uma pessoa
diga : “ Te amo com todo o meu coração ”. Se for assim , não o
ama nada e não é curioso que haja tantos divórcios [ ri ].
Acontece na cabeça . O coração não tem nenhum sentimento :
é um mero receptor de um estímulo cerebral , associado a
uma emoção . Hoje se conhecem até áreas cerebrais mais
envolvidas em uma função emotiva que em uma cognitiva .
Mas parece que dizer a uma garota “ te amo com todo o meu
hipotálamo ” não adianta .

Suas pesquisas ressaltam a necessidade de exercitar o


cérebro das crianças de modo ordenado e sistemático
como fator - chave para melhorar a aprendizagem . Que
lugar ocupa o ócio nesse modelo ?
MARIANA ELIANO
O ócio é uma construção cultural . O cérebro não o entende :
sempre está fazendo algo . Até no tempo que chamamos de
“ livre ”, lemos ou caminhamos ou nos exercitamos ... Trabalha
também durante o sono : há uma parte , o tronco , que tem de
funcionar para se poder respirar . Está provado que se o
estimulamos ordenada e sistematicamente e o fazemos
todos os dias com coisas simples ( exercícios de equilíbrio e
de atenção , por exemplo ), a neuroplasticidade é maior ; são
gerados novos neurônios em uma estrutura que se chama
hipocampo , associada à memória . E essas nova conexões se
tornam estáveis , que é o que se requer para aprender . Pelo
contrário , quando não o treinamos nos custa retomar o
ritmo , como acontece toda segunda - feira .

Deixe - me defender o descanso . Um ensaio recente , 24/7:


Capitalismo Tardio e os Fins do Sono , de Jonathan Crary ,
denuncia que o capitalismo atual , em sua tentativa de
extrair rentabilidade de tudo , vai até atrás de nossas horas
de sono . Como dormir pouco afeta a produtividade ?

Tem efeitos nocivos e é um negócio muito ruim . Precisamos


de cinco ciclos de sono e cada um dura entre 90 e 120
minutos . O ideal é dormir de 7 a 9 horas . Menos perturba a
memória . Em uma criança faz com que não fique atenta ; em
um adulto afeta sua concentração e , em consequência , sua
eficácia . Nesses termos , talvez possamos concordar que o
sono seja o ócio de que o cérebro necessita para poder
trabalhar depois a todo o ritmo e recuperar a informação que
adquiriu durante o dia . Crianças que descansam bem têm
um bom desenvolvimento maturacional . E , pelo contrário , os
pequenos que dormem mal sofrem de déficit de atenção .

“O estresse provoca ‘ruído’ e impede o


desenvolvimento de capacidades como
memória, atenção e codificação. Inibe a
memória, atenção e codificação. Inibe a
plasticidade cerebral. É uma doença
silenciosa”

A neuroplasticidade varia com a idade ?

A plasticidade é a capacidade que o cérebro tem de


aumentar as conexões neuronais como consequência da
estimulação ambiental . Com mais estímulos , mais
plasticidade . Tem duas fases . A primeira é escorregadia ,
pouco estável e nada útil . Para que seja útil precisamos
repetir as coisas . Em outras palavras : podemos escutar 20
idiomas , mas útil é o que praticamos todos os dias . Existem
janelas temporais durante as quais a plasticidade temporal é
favorecida . As associadas à idade são chamadas “ tempos
críticos ”. Há períodos na infância em que qualquer estímulo
gera plasticidade neuronal estável . Supõe - se que você pode
ser bilíngue se aprender os dois idiomas antes dos sete anos
porque a sua plasticidade é tão grande que permite até
desenvolver as entonações com as quais um nativo fala . O
bilinguismo aumenta a capacidade cerebral ao incrementar
a atividade do hemisfério direito . E isso é importante porque
um cérebro multilíngue responde melhor a diversos
estímulos em diferentes situações .

A motivação pode compensar a dificuldade de uma


aprendizagem fora do tempo ?

MAIS INFORMAÇÕES
As lesões cerebrais dos piores criminosos

É possível regenerar os neurônios: cinco hábitos que podem ajudar

Assim seu cérebro decide quais lembranças guarda ou elimina durante o sono

A psicologia incide nisso . Há uma plasticidade neuronal


muito rápida associada a interesses e motivações . Uma
pessoa pode aprender a falar rapidamente um idioma se
disso dependerem seus filhos , sua vida , seu trabalho . Essa
motivação é suficientemente alta para aprender qualquer
coisa em qualquer idade . As pessoas que gostam de futebol ,
por exemplo , sabem dizer de imediato os nomes dos
jogadores de sua equipe e a história de seus gols em detalhe .
Os interesses básicos aceleram muito os processos de
aprendizagem e de plasticidade cerebral .

E a exigência excessiva ? O estresse afeta nossas


habilidades intelectuais ?

Provoca muito ruído cerebral . Imagine que você esteja em


uma festa e tenta falar com um amigo , mas há tanto barulho
que você nem sequer o escuta . O estresse impede o
desenvolvimento de capacidades . Inibe a plasticidade
cerebral . É uma doença silenciosa : faz aumentar uma
substância chamada cortisol que afeta os receptores do
hipocampo , que já não conseguem desenvolver sua
capacidade de memória , atenção e codificação de coisas
novas . Como você o elimina ? Em situações de relaxamento
em que você esteja isolado fisicamente do ruído visual ,
auditivo , tátil . Ocorre também com a depressão ou com um
transtorno obsessivo compulsivo : são ruídos cognitivos ,
psicológicos , emocionais . Um pensamento que está
constantemente se introduzindo no que você faz , distorce e
te impede de atuar com qualidade .

Em suas conferências o senhor destaca o papel da


brincadeira . Os adultos brincam pouco ?

Dizia Ramón e Cajal em 1923 que “ a brincadeira é uma


preparação necessária para a vida ”, que imprime um selo , ao
mesmo tempo intelectual e moral . Nele intervêm fatores
motivacionais , de novidade , de interação de uns com outros ,
de competitividade , que contribuem para o desenvolvimento
em uma época de grande neuroplasticidade . Com mais
novidade , o cérebro capta informações com mais velocidade
e as arquiva muito melhor . A pergunta é por que os adultos
não continuam brincando . Perdemos essa capacidade ? É
uma grande pergunta e acontece em todas as culturas . Antes
da Revolução Industrial , o aluno aprendia de uma forma
prática e utilizava mais a brincadeira do que nós . Ou seja , o
pintor ensinava pintando . Isso contribuía para desenvolver
mais a brincadeira ao longo da vida . Em nossa sociedade , a
memória e o conhecimento estão associados aos sistemas
educacionais . Com brincadeiras se levaria mais tempo e hoje
a rapidez é um valor .

Como relaciona a necessidade de repetir para aprender


com o conceito de destaque nesta época : a criatividade ?
Há muitas teorias . Acredito que a melhor piada em uma
conferência é a que você ensaiou muitas vezes . O cérebro
não imagina coisas do nada . Criativo é quem a partir de uma
sistematização de informações desenvolve algo diferente .
Mas a partir de uma estrutura muito bem documentada .
Houve casos em que a ideia chegou em estado de repouso ,
sem nenhum tipo de estímulo . Alguém vinha buscando uma
resposta que surge de repente ; mas antes desse momento
houve muito trabalho estrutural , ordenado e sistematizado .
Não foi espontâneo .

Distintos best - sellers promovem a “ inteligência


emocional ”, associada à possibilidade de comandar com
êxito o sensitivo . Qual a sua opinião sobre isso ?

É um enfoque mais psicológico , mas sou crítico . Pela


neurociência é pouco consistente . As respostas emocionais
antecedem qualquer processo cognitivo , com o qual seria
difícil modificá - las . Se você vê uma aranha , em seguida se
afasta . Se você começa a pensar que é uma aranha , ela te
pica . Depois , sim , viria uma resposta cognitiva : “ era uma
aranha ”. Poderia se falar de uma terapia para identificar a
aranha . Mas o que não sabemos é como , ao identificá - la , a
sua resposta seria não se afastar .

Então , somos escravos de nossas emoções ?

Muito . A neurociência se aproxima mais do conhecimento de


como se produzem as emoções do que de terapias
específicas . Isso não quer dizer que não possamos usar esse
conhecimento científico para tentar algumas coisas ...

Conte - me .
Se é verdade que a resposta emocional é imediata e , ao
mesmo tempo , que para ter uma plasticidade cerebral
eficiente são necessários muitos estímulos ordenados e ao
longo do dia e todos os dias , é muito difícil fazer uma terapia .
Mas há uma técnica com a qual se consegue essa resposta : o
sorriso . O sorriso é um processo emocional positivo que a
criança adquire a partir do sorriso da mãe e que permanece
ao longo de sua vida . Por isso colocamos imagens de sorrisos
nas salas de aula . De tal forma que , tão logo levantem a
cabeça quando veem o professor , sempre os enxergarão .
Geram automaticamente uma resposta positiva , distinta da
que você obteria junto de pessoas tristes ou agressivas .

Causa empatia no mundo corporativo ? As pessoas felizes


produzem mais e melhor ?

Sim . Porque o conhecimento seguinte que nos proporciona a


neurociência é que as situações têm uma representatividade
no corpo . Há um dito em latim : “ Mens sana in corpore sano ”.
Acredito que seja o contrário . À medida que você se encontra
bem fisicamente são produzidos estímulos que beneficiam a
saúde da sua mente . Isso seria o que a neurociência traz : ir
do simples ao complexo . Sabemos , por exemplo , que se
alguém não está bem hidratado , sua atenção diminui .
Hidratar - se cinco minutos antes de uma aula não custa nada
e rende muito . Se você tem o corpo saudável , recebe sorrisos
e trabalha em um ambiente agradável , sem frio nem calor
nem ódio nem agressão , o seu cérebro funciona melhor que
em um lugar onde sente hostilidade ambiental , emocional ou
de qualquer outro tipo .

Entender mais a química cerebral produziu a sensação de


que existe um comprimido para resolver qualquer déficit .
Quais são os riscos desse olhar ?
Os fármacos servem para regular substâncias que o cérebro
não tem ou perdeu , e que são necessárias . Não desenvolvem
uma função , permitem que você possa realizá - las . Ataca - se
um aspecto do problema , mas não se resolve a parte psíquica
que requer terapias para recuperar as funções . A ajuda
farmacológica diminui o nível do sofrimento , mas se o
problema que o ocasiona subsiste , ali fica . Não há um
remédio que magicamente devolva a memória . Tampouco
comprimidos da felicidade .

Sua presença na Argentina se relaciona com alguma


pesquisa ?

Trabalho em um programa que venho desenvolvendo na


Espanha há 20 anos e que pretendemos aprofundar aqui
com um acordo com a Secretaria da Infância , Adolescência e
Família . Chama - se Visão Tátil e consiste em conseguir que
crianças cegas de nascimento possam ler à distância .

Como ?

Mediante una microcâmera que a criança usa em óculos


parecidos aos de 3D . O sistema capta a informação visual a
meio metro , uma letra , por exemplo , e a transmite através de
bluetooth a um dispositivo que gera impulsos táteis que ele
percebe na mão , onde aparece globalmente a letra em
milissegundos . Essa espécie de “ imagem ” tátil da letra é
transmitida ao cérebro , que a reconhece como tal . É um
processo de aprendizagem . Fizemos pesquisas em adultos ,
mas o avanço é mais lento .

A tecnologia pressagia outra vedete : a inteligência


artificial . Confesso que sinto certa rejeição : faz pensar em
Victor Frankenstein tentando criar uma criatura à sua
imagem e semelhança .

Não sou especialista em inteligência artificial e , embora


entenda sua repulsa , acredito que no campo da neurociência
os robôs ou programas específicos nos ajudarão a melhorar
muitíssimo cérebros que estejam com lesões . Poderemos
atuar sobre a capacidade de reestruturação desses cérebros
ou com desenvolvimentos associados à memória , de forma
mais interativa .

O que nos falta conhecer do cérebro que vai mudar tudo ?

Algo muito simples : como funciona . Só temos pistas . O que


desencadeia o autismo , por exemplo ? Não sabemos . Sim , que
há uma área do cérebro autista que em aparência não tem
neurônios espelho , que são as células capazes de perceber a
imagem emocional de outra pessoa . Ou elucidar por que as
pessoas se apaixonam ou deixam de se amar . Sabemos que
quando uma pessoa se apaixona há uma mudança hormonal :
certas áreas límbicas se iluminam e têm uma atividade tão
potente que inibe as áreas perceptivas . O apaixonado muda a
impressão que tem sobre o outro . “ O amor é cego ”, diz o
refrão . Deve ser um mecanismo muito simples que gera
milhares de conexões , atividades e interações , mas ainda
não o conhecemos . A floresta não nos deixa ver o que há por
trás . Avançamos , mas provavelmente necessitemos olhar o
cérebro desde cima , olhar a floresta mais do alto , para
identificar o que há e como se conecta . Nos próximos 30
anos certamente resolveremos o enigma .

Tomás Ortiz Alonso dirige a coleção Neurociência e


Psicologia que começou a ser publicada semanalmente no
jornal EL PAÍS em 28 de janeiro .

ARQUIVADO EM:

Estresse - Neurociência - Sistema nervoso


- Enfermedades cerebrovasculares - Anatomia - Doenças - Medicina
- Biologia - Saúde - Ciências naturais - Ciência

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