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Musicoterapia: Semelhangas e Diferengas na Produgio Musical de Alcoolistas e Esquizofrénicos'" Claudia Regina de Oliveira Zanini” Resumo O presente trabalho resulta de um estudo te6rico-pritico, envol- vendo 0 atendimento de dois grupos de internos em uma institui- do psiquidtrica. Um dos grupos é formado por pacientes com transtornos esquizofrénicos ¢ 0 outro por pacientes dependen- tes qufmicos - alcoolistas, Observa-se aspectos da produgdo musical, fazendo paralelos entre os grupos, quanto a repertério, estrutura ritmica, tonalidades, instrumentos utilizados ¢ outros, além de tecer consideragdes sobre o que o processo musicoterapico péde proporcionar aos pacientes. Introduz-se 0 conceito de Objeto Desintegrador, Cabe ressaltar que nao se pre- tende generalizar essas observagdes, mas sim colocar a disposi- ¢H0, dados que poderdo ser fonte para novas pesquisas. Palavras-chave: Musicoterapia, Satide Mental, Transtornos Esquizofrénicos, Alcoolismo. Abstract ‘The present work results of a theoretical-practical study, involving the service of two groups of interns in a psychiatric institution. One of the groups is formed by patients with schizophrenic upset and the other for chemical dependent patients - alcoholics. It is rabaio evra a pari de Monografia apresentada pela ators, ao Corso de Especalizagio em Musicoterapia- Area de Concentragio: Sade Mental, da Escola de Misicae Artes Cénicas ta Univer. sidade Federal Ge Goiés, em 1999, soba orientagio da Prof Ms. Lis Rejane Mendes Bucellos (CBM/ RJ) e co-orientagao da Prof* Dr Denize Bouttelet Munari (UFG/GO). 4 Mest em Miisica ~ Area de Concentragéo: Misiea na Contemporansidade / EMAC ~ Escola de Misica © Artes Cénicas/UFG - Universidade Federal de Goids, Pro de Musicoteapia di EMAC / UFG. Expecilista em Musicoterapia em Educagio Especisi/UFG. Especialista em Musicoterapia ~ ‘Area de Concentsagdo: Sade Menta/UFG, Graduatia em Piano/UFG, Prof Convidada da UNATI - Universidade Aberta bTerceira Idade / UCG - Universidade Catlice de Goids, Dicetora Cultural da SGMT - Sociedade Goiana de Musicoterapia 97 observed aspects of the musical production, doing parallel between the groups, as for repertoire, rhythmic structures, shades, used instruments and other, besides weaving considerations on which the music therapics process could provide to the patients. The concept of Disintegrating Object is introduced. One must emphasize that one doesn't intend to generalize those observations, but to put to the disposition, data that can be source for new researches. Word-key: Music Therapy, Mental Health, Schizophrenic Upset, Alcoholism. Introdugao Apesar de o pais estar passando por um lento processo de mu- dangas e renovagdes quanio & pratica da psiquiatria, no qual se prioriza oatendimento ambulatorial, a limitag’o do periodo de internagao, a pro- mogao da reintegracao familiar e social do paciente, entre outras ques- tes, pode-se notar que, na realidade, nem sempre acontece a aplicacio destas alternativas no atendimento, havendo uma “certa” distncia en- tte o que se recomenda ou a lei regulamenta e 0 que se faz. Outra consideragio a ser feita neste momento é quanto a existén- cia de pré-conceitos a respeito desse paciente ¢ de um alto grau de preconceito por parte da sociedade, pasando até mesmo por profissio- nais da drea de Satide, Pode-se lembrar de frases como: “Cuidado, quem trabalha com Joucos acaba ficando louco também!” “Aquele ali nao tem jeito, vai para casa € logo volta!”. Considera-se inadmissivel que ainda exista esse tipo de mentalidade, de medos, de descrenga para com o individuo portador de algum transtorno mental. Remetendo-se a varias muisicas que citam a figura do “louco” e do “bébado”, vé-se quanta estigmatizagao existe por trés destas denominagdes dentro de uma sociedade que cada vez mais cultua a perfeigdo da espécie humana. No espaco que foi aberto numa instituigdo Psiquidtrica, por oca- sido do est4gio, no decorrer da Especializagdo em Musicoterapia em Satide Mental, teve-se a oportunidade de formar dois grupos distintos a serem atendidos em Musicoterapia, um constitufdo por pacientes porta- dores de transtornos esquizofrénicos e outro por pacientes dependen- tes quimicos-alcoolistas, predominantemente, 98 Em cada um dos dois grupos péde-se notar a deterioragao fisica proveniente de sua patologia, de seu sofrimento, além de um estado emocional abalado, pois a maioria dos pacientes apresentava sérios pro- blemas familiares. No setting musicoterdpico proporcionou-se, através, da escuta e valorizagdo de qualquer manifestacao verbal ou musical, 0 estabelecimento do vinculo terapéutico, principalmente no grupo de esquizofrénicos, onde houve maior freqiiéncia dos pacientes. Com 0 decorrer do processo musicoterapico, passou-se a obser- var que, na produgdo musical dos dois grupos, havia alguns aspectos bem diferentes e outros semelhantes. O que levaria a esses aspectos na expresso musical destes pacientes? Procurou-se, no decorrer deste es- tudo, fazer descrig6es ¢ observacdes a respeito da produgdo sonora destes dois grupos e consideragdes sobre 0 que 0 processo musicoterdpico péde proporcionar a esses pacientes e/ou modificar no decorrer de um periodo de quatro meses na instituicao, Cabe ressaltar que so evidenciados apenas os dois grupos aten- didos e, portanto, no se pretende generalizar as observacdes, mas sim, colocar & disposigao dos leitores, dados que no futuro poderdo ser am- pliados, a partir de novas pesquisas, estudos e/ou avaliagées. Metodologia O local onde se realizaram os atendimentos musicoterpicos foi um hospital psiquidtrico com duzentos leitos, dos quais cerca de noven- ta por cento era direcionado a pacientes do sistema tinico de satide (SUS). Teve-se, como populagao, pacientes com transtornos mentais ¢ com dependéncia quimica indicados pela equipe profissional multidisciplinar da instituigdo. A amostra foi formada por dois grupos, sendo 0 Gr A, de dependentes quimicos-alcoolistas e 0 Gr B, de porta- dores de transtornos esquizofrénicos. Os grupos eram abertos, devido as altas, permanecendo com seis pacientes, com idade média de trintae ito anos. Realizou-se cerca de trinta sesses com cada grupo, utilizando-se como recursos os instrumentos musicais (percussivos, melédivos e har- ménicos), o corpo, a voz, um gravador, um aparelho de CD e um microfone. A coleta de dados deu-se através de relatérios, gravacées das sess6es (posteriormente transcritas) e algumas filmagens. Para estes re- gistros solicitou-se a permissao dos pacientes. 99 Andlise dos Dados A partir dos dados coletados, foi possivel observar uma série de fatores que serio comentados. Pode-se dizer que houve semelhangas € diferengas na produgao musical dos dois grupos atendidos. Quanto ao ntimero de musicas que surgiram e foram cantadas e registradas no decorrer do perfodo, o Gr B - portadores de transtornos esquizofrénicos - apresentou um ntimero 58% maior que o Gr A - depen- dentes quimicos: alcoolistas. Esta foi uma das diferencas, pois houve mais expresso vocal no Gr B, principalmente no inicio do processo. Jé no Gr A, houve maior necessidade de verbalizagdo, momentos em que os pacientes contavam fatos de suas vidas e, com relagio & expresso mu- sical, uma utilizagio maior do ritmo, através de improvisagdes ritmico- melédicas. Esta maior ou menor utilizagio da voz cantada teria relagaio com a prépria patologia? No Gr A, os problemas sociais decorrentes do alcoolismo, o afastamento sécio-familiar ¢ o preconceito do qual os paci- entes sao vitimas, levam 4 “perda da voz”, entendida como o nao ser ouvido em suas opinides. A consciéncia destes pontos poderia ter rela- ¢4io com essa inibigdo e dificuldade em se expor (“cantar”) inicialmente. Percebeu-se, também, a preocupagiio em “acertar” ¢ o medo dacritica, Jé no Gr B, a maioria dos participantes expressou-se cantando, sem que houvesse autocensura ou constrangimento quanto a performance reali- vada. Quanto ao repertério, no Gr A surgiram misicas religiosas (9,7%), misicas sertanejas e caipiras (39,8%) e misicas populares brasileiras (50,5%), entre varios estilos. No Gr B surgiram misicas populares inter- nacionais (4,1%), musicas infantis e folcloricas (9,5%), muisicas sertane- jas e caipiras (16,3%) e, como maioria MPB (70,1%). Notou-se que no Gr ‘A apareceram muisicas religiosas e, em suas verbalizages, vatios inte- grantes do grupo manifestaram posigdes com relacdo a igreja, aos “peca- dos” que praticavam e ao afastamento dela; alguns se denominaram “desviados”, por terem saido do caminho que é preconizado pela reli- gido. As misicas sertanejas ¢ caipiras apresentaram, geralmente, con- tetidos ligados a sentimentos de perda, seja da mulher amada, do lar, da familia e, também, de outras dificuldades no decorrer da vida. Jd no Gr B, nao surgiram miisicas religiosas. Seria em virtude de nao existir a culpa tao presente no grupo anterior e, também, do fato de o paciente com transtorno esquizofrénico estar mais distante do convivio social? Outra diferenga entre o repertério dos dois grupos foi o aparecimento de miisi- cas infantis no Gr B, geralmente seguidas de movimentagdo corporal. 100 Estas pareceram ter relagdo com 0 estado regressivo, infantilizado, da maioria dos pacientes. Com relacdo ao grande ntimero de misicas populares brasileiras ao aparecimento de miisicas estrangeiras, vé-se a possibilidade de ter relacdio com o fato destes pacientes escutarem muito os meios de comu- nicacio de massa ¢, também, por surgirem através de associagdes¢ iden- lificagdes, trazendo conteridos relacionados 2s vivéncias do grupo. Quan- to Xs mUsicas sertanejas e caipiras, pareceram fazer parte da Identidade Sonora Cultural daqueles que as trouxeram. Quanto A estrutura rftmica das muisicas, 0 Gr A trouxe 77,4% de miisicas com compasso bindrio ou quaterndrio, enquanto o Gr B trouxe 88,4%. Os dois grupos, portanto, foram semelhantes por apresentarem miisicas com compassos binérios ou quaterndrios numa porcentagem bem maior que as de compasso ternario. Para Benenzon (1998), 0 ritmo bindrio tem caracteristicas de previsibilidade, por ser reconhecido nele os primitivos batimentos cardi- acos. Ele afirma: “a repetigao ¢ o reconhecimento das células ritmicas e melddicas so a base do prazer de escutar mifsica”. (p.75) Além destes pontos, deve-se levar em conta a predominancia, na musica brasileira, de estruturas bindrias, por influéncia de nossas rafzes ligadas A cultura afri- cana. Quanto ao modo tonal, observou-se que o Gr A trouxe 89,2% de muisicas em tonalidades maiores, enquanto o Gr B trouxe 82,3%. Esta semelhanga entre 0s grupos, por apresentarem a maioria das misicas em escalas tonais e maiores poderia estar ligada & identidade cultural oci- dental? Richard Norton (apud Jourdain, 1998), musicdlogo, comenta: A tonalidade (tradicional) facilmente se pode creditar toda a miisica popu- Tae dos vihimos dois séeulos - da valsa A misica das bandas, & opereta © 20 hino vitoriano, no século XIX, & miisica americana de bandas, ao ragtime, a0 jazz, blues, swing, rock, country and western, reggae, easy listening 5 (negra e branca), 0 soul eos musicais da Broadway, no séeulo XX. Néo ha nenhuma forma de mdsica popular, no mundo moderno, industrializado, que se situe fora de provincia de consciéncia tonal maciga. (p.161-162) Outra semelhanga foi quanto 4 forma de cantar, pois observou-se que nos dois grupos houve pacientes com dificuldade em aguardar os tempos (pulsagGes) entre as frases, mesmo quando havia um instrumen- to marcando o ritmo. Para Fregtman (1988), na sucesso descontfnua (por exemplo: tema 101 musical — siléncio — tema musical), a mudanga é brusca ¢ o intervalo de tempo adquire grande relevancia, podendo ter cardter expressivo, emotivo ou tenso. Teria a forma citada, de cantar sem aguardar tempos precisos, relacdo com a dificuldade desses pacientes em lidar com a sucessio descontinua e seu carter? Quanto aos instrumentos musicais utilizados, observou-se, como diferenga, que houve maior rodizio entre os pacientes com transtornos esquizofrénicos e menor entre os dependentes quimicos - alcoolistas. Como semelhanga, 0 violdo esteve sempre presente na produgdo musical, sendo tocado por pacientes que pouco ou nada tinham de formagéo musical. Ele funcionou como “Instrumento Guia ou Continente”, auxiliando na condu- ¢do das melodias, dando um certo suporte ao que acontecia nas sessdes musicoterdpicas. HA que se ressaltar a importancia do violdo na cultura musical brasileira, motivando sua freqiiente utilizagao. Outro instrumento muito presente nas sess6es dos dois grupos foi o bumbo. Interessante notar que, ora ele funcionava como Objeto Integrador, descrito por Benenzon (1998), sendo “o instrumento que favorece a integragaio vincu- lar de um determinado grupo” (p.39) ¢, ora, funcionava como Objeto Desintegrador, definido pela autora como “o instrumento musical que se configura como elemento desagregador, desintegrando a produgao musi- cal e, conseqtientemente, desunindo o grupo”. Além dos pontos citados anteriormente, sobre a produgao musi- cal dos dois grupos atendidos, a seguir serio tecidos comentarios a respeito do desenvolvimento do processo musicoterdpico destes. Os dependentes quimicos — alcoolistas, quando ficavam saben- do que teriam alta médica, faziam questio de cantar canges de despedi- da. Um aspecto diferenciado entre os grupos foi a grande rotatividade de pacientes do Gr A e as faltas de alguns, mesmo quando estavam na instituigdo. Isso praticamente n&o acontecia no Gr B, cujos pacientes, com o passar do tempo, chegavam a esperar o in{cio da sesso, perto da sala de musicoterapia. Observou-se que os dois grupos tinham dificuldade para sair da sesso, momento em que era necessério assinalar 0 horério e/ou relembrar 0 contrato terapéutico. Quanto aos recursos utilizados no decorrer das sessées, é impor- tante ressaltar que quando eram feitas gravages, havia consentimento prévio dos participantes do grupo. No final da sesso, geralmente, ouvi- am-se trechos da gravagdo da mesma, a pedido do grupo. Estes momen- tos pareciam dar aos dois grupos uma grande satisfacZo, proporcionan- do a valorizagao de sua propria produgao musical. Até mesmo os pacien- 102 tes menos participativos interessavam-se em reconhecer sua expresso sonora. Ouiro recurso utilizado em varias sess0es foi o microfone. No Gr A, afreqiiente utilizagio do microfone fez com que o paciente dependen- te quimico — alcoolista conhecesse melhor ou descobrisse sua voz i expresso musical. Ao escutar-se ele pode autovalorizar-se e perceber que pode realmente assumir sua identidade, ao invés de fugir de sua realidade ao buscar a dependéncia e “esconder-se” através dela. Omi- crofone péde amplificar a voz desse paciente que, no inicio do processo musicoter4pico, parecia nfo ter voz, reflexo de uma de suas dificuldades em seu meio social. Isto vem ao encontro da afirmagao de Frohne (1991) de que quanto mais as pessoas dependentes assumem sua identidade durante 0 processo terapéutico, menos necessitam de drogas. A voz, no decorrer do processo musicoterapico dos dois grupos, entre os recursos terapéuticos, foi um dos mais utilizados, através do canto, ou seja, a utilizacdo da palavra cantada. Segundo Chagas (Apud Brando e Millecco, 1992), a emiss&o vocal é “um interessante recurso terapéutico, pois a vibragio da voz faz vibrar 0 corpo, ajudando a desbloquear os anéis de tensao”. (p.51) Para a autora, na prética clinica, ocanto pode ter fungo clarificadora, integradora e de suporte. Brandao e Millecco (1992) afirmam que “as cangdes podem ser usadas como recurso terapéutico, apresentando um leque de fungdes que dependem dos objetivos a serem alcangados”. (p.53) Os autores desenvolveram uma categorizacao das fung6es do canto, subdividindo-as didaticamen- te, pois a mesma cang&o pode ter uma ou mais fungoes. Sado elas: canto falho, canto como gozo, como busca de sentido, como resgate, canto desejante, canto comunicativo ¢ canto corporal. Nas sessdes musicoterdpicas, foi posstvel detectar algumas destas fungdes no decor- rer do proceso com os dois grupos atendidos (Gr Ae Gr B). Quanto ao funcionamento do grupo, na 8° sessio do Gr A ja se percebeu 0 potencial terapéutico do mesmo quando F.A. tentou lembrar- se de uma miisica ¢ ndo conseguiu. A.R. falou que também tinha esse problema. Neste momento assinalou-se a importancia de trabalhar a me- théria através das muisicas, através do cantar. Com relagdéo ao Gr B, de pacientes com transtornos esquizofrénicos, percebeu-se logo na primeira sessio a dificuldade de percepcdo do outro, pois os pacientes cantavam diferentes misicas, simultaneamente. Depois de algum tempo, péde-se observar a percep- ¢40 do outro, quando, por exemplo, eles verbalizavam quando um com- panheiro de grupo repetia uma musica na mesma sessao. Pode-se relaci- onar esta observagdo com a afirmagio de Vianna, Costa & Silva (1987): 103 O resultado sonoro da agio de tocar chega a0 sentido da audigio do sujeito gue toca, assim como daqueles que esto a0 seu redor, Quando o individuo ouve e € ouvido, inicia-se uma forma rudimentar do pereepeto do outro, Uma vez que © espago sonor® & compartifhinds, todas os menibros do grupo, inclusive aqueles que permanecem aparentemente passives, so levados uma participagao mediada por uma lingtagem ngo verbal — a produzida através da utilizago de objetos concretos (os instrumentos mus cais). (p.12) Observou-se que alguns pacientes, mesmo apresentando apa- rentes efeitos colaterais e/ou impregnagao da medicacao antipsicotica, como sonoléncia, movimentos involuntérios ¢ outros, demonstraram querer participar das sessdes, mesmo que de uma forma mais passiva. A moyimentago corporal foi outro importante elemento paraa percepgao do “eu” e do “outro” entre os pacientes. Percebeu-se que, apesar de todo o sofrimento, ainda tinham condig6es de sorrir, sem que este fosse um sorriso hebetado, somente de semblante. Um outro ponto, que pareceu auxiliar na melhora da integrago grupal, aconteceu quando um paciente comegou a cantar um trecho de uma miisica e, ao ficar ansi- 0SO por nao conseguir continuar, outro paciente completou a cangio, evidenciando o potencial terapéutico do grupo. ‘Na décima sesso do Gr B surgiu uma noya movimentacaio. corpo- ral, Mas nio mais com “cantiga de roda” (como nas primeiras sessbes) sim um “baile animado”, com rocks brasileiros da década de sessenta, como “Biqufni de Bolinha Amarelinho” e “Banho de Lua”, Houve parti- cipacéo de todos os pacientes. Seria um caminho para 0 avango da infncia para a adolescéncia do grupo? Interessante citar a coeréncia na expressiio de um paciente (com transtorno esquizofrénico), que pediu para escrever uma lista de miisi- cas, no final de uma das sessdes. Na semana seguinte, ele cantou uma a uma, acompanhando a ordem das cang6es com a lista na mo. Observou- se que desta ago decorreu um exercicio de meméria, raciocfnio e organi- zagdo de pensamento, além de mostrar a consciéncia que o paciente teve ao verificar se havia cantado a lista completa. Nas tiltimas sess6es, foram utilizadas misicas gravadas, um pedi- do de E.G. para escular musica de profissionais, wo invés das gravagbes da produgdo sonora do grupo. Seria o pedido uma forma de expressar que nesta fase do processo musicoterapico ele j4 conseguia manifestar sua opinido com relacao a qualidade da expresszio musical de seu grupo? Ou seria uma forma de se identificar com aspectos da realidade externa instituigdo psiquistrica? 104 Ao ouyirem o CD de Roberto Carlos todos cantaram e, apds su- gestéo da musicoterapeuta, todo o grupo comegou a dangar. No final, L.A. comentou que “Citime de Vocé” a lembrou do citime que seu ex- marido sentia. Interessante notar que neste grupo, a movimentagiio cor- poral que ja havia sugerido infincia e adolescéncia, nessa sessio levou- os a uma situacao da idade adulla, 0 casamento. Na tiltima sesso com esse grupo (de portadores de transtornos esquizofrénicos), L.A. trouxe primeiramente “Pensa em Mim” e, em seu comentirio final, disse 4 musicoterapeuta para se lembrar da muisica do Rau! Seixas (“Maluco Beleza”) quando quisesse lembrar dela. E.G., paci- ente que na maioria das sessdes liderou 0 grupo, trouxe inicialmente as miisicas “Morena, Minha Morena” e “Foi Deus que fez vocé”. A sua iiltima miisica, da qual cantou somente uma frase por trés vezes, chamou aatengiio (“Chora coracao, passarinho na gaiola, feito gente na prisio...”). Faz-se um questionamento a partir deste fato. Quais seriam as fungdes deste canto? Comunicativo, resgate, insight e/ou alerta a todo esse sis- tema institucional, aos profissionais e a esse demorado processo de desinstitucionalizacio? Consideragées Finais Nao seria possfvel, em funcao da complexidade do tema aborda- do, ter conclusGes a respeito, mas sim consideragées a fazer a partir das sessOes realizadas € dos dados coletados. As anélises feitas sobre a produgaéo musical dos dois grupos atendidos nao podem ser generalizadas. No entanto, considera-se que este material possa ter a fungdo de, junto a tantos outros trabalhos j4 realizados, abrir caminho na érea de Satide Mental para novas técnicas ef ou metodologias musicoterapicas, principalmente no tocante 4 depen- déncia quimica —alcoolismo, cuja bibliografia em Musicoterapia é mais restrita. Um dos aspectos mais tocantes foi a integrago entre os pacien- tes, que. foi surgindo aos poucos, quando comegaram a se perceber me- lhor e, a partir dessa autopercep¢ao, a ouvir 0 outro, a esperar a sua vez de cantar, ou seja, o acontecer de uma diferenciagao entre a realidade interna e externa de cada sujeito. Observou-se que a movimentagao corporal, que surgiu em diver- sos momentos no grupo de pacientes esquizofrénicos, embalada por cangées relacionadas a diferentes fases do desenvolvimento humano, fez com que este paciente comegasse a sentir seu corpo como algo que 105 contém vida, identidade e pudesse trabalhar memdérias, desde a sua cri- anca interior, podendo resgatar pelo menos algo de sua histéria existen- cial, 40 aprisionada no invGlucro de sua patologia. Pode-se sentir que realmente, além dos pacientes sofrerem ffsicae emocionalmente com os sintomas provenientes de suas patologias, ha um enorme sofrimento pelos problemas s6cio-familiares pelos quais pas- sam. Esses aspectos puderam ser vivenciados e trabalhados no decorrer do processo musicoterdpico, com 0 aparecimento de cangdes com imi- meros significados e fungoes. Faz-se necessério evidenciar a importincia, para o profissional musicoterapeuta, de estar atento As diversas formas de expressio (sono- ra/musical/corporal) apresentadas no setting e ds especificidades vin- das de cada patologia, tendo sempre em mente que cada individuo vive suas adversidades de uma forma particular. Quais seriam os pontos essenciais para uma convincente leitura musicoterépica? Procurou-se no decorrer deste estudo, fazer colocagées sobre a produgao musical e 0 funcionamento dos dois grupos atendidos, telacionando diversos momentos, que pareceram clarear aspectos rele- vantes do processo musicoterdpico. Tem-se a consciéncia de que mui- tos outros questionamentos poderiam ter sido feitos e, talvez seja essa subjetividade implicita no trabalho do musicoterapeuta, seu maior desa- fio profissional. Reitera-se, a partir deste relato ¢ de intimeros trabalhos ja realiza- dos, a importancia da Musicoterapia fazer parte de uma equipe interdisciplinar, que methore a qualidade de vida e a humanizagao no {ratamento, contribuindo para o proceso de desinstitucionalizagao, com atendimentos em hospital-dia, ambulatorios e, quando necessdrio, para pacientes internados. Finalizando, apresenta-se algumas frases marcantes de miisicas que surgiram no decorrer do proceso musicolerépico dos dois grupos, sobre as quais considera-se vélido que 0 leitor faga uma teflexao. Frases do Gr A (Dependentes Quimicos - Alcoolistas) “Meu Deus, eu n&o consigo viver esse desprezo... Eu cra um bébado, que vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus. Pertinho do céu, um baixo astral danado... Vocé jogou fora o amor que en te dei... Naqucla noite fiquei embriagado, amanheci bebendo no bar... 106 Felicidade foi se embora ¢ a saudade no meu peito ainda mora... Quando eu estou aqui e vivo este momento lindo... ‘6 indo agora p’rum lugar todinho meu... Quem parte leva saudade de alguém... Umaluzlé no alto, eu vou seguir...” Erases do Gr B ( Portadores de Transtornos Esquizofrénicos “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras nao sei dizer. Jé faz tanto tempo que eu deixei, de ser importante pra voc Pois quem me vé hoje ignora 0 homem forte que eu fui outrora... E de somho, é de pé, o destino de um s6. Quem canta seus males espanta... Deixar correr solto 0 que a gente quiser... Niio existe pecado do lado de baixo do Equador... Eu sou nuvem passageira, que com o vento se vai... Controlando a minha maluquez, misturada com minha lucidez... Chora coragao, passarinho na gaiola, feito gente na prisio...” Referéncias Bibliogréficas BARBARA, Bianca Bruno. Aima que se move, psigue que son... Monografia (Graduagdo em Musicoterapia) - Conservatério Brasileiro de Musica, Rio de Janeiro, 1997. BENENZON, Rolando Q. & YEPES, Antonio. 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