Você está na página 1de 24
nA A. MACHADO. PAUPERIO Para os taéricos do materialismo histérico, ou seja, do comunismo, setia o Estado mera organizacao transitéria, fruto exclusivo das circunstancias do momento histérico consubs- tanciadas pela desigualdade das classes sociais. Até 1936, defendia-se, pela vox de EucENe Pasnuxants, lider te6rico do comunismo, a doutrina inicial do desapare- cimento futuro do Estado, como conseqiténeia natura! do nivelamento das classes. Nessa época, mesmo, fazendo consi- deragdes sobre a nova Constitulcdo e sobre 0 direito socia- lista, perguntou pateticamente: “Se na U-R.SS. os elementos capitalistas foram destruidos e se construiu uma sociedade sem classes, per que deve o Estado ainda existir?” A tese, porém, do desaparecimento do Estado, antes orto- doxa, no prevaleceu, passando a ser condenada pelo partido, que liquidou sumariamente PasHuxanrs. Como é dbvio, o fenémeno politico néo pode desaparecer, uma vez que acs Estados cabe primacialmente nio s6 defender os respectives povos no Ambito internacional como manter ordem e garentir o direito na érbita interna. Nao se limitando, sobretudo, o direito a regular apenas relac6es de propriedade, impossivel 6 conceber 0 fim do Estado. Ademais, absurdo é pretender que qualquer sociedade futura venha a prescindir de um cédigo penal por estar livre de quaisquer atos anti-sociais. Se o Estado oprimiu muitas vezes 0 homem, como entre- viu Sonzt, explorando-o e impedindo-Ihe o desenvolvimento da personalidade, £ porque descambou de sua verdadeira missao, Nesse caso, cake-nos reformé-lo, nao extingul-lo. YALPERD ACTOT HAQIAO / AO Ess Be Ditero. 3. EN WC DE SASEWIO: Foes SE, gcO\ 4. O direito. Sua nogio © seu papel na vida social. A palavra direito nao 6 usada com sentido “nico. Pelo contrério, 6 comumente empregada em varios sentidos. © vocébulo deriva-se do latim directum, encontrando-se a mesma raiz em rez, regnum, regere, regula. O direito repre- sentaria, assim, a conformidade com a regra, ou, por outra, com a retidfo, com a linha reta do dever. Em latim, 0 direito exprimia-se pelo vocabulo jus, raiz encontrada também no verbo jubere (ordenar), que lembra conformidade com a regra, € nos vocabulos justus e justitia, que nos levam a uma concepgio moral. Jus, por sua vez, deriva-se da raiz sfnscrita ju (liga), donde jungere. Do voeabulo direito nao fizemos derivar nenhum adjetivo, mas da raiz latina de jus derivamos juridico, que 6 tude aquilo que é relativo ao direito. Entre os varios sentidos tomadcs pelo vocabulo direito, so principais: 1.9 — Sentido objetivo — Por direito, pode-se entender a norma ou conjunto de preceitos em vigor num determinado pais: de direito constitucional, de direito civil, de direito do trabalho ete, Nesse sentido, denomira-se ao direito também Gireito positive, ao qual se opée 0 chamado direito natural, conjunto de principios racionais de justiga que inspiram 0 primeiro, LSTAORS 36 A. MACHADO. PAUFERIO 2.9 — Sentido subjetivo — Por direito pode-se também entender a faculdade que assiste a quem a norma de direito ampara. O direito do credor com relago ao devedor, o direito do autor com relacdo ao plagiador etc., sio direitos subje- tivos. Nesse sentido, o diteito 6 0 interesse juridicamente protegido, a que alude Von IneriNc. Tal direito, entretanto, nAo pode existir se o outro, objetivo, também nao existe. 3.9 — Sentido de fato social — Por direito, pode-se en- tender igualmente o fenémeno juridico como resultante das Telagdes humanas decorrentes da vida social. O direito, nesse sentido, 6 olhado sob um prisma puramente sociolégico. 4.9 — Sentido idealista — Por direito, pode-se entender ainda a idéia de justica, verdadeira aspiracio moral, toda orientada para o direito natural. Neste sentido, pode-se falar no sentimento do direito. 5.9 — Sentido de ciéncia — Por direito, pode-se entender, finalmente, 0 corpo sistematizado de principios que consti- tuem a chamada ciéncia do Direito. Apesar de Yon Kincumann, no século passado, ter negado © carater cientifico do Direito, nao ha duivida de que este é uma ciéncia moral, entendida como conjunto de conheci- mentos sisteméticos e metédicos. Por cléncias morais, entendem-se as ciéncias que estudam © homem como ser livre. A nogio de direito esté muito ligada A nogio de justiga, sendo um e outro conceito correlatos. O direito aparece-nos, via de regra, como o verdadeiro objeto da justica, pela qual procuramos dar a cada um o que Ihe pertence. © conceito de justiga é mais acessivel que o de direito, embora ambos estejam entranhados na consciéncia humana, INTRODUGAO A CIENCIA Do DiREITO ” © homem vulgar, porém, que se mostra incapaz, muitas vezes, de discernir a natureza da violagao de seu direito, tem sempre nitida sensagao da injustica que porventura sofra, © conceito de justica cristaliza-se na sempre lembrada definicfo de Unrtano: Justitia est constans et perpetua vo- luntas ius suum cuique tribuendi. Tradicionalmente, so de distinguir-se trés espécies de justica: a comutativa, a legal e a disiributiva. Enquanto a primeira se desenvolve no campo do direito privado, as outras duas desenvolvem-se no campo do direito pubblico. S6 a observancia simultanea dessas trés espécies de justi- ¢a pode levar a sociedade & ordem e & paz social. Por isso, pode- -se dizer que a justica é 0 alicerce co Estado (Justitia est jundamentum regni) e 0 diteito, como diz Mmucmx, a técnica da paz. © direito deve, por isso, tender sempre para o direito justo, aleangando aquele a paz social quando realiza og ideais mals altos da justica. Daf, nem sempre o direito positivo existente em cada sociedade humana satisfazer aos impera- tivos da ordem social. © papel do direito é, como vimos, assegurar a coexis- tencla pacifica do grupo humano. Ele é, por isso, mesmo, © fundamento da ordem social, A ordem social, como nos diz Hauriov, implica numa organizacdo que assegure a coesio da sociedade, sob as ordens de uma autoridade que refreie as forces de dissociagao. Con- seqiientemente, deve, de outro lado, implicar na satisfacéo das necessidades essenciais do grupo e no equilibrio entre os interesses opostos existentes no mesmo. Finalmente, ndo pode deixar de implicar numa continua e lenta adaptacaio as con- dicbes cambiantes da vida, que jamais se imobiliza. 38 A. MACHADO. PAUPERIO| Quando a ordem social desrespeita qualquer dessas ca~ vacteristicas que Ihe sao vitais, marcha o homem para a anarquia ou para a revolugao. 0 critério do direito é, sobretudo, 0 critério da utilidade social. A ele, 9 que importa, essencialmente, é a seguranca da sociedade. Mas dificilmente se pode alcancar a seguranga dentro de uma ordem social injusta. A ordem, nese caso, transtorma-se em desordem. : A segurarga ja no é hoje apenas contra 0 abuso do poder mas também contra a miséria, 0 trabalho excessivo, a doenga e outros diversos males. 0 direito positivo, identificado com a lei, dé-nos o critério ou 0 conceito de legalidade, especifico do direito e de que decorrem as nogées juridicas de licito e ilicito. Por licito entendemos tudo aquilo que possa estar garan- tido pelo direito; por dicito, tudo aquilo que possa estar su- jeito a sangées, no dominio do direito. A nogao de licitude é, porém, no campo do direito post- tivo, uma nogao profundamente relativa. Porque nem sempre tudo que é licito é justo. Quando o direito positivo se afasta do ideal da justica, transforma-se nfo raro em caricatura e, nesse caso, pode chegar, muitas vezes, como o tem feito, a consagrar, como direito, 0 préprio antidireito. 5. A ordem juridica e seu conceito. A norma juridica — es: trutura e caracteristicas. Ha ordem na sociedade quando esta esta conveniente- mente adaptada a sua propria finalidade, que 6 0 bem comum. Para isso, hé de estar a sociedade organizada também pelo direito ¢ ser, assim, portadora do que podemos chamar de ordem. juridica. No ha bem comum sem ordem juridica, essencialmente indispensavel a qualquer Estado. Enquanto qualquer das outras formas da ordem social (religiosa, moral ete.) pode restringir-se a determinados seto- res da socledade, a ordem juridica aleanga todo 0 campo social, nenhuma de cujas atividades escapa ao seu controle. Por isso, a ordem juridica 6 um verdadeiro sistema, capaz de atender a todas as exigéncias da vida social. Como sistema, representa um todo organico de prine{pios e normas, nos quais encontra a sociedade, sempre, solucdo para dirimir quaisquer conflitos de convivéncia social. Diz-se, por isso, que a ordem juridica € 0 sistema de lega- lidade do Estado ow a situacdo de ordem e seguranca trazida Pelo direito aceito pela sociedade e pelas leis vigentes. Como sistema, €, assim, 0 conjunto, coordenado em um todo légico, das normas do direito positivo, quer explicitas, quer implicitas. Em cada comunidade juridica, ndéo pode haver mais que um sistema juridico, Haveré, entretanto, tantos sistemas Juridicos quantos sao os direitos positivos. 40 A. MACHADO PAUPERIO As instituigdes juridicas formam, em cada sistema, os diferentes cap{tulos do mesmo, como diz Du Pasquier. Os varios sistemas sio edificios diversos, com seus prin- cipios gerais como alicerces, ou arvores que se ramificam cada vez mais A proporgio que o direito se vai tornando mais complex. Quanto mais perfeito for o sistema, melhor funcionaré quanto & disciplinag&io social dos componentes do grupo, que nele encontrarZo, dentro da ordem, a seguranga de que neces- sitam para viver e trabalhar. Gragas a ordem juridica, assegura-se 0 equilibrio do con- junto social, coativamente, quer impondo aos particulares a Pratica de certas ages, quer impondo aos mesmos determi- nadas abstengées. A aco do direito nao se manifesta sob 0 mesmo modo © grau em todos os setores sociais. As vezes, como no direito das obrigagées, manifesta-se imperativamente, obrigando o homem a adotar determinado comportamento; as vezes, como no direito penal, manifesta-se proibitivamente, ordenando a abstencao de certos atos; as vezes ainda, e na maioria dos casos, ndo orcena nem proibe, mas limita-se a facultar toda € qualquer forma de comportamento que nao esteja ordenada ou protbida. Nesta vasta area de atividade, instaura-se a zona da liberdade juridica, onde se pode mover 0 homem a yontade. Quando o homem viola a ordem juridica, desrespei- tando-a, perde a possibilidade de invocar a protecéo da lei € atrai para si proprio a aplicagio das chamadas sangoes legais. A ordem juridica expressa-se através de normas, que tém sempre a forma Imperativa e que se podem decompor, como vimos, em ordens ou proibigoes, Pela norma, exprime-se sempre a vontade de que um determinado fato social acarrete certo efeito. I | | f INTRODUCAO A CIENCIA BO DIREITO aa Como diz Farrana, dois sio os elementos integrantes da norma: @ sitwacdo de fato, sobre que recai o imperativo (ou 0 fato submetido ao direito, como diz Rocutn) e a conse- qiléncia juridica que dela a regra faz decorrer. A norma é sempre bilateral: a'guém dispée ou impée, os demais obedecem. Assim sendo, a relagdio entre a norma e 0 comportamento humano 6 sempre de subordinagdo. Nao hé falar-se aqui de relagao de causalldade. A relagéo de normatividade é sempre de subordinacéo. © comportamento do homem deve ajustar- -se ao comportamento preconizado pela norma juridica, O homem deve, assim, subordinar-se A norma juridica, sob pena de ser um elemento de dissociagao social, © imperativo juridico, traduzido pela norma, impée padrées de comportamento ou de crganizagao aceitas pelo grupo social, que é mister respeitar. ‘Todo e qualquer imperativo implica necessariamente no juizo de que o que se exige tem um velor caracteristico, razio Pela qual é exigido. Por isso, por exemplo, 0 aborto nao é proibido por mero acaso, mas tao-st porque se julga o ser vivo em gestacdo verdadeiramente inviolavel. Mas 0 direito néio exerceria o papel que Ihe cabe na vida humana em sociedade, se se mantivesse como simples norma de valoracao. Para que esa norma se transforme em regra Juridica, € preciso que adquira a fo:ga de manifestagio de vontade, ou seja, a forga de ordem ou comando. © principio “Nao deves matar” é um imperativo cate- gorieo. Mas, por qué? Porque ha critério de conveniéncia pratica (de adequacio a fins). O principio valora determi- nados fins como bons e, por isso, se subordina, na escala do “justo”, aos prineipios morais. Mas 0 direito tem a0 mesmo temo um cardter hipotético € categérico, como afirma Det Veccmo. 42 A. MACHADO PAUPERIO ‘De certo modo, a regta juridica representa uma hipétese, pois que apenas se aplica quando se fazem presentes certas ireunstancias de fato aludidas na propria regra. Por isso, quando a lei proibe matar, apesar do: seu carater categérico, subentende que se esteja diante de uma situacdo normal e no excepcional, como o seriam a situacdo de legitima defesa, a de sentenca de morte passada em julgado ou a de estado de guerra. ‘Entre a hipétese legal e a conseqiiéncia juridica ha uma causalidade baseada na vontade da lei A lei 6 sempre condicional. Quando diz: Quem matar... realmente quer dizer: Se alguém matar... ‘Tel relagio de condicionalidade j4 se tem apresentado como forma caracteristica de causalidade do juridico. Zrre- MANN, no século passado, e Von TuHR, no atual, estio na esteira desse pensamento. Como regra de comportamento, a norma, além de bi- lateral, é, por isso, coercitiva. No caso de no se obedecer a ela, 0 recurso & coagao forgara os recalcitrantes a cumpri-la. Comumente, a simples ameaca de sangiio é bastante para conseguir a obediéncia de todos. No caso de violacdo da regra, porém, a ameaga transforma-se em sancdo efetiva e impée- ~se a penalidaie respectiva ao desobediente, fazendo-o cumprir a norma, mesmo contra a sua vontade. A norma juridica, além de bilateral e coercitiva, apre- senta ainda, via de regra, o cardter abstrato. ‘Uma regra 6 tanto mais abstrata quanto mais geral for. A genera:idade, 0 carater abstrato da lei, como acentua Ducurr, constitui a protecio mais eficaz da pessoa contra a arbitrariedade dos governantes. Cedo se compreendeu que a melhor maneira de tormar impessoais as decisdes do governo é submeter a lei a prescrigdes de carater geral e INTRODUGAO A CIENCIA DO DIREITO 43 abstrato, que impecam beneficiar ou prejudicar apenas deter- minadas pessoas. A generalidade no deve ser aparente, mas real. Por 1sso, como diz o professor portugués Dias Marquss, “‘se hoje apenas existir uma unidade industrial autorizada a fabricar 0 pro- duto X e se surgir uma lei que se diga unicamente aplicével “a todas as unidades industriais que laborem 0 produto X e, nesta data, se encontrem autorizadas” — é ébvio que a refe- rida lei, apesar da forma verbal empregada, no é geral e néo corporiza, portanto, uma norma juridica stricto sensu”. De outro lado, nfo deixam de ser gerais, muitas vezes, as leis que se referem a uma s6 pessoa, como ¢ 0 caso dos diplomas legais que dizem respeito ao Presidente da Repti- blica, pois ai a norma é aplicada a todas as pessoas que, na sucesso do tempo, venham a ocupar:aquele alto cargo. Jamais se conheceu regra tao abstrata quanto a da igual- dade de todos perante a lei, imperarte hoje em quase todas is Constituig6es contemporaneas. © principio da reparagao civil, imposto, por todos’ os cédigos do mundo, a quem quer que cause prejuizo a outrem por ato ilicito, é outra regra de carater altamente abs:rato. Dentro do sistema de conceitos, proprios da ciéncia do direito na atualidade, a regra juridica inclina-se cada vez mais para a abstracio. Pela sistematizacéo juridica, o direito encaminha-se para oabstrato, dentro de um carter mais técnico e mais cientifico, A diversidade das situagdes reais tende, assim, a ser en- feixada por nogGes abstratas, de que se serve a ciéncia do direito para ordenar racionalmente a matéria social que é objeto de sua regulamentacao. A generalidade da lei deriva-se diretamente do principio abstrato da igualdade natural dos homens, orlunda de “a A. MACHADO PAUPERIO Rousseau e que se inscreveu entre os postulados da Revo- lugio francesa. Hoje, porém, para se acomodar a diversidade da vida, nem sempre a lel pode ser invariavelmente geral. O que importa 6 que ela nao seja pessoal. A lei pessoal néo é lel: é ato. Por isto, prefere-se falar hoje na impessoalidade da lel, critério, sem divida, mais exato. It © DIREITO COMO VALOR 6. O sentido axiolégico do Direito. £ um truismo afirmar-se que 9 homem é um animal social, E que a sociedade muito deve quanto @ sua formacio fisica, psicolégica e moral. © convivio social é fator importantissimo de evolugio das proprias idélas humenas, Sem ele, o homem estaria privado do exemplo, da educacdo, do conforto material e de todos os bens, em geral, que #6 se conseguem pelo esforgo cooperativo de todos os membros da comunidade. A esséncia de qualquer sociedade é a reuniéo moral dos homens ordenada ao Bem Comum. Para a consecugéo desse Bem Comum, ¢ preciso que os interesses privados se subordinem aos interesses supremos da comunidade. Dai temos a justiga social, conjunto de direitos € deveres caracteristicos do Bem Comum. Para a consecugio desse Bem Comum, hé de imperar na sociedade 0 Direito, conjunto de condigdes existenciais dela propria. © coneeito de Direito imperante na sociedade, de Direito positivo, portanto, integra-se, como diz Luo Pxita, por trés 48 ‘A. MACHADO PAUPERIO elementos fundamentais: a Justiga, como igualdade; a Ordem, como finalidade, e a Seguranca, como positividade, Para haver Seguranca, deve haver Ordem, mas, para haver Ordem, deve haver Justiga. Resultado disso tudo é 0 Bem Comum, cujo esplendor é a Paz. A Seguranca e a Ordem no sfio a Justica, mas devem estar a servico da Justica. E 0 prinefplo superior, que cria condicées de Justica, de Ordem e de Seguranca é a Lei, deve ser a Lel. A Lei 6, aliés, a sintese por exceléncia dos principios fundamentais dos atos humanos: a razdo e a finalidade, A Lel, por sua propria natureza e em si, sé corresponde as sociedades perfeitas: 0 Estado e a Igreja. fato social, porém, por si s6, nao cria a Let, ou melhor, © Direito. Como diz Baumes, 6 absurdo que o mero fato crie 0 Direito. Foi, diz Haws Wezzt, “um fatal equivoco — que seria imperdodvel repetir depois das experiéncias que temos sofrido elevar & categoria do retonormativo, do valido-objetivo, do valioso, do “espirito objetivo”, o fundamento sociolégico do reconhecimento geral, sto 6, 2 comum convicedo juridica, a consciéncia geral do direito, ou como se queira chamé-lo”, Forca € admit:r que o reconhecimento geral é apenas “um dos pressupostos para o nascimento do Diteito positivo”, Absurdo e dos grandes, como dizia Cicero, é admitir como Justas todas as instituigdes ou todas as leis das nagdes, Os atos humanos adquirem cardter moral quando sio livre e racionalmente realizados; “ato algum tem cardter moral quando a razdo esté ausente”’ Eo Direito, afinal, nao é mais do que “a Moral na medida em que se torna suscetivel de coer¢do”, como diz JossERAND. © Direito ha de ser tomado numa triplice dimensio: como fato, como norma e como valor, no exato sentido em INTRODUCAO A CIENCIA DO DIREITO ar que a desenvolveu a teoria tridimersional do Direito do in- signe jusfilésofo brasileiro que é 0 Prof. MicuEL Reare E 0 Diteito , antes de tudo, norma e valor. Uma lel ética é sempre valida ou invalida e jamais verda- deira ou falsa porque, no dominio do comportamento, verdade ou erro nao tem cabimento, Uma lei 2ode ser justa ou injusta, valida, portanto, “quando expressa um valor auténtico e Ihe é fiel; invalida, quando nao traduz um valor ou o faz de modo inadequado”. © homem deve realizar valores. Sé DEUS 6 0 proprio Valor, com o qual se confunde sua propria Existéncia. © Direito 6 obra cultural e, portanto, visa também, como a Btica, a eriagao de valores, De certo modo, 0 Direito nao se pode compreender senfio no circulo do comportamento impregnado de valor, como diz Rapsrucs. Como fenémeno cultural, o Direito é sempre um fato referente a um valor. Dentro da escola fenomenolégica, cujas duas figuras méaximas so Max ScHeter e N. Harrman, autor o prineiro de O formalismo na £tica e a stica material dos valores, aparecida em 1916, os valores sao ideais mas nao subjetivos ¢ sim objetivos, j4 que valem independentemente das coisas e das nossas manciras de estimar. O amor seré sempre uma coisa boa, mesmo que ninguém 0 aprecie, mesmo que todos se odeiem, mesmo que the demos va‘or ou néo. A justica, a verdade, a beleza podem ser consideradas esséncias ideais, de certo modo equipardveis 4s grandezas matematicas, mas o que convém nfo esquecer é que todos esses valores nao existi- riam se no existisse o Espirito. De outro lado, néo poucos pensadores contemporaneos Teconhecem que o valor é real. Com base em AnisT6TELEs, que fundiu com a Realidade a idéia de valor, passaram a considerar valioso 0 proprio ser. O real também pode ser, ¢ aa. A. MACHADO PAUPERIO € multas vezes valioso, J. von Ruvreuen, em seu trabalho de cunho histérico O Pensamento Aziolégico na Evolucéo Espi- ritual da Europa, de 1932, e Luis Laveute, em sua obra de f6lego Os valores, de 1955, filiam-se a essa corrente. De qualquer modo, porém, o que convém acentuar é que © ser moral sé se torna passfvel de valor quando observa os valores morais e aleanga, assim, a sua plenitude, De outro lado, nao 6 demais insistir, como ja acentuamos, em que seria de todo absurdo que, no dia em que o édio esti- vesse mais presente que o amor, este ficasse desqualificado. Analogamente, no dia em que a traigo superasse a fidelidade, absurdo seria que disséssemos que esta teria perdido a razdo de ser. Os ideais valem o que valem, cumpram-se ou néo. Por isso, n&o 4 valores yelhos ¢ valores novos, ha meramente valores. Como diz JoHaNNzs Hessen, em sua Filosofia dos Valores, “como as estrelas que ao anoitecer vio aparecendo no firmamento, assim eles vo surgindo sobre a nossa cabeca com 0 progresso da Cultura e vo entrando no campo visual do homem”, Numa definiedo, que seria talvez o denominador comum das varias correntes axiolégicas, poderiamos dizer que o valor € a perfelc&io que tem ou deve ter o real e que exige de nés a adequada estima. Ninguém, entre os valores e os antivalores, elegeria os segundos, pois, nesse caso, elegeria o valor negativo. A eleicdo dos verdadeiros valores 6 a honra do Espirito humano. Foi Max Scxetzr, certamente, o autor que tratou da hierarquia dos valores com mais profundidade, entre os que desse assunto se acercaram. Para ele, os bens espirituais, como a ciéneia, a moralidade ou 0 amor a Deus jamais separam os homens porque nao excluem ninguém de sua posse. Os bens materiais, porém, INTRODUGAO A CIENCIA DO DIREITO 4s separam os homens entre si, pois, se um goza de sua posse, impede que os demais deles gozem ao mesmo tempo. Recolhendo os esforcos das classificacdes anteriores, entre as quais esto sobretudo as de Rickert e de ScHELER, Luis Lavete coloca também os valores morais e espirituais como os mais elevados e de maior transcendéncia. Com o valor espiritual, diz ele, entramos no reino do umor, relaclonando- “os com a pessoa suprema: Deus. Os valores espirituais tém um cardter transcendente e absoluto e de certo modo en- globam os demais. Apesar de o valor ser um puro sentir espiritual, o sentir, segundo Scuzter ¢ Hartman, é intencional, captando a qua- lidade do valor tao depressa quanto o sentido do gosto percebe os sabores. Ha setores que parecem vedados a inteligéncia e que se percebem com seguranca extraordinaria. Dai a célebre frase de Pascat, de vivo interesse axiolégico: “O coragao tem razSes que a razao desconhece” Cremos, entretanto, que a corrente intelectualista e a corrente emocional podem completar-se porque realmente ambos 0s fatores infiuem na valoragéo, © conhecimento precede mas, s? nfio se acompanha de sentimento, n&o ha valoracao. A qualquer valoracio precede o conhecimento mas, nao obstante, 0 mero conhecimento ¢ insuficiente para a conclu- so valorativa. O bem nao pode ser intelectualizado, A valoracéo é sempre intuitiva. Por isso, como diz Garcta MoneNre, os valores nfo se podem demonstrar, embora se possa mostré-los. Para descobrir 0 valor de uma escola filoséfica, requer-se um grande preparo técnico, mas, tornada exeqilivel nossa estimativa, a valoragéo surgiré como a simpatia pelas pessoas com quem procuramos espontaneamente conviver. © mundo da cultura deve realizar valores. De fato, toda cultura deve ser real'zacdo de valores. Este é, pelo menos, 0 50 A. MACHADO PAUPERIO seu sentido ¢ a sua esséncia. Por isso, as ciéncias historicas estudam personalidades valiosas. © homem tem diversas dimensdes: tem energias fisico- -quimicas como os seres inorganicos, cresce e desenvolre-se como a planta, move-se como o animal, mas tem algo de original e especifico seu — o mundo espiritual, sua capaci- dade de conhecer ¢ amar que transcende o mundo da matéria. Para ser homem, 6 preciso, portanto, cultivar o especifi- camente humeno: a inteligéncia, a vontade, os sentimentos superiores € 0 znais enquanto sirva ou pelo menos nao preju- dique a conseeiciio de sua plenitude. Quanto mais valores realizarmos, sobretudo os éticos, mais seremos fiéis & nossa esséncia e mais, portanto, seremos verdadeiramente pessoas. ‘Mas o horiem nunca é uma realidade acabada. Esta em parte feito e em parte por fazer-se. Nao & como o animal, que no tem que esforcar-se por mudar e melhorar. Realizar valores é sempre tarefa imperfeita e inacabada. Havemos, indefinidamente, enquanto transitarmos pela ‘Terra, de procurar, incessantemente, a perfeigdo, se nos qui- sermos, de fato, elevar. ‘Tal inadequagao leva-nos a trabalhar sem descanso, e, quanto mais nos elevamos, mais sentimos a necessidade de um aperfeicoamento que nao tem fim, Como valor, 0 Direito tem, assim, por ideal a Justiga, que yepresenta, como diz Groncto Det Veccuto, “um dos mais altos valores espirituais, senéo 0 mais alto, junto ao da cari- dade”. Sem tal ideal, jé néo tem a vida nenhum valor. Por isso, péde Sio TomAs dizer: “O homem com vi tude € o melhor de todos os animais; sem lei e sem justica € 0 pior de todos eles”. Razéo titha Kanr ao escrever: “Se desaparecesse a justiga, jé néo valeria a pena que os homens vivessem sobre INTRODUGAO A CIENCIA DO DiREITO st a terra”. N&o ha sacrificios que devam ser regateados em defesa e em beneficio da Justica, a quem devemos consagrar todas as nossas forgas € todo o nosso entusiasmo. A realizacdo da Justica é 0 fim supremo do Direito. A nogo de Justiga ¢ uma noc «aniversal, no espaco € no tempo. A punicao, por exemplo, de alguém que nao praticou qualquer crime, em lugar de outrem, que o tenha cometido, repugna, invariavelmente, a qualquer consciéncia. O valor, portanto, em vez de subjetivo, ¢, em suas grandes linhas, altamente objetivo. Outros valores influem na realzagdo do Direito, como sejam a Ordem, a Seguranea, 0 Bem Comum e sobretudo a dignidade e a autonomia ética da pessoa humana, sem a qual nao ha falar-se em Direito. Mas a Justica é, sem diivida alguma, a esséncla primordial do universo juridico Conceituamos a Ciéncla pela verdade, a Arte pela beleza, @ Religifo peta santidade, a Morai pelo bem, o Direito pela justica. E a Justica, como a Verdade, a Beleza, a Santidade e Bem, é um absoluto, ou seja, um valor especifico e univoco, que se nao deriva de nenhum outro. His por que o Direito ndo pode ser senao realizagéo de valores, oriundos de DEUS. Os antivalores que campeiam no seio da Histéria nfo lrouxeram & sociedade Direito mas apenas antidireito, Quando a pirataria dos mares e a moderna, liberal, comunista ou nazista, elaborou suas normas, estas jamais foram normas juridicas, no sentido integral, formal e material. Direito € fato social, é norma, mas é sobretudo valor. Sem ele, a sociedade humana no é sociedade mas apenas agrupamento de animais. 86 0 direito justo faz a honra do espirito humano e a gloria da agitada e febril vida dos homens sobre a Terra, 7. Direito « moral. No mundo antigo, viveu sempre o direito envolvido pela moral € pela religiéo. © préprio munéo helénico nao conheceu ainda a perfelta separagdo entre 0 dominio da moral e 0 do direito. # em Roma que, pela primeira vez na histéria, se apre- senta 0 direito livre e independente ¢a moral, apesar de ainda, em muitos conceitos Jurfdicos, parecerem imprecisas € con. fundidas a esfera juridica e a esfera moral. © preceito honeste vivere (viver honestamente), que aparece nas Institutas de JusriN1ano, como verdadelro pre- ceito juridico, nao pode deixar de ser eonsiderado, do mesmo modo, prine{pio moral. De outro lado, a definig&o de direito de Cxtso, jus est ars dont et aequi (0 direito 6 a arte do bem € do justo), donfunde, sem melhor perspectiva, os dois campos do direito é da moral, Reavivadas as fontes morais do direito na Idade Média, elo influxo,do Cristianismo, nfo fol sendo nos primérdios dos tempos Yhodernos que o direito comegou a emancipar-se pouco a pouco da moral, afastands-se totalmente dela em certas fases da vida de alguns povos, como se deu na era dos Tstados totalitarios A Tuomastus, vulto do iluminismo, com os desenvolvi- mentos posteriores de Kawr, devemos a distingo entre direito © moral, Enquanto o direito é coercitivo, a moral é incoereivel. 5. A. MACHADO PAUPERIO A moral encontra raizes na consciéncia e, por isso mesmo, implica em liberdade de procedimento. Segundo essa perspectiva, a moral é auténoma, surgindo de dentro da alma humana, ao passo que o direito é hete- rénomo, surgindo e sendo imposto de fora para dentro. Para Kanr, enquanto a moral regulamenta a intenc&o © a consciéncia, 0 direito regula o comportamenty exterior do homem e, portanto, as manifestagdes da vontade deste. O direito regula, assim, as relagdes externas entre os homens, e a moral a vida interior e a motivacao dos atos humanos. No fundo, a moral é a regra a que é compelido o homem para objetivar o bem, dentro do respeito de si proprio e dos outros. Em esséncia, é de carter espiritual. Ja o direito é regra positiva, como vimos, imperativo da vida em sociedade, imposto pelo poder social e, como tal, verdadeira realidade sécio-politica. Enquanto a moral, portanto, procura um valor humano, o direito procura um valor sobretudo social. Como diz Carzrant, enquanto o fim da moral é 0 bem, o fim do direito € 0 justo. Embora saibamos que a mexal@undiyig®ae o angie gacialando pocemos deixar de reconhecer que 0 @(FEitFHMPoe ay tagnbéri "68 TWIGS BRVeAeemever ss PBERCON S BoMMESTTOS eco acontece quando em certas legislacées p entativa de suicidio. De outro lado, a meta EO ae act fece com o dever de dar esmola. Mas, em ambos 0s casos, 0 que € preciso ver so os aspectos reflexos de tais normas ¢ nao a funcéo direta das mesmas. Como daqui ja se pode depreender, so distintas as duas nogées. _Embcra a moral inspire freqiientemente 0 direito, nem por isso cabe a este realizd-la. Se assim fosse, tornar- ~se-ia o direitc tiranico e contraproducente. INTRODUGAO A CIENCIA Do DIREITO 55 Contudo, podemos dizer que o direito, como advertem muitos, representa 0 mfnimo de moral exigivel pela coercio. Gzonc JeLLINex, por exemplo, defendeu o direito como © minimo dético, inspirando-se no pensamento de que todo qualquer meio social admite determinados preceitos de ordem moral totalmente indispensdveis sua propria conser- vacdo © progresso. Nao é por outra azo que procura dar a sociedade a tais preceitos toda a efetividade e garantia para a sua propria permanéncia, Em ultima aniiise, o direito € uma espécie de moral social, porque regula o comportamento interno da sociedade, de modo a disciplinar a vida das pessoas e dos grupes, em suas relagdes reefprocas, Sem dtivida, a incluso de todo o direito no campo da moral seria deveras desarrazoada, po's 0 direlto contém igual- mente regras técnicas que nfo tém nenhuma relaco com a moral e que so, portanto, em si, amorais, Para JossxRanp, 0 Direito ndo ¢ mais que “a Moral na medida em que se torna suscetfvel de coergio”. © legislador néo dita, entretanto, s6 regras morais. Como anota Haxsexr, constitui matéria do Direito tudo que possa contribuir para © bem piiblico, BENTHAM representou a moral e 0 direito por dois circulos concéntricos, dos quais 0 menor representaria 0 campo do direito eo maior o campo da moral. km sintese, 0 paladino do utilitarismo moderne, autor da famosa obra Introdugdo aos principios da Moral e da Legis lacdo, aparecida em 1789, afirma que o direito, no fundo, tem de fato o mesmo centro que a moral, embora sem a mesma cireunferéncia. Bewsamin Morais, penalista brasileiro emérito, desen- Volveu a teoria dos circulos de BenTHame, com a criagéo de 56 A. MACHADO PAUPERIO, um terceiro, mais externo, envolvendo os dois outros, os repre- sentativos da moral e do direito. Esse terceiro circulo corres- ponderia & religiio, que, de fato, queiramos ou nao, inspira os quadros da ética. A moral, como sabemos, encontrou sempre na religiao seus melhores ‘undamentos, como 0 reconhece, alias, o proprio Sio Tomtis pz Aqutno. Os grandes cédigos religiosoy da anti- guidade sio também os primeiros grandes cédigos de moral. Hamunant, Moisés, Manu, Bupa, Cristo e Maomé foram nao 86 lideres religiosos como grandes construtores de um mundo moral para os homens Mesmo quando, com o cientificismo, se desvinculou a moral, em grande parte, da religifio, nao deixou esta de per- manecer como sua fonte por exceléncia, a ela intimamente Ugada, A imagem dos circulos concéntricos, apesar de traduzir alguma verdade, nao chega, contudo, a trazer integral visio sobre @ diferenca dos varios campos éticos. Muito mais perfeita que a figura de Benruam parece a imagem de Du Pasqurer, que nos representa o direito e a moral como dois circulos secantes: a area comum contém as regras que, concomitantemente, apresentam qualidade Juridica e cardter moral. Que uma grande parte do direito esteja totalmente domi- nada pela moral, néo ha diivida alguma. Apesar da variacdo também da moral no tempo e no espaco, os grandes preceitos morais sio também preceitos juridicos. Principios puramente morais como os dos bons costumes, da boa-fé, da lealdade comercial, da eqilidade etc., foram consagrados pelo direito de quase todos 0s povos, sem discrepancias. Em futuro que talvez nao esteja muito longe, preceitos morais de hoje poderao transformar-se ainda em novos pre- ceitos juridicos. Futuramente, como diz Bopeteren, “o dever INTRODUCKO A CIENCIA Do DiREITO st de socorrer quem esteja correndo sério risco podera, com iimi- tagdes compreensivels, passar do dominio da moral comum e da decéncia para o do direito obrigatério”. Em nosso pais, porém, j4 0 art. 135 do Cédigo Penal pune quem “deixar de prestar assisténcia, quando possivel fazé-lo sem risco pessoal, 2 crianga abandonada ou extraviada, ou a pessoa invalida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou nao pedir, nesses casos, o socorro da autoridade publica.” # que, entre o direito ¢ a moral, como diz Det, Veccm0, pode haver distincdo mas nunca separagio e muito menos oposicao. Mas, ao lado de moral, outros fatores aparecem para construir 0 direito, através de toda uma série de elementos de ordem pratica como as aspiragdes sociais, as necessidades @os servigas piblicos e as proprias exigéncias do bem comum. E no s6. O direito, como regra de procedimento social, esté condicionado pelas possibilidades de realizagao. Por isso, muitos juristas admitem o direito como yerdadeiro equilibrio entre os sentimentos morais, de um lado, e as necessidades de ordem pratica, de outro, Segundo férmula concisa do Professor Joaqurmr Ruiz Gimunez, 0 direito seria uma “provincia descentralizada da ética”. Nem todos os membros da sociedade sio virtuosos. Por isso, por exemplo, a Jei humana nao pode proibir todos os vielos, mas apenas os mais graves, menos comuns e que, por sua natureza, sio altamente prejudiciais aos outros e a prépria vida social. 8 Conceito de justica, RelagSes do direlto com a justica. © direito visa, como sabemos, sobretudo, & seguranca da sociedade, Mas, para alcangar a seguranga, deve implantar, no melo social, a justica e, por intermédio dela, o bem comum. A finalidade do direito é mesmo triplice, como ja se tem muito repetido: bem comum, justica, seguranca. Qualquer sistema juridico, para atingir plenamente scus fins, deve objetivar, a0 mesmo tempo, a ordem e a justica, esta, sem dtivida, razo de ser daquela. ‘Mas, que vem a ser a justica? Conceito muito focalizado, vocabulo muito discutido, a justica néo é facilmente definivel. Derivada da convivéneia dos homens em sociedade, a justia é produto do pensamento e traduz idéia que é também valoragao, capaz de enriquecer as relacées sociais. Como virtude, e principalissima, jamais chega a realizar- -se integralmente, constituindo sempre meta a alcancar-se ¢ ideal a atingir-se. Em nome do direito positivo, fala-se na lez lata ou jus conditum (direito como é editado); em nome da justiga, fala~ -se na lex ferenda ou jus condendum. (direito como deve ser editado) Cada época tem seu conceito ce justica, resultado da adaptacao do conceite genérico e abstrato as condigées sociais de cada momento e lugar. 0 A. MACHADO PAUPERIO Quando atingida, permite ao direito a consecugio da paz, aspiracdo maxima da Humanidade. Para isso, porém, é preciso que as normas juridicas cor- respondam, de fato, aos sentimentos préprios de justica da comunidade e aos seus mais legitimos e genuinos ideais. Leis, portanto, como a ditada pelo rel Henopes, man- dando matar criancinhas inocentes, ou como as da época nazista, de esterilizagio de minorias racials, negam a justica © 0 préprio direito, dando margem & insubmissao dos siditos face aos governos que as editam. ‘A justiga esta acima, assim, muitas vezes, do proprio interesse piblico defendido pelo governo. ‘Tal interesse, por muito relevante que seja, nem sempre é legitimo e ndo ocupa, por isso, a mesma preeminéncia que a justica, ingrediente necessario de toda e qualquer norma de procedimento social. Se a justica nao ¢ 0 direito, pode-se dizer que é seu préprio alimento. Na expressiio de Det. Veccttio, o direito néo é mais que um precipitado histérico da idéia de justica. Na sociedade, é a justica a toda hora invocada, sendo todas as aspitagées humanas, no espaco € no tempo, formu- ladas sempre em seu nome. ‘Como sentimento, pode-se dizer que a justica é a quali- dade do homem justo. Nesse sentido, a justica é atributo do carter € da personalidade. Assim ccmpreendida, a justiga é um principio de reto procedimento, que encontra seu fundamento essencial no carater integro. A justice envolve, em si, a idéia de retribuigdo. Dai a definic&o cldssica: Justitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi (a justica é a constante e perma- nente vontade de atribuir a cada um o que é seu). INTRODUGAO A CIENCIA DO DrREITO a Nessa perspectiva, se alguém néo recebe o que realmente merece, € irrelevante o fato de outro ou outros serem também insuficientemente aquinhoados. Para atribuir a cada um 0 que é seu, porém, o juiz nao segue os ditames de seu coragéo, mas a lel, que nem sempre 6 expresso perfeita da justica e que requer, por isso mesmo, necestariamente, interpretagao. Integrado nas ciéncias essenciatmente morais, que tém por objeto material a atividade humana e por objeto formal © bem (verdade em quanto fim para a aco), o direito tem por objeto formal a justica (verdadeiro bem em relagéo a outrem, como diz Prario). Certamente, 0 vocdbulo latino jus, que significa direito, ou se deriva de justum (que é 0 que é justo ou de acordo com a justi¢a) ou encontra, como raiz longinqua, a raiz sans- crita ju ou mesmo a palavra védica y6s, que quer dizer bom, santo, divino, idéias de que se deriva a nocao de justica, A acepcio fundamental do direito 6, assim, 0 justo ovjetivoie n&io 2 manifestagéo da vontade individual, como quiseram as concepgdes voluntaristas do século passado, para cujos autores, polarizados em Jean-Jacques ROUSSEAU, a von- tade subjetiva e nao a realidade objetiva 6 que constitui o principio por exceléncia da moral e do direito. © direito, entretanto, ndo tem seu fundamento final na lei ou no con- trato, mas no conceito objetivo do justo. O consentimento das partes nao é suficiente para infundir justica ao contrato, como sempre entendeu o direito classico. Na latinidade, o jus nfo se identificava com a lez. Por direito, entendeu-se sempre o que era devido por justica a alguém. ‘Nao hé construcéo juridica sem a nogio de justiga, reco- nhecem os mais renomados cultores do direito de todos os tempos. Da‘ a tarefa maxima da filosofia do direito ser a da determinagao clara do conceito de justica. “O sentimento do justo e do injusto é um elemento per- manente da natureza humana”, diz Lion Duaurr. E con- tinua: “Ele se encontra em todas as épocas e em todos os graus da civilizacio, na alma de todos os homens, entre os mais sihios como entre os mais ignorantes”. Sabemos que 0 direito visa primacialmente a seguranca, mas que, no fundo, esta no se alcangs senfio com & justiga. Quanto mais a lei traduzir a justiga, mais facilmente obedecerdo a ela os eldadaos. A idéia de justica, via de regra, encontra-se em quase todas as leis, mas nao se esgota em nenhuma. Por isso, se a justiga no € sendo a metade do direito, como diz RENARD, a sua metade mais importante. A concepedo ética do direito considera-o como um meio de concretizar a justiga. Sem fundamento na justica ¢ nas exigéncias da natureza humana, reduz-se o direito a mero produto da forca imperante no meio social, ainda que seja esta vontade da maioria. Objetivamente, o direito deve visar A implantagao da ordem social justa, que possa garantir a cada um aquilo que the € devido. ‘Tanto 0 direito, como a justica, regulam as relacSes in- terindividuais, pressupondo, assim, a existéncia de mais de uma pessoa. Como virtude moral, nao encontramos a justica entre os animais, por nao terem estes nem a percepedo intelectual, capaz de chegar aos prineipios, nem a autodeterminacao, prerrogative unica da vontade humana, Na expresso lapidar de Sio Tomas pr AQurno, a justica, stricto sensu, em sua esséncia, consiste em “dar a outrem 0 que the é devido, segundo uma igualdade” INTRODUGKO A CIENCIA Do DIREITO 6 Sabemos, porém, que a verdadelra igualdade, como nos ensina Amisrérsvxs, é aquela que pratica a igualdade entre os iguais ¢ a desigualdade entre os desiguais. A justica, por. tanto, em ‘ltima enilise, tanto pode ser simples quanto proporcional. Ajustadas dizem-se das coisas que esto igualadas ou adequadas, ensina Sio ToxAs, em sua obra Da justica, Quase sempre, como diz 0 Prof. RECASENS SICHES, a justiga € entendida como “uma harmonia, como uma igualdade pro. porcional, como uma medida harménica de troca e de distri. buig&o”. Como ja vimos, a justica pode ser comutativa, distribu. tiva ou social. A justica comutativa, que é bilateral e sinalagmatica, diz respeito as permutas ou trocas e seu fim é estabelecer a igual- dade das relagées entre os particulares, de modo a adequar-se coisa a colsa, para a realizagéo de uma verdadeira igualdade aritmética. Por isso mesmo, o simbolo da justiga comutativa é uma balanga, sustentada por uma mulher de olhos vendados, para no se deixar tornar parcial pela visio dos interessados © dominio da justica comutativa é muito amplo, com- preendendo no s6 0 respeito A personalidade de nossos seme- Thantes (ever negativo) como o cumprimento de obrigacées (dever pasitivo). Ja a justica distributiva implica em distribuir entre os particulares 0 que é comum. Enguanto na justiga comutativa o bem 6 devido a alguém porque Ihe é préprio, na fustiga distributiva, o bem é devido Porque é comum. A justiga distributiva cabe repartir os bens e os encargos socials. a A, MACHADO PAUPERIO Segundo Towroro, os encargos devem ser distribuidos proporcionalmente capacidade ¢ os bens proporcionalmente A necessidade de cada um: mais deve quem mais pode, mais reeebe quem menos pode. Finalmente, a justica socia? implica na contribuigéio de cada um para a realizagio do bem comum. Corresponde a chamada justica geral ou lega? da nomenclatura aristotélico- -tomista. Como sujeitos dela, encontramos, de um lado, os parti- culares ou membros da comunidade social (na qualidade de devedores) ¢, de outro, a prépria comunidade (na qualidade de credora). © bem comum, no fundo, consiste na vida humanamente digna da populacao. Instrumento desse bem comum sao os bens materiais a isso indispensaveis e condigfo do mesmo 6 a paz ou o minimo de seguranga, sem 0 qual ndo hé falar-se na propria exis- tencia da sociedade. ‘Mas no hé bem comum sem comunicacéo do mesmo aos membros da comunidade, ou seja, sem redistribuicfio, como nos adverte Jacques Manrrain. O bem comum néo existe sem que se concretize o bem da comunidade e da pessoa humana. Dentro de uma filosofia humanista, o bem comum ha de ser comunitérjo e personalista. Por sua propria natureza, ha exigéncias da justica que s60 a0 mesmo tempo de um e de outro tipo. Exemplo tipico disso, na atualidade, é 0 da fixagao de pregos justos no comércio internacional. De um lado, tal fixago € exigéncia da justiga comutativa, que manda sempre que uma parte dé A outra 0 que Ihe devido, dentro do prin- cipio da igualdade. De outro lado, porém, é exigéncia igual- mente da Justiga social ou do bem comum internacional, que IWTRODUGAO A CLNGIA DO DIREITO as manda que todos os paises déem @ comunidade das nagées a cooperacéo de que so capazes para o bem-estar geral. A liberdade das transagées, tanto no plano interno quanto no plano internacional, s6 é justa quando subordinada As exigéncias da justica social. Por isso, como assinalam as iiltimas enciclicas pontificias, as exiyencias da justica comutativa, quando interessam ag bem comum, sio igualmente exigéncias da justiga social. A injustiga tanto se pode exercer contra os critérios pessoais quanto sobre os interesses comuns. Por isso, geral. mente, pode assumir nfio s6 a forma tipica de procedimento ilfcito como de lei injusta.

Você também pode gostar