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Campanha antirreligiosa

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Os comunistas tinham a intenção de implementar o ateísmo na recém-criada União


Soviética e acreditavam, como Marx tinha escrito, que o “ópio do povo” naturalmente
desapareceria à medida que as causas sociais da religião fossem eliminadas na sociedade
socialista. Lênin comparava a religião a uma doença venérea. Como escreveu o romancista
Alexander Soljenítsin, “o ateísmo militante não é apenas incidental ou marginal à política
comunista. Não é um efeito colateral, mas o seu pilar central”.

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Desde 1917 até ao período da Perestroika, na década de 1980, os soviéticos exercitaram
sua perversa criatividade procurando diferentes maneiras de erradicar a religião - sem
sucesso. Nos anos que se seguiram à Revolução Russa, a vontade dos bolcheviques de
abolir o sentimento religioso vinha encontrando dificuldades, de tão incrustado que ele
estava na alma do povo russo. Por mais que o governo confiscasse sinos e tesouros de
igrejas e por mais que prendessem membros do clero, as pessoas continuavam a
frequentar as missas.

Logo os líderes do Partido Comunista se deram conta que teriam que radicalizar a luta
contra a religião. Em 1927, Josef Stalin – ele mesmo um ex-seminarista – criticou o que via
como “um enfraquecimento na luta contra a religião”. Entre as medidas em vigor estavam
desde a proibição da filiação de devotos religiosos ao Partido até o assassinato em massa
de padres e bispos e a destruição de catedrais e igrejas. Mas, para combater a fé do
homem comum e diante do fracasso de táticas como palestras, conferências, cartazes,
peças de rádio e filmes publicitários, atitudes mais drásticas seriam necessárias.

Banheiros públicos
Em 1939, apenas 100 igrejas continuavam em funcionamento na União Soviética e somente
12 bispos ainda estavam vivos. Ainda assim, 57% da população continuavam se dizendo
adeptos de algum tipo de crença religiosa, principalmente no interior do país. As poucas
igrejas que ainda restavam tinham sido transformadas em prisões ou até mesmo
banheiros públicos.

Foi então que o chamado "Comissariado do Iluminismo" desenvolveu uma nova estratégia:
os museus do ateísmo. Inicialmente, eles ficavam em prédios destinados especificamente
para esse propósito, mas logo arquitetos, historiadores da arte e defensores do patrimônio
religioso que ainda tinham um resquício de sanidade viram nessas instituições uma
oportunidade de transformar as próprias igrejas, mosteiros e templos em museus, como
forma de tentar preservar os tesouros artísticos e arquitetônicos da história russa.

Felizmente a ideia não só foi aceita como se expandiu para além da religião cristã, principal
bicho-papão do Politburo. Dessa maneira, até mesmo outras religiões, que foram
perseguidas de maneira ainda mais selvagem pelos soviéticos, tiveram alguma chance de
ter algo preservado. Na cidade criméia de Eupatória, por exemplo, a mesquita central foi
transformada num museu, assim como o grande datsan da região da Buriátia, considerada
a única região majoritariamente budista da Europa.

O salvador da Catedral de São Basílio


Entre as figuras mais proeminentes desse movimento estava o arquiteto e restaurador
Pyotr Baranovsky. Filho de camponeses, depois de passar a juventude estudando e
catalogando centenas de obras arquitetônicas por toda a União Soviética, Baranovsky foi
incumbido, em meio ao auge da campanha antirreligiosa da década de 1920, de restaurar a
Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, eliminando todas as alterações posteriores
feitas ao edifício medieval original.

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Em 1923, ele conseguiu proteger o Mosteiro de Boldino da destruição incorporando-o a um
museu local para o qual conseguiu trazer diversas relíquias. Ao perceber o risco que o
museu estava correndo, Baranovsky contratou os serviços do fotógrafo Mikhail Pogodin
para documentar todo o acervo. Infelizmente, tanto o museu quanto as fotos que
documentavam um ramo peculiar da ortodoxia russa que reúne traços católicos foram
quase que totalmente perdidos em 1929.

No mesmo período, Baranovsky fez estudos e desenhos extremamente detalhados da


Catedral de Kazan, também na Praça Vermelha, já antecipando a inevitável destruição que
a acometeria em 1936, por ordens do bigodudo ex-coroinha. Stalin decidiu limpar a Praça
Vermelha de todas as suas igrejas, preparando o local para receber as gigantescas paradas
militares que povoam os sonhos de todo ditador. Baranovsky fracassou na tentativa de
preservá-la, mas conseguiu chegar a um acordo e salvou a Catedral de São Basílio – talvez o
marco mais famoso da capital russa.

Em 1934, ele foi acusado de propaganda antissoviética e mandado para a Sibéria.

Já outra Catedral de Kazan, a de São Petersburgo – ou melhor, Leningrado – teve um


destino menos drástico. Completada em 1811, tendo por inspiração a Catedral de São
Pedro, no Vaticano, dedicada à Nossa Senhora de Kazan e, curiosamente, local do primeiro
protesto político da história russa, em 1876, a catedral, um imponente edifício adornado
com colunas de granito vermelho, foi fechada para cultos em 1932 e virou um "templo do
ateísmo" que perdurou até quase o fim da URSS.

Embora a intenção de alguns dos responsáveis por manter esses museus fosse preservar o
patrimônio artístico e religioso, a de quem estava por trás dessas decisões era outra:
“educar” o povo a respeito da influência nociva representada pela religião, descrevendo-a
como uma força motriz, ao longo da história, de todo tipo de ignorância, preconceito e
obscuridade, e contrastando-a com os avanços progressistas e liberalizantes da ciência.

Objetos de religiões tidas como primitivas, como máscaras e amuletos de tribos africanas e
siberianas, eram exibidas ao lado de crucifixos e relíquias ortodoxas. Instrumentos de
tortura da Inquisição católica mostravam ao visitante as crueldades de que religiosos
tinham sido capazes ao longo da história. Fósseis de dinossauros, meteoros e as mais
variadas descobertas científicas eram exibidos para contrapor os avanços da ciência aos
“dogmas primitivos”.

Padres e monges eram mantidos como “assistentes de pesquisa” e expostos publicamente


como animais em extinção, curiosas relíquias vivas. Ossos de santos tidos como
“milagrosamente mumificados e preservados por séculos” eram exumados e expostos para
desmascarar a suposta fraude dos perversos idólatras e frases de efeito tidas como
antirreligiosas – muitas vezes erroneamente – como a do romano Públio Papínio Estácio, “o
medo criou os deuses”, eram pintadas sobre paredes centenárias.

Até o escritor Liev Tolstói – curiosamente, também excomungado pela Igreja Ortodoxa
Russa em 1901 – foi retratado como Judas durante o Julgamento Final numa ilustração.

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Os corajosos turistas que visitavam o país eram encorajados a visitar esses museus.
Durante uma visita de cientistas franceses, um intérprete russo comentou,
orgulhosamente: “Cavalheiros, nós optamos por confiar na ciência. Aqui os senhores
podem ver tudo o que a nova Rússia conquistou na ciência: medicina, química, física,
biologia, aviação, indústria. Não precisamos da religião para obter milagres.” Guias
turísticos expunham imagens da Virgem Maria que choravam diante dos espectadores e
em seguida explicavam como o truque havia sido feito. Muitos desses visitantes saíam
desses passeios convencidos da superioridade do socialismo sobre a decadente sociedade
ocidental – embora outros tantos saíssem constrangidos com sua ingenuidade.

Apesar do enorme sucesso de público desses museus (até que ponto espontâneo, jamais
saberemos), o ateísmo nunca “pegou” de fato na União Soviética.

Ateísmo "enfadonho"
A maior parte da população simplesmente optou por uma espécie de apatia religiosa em
vez de se engajar no ateísmo militante pregado pelo governo central e os poucos grupos de
religiosos que tinham alguma condição financeira continuava alugando, sempre que
podiam, os espaços que ainda restavam para seus cultos e cerimônias.

O ateísmo científico passou a fazer parte do currículo escolar, ao lado de matérias


tradicionais como história e geografia e, sob o governo de Nikita Khruschev, era ilegal para
os pais ensinarem religião a seus filhos. Em 1975, um célebre pôster foi lançado,
mostrando um cosmonauta em pleno espaço, com um sorrisinho irônico, ao lado dos
dizeres: “Deus não existe”. Apesar disso tudo, numa pesquisa feita no mesmo ano, a
maioria da população declarou achar o dogma ateísta “enfadonho”.

Já na década de 1980 autoridades soviéticas começaram a admitir sua derrota na batalha


contra a religião. Com o fim da União Soviética no início da década seguinte, o ateísmo
militante se foi, juntamente com seus museus. A maior parte das igrejas e templos que
ainda restavam foi restaurada às suas funções originais.

A Catedral de Kazan de Moscou foi reconstruída entre 1990 e 1993, com um grau de
fidelidade poucas vezes alcançado na história humana, graças à minúcia dos estudos feitos
por Baranovsky. A de São Petersburgo teve os seus serviços religiosos restaurados em
1992.

As missas e funções nas igrejas russas atualmente estão repletas de fiéis – talvez ainda
mais do que nos tempos pré-revolução – e a Igreja Ortodoxa exerce uma influência cada
vez maior no governo de Vladimir Putin.

Pyotr Baranovsky morreu aos 92 anos, em 1984, depois de passar décadas chefiando
trabalhos de restauro em diversos edifícios históricos e religiosos por toda a Rússia.
Atualmente, ele está sepultado no Mosteiro de Donskói, em Moscou.

Infelizmente, ainda não costumam erguer estátuas para arquitetos ou restauradores.

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