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42º Encontro Nacional da Anpocs

GT-33– Trabalho, trabalhadores e ação coletiva

Inserção múltipla, trabalho intermitente e filiação cultural em pauta:


o trabalho de músicos brasileiros na França

Jordão Horta Nunes – UFG


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Inserção múltipla, trabalho intermitente e filiação cultural em pauta:


o trabalho de músicos brasileiros na França

Jordão Horta Nunes1


On parle de parité Demoiselle est à la fette
On parle d'égalité Demoiselle est au bon air
Mais les femmes qui travaillent Le forró remplit sa tête
N'ont pas gagné la bataille Le baião emplit son coeur
On parle de parité Demoiselle au romantique
On parle d'égalité Au madame est transformée
Mais les femmes qui travaillentL Par amour à la musique
Ont pas fini de batailler Pour vous chante chante
Chante toute à journée
Rita Macêdo e Françoise Chapuis
Le Femmouzes T. Sur sa chemisette, sur sa chemisette
Sur sa chemisette
Son petit coeur fait toum toum toum

Cristiano Nascimento e Claire Luzi


Duo Luzi Nascimento

O trabalho de migrantes brasileiros tem aparecido no enfoque das ciências


sociais, sobretudo quando relacionado a estratégias de sobrevivência e mobilidade
social no desempenho de ocupações subalternas. Sob outro aspecto correlato a literatura
remete à valorização de gêneros populares da música brasileira, como samba, bossa e
choro, no mercado cultural internacional. São bem menos frequentes, no entanto,
investigações sobre o tema mais específico do trabalho de músicos brasileiros no
exterior (e.g., REIS, 2012; FURTADO, 2014, SEGNINI, 2016). A principal questão
relacionada a esta comunicação é relativa à identidade profissional desses músicos: qual
é seu perfil no mercado de trabalho musical na França? Como eles se reconhecem no
exercício de atividades musicais que podem ser tão diversas, como performance,
arranjo, composição, ensino, regência, pesquisa, produção? Como são reconhecidos e
valorizados nos diversos contextos de relações sociais, como família, ambientes
culturais, locais de trabalho? As respostas estão relacionadas ao mundo institucional,
objetivo, mas também a subjetividades e contextos comunicacionais, um traço quase
consensual nas abordagens sociológicas da identidade pessoal/profissional (e.g.
DUBAR, 2006; SENNETT, 2014). Supõe-se que formas de regulação e contratação,
como o regime de trabalho dos intermitentes do espetáculo vigente na França a partir de
1939 influenciam bastante a construção dessas formas identitárias. No entanto, é
importante também considerar as motivações e expectativas de músicos que tiveram
1
Doutor em Sociologia e docente na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Goiás. E-mail: jordao_fcs@ufg.br.
2

parte de sua formação ou mesmo de experiência de trabalho previamente no Brasil,


antes de sua emigração e fixação em outros países, como o caso da França que aqui
interessa, e estas estão certamente relacionadas a contextos de políticas culturais e
formas de regulamentação e organização do trabalho musical no Brasil.
A comunicação está relacionada a uma pesquisa em estágio pós-doutoral
realizado de março a julho de 2018, sobre o trabalho de músicos brasileiros em
atividade há pelo menos um ano na França; nesse período fui acolhido pelo Laboratório
Printemps da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines. A principal questão
relacionada a esta comunicação é relativa à identidade profissional desses músicos: qual
é seu perfil no mercado de trabalho musical na França? Como eles se reconhecem no
exercício de atividades musicais que podem ser tão diversas, como performance,
arranjo, composição, ensino, regência, pesquisa, produção? Como são reconhecidos e
valorizados nos diversos contextos de relações sociais, como família, ambientes
culturais, locais de trabalho? As respostas estão relacionadas ao mundo institucional,
objetivo, mas também a subjetividades e contextos comunicacionais, um traço quase
consensual nas abordagens sociológicas da identidade pessoal/profissional (e.g.
DUBAR, 2006; SENNETT, 2014).
Embora não costume trabalhar estritamente com hipóteses a priori, posso
identificar alguns enunciados, que poderia considerar como conjeturas:
- a situação de músicos brasileiros na França, em termos de perfil no mercado de
trabalho, organização do trabalho e remuneração e organização do trabalho não difere
significativamente da situação dos músicos em geral, a não ser em relação ao fato de sua
condição de imigrado;2
- a identidade profissional está relacionada a formas de contratação e principal gênero
musical desempenhado (música erudita [savante] e música popular) e não a tipos de
atividade desenvolvidas;
- a filiação cultural representa mais uma estratégia para garantir um mercado de trabalho
do que propriamente uma identificação estética com gêneros musicais tipicamente
brasileiros.
Em relação ao processo de emigração no Brasil, a França não ocupa lugar de
destaque, ocupando cerca de 4% do fluxo total de emigrantes segundo o Censo de 2010
e não está entre os seis países, encabeçados pelos Estados Unidos, que ocupavam 70%
do fluxo de emigrados. As estatísticas oficiais do Governo francês, relativas a 2013,
2
Observação sobre o conceito de imigrado.
3

apuradas pelo Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos da França


(INSEE) e utilizadas pelo Ministério do Interior, apontam para comunidade brasileira
composta por 43.383 pessoas, dos quais 22.704 do sexo feminino (52,3%) e 20.678 do
sexo masculino (47,7%). Essa população certamente é subnotificada, pois não incorpora
migrantes ilegais e nem cidadãos brasileiros que adquiriram nacionalidade francesa.
Esse grupo de brasileiros integra, no entanto, um conjunto de imigrados das Américas e
da Oceania que, segundo os últimos dados do INSEE, compunham apenas 5,6% do
fluxo de imigrados em 2014. No entanto, é importante considerar que a França tem
quase 10% de sua população composta por imigrados, o que contrasta, por exemplo,
com o Brasil, cuja população estimada de imigrados, incluindo os ilegais, é cerca de 1%
da população total.
É difícil estimar o número de músicos brasileiros que residem e trabalham na
França, pois não há, nas bases de dados de instituições governamentais, como o INSEE
e nem de cadastros de contratantes, como o do grupo Audiens3, uma variável que
designe o país de nascimento para países com baixo fluxo de imigrantes para a França,
como é o caso do Brasil. O país de origem, nesses casos, está presente apenas em
variáveis agregadas como ―União Europeia‖, ―America Latina‖ etc. Pierre-Michel
Menger demonstrou, em livro que é considerado uma das mais acuradas análise do
trabalho de intermitentes do espetáculo na França, o espetacular crescimento de 278%
no número de músicos ativos de 1982 a 2007, com base em dados do INSEE relativos a
censos realizados (2011, p. 341). O crescimento certamente foi menos pronunciado após
2003, quando mudanças foram introduzidas no regime de intermitência, afetando a
evolução no setor, ainda que a crise dos intermitentes pós 2004 tenha, como se verá a
seguir, se originado de diversos fatores não previstos durante o desenvolvimento dessa
política de proteção social no mundo das artes.
A tabela 1’ traz alguns dados sobre o trabalho de músicos em período mais
recente, de 2003 a 2016, com base na Enquête Emplois contínua.4 As flutuações no
número de ativos em cada ocupação no setor de espetáculos não correspondem
exatamente ao número de artistas, pois um trabalhador pode, por exemplo, em alguns

3
Grupo de proteção social exclusivamente dedicado aos profissionais do audiovisual, da
comunicação, da impensa e do espetáculo. O grupo orienta, direciona, as ações socialmente responsáveis
pelo acompanhamento de processos relativos à trajetória ocupacional/profissional dos trabalhadores:
aposentadoria complementar, segurança pessoal, médica, prevenção e serviços aos profissionais.
4
A Enquête Emplois continue é uma pesquisa realizada pelo INSEE na França a partir de 2001
(sucedeu a Enquête Emplois anual), com objetivo de observar de forma estrutural e conjuntural a situação
das pessoas no mercado de trabalho.
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anos, privilegiar o ensino em suas atividades e ter a maior parte de sua renda mediante
contratos de duração determinada (CDD), em conservatórios, por exemplo. Nesse caso
ele não aparece nesta tabela, mas é contabilizado como professor em outro grupo
ocupacional. Assim, os músicos aqui representados são principalmente os que vivem,
em cada ano considerado, sobretudo de contratos por prestação de serviços intermitentes
(apresentações em casas noturnas, concertos, animações culturais em eventos, aulas
particulares, gravações em estúdio etc.), designados como CDDs d’usage (contratos
eventuais por prestação de serviços musicais). Podem acumular, dentre de um limite,
horas de CDDs em estabelecimentos escolares ou até em outros setores de atividades,
sem perder o direito ao abono por intermitência, desde que contabilizem pelo menos xx
apresentações em espetáculos pelo período de um ano ou, a partir de 2004, por dez
meses. Embora a tabela não inclua outras variáveis que permitam avaliar melhor a
situação, é razoável considerar que a porcentagem de não-assalariados no setor
corresponde à de musicistas que se aproximam da informalidade e da precariedade
considerando apenas o vínculo no mercado como artistas de espetáculos, pois embora
tenham acumulado CDDs por apresentações, não o fizeram em número e carga horária
suficiente para receberem a complementação salarial pelo regime de intermitência, já
que neste o trabalhador é considerado sempre como assalariado, ainda que
necessariamente alterne, de forma intermitente e sucessiva, durante o ano, períodos de
emprego e desemprego. O rendimento corresponde à remuneração média líquida apenas
no trabalho principal, ou seja, como músico, não incluindo outros rendimentos como no
ensino em escolas de música. Nesse aspecto não é possível comparar rendimentos de
músicos imigrados e franceses, pois em alguns anos não foram entrevistados músicos
imigrados e a amostra da qual se infere o número de trabalhadores ativos é pequena, já
que provinda não de um recenseamento, mas da Enquête Emplois. Ainda assim, supõe-
se que haja algum desnível, em termos da condição de músico imigrado, similar ao que
ocorre no mercado de trabalhadores ativos como um todo, representado na tabela e que
se manteve relativamente constante, na faixa de 12%. No entanto, esse desnível
provavelmente não está relacionado significativamente a um tipo de preconceito, mas
sim a uma diferença no capital cultural, ligado à formação escolar ou capacitação e ao
tempo de trabalho exercido na ocupação, em ambos os casos.
Há outros dados que nos permitem inferir que a França tenha acolhido mais
imigrados como profissionais de artes e espetáculos, ainda que as condições mais
imediatas para a acolhida de estrangeiros no mercado de trabalho não seja muito
5

favorável, conforme aponta Mantelin (2003), destacando, por exemplo, a não concessão
do regime de intermitência a imigrados que ainda não adquiriram a nacionalidade
francesa. Entretano, o afluxo de estrangeiros na formação musical de nível superior tem
sido crescente, conforme ilustra o gráfico 1, a partir de 2003-4, no que concerne ao
número de estudantes em ensino superior na área cultural de espetáculos ao vivo,
fenômeno que não tem ocorrido em outras áreas correlatas, como ensino de arte, artes
plásticas, patrimônio, arquitetura, cinema e audiovisual. Por outro lado, tem ocorrido,
nos últimos quinze anos, uma profunda transformação nos hábitos de consumo de bens
culturais, ilustrada no gráfico 2: mais do que dobrou o que se gasta na França com
espetáculos ao vivo; diminuíram as despesas com livros e jornais impressos, ainda que,
sob outro aspecto, o crescimento dos gastos com bens e serviços relacionados à cultura,
como computadores, jogos e softwares, celulares e serviços de distribuição de RTV e
streaming, tenha aumentado em relação a serviços relacionados ao trabalho de produção
cultural.

Fonte: DEPS, Ministère de la Culture et de la Communication de l’Enseignement supérior et de la


Recherche, 2017
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Gráfico 2 – Consumo dos domicílios em bens e serviços culturais – França – 1980 – 2015

Fonte: INSEE

A metodologia envolve primeiramente um levantamento da literatura a respeito


do trabalho musical na França, sobretudo após as transformações a partir de meados da
década de 1980, como a preponderância crescente de contratações para espetáculos ao
vivo em relação a outras formas relacionadas a registros gravados. Nesse aspecto duas
referências são fundamentais, já que a obtenção de dados sobre o trabalho de músicos
em suas múltiplas atividades é bastante difícil e pouco confiável, dada a instabilidade, a
pluriatividade e a inserção múltipla em diversos vínculos que caracteriza o setor. A
primeira é a constituição do Centro de sociologia do trabalho e das artes CESTA, de
2002 a 2006, sob a coordenação de Pierre-Michel Menger. O CESTA obteve, mediante
convênio, dados protegidos da Caisse des Congés spectacles (Fundo de abonos a
espetáculos), que alimentaram uma série de pesquisas sobre o trabalho musical na
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Quadro 1 – Vínculos em ocupações, rendimentos e estatuto de assalariado por ano – Artistas - França – 2003-2016

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Artistas plásticos 27.063 19.372 22.988 30.469 33.628 34.951 28.830 30.344 34.447 27.244 27.746 35.406 33.200 37.706
Músicos 24.148 21.946 26.723 39.996 35.956 21.377 36.762 30.921 27.279 30.839 31.393 34.695 36.831 31.096
Atores 22.702 17.346 14.959 18.438 8.689 18.791 21.761 19.992 19.044 23.419 21.538 22.205 26.916 20.239
Dançarinos e 6.709 3.595 5.838 6.250 6.646 9.025 9.472 9.991 15.709 12.250 12.796 7.371 7.477 6.887
circenses5
Renda média mensal 1249 1570 2143 1616 1516 1665 1735 1729 1796 1841 1326 1061 1451 973
na oc. princ.
% renda 85 89 88 88 86 88 89 92 88 92 86 86 85 87
imigrados/franceses
% assalariados em 88,80 89,22 89,47 88,92 89,19 89,45 89,17 88,58 88,41 88,24 88,21 87,69 87,81 87,80
geral
% músicos 78,79 83,87 78,38 85,42 78,43 86,67 81,25 83,05 83,33 76,67 71,70 63,93 68,25 73,68
assalariados
Fonte: microdados da Enquête Emplois em continu, INSEE6

5
Não está representado na tabela o agrupamento de ―professores de arte (fora de estabelecimentos escolares)‖, código 354g, concernente sobretudo a aulas particulares de
arte. Apesar de ser o mais numeroso da família ocupacional de artistas, o agrupamento inclui professores de teatro, música, dança ou artes plásticas, impossibilitando isolar
especificamente professores de música.
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Agradeço aqui o professor Laurent Villemez, diretor do Printemps em 2018 por intermediar a obtenção dos microdados em formatos para pesquisa, junto à Fundação
Quetelet, bem como à engenheira Alexis, que me esclareceu a respeito da obtenção e uso dessas bases.
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França. O Fundo foi criado em 1939 para gerenciar o regime de indenização de abonos pagos
a trabalhadores (artistas e técnicos) intermitentes ligados à realização e produção de
espetáculos. O regime diferenciado tornava-se necessário para compensar as condições de
trabalho precárias e a existência de múltiplos empregadores nas trajetórias típicas no setor, O
regime de trabalhadores intermitentes de espetáculos foi alterado significativamente em 2003
e em 2014 tornou-se acessível a assalariados em contrato por tempo indeterminado, sob
certas condições. O acompanhamento longitudinal de fichas cadastrais de trabalhadores/as
beneficitários/as do Fundo, associado a entrevistas de profundidade e pesquisa histórica por
pesquisadores componentes do CESTA embasaram empiricamente obras de referência
obrigatória sobre trabalho e gênero de músicos na França (p. ex. MENGER, 2011;
COULANGEON, 2004, RAVET, 2011). Entretanto, é necessário considerar o regime de
trabalho intermitente associado: a) ao crescimento do número de músicos em atividade na
França, como categoria principal de artistas intérpretes, a partir da década de 1990; ao
crescimento significativo de unidades de ensino artístico na França e, por outro lado, de
valorização, a partir de 1980, da valorização das artes ligadas ao entretenimento (Cf.
COULANGEON, 1999) e de formas musicais populares como o jazz, o rock, o rap e os
diversos estilos da chamada música étnica. Linhas de ensino e pesquisa ligadas ao jazz e
música improvisada passaram a ser criadas, a partir de 1990, nos conservatórios nacionais,
únicas unidades de ensino responsáveis pela habilitação do ensino de música em nível
superior, na França, privilegiando, ainda que indiretamente, músicos adeptos de estilos mais
livres de composição, arranjo e performance, outrora inseridos exclusivamente no campo da
música popular.
A segunda referência é a pesquisa coordenada por Coulangeon (2004) dos músicos
intérpretes na França, com dados da pesquisa realizada pelo CESTA e entrevistas de
profundidade com músicos no período que antecedeu a mudança em 2003 do regime de
trabalho intermitente. Com base em variáveis como rendimento, sexo, nível de escolaridade e
outras relativas ao trabalho, como ocupação, tempo de experiência, forma de contratação
(CDI, CDD ou intermitente), duração média do contrato, tipo de inserção (ensino, espetáculo,
produção) e outras ao mundo da música, como gênero (erudito ou popular) e tipo de atividade
(performance, composição etc.), Coulangeon construiu uma tipologia do trabalho de músicos
intérpretes, mediante uma análise de correspondência múltipla em que se identificou os
seguintes perfis de atividade, aqui empregados para orientar a seleção de músicos
entrevistados: ocasionais, precários, quase-permanentes, acumulador de atividades,
periféricos e multi-inseridos (cf. COULANGEON, 2004, p. 182-228).
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Não é possível acompanhar longitudinalmente as trajetórias de músicos brasileiros na


França com base em bases como o cadastro de intermitentes indenizados pelo Fundo, hoje
administrados pelo grupo Audiens (http://www.audiens.org), paritário de empregadores e
empregados do setor de profissionais da cultura, da comunicação e das mídias. O principal
motivo, além, evidentemente, da inacessibilidade a microdados identificados sem negociação
prévia ou convênio, é a ausência de uma variável não agregada que designe o país de origem
e não apenas a condição de estrangeiro. Daí a importância metodológica de entrevistas de
profundidade com músicos brasileiros em atividade há pelo menos um ano na França, além
de recursos a dados de redes sociais, como perfis de indivíduos e grupos de músicos e trocas
de mensagens entre eles.
O acesso inicial a esses músicos foi iniciado a partir de uma inserção no Club du
Choro de Paris, associação fundada em 2001 e dirigida pela pianista brasileira Maria Inês
Guimarães. O Club du Choro promove cursos e workshops sobre choro e outros gêneros
brasileiros, além de um Encontro internacional anual, já em sua 14ª edição. Como violonista
amador, matriculei-me em dois cursos, que tenho frequentado desde fevereiro de 2018, além
de ensaiar e participar de apresentações de um dos conjuntos do Club, numa prática
etnográfica que permite acompanhar atividades como ensino, performance e produção
realizada por músicos brasileiros em equipes com colegas franceses e de outras
nacionalidades. Esse trabalho de campo permite a construção de uma amostra intencional, do
tipo de bola de neve, para entrevistas de profundidade. Como o choro é um gênero
instrumental brasileiro que, a exemplo do jazz e do tango, requer domínio da linguagem
musical para sua performance e difusão, seus adeptos provêm de formações diferenciadas, no
campo da música popular ou erudita, o que facilita o contato com profissionais dedicados a
outros gêneros musicais.
As entrevistas, com duração média de uma hora, foram realizadas de forma presencial
em locais públicos (cafés e praças), locais de trabalho (escolas, lojas de instrumentos e
partituras, casas noturnas, estúdios), nas próprias casas dos músicos. Houve também
entrevistas por comunicação intermediada, tipo voz sobre ip (aplicativos como Skype,
Whatsapp e Messenger) em computador ou celular. Todas foram gravadas e transcritas,
precididas pela veiculação e aceitação por escrito de termo de consentimento adequado às
normas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Os/as musicistas
entrevistados/as escolheram um nome para serem designados no arquivo de transcrição,
geralmente fictício, embora diversos interlocutores preferiram utilizar o nome artístico ou o
primeiro nome próprio, já que, como artistas e intérpretes, são pessoas públicas. Não
designamos, no entanto, nas citações que empregamos eventualmente neste paper, quais
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nomes são verdadeiros ou fictícios. A tabela 2 a seguir resume o perfil dos/as


interlocutores/as:

Tabela 2 – Musicistas brasileiros/as que trabalham na França – França – 2018


Cognome Instrumento Sit. Conj. Idade Contrato genero Residência
Anitta piano casada CDD erudito Paris
Margaret piano casada 60 CDI erudito Paris
CPP percussão separado 45 CDD d’usage popular Paris
Cristiano Violão 7 cordas e Casado 40 intermitente popular Aix-en-Provence
outros
Elio Violão voz casado CDD popular Tours
d’usage
Gustavo violoncelo solteiro CDD jazz bras Paris
Heloisa piano e voz solteira 58 CDI erudito Paris
Iara viola e violino união estável 27 CDD erudito Paris
intermitente
Marcelo cavaquinho e casado intermitente popular Rennes
percussão
Marco violão 7 cordas união estável 36 CDI jazz bras Paris
Maria Inês piano casada CDI choro Antony
Nana canto separada intermitente popular Toulouse
Rita acordeão e voz casada 53 intermitente popular Toulouse
Samuel flauta casado CDD erudito Paris
regência
Silvia piano solteira 36 CDD erudito Paris
Walber violino solteiro 23 CDD erudito Paris
Yaya Supé violão e canto solteiro 54 intermitente popular Toulouse
Fonte: entrevistas realizadas pelo autor

Identidade, inserção múltipla e o regime de intermitência

Os músicos entrevistados residem, na maioria, em Paris, geralmente em regiões


suburbanas, como Montreuil, Lilas, Fontenay-sous-Bois, ou pequenas cidades próximas,
como Antony. Duas musicistas residem em bairros do perímetro urbano e os seis restantes em
cidades localizadas em outras regiões da França, além da Île-de-France, onde está Paris,
como Normandia, ao norte, vale do Loire, no centro, Occitania, no sudeste e PACA
Provença, Alpes, Costa Azul), no sul. Trabalham principalmente em escolas, conservatórios,
casas de espetáculos, lojas de instrumentos, associações, mediante contratos que vão desde os
mais estáveis, contratos por tempo indeterminados (CDI), por tempo determinado (CDD),
contratos de curta duração por serviços no setor de espetáculos, como apresentações em
cafés, teatros etc (CDD d’usage) e contratações amparadas pelo regime de intermitência,
quando o músico consegue cumprir o mínimo de 507 horas de apresentações comprovadas ou
o recebimento de 43 cachês por apresentações.
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O número de contratos mais estáveis, como o CDI, é baixo entre os músicos e, no


caso dos entrevistados, nenhum estaria nas estatísticas do INSEE sobre o trabalho no setor, já
que as/os musicistas que usufruem de CDIs, obtiveram esses contratos em outros setores,
como professores de educação artística (Maria Inês, Margaret e Heloisa) ou empregados no
setor de vendas (Marco). Os empregos de CDIs entre músicos geralmente são restritos a
corpos orquestrais estáveis, como na companhia Ópera Nacional de Paris. Entretanto, o CDI
na educação musical é bastante cobiçado e praticamente inatingível a músicos estrangeiros
que ingressam no país, devido a exigências burocráticas para a obtenção de certificados que
viabilizem, por exemplo, lecionar em instituições públicas, como conservatórios municipais.
Maria Inês, pianista brasileira que está há quase trinta anos França, nunca foi
intermitente, mas ostenta uma trajetória diversificada, desde sua formação inicial no Brasil,
num conservatório municipal em Uberaba, no Triângulo Mineiro. Chegou a se formar como
odontóloga e acumular a ocupação de dentista com atividades musicais, tocando em casas
noturnas. Chegou a fazer um mestrado na USP viajando de carro três vezes por semana e
acumulando dezoito horas de trabalho por dia, numa situação que perdurou por sete anos.
Decidiu então realizar um doutorado na França e doutoranda na Sorbonne, defendendo sua
tese em 1996, no curso de Musicologia. Realizou também em cursos de interpretação
pianística, análise musical e música de câmara na Escola Normal de Paris. Começou a
trabalhar na França numa academia dirigida por uma de suas professoras na Escola Normal,
ministrando também aulas particulares. Atuou muito também, no início da vida em Paris,
como intérprete:

Mas na época era muito mais bem pago, você tocava e podia viver disso e apareceu
um projeto para eu gravar dois discos na Alemanha e, estava tudo dando certo aí...
eu terminei o doutorado e acabei ficando porque não tinha ainda o cargo no Brasil
para eu propor nada pra ir trabalhar lá também. Fiquei mais como interprete aqui e
trabalhei também como musicóloga e sempre na área da música brasileira, porque
fiz música brasileira, seja clássica ou popular, era meu projeto como interprete e
como compositora, lógico, eu sou brasileira, então eu não tive que criar um espaço
aqui forçado, sabe?

Depois que se casou e teve o primeiro filho, decidiu prestar um concurso público,
ingressando como professora de ensino artístico no Conservatório Darius Milhaud de Antony,
cidade muito próxima de Paris, onde passou a residir. Maria Inês elogia o contrato de
trabalho no conservatório onde ingressou, em comparação com o CDI e o regime de
intermitência:
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Como eu tinha doutorado fiz uma equivalência passei o concurso e tenho então o
Grade A , aqui na França tem esse estatuto, que eu considero melhor ainda que a
intermitência, que é ser professor de ensino artístico, né? Eu tenho dezesseis horas
de aula e tenho o resto do tempo pra continuar a ser músico porque eles consideram
que o professor do conservatório tem que ser músico, não pode dar aula o tempo
todo, senão ele para de criar, isso não existe em nenhum lugar do mundo. É um
estatuto único, que eu saiba, a gente só tem dezesseis horas e tem um salário como
se trabalhasse quarenta. Porque considera-se que você tem que produzir, então tudo
que você faz, quer dizer, compor, publicar, fazer formações pedagógicas e organizar
projetos, faz parte do perfil do professor que eles querem nos conservatórios. É
torcer pra esse estatuto continuar existindo, porque tem sempre os que querem
agredir esse espaço...

As condições e direitos relacionados ao cargo de professor de ensino artístico nesses


conservatórios assemelham-se às prescritas no estatuto de docentes de ensino superior em
universidades federais brasileiras, pelo Regime Jurídico Único, ainda que restritas ao ensino
em nível médio, pois é necessário o envolvimento em pesquisa e extensão, além do ensino.
A trajetória de Maria Inês envolve também um trabalho de divulgação da música
brasileira, de formação de repertório e público, que já se manifestava quando colaborou com
Eudóxia de Barros e seu marido Oswaldo Lacerda no Centro de Música Brasileira, na cidade
de Campinas, SP. Em Paris fundou o Cebramusik (Centro Euro-brasileiro de Música), no
qual se tornou diretora em 1996. Em 2001 criou o Clube do Choro de Paris, que promove
anualmente cursos abertos à comunidade de interessados, de violão, cavaquinho, percussão,
criando conjuntos que se apresentam em eventos promovidos pelo Clube em associação com
a Casa do Brasil, que acolhe pós-graduandos e pesquisadores do Brasil e de outros países, na
Cidade Internacional Universitária de Paris. O Clube promove, anualmente, um Festival
Internacional de Choro, que realizou em 2018 a sua 14ª edição.
O Clube do Choro de Paris emprega, mediante CDDs renováveis anualmente,
professores que atuam nos cursos oferecidos e participam da organização dos eventos
promovidos pela instituição. Apenas um deles é brasileiro e outros dois são franceses que já
assimilaram a técnica do choro, inclusive vindo ao Brasil para aperfeiçoamento. Produziram
também CDs e DVDs com música brasileira, além de oganizarem e particparem também de
rodas de choro na cidade de Paris. O professor brasileiro, CCP, foi por mim entrevistado na
época de realização do Festival Internacional, antes da roda de choro que iria ocorrer. CCP
tem 45 anos e é natural da cidade do Rio de Janeiro, onde teve sua iniciação musical na
escola Villa-Lobos, centro popular de formação musical ligado à Secretaria de Cultura. O
músico não tem conseguido completar o mínimo de 507 horas exigido para fazer jus ao
regime de intermitência. Seu rendimento provém de CDDs no Clube do Choro, numa escola
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no subúrbio onde reside, Fontenay-sous-Bois e numa associação que desenvolve o


bilinguíssimo português-francês pra crianças. Além disso, como percussionista, toca como
acompanhante em diversos grupos, ligados a associações musicais, como o Le Bal de la
Roda, no sul da França, Orquestra do Fubá e Coletivo Recôncavo, recebendo mediante
CDDs d’usage. Entretanto, CCP considera que uma relativa estabilidade em sua ocupação é
obtida no ensino, e não nas performances ao vivo:

Eu gostaria que no futuro toda essa parte de ensino fosse mais formal. Eu dou aula
semanalmente na escola de música no subúrbio perto de onde eu moro. O que
acontece? A semana passada a gente fez um show de final de temporada. Vai fazer
uma pausa e volta em abril. Eu não tenho nenhuma garantia de que aqueles alunos
vão voltar. Eles podem falar: vamos continuar, vamos ter outra apresentação em
junho. Só que assim eu posso no primeiro dia de aula me confrontar com a realidade
que, finalmente, eles não estejam interessados. De uma semana pra outra você pode
perder uma grande parte do seu rendimento, insatisfação profissional de ter aquela
classe perto da sua casa e tal. No show é mais difícil ainda adquirir essa
estabilidade. Mas no ensino é possível.

Evidencia-se uma relação entre o gênero musical desempenhado e a forma de


contratação que, a princípio, parece confirmar os velhos estereótipos de músicos com
formação erudita visando trabalhar em corpos orquestrais fixos, alguns até atingindo o CDI,
enquanto os que se dedicam a formas populares trabalham em casas noturnas um estilo de
vida mais nômade, passam de um projeto a outro, submetem-se a riscos, constituindo um
perfil mais coerente com a hiperflexibilidade do regime do trabalhador intermitente de
espetáculos. Porém, se considerarmos as trajetórias individuais, músicos eruditos podem
usufruir da condição de intermitentes, desde que tenham uma agenda regular de concertos,
principalmente em turnês internacionais. No entanto, quando isso ocorre, geralmente CDDs
como professores em conservatórios. É o caso, por exemplo, de Iara, 27 anos, violista e
violinista, há dez anos em Paris, que ostenta uma formação bem sucedida, após ter integrado
a Camerata Fukuda, ainda no Brasil:

Eu ingressei em Sorbonne em musicologia, então também tenho uma formação


acadêmica, musicóloga. Eu fiz o meu bacharel, meu mestrado. Obtive diferentes
diplomas no Conservatório de Paris que é o antigo, no violino e na viola, eu tive
diferentes diplomas, de performance e de concertista. Depois eu ingressei na viola
no Conservatório Nacional Superior de Paris, onde eu obtive o meu bacharel lá
como melhor menção. Recentemente conclui meu mestrado também com a melhor
14

menção. Entretanto estou seguindo e continuo fazendo uma tese que é a dedicada a
Gilberto Mendes, aqui em Paris com a Sorbonne.

Iara consegue aliar a condição de instrumentista convidada por orquestras,


principalmente em apresentações de óperas, com a função de educadora num dos vinte
conservatórios municipais de Paris, por CDD. Essa inserção múltipla a permite acumular 510
horas de concertos em cada ano nos últimos dois anos, o que a levou à condição de
assalariada intermitente, obtendo complementação pela Audiens. Como musicista está no
regime de intermitência, nos últimos dois anos e como educadora em conservatório renova
seu CDD a cada ano. Ela declarou, na ocasião da entrevista, estar com turnês marcadas para a
Índia, a Escócia e a República de Malta, no mês de julho de 2018. No entanto, seu contrato
no conservatório a afasta da condição de risco e alternância emprego-desemprego que os
intermitentes que tocam gêneros populares geralmente ostentam, pois os projetos que
desenvolve são respaldados pela escola e menos subordinados a pressões do mercado e a
exigências de contratantes, já que o conservatório tem também a preocupação de formar
plateias, o que, em médio prazo, pode resultar num aumento da demanda de alunos:

Já aqui no quadro do Conservatório eu já tenho bastante projetos e é uma sorte de


estar desenvolvendo dentro da pedagogia, obviamente, esses projetos hoje na
mediação musical, acho que é muito importante. Existe um grande investimento na
França sobre a mediação musical. A Filarmonia de Paris tem quase 15% da renda
que é destinada à mediação musical; é conseguir tornar acessível à música a todo
tipo de público. Aqui no Conservatório existe um trabalho de mediação musical
extremamente forte já com as crianças. (...) Então como a gente vai transformar
esse concerto acessível? É encontrar maneiras de interagir com as crianças.

A valorização positiva do regime de intermitência, seja não é o mais comum entre


músicos eruditos. Samuel, flautista e regente de corais e pequenos corpos orquestrais, assim
se posiciona em relação à condição de assalariado intermitente:

Então na verdade você tem que fazer muito cachê, você tem que viver fazendo
cachê, uma coisa que eu não gostaria. Eu gosto de trabalhar, por exemplo, uma
orquestra que vai montar um repertório, ano que vem você vai continuar com o
mesmo componentes, você vai poder aumentar o nível do trabalho. O cachê é um
trabalho esporádico e que você faz e termina o cachê e pronto, não tem nenhum
vínculo com o trabalho. Geralmente é difícil você ter um trabalho artístico bem
acabado, ter o mesmo nível, a mesma participação quando é algo que você tem um
vínculo [de trabalho] como outro que é só um trabalho esporádico.
15

Na condição de regente e instrumentista, Samuel também exercita a inserção múltipla:


chefe titular do Coro e do Conjunto Orquestral Interuniversitário de Paris , chefe dos coros
L’Oreal, Faidoli e o do Campus Paris-Saclay e professor em diversas associações de música.
Transformou essas práticas de ensino de flauta transversal e regência em tema de seu
mestrado em Musicologia pela Sorbonne. Além disso, é regularmente convidado para tocar
na Orquestra Francesa de Flautas e em outros grupos. Mesmo que quisesse, Samuel não
poderia ser assalariado intermitente, pois ainda não obteve a nacionalidade francesa. Seu
rendimento como músico provém de diversos contratos CDD renovados anualmente e de
CDDs d’usage na condição de pessoa jurídica, como empreendedor individual:

Outra coisa às vezes eu faço: eu tenho uma empresa, aí eles me pagam uma quantia
determinada, eu mesmo pago as minhas comissões sociais, os impostos e tudo mais.
Raramente [o músico] tem um CDI, porque CDI é mais no conservatório... O ruim é
estar preso no Conservatório, na minha concepção, porque você fica preso com a
estrutura, você tem horário marcado, você tem que participar de reuniões, seu plano
pedagógico tem que está aliado ao diretor e aos outros professores, às vezes você
tem que definir repertório segundo o plano do conservatório.
.
Samuel declarou que o trabalho como PJ compõe entre 40 a 50% de sua carga horária
laboral, mas o que ganha nessas condições compõe mais de 60% de seu rendimento total: ―eu
ganho muito mais sendo empresário do que sendo empregado‖. Apesar de que a situação de
trabalhar como PJ corresponda a um tipo de relação desfavorável ao empregado, em razão da
ausência de proteção social e do ônus com impostos que caberiam ao empregador, Samuel a
valoriza, de certa forma, com a justificativa de que vínculos mais estáveis em conservatórios
acarretariam perda da liberdade criativa e da autonomia. Nesse ponto seu argumento
assemelhar-se ao de músicos que trabalham com gêneros populares, ainda que estes, por
outro lado, abracem o regime de intermitência [na conclusão colocar espírito empreendedor x
valorização da identidade como músico].
Margaret e Heloisa são musicistas brasileiras que estão há 38 anos na França e são da
mesma geração. Ambas estão ativas no mercado de trabalho, voltadas preponderantemente
para a educação musical e fizeram jus a CDI. Margaret é pianista, trabalhava no
Conservatório Charles Munch, em Paris e era vicediretora na ocasião da entrevista. Veio para
a França quando cursava, na Unesp, o ensino superior em música. Foi encorajada pela
pianista Anna Stela Schic, que intermediou a ida à França de diversos musicistas brasileiros,
juntamente com seu marido Michel Phillipot, pianista, matemático e compositor que lecionou
também na UFRJ. Margaret tem outros vínculos, além do CDI no conservatório, onde é
16

professora de piano, além de subdiretora. Em outro conservatório parisiense é chef de chant e


monta óperas. É também professora de formação musical para cantores de óperas e rege os
corais do Ministério do Trabalho e do Ministério da Saúde. Nunca trabalhou no regime de
intermitência, embora tenha, no início de sua trajetória na França, viajado muito em turnês e
recebido cachês para apresentações. Casada com um músico francês, violonista que trabalha
em outro conservatório, Margaret não tem filhos. Identifica-se sobretudo com a performance,
com a condição de intérprete musical, mas tem um espírito de sistematização e organização
de atividades que a tornam apta para as funções que vem desempenhando ultimamente, na
subdireção, almejando inclusive ascender à direção, pois atualmente se encarrega
exclusivamente da administração musical e pedagógica: ―Tem outras pessoas que cuidam de
assuntos que não são ligados a música. Meu trabalho é só ligado a música. Eu sou por
exemplo, presidente do júri dos concursos.‖ Acompanhei, a convite de Margaret, durante uma
tarde, os exames finais de conclusão de cursos no Conservatório, em diversos instrumentos,
como flauta, violoncelo, violino, cravo, piano e violão. Os alunos convidam outros colegas
músicos e organizam, de forma original e criativa, um espetáculo com apresentação de
diversas obras encadeadas, com elementos cênicos e textos literários ou poéticos e aí pude
perceber que o trabalho de Margaret, na administração e como professora, tem uma dimensão
holística, ligada à formação não só de intérpretes, mas de músicos que trabalham
coletivamente na construção de obras mais abrangentes e como isso tem importância na
construção de uma cultura cidadã.
Heloisa teve o início de sua formação musical no Brasil, passando por alguns
conservatórios e aulas particulares com a professora Beatriz Balzi, de piano, que a introduziu
na música contemporânea. Encorajada pela família a prosseguir seus estudos no exterior,
Heloisa teve uma excelente formação a partir de 1980 no Conservatório Nacional Superior de
Música de Paris, com aulas de Composição, Análise e Orquestração. Graduou-se também em
Musicologia, na Sorbonne, além de obter diversos certificados de estágios internacionais de
composição e música contemporânea. Tornou-se compositora, empregando as linguagens
desenvolvida no final do século XX, como o serialismo e a música espectral. Entretanto, o
repentino falecimento de seu pai no Brasil levou-a a repensar a carreira, chegando a voltar
por um tempo ao Brasil, mas logo retornou às atividades musicais, dedicando-se ao ensino e
abandonando a composição em estilo contemporâneo, deixando de escrever ―para uma elite,
para aquela saia cheia de gente, extremamente diplomada, só eles vão entender as notas que a
gente compõe. Ninguém mais‖. Quando retornou o impulso de compor, passou a dedicar-se à
música brasileira, depois a compor canções no estilo popular americano, sob influência do
jazz, chegando finalmente à música religiosa:
17

Mas não é religioso pra ser tocado na igreja católica; é religioso do sentido
de música sacra mesmo. Sacra para que qualquer um ouça e entenda que tem
alguma coisa mais elevada. Não é só pra quem vai a uma igreja especifica. Poderia
ser budista, poderia judaica, pouco importa. Eu espero da minha música recente
alguma coisa que deve elevar você, a mais espiritual. Foi um percurso bem
estranho, bem atípico.

Apaixonada pela tecnologia, Heloisa foi uma das pioneiras em Paris ao trabalhar com
teclados eletrônicos no ensino de músicas para crianças:

Tinha as classes com aula de computação no conservatório nacional. Nos


primeiros computadores, aquelas coisas enormes, programação. Eu acho circense,
quando eu lembro das aulas que eles tinham e das aulas que temos agora. É uma
aberração era uma coisa muito pré-histórica. Mas enfim, era o início. Então eu levei
para os meus próprios alunos, meus próprios instrumentos para que a direção do
colégio entendesse que aquilo seria o futuro. Hoje em dia justamente nós temos
teclados na classe que é uma coisa interessante pra eles. Eles adoram, eles colocam
dois alunos por teclado e tocam músicas de vários compositores e também
compondo. Eu também acho muita importância na criatividade e composição.
Atualmente cada aluno tem IPAD, tablet é uma maravilha.

Desenvolvendo uma prática eclética e libertária, Heloisa passou a musicalizar poemas


de Emily Dickson, para voz e piano, e também desenvolver canções com base em textos de
Kipling, Neruda, Rilke, Cecilia Meirelles, Carlos Drummond de Andrade, La Fontaine e
outros. Compôs também uma ópera-rock sobre o romance Germinal, de Émile Zola.
Entretanto, apesar de sua obra como compositora de alto nível, Heloísa relata sua dificuldade
para fazer jus a direitos autorais sobre suas obras, bem como realizar os concursos
necessários para lecionar em conservatórios, cujas exigências se tornaram cada vez maiores,
sobretudo a estrangeiros. Sua nacionalidade francesa só foi conseguida em 2008. O
certificado que era suficiente para lecionar em escolas públicas de ensino médio (licence),
passou a não ser mais válido e o CAPES (Certificat d’Aptitude au Professorat de
l’Enseignement du Second Degré) passou a ser necessário, e esse tipo de exame requer a
nacionalidade francesa. Como lecionava ainda somente com posse da licence, único
certificado passível de ser obtido por estrangeiros, Heloisa passava periodicamente por
inspeções feitas por agentes do governo, para que sua licença de ensino fosse revalidada.
Quando passou no CAPES, após ter aprovada a nacionalidade francesa, tornou-se uma
professora ―certificada‖, cuja atribuição, embora suficiente para o nível que seria no Brasil
18

equivalente à segunda fase do ensino fundamental, não é, stricto sensu suficiente para
ingressar no ensino secundário, que requer o exame de agregation. Assim, tanto Margaret
como Heloisa demoraram muito mais tempo para obter seus CDIs do que os cidadãos
franceses que, geralmente, já conseguem obter seu CAPES aos vinte e cinco anos, pois é um
certificado que requer já estar cursando o mestrado, pelo menos. Assim, apesar de já terem
qualificação superior há muito tempo, só na maturidade conseguiram regularização e
estabilidade completa. Porém, quando se atinge esse patamar, configura-se um bom emprego,
uma carreira bem sucedida, em comparação com a vida de um músico que se volta para o
ensino, no Brasil, conforme comenta Heloisa:

Eu acho que é um privilegio. Porque 22 horas não são 50 ou 60 horas como no


Brasil, em que o professor leciona de manhã, tarde e noite todos os dias da semana.
Ainda depois tem uma carreira [como interprete]. Eu estou falando do professor de
música. Então eu acho que é um privilégio. Quando eu trabalho pra mim eu não
vejo as horas passarem. Isso é um aspecto positivo.

A abertura de linhas de ensino e pesquisa sobre jazz e música improvisada nos


Conservatórios Nacionais Superiores de Música e Dança (CNSMD), com sedes apenas em
Paris e Lyon, a partir do início da década de 1990, revela um apoio institucional,
governamental (são tutelados pelo Ministério da Cultura e da Comunicação) ao ensino
profissional de música pautado em estilos que, se pensarmos no mercado de produtos
culturais, estariam inscritos na world music, música étnica ou nos inúmeros desdobramentos
do jazz. Como esses estabelecimentos detêm o monopólio da formação de docentes para o
ensino superior de música, essa abertura explica, pelo menos em parte, a abordagem de
formas musicais estrangeiras em conservatórios de nível territorial, o que beneficia
profissionais brasileiros, latinoamericanos, africanos, vietnamitas, que carregam essa
afiliação cultura da formação musical em seus respectivos países. No que concerne às casas
de espetáculos, há, pelo menos em Paris, muitos cafés e caves de jazz, desde os anos 1940,
como se evidencia no mapeamento desses estabelecimentos realizado por Coulangeon
(1999). Recentemente outras casas vêm surgindo, voltadas para cenas independentes ou
alternativas relacionadas a gêneros latinoamericanos, africanos e especificamente brasileiros,
além do jazz, como L’Ermitage, Le Triton, La Petite Halle (no parque cultural La Villette,
onde se localiza atualmente o CNSMD de Paris), Peniche Anako, dentre muitas outras.
Entretanto, a competitividade é muito grande no setor da produção musical, mesmo se
pensarmos apenas no eixo independente e tocar nessas casas não é fácil para profissionais
estrangeiros cujo trabalho ainda não é reconhecido em Paris. O violonista Marco comenta a
19

respeito da primeira vez em que um dos grupos de que participa, o Trio In Uno (violão de
sete cordas, violoncelo e saxofone), se apesentou no L’Ermitage:

Acho que esperei, fiquei cativando ali, deslumbrando de tocar lá durante quatro a
cino anos, pra você ter uma ideia. Sempre foi uma sala que admirei muito, o som é
maravilhoso e sonhava um dia tocar lá, sala bonita, pessoal bacana, programação
top. Infelizmente rolou um primeiro show lá num show coletivo que tinha três
grupos tocando. Então não era nosso show principal, mas já tive um primeiro
contato com eles. Pouco a pouco você vai desmistificando as coisas. Hoje
felizmente eu tenho uma relação boa com eles. A gente pode falar diretamente com
os gerentes, os donos e eventualmente programar algumas coisas que a gente tem
feito lá. Pra mim foi grande mudança na minha inserção musical de Paris... Hoje em
dia se precisar tocar na ―L’Ermitage‖ não tem mais mistério é uma das salas que
podemos contar. Mas não foi no começo, tem que ter produção para tocar lá, ter um
disco gravado na gravadora tal, é só coisa de renome e um grupo bem estabelecido.
Mas pouco a pouco os anos vão se passando você vai se fincando, vai ficando meio
conhecido e as pessoas ouvem falar dos seus projetos. Aí as coisas vão fluindo.

Marco teve sua primeira formação musical numa escola municipal de artes em
Goiânia, o Centro Livre de Artes, em flauta doce. Logo passou ao violão, com aulas
particulares, quando aprendeu a ler partitura, tornando-se autodidata a partir daí. Seus pais
não eram músicos, mas incentivavam a formação musical na educação dos filhos: ―Não veio
essencialmente da família porque minha família não teve um impulso forte pra música a não
ser o fato que minha mãe botou nós três [irmãos] na escola de música. Por uma questão da
educação da criança. Vai na natação, judô e vai na música também. Mas sem nenhuma
pressão: meu filho vai ser músico‖. Ainda com 17 anos Marco vivenciou um intercâmbio
cultural, morando na Holanda durante um ano, morando com uma família ―muito musical,
muito artística‖, o que o fez valorizar mais a viabilidade de uma profissão musical. Herdeiro
de um capital cultural de família de classe média, Marco, após retornar desse intercâmbio
cultural durante o qual conheceu outros países europeus, foi apoiado pela família para
tentarse estabelecer como artista em outros países. Viveu nos Estados Unidos e depois na
Argentina, num período em que gravou dois discos, tocando com Ricardo Mello, também
violonista. Estabeleceu-se na França a partir de 2007, residindo em Paris. Cursou violão
clássico no CNSMD de Paris, mas hoje se ressente da lacuna na formação para o estilo que
hoje cultiva profissionalmente:

Fiz violão clássico aqui em Paris durante três anos. Eu estava preparado para esse
modelo de violonista que tem que fazer concurso internacional e fazer recital. Não é
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exatamente meu perfil. Foi muito formador e aprendi muito, mas deixou várias
lacunas que eu precisava completar para fazer o que eu gosto de fazer que é tocar:
Brazilian Jazz, que tem muita improvisação, conhecer bastante esse estudo dos
acompanhamentos dos ritmos brasileiros e entender as diferentes possibilidades do
violão tanto na área harmônica.

Marco chegou a dar aulas em conservatório municipal durante algum tempo:


―três anos, 40 alunos e 20 tantas horas por semana. Muito corrido. Uma experiência
maravilhosa. Mas eu gosto mais de ter tempo livre pra mim, para tocar, estar preparando
meus projetos e avançando no que eu realmente gosto de fazer‖. Ele ainda conserva alguns
alunos particulares, mas seu rendimento provém principalmente de um contrato CDI que
mantém na loja de instrumentos musicais e partituras em que trabalha. O estabelecimento, La
Guitarreria, localiza-se próximo à Rue de Rome, famosa por abrigar inúmeros luthiers, berço
da luteria em Paris. Frequentada por violonistas, não só de Paris, mas de diversos países, a
loja é um ponto de encontro obrigatório para violonistas profissionais que visitam a capital
francesa. Em sua entrevista, realizada na própria loja, Marco relatava visitas frequentes de
violonistas brasileiros que transitam entre o erudito e o popular, como os irmãos Assad, Paulo
Bellinatti, Yamandu Costa e outros. Ficou evidente a importância do emprego na Guitarreria
para a inseção de Marco na rede de músicos em torno de Paris. Quando trabalhou no
conservatório tinha que renovar CDDs a cada ano e chegou a acumular tempo parcial na loja
e no CDD, mas recentemente seus rendimentos de trabalho são restritos ao CDI na loja,
CDD’s d’usage na realização de apresentações. No entanto, em comum com todos os
músicos entrevistados, Marco relata um envolvimento total com o mundo da música durante
praticamente a totalidade de seu cotidiano:

Meus dias são muito levados pela a música. Hoje em dia eu vivo uma rotina.. Um
ritmo de vida onde eu trabalho quatro dias na loja e todos os outros dias são
dedicação exclusiva à música e à noite, depois das 7h, estou sempre em ensaio ou
preparando alguma coisa ou estudando em casa ou ensaiando com alguém,
preparando shows. Eu gosto muito disso porque não me dá a oportunidade de me
perder. As vezes você tem muito tempo assim e tem duas semanas vazias e sem
nada. Você vai ficar estudando e as vezes você pode ficar ali meio uma coisa
redundante. Então pelo o fato deu tocar em vários grupos diferentes e sempre estar
acontecendo alguma coisa, isso me dinamiza muito, porque eu tenho que trabalhar
esse repertório pra amanhã. Acabou isso. tenho que preparar uma gravação depois
de amanhã com outro projeto, depois tem outro ensaio. Então a própria agenda tem
me dado um ritmo muito bacana e muito saudável assim. eu gosto muito de passar
21

de uma coisa pra outra, sempre no aprendizado. Amo demais na música estar
sempre colhendo frutos e recolhendo os frutos. É muito legal.

Marco é casado com uma musicista italiana, com quem divide projetos e
parcerias musicais. Tive a oportunidade de vê-los em apresentações em dois grupos, o Trio in
Uno e o Bécots de la Lappa, este uma formação maior, com vozes, percussão, cavaquinho,
além de violão e saxofone. Envolvendo também a produção de CDs e eventos, a trajetória de
Marco ilustra como a inserção na rede de cooperação de músicos na França e especificamente
a rede de músicos brasileiros que desenvolvem projetos relacionados a formas típicas
brasileiras é importante.
Existem outras associações de músicos em cidades ―da provícia‖, como nos casos de
Lylle e Toulouse, que já abrigaram associações de choro e festivais de música brasileira. No
interior o recurso ao regime de intermitência é bem mais frequente e, pode-se dizer,
necessário, principalmente quando se pretende priorizar um trabalho com gêneros musicais
típicos. É o caso de Nane, artista nascida em Santos, diplomada como bailarina clássica e
depois em piano em conservatórios, ainda no Brasil. Chegou à França em 2003, juntamente
com seu ex-marido, filho de uma francesa que morou no Brasil desde 12 anos de idade.
Obteve formação superior em Canto e Treinamento Vocal e em Músicas Populares e
Tradicionais pela Universidade de Toulouse II. No Brasil trabalho quatro anos como
professora de dança em escola municipal. Em Toulouse tem trabalhado como professora de
canto e dança, mas 90% de seu rendimento provem de numerosos projetos como artista, cujas
horas de apresentação lhe conferem direito ao regime de intermitência. Contratos de CDD
renováveis anualmente em escolas da região lhe garantem os 10% restantes. O acúmulo de
uma parcela de horas como CDD em atividades de ensino foi admitido no estatuto da
intermitência em reformas na legislação ocorridas em 2014. Hoje Nana, que tem duas filhas,
cursa musicoterapia e consegue, com dificuldade, alternando a guarda das meninas com o ex-
marido, realizar o número de horas requerido para a condição de intermitente do espetáculo:

Faz cinco anos que sou intermitente. Quando eu comecei nós tínhamos que fazer 46
datas em 10 meses e meio. Coisa que não é muito fácil... Tem suas vantagens e suas
desvantagens como sistema. Não é muito fácil você conseguir 46 datas declaradas
em 10 meses e meio. Agora nós estamos há 12 meses e continua não sendo fácil
conseguir 43 datas declaradas em 12 meses [segundo a legislação atual do regime
de intermitência]. É um pouco mais confortável, mas ainda é complicado. O artista
não é necessariamente declarado. Então nós estamos sempre nessa corda bamba, a
gente se torna um pouco escravo do sistema, porque às vezes a gente acaba
correndo muito atrás dessa questão: tenho que conseguir datas para poder renovar o
22

meu estatuto. O lado artístico as vezes acaba ficando de lado. A gente acaba
fazendo apresentações como eles chamam aqui: ―alimentares‖. São mais animações
do que projetos com uma qualidade artística. Então difícil em relação a esse estatuto
é você conseguir esse equilíbrio entre a qualidade artística e a quantidade de datas
que você tem que fazer para poder atender ao estatuto.

Ainda que os músicos que trabalham com formas populares reconheçam as virtudes
do regime de intermitência, não faltam críticas em diversos aspectos e o depoimento de Yaya
Supé, artista que também se estabeleceu na região próxima Toulouse, há vinte anos atrás. Sua
formação inicial foi no teatro, em Salvador, caracterizando em vários peças ou em
companhias que atuavam ―na rua‖, personagens que tocavam instrumentos, que fazia músico.
Sentindo-se incapaz, no aspecto técnico, para expressar essa musicalidade, começou a
investir na formação musical: ―vivo como músico, sou intermitente de espetáculo. Mas até
hoje eu não me sinto músico na alma de músico. Eu digo sempre que o violão, o canto, é um
álibi para estar em cena, para falar e comunicar. Quando eu penso a música eu penso sempre
de uma forma mais interpretativa do que de uma musicalidade instrumental.‖ Seus
rendimentos provêm exlusivamente do trabalho como intermitente. Engajado politicamente e
envolvido com associações musicais, Supé recorre a agências ligadas ao regime de
intermitência, como a AFDAS7, inclusive para financiar cursos de formação. É importante
salientar que o tempo dispendido em formação também é contabilizado como horas de
trabalho, no regime de intermitência. Entretanto, o regime não tem propriamente um estatuto:

Nós intermitentes de espetáculos somos considerados ―demandeurs d’emploi‖ [à


procura de emprego]), é uma coisa negativa nesse sentido. No Brasil eu tenho o
DRT de ator na minha carteira de trabalho. Então oficialmente eu sou ator. Aqui eu
não sou músico oficialmente. Eu escrevo ―músico‖ quando eu vou encher uma casa.
Mas se eu for comprar e/ou pedir um empréstimo no banco oficialmente eu tenho
que botar ―demandeur d’emploi‖, então é difícil pra fazer um empréstimo, pra
comprar... É um estatuto delicado. Então por isso tem uma força, porque a França é
bem conhecida por isso, pela resistência. Participo de manifestações pra ajudar,
mesmo quando não preciso, porque eu sei quando eu preciso eu sou sustentado ,
suportado por isso. Fiquei mais ativo depois que eu moro aqui, não no sentido de
estar todos os dias, mas estou sempre em contato nesse mundo sindical.
A aquisição da cidadania francesa, que é necessária para usufruto do regime de
intermitência, configura um obstáculo para o músico jovem que ingressa no país. Vários
deles/as ingressam num tipo de ―endogamia ocupacional‖ bastante frequente no mundo da

7
Estrutura associativa de gestão paritária que coleta as contribuições das empresas no que concerne ao
quadro de financiamento da formação profissional, no caso da formação artistas de espetáculos.
23

música, relacionando-se com outros/as musicistas, por vezes também estrangeiros ou


naturalizados, mas da União Europeia, o que lhes garante a nacionalidade francesa. Marcelo,
percussionista, radicado na Normandia, norte da França, há 12 anos, casou-se com uma
brasileira naturalizada italiana e só então passou a trabalhar como intermitente. É entusiasta
do regime, mas reconhece que diversas pessoas o criticam: ―tem gente que acha que os caras
ficam folgados, que ganham dinheiro pra não trabalhar, tem muitas opiniões em torno desse
estatuto, mas é uma coisa muito legal, meio que é quase que um sonho, né? É maravilhoso,
né?‖ O lado positivo do regime seria esse tipo de seguro-desemprego, que permite a
manutenção como músico ainda que a carga horária na performance não seja muito alta; há
tempo para ensaiar, aprimorar, compor, ganhando o mesmo do que se ocupasse essas horas
efetivamente na performance. O lado negativo é participar de projetos com os quais não se
têm muita afinidade, apenas para compor o número de horas necessário. Outro ponto
discutível é que o regime atinge sobretudo os técnicos do setor de audiovisual, geralmente
vinculados a emissoras de TV e a grandes companhias e que já contam com bons
rendimentos, ―gente que trabalha num projeto que funciona super bem, e que já ganha um
salário legal naturalmente, que não precisaria disso, ou poderia ganhar muito menos‖.
Na opinião de Rita, musicista que está na França desde 1986, o regime facilita o
trabalho de quem não se filia à música clássica, ―que tem todo suporte, que é considerada arte
maior‖. Em suas palavras:

É como se você ganhasse um salário, mas não é num regime geral dos assalariados
daqui da França, funciona diferente.Todo ano você renova sua intermitência para
renovar você tem que ter feito 507 horas de trabalho no ano, sabendo que um cachê
vale 12 horas e está incluindo o tempo que você vai ao concerto, o tempo que você
volta. Eles estimam que o músico ensaia em casa, trabalha tarde em estúdio quando
está gravando, trabalha em horários diferentes de quem trabalha 8 horas por dia
normalmente, num escritório. Então é contado diferente, o cálculo é feito e
adaptado pra pessoa ligada ao espetáculo. Isso te dá uma garantia porque você tem
um fixo todo mês. Então isso muda muito, isso te dá um conforto de vida.

Rita provém de uma família de músicos na Bahia, irmã de Armandinho, filha de


Osmar, engenheiro e músico, responsável pela criação do Trio Elétrico, que animava, numa
plataforma sonora ambulante, os carnavais de Salvador, na Bahia. Rita, filha mais nova,
acompanhava as turnês da banda, inclusive as que fizeram na Europa. Segundo seu relato,
―fram alguns franceses que queriam revitalizar o carnaval de Toulouse, porque tinha uma
tradição de carnaval, mas depois acabou.‖ Nessa troca simbólica foi importante o papel de
24

Claude Sicre, ativista cultural de Toulouse, que articulou um grupo chamado Fabulous
Trabadours (Fabulosos Trovadores), inspirado nos repentistas nordestinos: ―Então o comitê
do carnaval universitário de Toulouse queria relançar o carnaval, fazer um grande carnaval.
Foram pedir opinião pro Claude Sicre, foi ele que lançou no fim dos anos 70 a batucada na
França.‖ Começou daí um intercâmbio sucessivo de equipes ou delegações, ora para ver o
carnaval na Bahia, ora para relançar o carnaval em Toulouse:

Contrataram ele [Osmar] pra vir aqui e tocar no carnaval de Toulouse, eu não vim
nessa viagem, mas foi uma grande festa com 100 mil pessoas na ruas de Toulouse,
tem todo um arquivo, eu tenho documentos e tal. Enfim, no ano seguinte o sucesso
foi muito que trouxeram eles de novo para a festa da música. Foi na época que eu
já estava no 3º ano de faculdade, eu já fazia licenciatura em música em Salvador, na
Bahia na Católica. Mas eu queria fazer regência na Federal. Aí meu pai me disse: já
que você quer fazer música como seus irmãos, porque ele tentou com todo mundo
[que fossem engenheiros, como ele], mas ninguém quis. Então eu tenho amigos na
França, você vai passar um ano lá pra estudar e aprender uma língua e estudar no
conservatório. Enfim, me deixar aqui para ver qual era as minhas possibilidades, eu
fui ficando e voltando, ficando e voltando até que o dia eu comecei a voar com as
minhas próprias asas e fiquei.

Apesar de se sustentar preponderantemente com o regime de intermitência, Rita não


deixa de salientar as dificuldades que um músico estrangeiro enfrenta para se estabelecer na
França:

Não é simples assim: chegou e você é intermitente. Primeiro porque é muito difícil
você ter 43 datas declaradas no ano. Parece fácil, parece nada, mas é muito difícil.
Eu pra conseguir isso por exemplo eu tenho 6 projetos, eu não tenho um grupo, eu
tenho 6. É lógico quando você tem um grupo que funciona bem... Teve uma época
que eu só tive um grupo durante 17 anos, rodava a França toda, inclusive fomos
tocar no Brasil, lançamos três discos e tal. Paramos e depois não fiz outro grupo que
tivesse essa mesma notoriedade... Quando você faz um disco entra num outro
patamar... Ainda mais que é um disco cantado em francês, pessoa que toca comigo é
francesa. A gente é considerada canção toulousiana, tem o Brasil no meio e tal, mas
se expressa em francês, a gente se localiza aqui como grupo francês. Entra na
canção francesa. Porque só fazendo música brasileira, só cantando em português,
lógico que as pessoas adoram, tem contrato, mas se você não se dirige ao povo
daqui, na língua, você fica nas pessoas que gostam e conhecem o Brasil e gostam da
música brasileira e das associações que fazem música brasileira e não vai muito
além daí, na minha opinião.
25

A existência de fraudes no regime de intermitência é tematizada por alguns


entrevistados, como Elio, cantor e compositor que já tinha uma trajetória como músico
popular no Brasil. Há sete anos na França, casado com uma psicóloga francesa, o músico já
adquiriu cidadania no país e número de seguro social, condições necessárias para postular o
complementação de rendimentos pelo regime. No entanto, não tem conseguido, por diversas
razões, entre as quais retornos periódicos ao Brasil e o fato de residir em Tours, no vale do
Loire e ter que se deslocar frequentemente para cidades maiores, para uma ou poucas
apresentações. Elio considera o estatuto da intermitência ―uma medida maravilhosa‖, mas
ressalta, por outro lado, que

todo sistema tem problemas e esse também tem. Atravessadores... Então tem gente,
músicos e artistas que burlam as leis em todo lugar, infelizmente. Eles tentam
comprar notas, passa por uma empresa de um amigo e não sei o que lá, enfim,
coisas assim. Para conseguir as tais 43 datas anuais para ter o direito ao salário de
intermitente. Existe também as estrelas da música francesa que comem uma grande
parte desse dinheiro e que a gente vai cair na mesma problemática de sempre; eles
acabam dominando os espaços que a gente poderia tocar.

Tive a oportunidade de assistir a uma apresentação de Elio num café no bairro


parisiense Montmartre8. Suas condições de trabalho são típicas de profissionais cujos
rendimentos provêm sobretudo de CDDs d’usage, contratos ad hoc para apresentações
isoladas, mas que não chegam a ingressar no regime de intermitência. Os cachês usuais
nessas pequenas casas noturnas variam de 200 a 500 euros, por um a dois sets de 40 a 50
minutos cada. Embora essa forma de contratação e as condições laborais que a envolvem
eventualmente beirem a precaridade, não equivalem ao trabalho informal, travail au noir,
como por lá se diz. Elio menciona, com certo ressentimento, o tipo de trabalho a que músicos
brasileiros, principalmente jovens sem formação em nível superior, que tentam se estabelecer
no mercado de trabalho francês se submetem. São contratados, por companhias muitas vezes
gerenciadas também por brasileiros, para apresentações em barcos turísticos, como os
bateaux mouche que navegam pelo Sena, em casas noturnas de dança e festas em castelos. O
músico contesta a ideia de que seria fácil ganhar a vida apegando-se à comunidade brasileira

8
Agradeço aqui a pesquisadora Helena Hirata, que reside em Paris e, na ocasião, sabendo que eu
estava pesquisando o trabalho de músicos na França, me convidou para assistir ao show de Elio, juntamente com
colegas que estavam presentes num seminário da APEB – Associação de estudantes e pesquisadores brasileiros
na França.
26

na França e identificando-se com os estereótipos ou formas culturais típicas, que são


apreciadas pelos franceses:

Aqui você tem que trabalhar do mesmo jeito. Talvez mais duro, senão você vai
passar o tempo jogando uma capoeira que você não joga, dançando o que você não
dança. Poxa vida, não é isso que a gente quer! Eu tive desentendimentos com
algumas pessoas da comunidade brasileira de Paris há dois anos justamente por
conta disso, eu não quero estar num barquinho no Sena ganhando 30 euros, é isso
que eles ganham. A exploração é em todo lugar. A pior coisa que existe aqui é você
trabalhar com brasileiro. Onde já se viu. Desde que estou aqui eu faço concertos de
40 minutos a uma hora e vinte, no máximo, e sou super bem recebido, com atenção
e um público bacana, de pessoas que estão a fim de saber. As primeiras vezes que
eu cheguei e fui procurar trabalho aqui era pra tocar em barquinho para ganhar 30
euros.

Afiliação cultural: da batucada à ópera

A pesquisa que deu origem a esta comunicação envolveu uma questão subjacente,
uma preocupação inicial, que se pode enunciar de várias formas: como a representação que se
faz dos brasileiros no exterior, supostamente ligada ao futebol, ao carnaval, ao samba, se
aplica aos músicos brasileiros que tentam se estabelecer no mercado de trabalho na França?
Esse tipo de representações orienta o trabalho desses músicos, no sentido de fazê-los se
aproximar ou se afastar de formas musicais típicas, como samba, choro, baião e bossa-nova?
Essas representações influem significativamente na identidade profissional dos músicos
brasileiros na França? Uma rápida consulta no sítio do Consulado-Geral do Brasil em Paris
leva a uma seção intitulada ―cultura brasileira‖, espaço ―dedicado à divulgação de entidades,
escolas e profissionais ligados à cultura brasileira e à promoção/ensino da língua portuguesa
na França‖. Há 75 entidades listadas na seção e, se procurarmos algumas palavras ligadas a
formas musicais típicas, a mais frequente é ―samba‖, com oito ocorrências, mas há também
maracatu e choro, com uma ocorrência cada. No entanto, a palavra ―capoeira‖ aparece 28
vezes. Embora a lista presente no sítio do Consulado represente apenas uma pequena parcela
das associações ou entidades constituídas em torno de práticas culturais ou do trabalho
artístico desenvolvidos por brasileiros, é evidente que esse tipo de ―filiação cultural‖,
outorgada ou construída, está presente nas representações sobre o Brasil na França. Há alguns
trabalhos na literatura sociológica que abordam essa questão, como a tese defendida por,
Anaïs Vaillant (2009) em 2013, na Universidade de Aix-en-Marseille: La batucada des
27

gringos : appropriations européennes de pratiques musicales brésiliennes9. A autora


procura saber como certas formas musicais brasileiras, como o samba e o maracatu, circulam
em outros locais e são marcadas por seu território de origem, mas também são reapropriadas
por grupos estrangeiros que as reterritorializam, integrando-as na paisagem sonora local.
Como o objeto aqui não são as formas culturais propriamente, mas o trabalho que envolve a
sua performance e seu reconhecimento pelo público, esta análise procura identificar e
caracterizar como os músicos brasileiros influem e até são responsáveis pela reapropriação e
transformação criativa dessas formas consideradas típicas, mas que se transformam, inclusive
em seus territórios de origem, continuamente, pois há inúmeras variações do samba, do
choro, do maracatu, no próprio Brasil.
O caso da reconstrução do carnaval em Toulouse, intermediada por ―missões‖ de
artistas baianos, tal como narrado e documentado por Rita, é exemplar nesse sentido. Se nos
ativermos ao plano do trabalho específico dos músicos entrevistados, há diversos exemplos
que apontam para sínteses entre formas típicas e elementos contextuais locais, intermediados
pela criação dos próprios músicos. Dentre os inúmeros projetos que desenvolve, Rita
combina formas do nordeste brasileiro com elementos da história e das sociedades locais,
escrevendo letras de canções em francês, mas também na língua occitânica, relativa à
Occitania, no sul da França, considerada a língua regional mais falada no território francês.
Organiza também bailes com ritmos como forró e maracatu, integrando jovens nessas
manifestações culturais, mas também capacitando alunos da linha de jazz do Conservatório
de Bordeaux nesses gêneros musicais.
Outro exemplo nessa linha de sínteses criativas é o do trabalho de Cristiano, que toca
violão de sete cordas, além de outros instrumentos. Inicou seus estudos na Escola de música
Villa-Lobos. Depois tornou-se discípulo de Itiberê, contrabaixista que trabalha há muito
tempo com o famoso compositor e multi-instrumentista Hermeto Pascoal. Cristiano, formado
nessa ―academia‖ de arte popular, tem atuado como acompanhante no violão de sete, mas
suas principais atividades são composição e arranjo. Sua trajetória, em parceria com a esposa
Claire, é exemplar no sentido da integração de músicos no regime de intermitência na rede de
cooperação de músicos, incluindo elementos da afiliação cultural:

Minha vontade sempre foi querer ter um trabalho sobre polir minhas composições,
meus arranjos... e hoje é o que eu faço na França com a minha esposa, a gente
trabalha juntos. Ela é bandolinista, autora e cantora, ela escreve, ela é francesa, né?
E na transmissão também, tem 15 anos agora que a gente tem uma associação na
França pra divulgação da música brasileiras, através, sobretudo, de choro, rodas de
9
A batucada dos gringos: apropriações europeias de práticas culturais brasileiras.
28

choro, um pouco da música nordestina que a gente pôde estudar lá em Pernambuco.


A gente tenta desenvolver esse trabalho na França, e tem alguns festivais, músicos
encomendam peças, fico meio nesse mundo da música de concerto também, né?
Música erudita, música de câmara, que eu gosto muito de escrever, trabalho com
muitos conservatórios também, estágios, masterclassses, escrevendo pra esses
alunos, pras essas formações diversas,

Cristiano vem divulgando seu trabalho em duo com Claire, mas também em grupos
maiores, como Zé Boiadé, nos players digitais, como Soundcloud, Youtube e Deezer, além de
apoiar outros grupos por meio da associação ―La Roda‖, na qual são diretores artísticos. Esse
tipo de atuação releva também a importância dos eventos de filiação cultural ligados ao
trabalho artístico de brasileiros na França. É o caso, por exemplo, das rodas de choro, de
samba, das oficinas de baião, maracatu, também realizadas em casas de espetáculos como o
L’Ermitage, em Paris, que se transforma, nessas ocasiões, numa animada gafieira onde
participam, além de brasileiros que habitam Paris, estudantes de escolas de dança,
conservatórios e associações, como o Club du Choro, envolvidas com ensino de formas
musicais brasileiras. Estive, durante o trabalho de campo na pesquisa, em duas dessas rodas
de choro, uma em Montreuil, subúrbio parisiense e outras duas, que ocorrem com mais
frequência, no bairro de Belleville, a Roda do bar de Lauriers e a do Bar Mineirinho.
Por outro lado, os músicos de formação erudita tendem a executar e ensinar obras de
compositores brasileiros, como Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Mignone e outros. Nesse aspecto
ressalto contribuições de musicistas como Margaret e Maria Inês que, nos conservatórios em
que lecionam, incentivem, por meio de projetos, a produção e a difusão de compositores
brasileiros. Como exemplo, em maio de 2018 o Conservatório Charles Munch, de Paris,
organizou um espetáculo aberto à comunidade, intitulado ―|L’Amazone Bleue‖, com a
participação de alunos e docentes do conservatório e a execução de obras pouco conhecidas
do repertório de Villa-Lobos, como o ―Sexteto Místico‖, única obra que o compositor
escreveu para celesta, numa formação também inusual: violão, flauta, oboé, clarineta,
saxofone e harpa, além da celesta. A concepção do espetáculo, bem como a performance na
celesta, foram realizadas pela professora e vice-diretora Margaret.
A razão de privilegiar autores brasileiros, entretanto, pode ser não provir da escolha
pessoal, ou do sentimento de se reconhecer como brasileiro/a ou de expressar publicamente
esse reconhecimento ou afiliação cultural. A pianista Silvia, por exemplo, remete a uma
antecipação da crítica que pode receber do público:
29

Eu acho que tenho um pouco mais de autoridade pra tocar músicas brasileiras do
que tocar música europeia aqui, por exemplo. Eu percebo isso. Tanto em concerto
quanto para professores, quanto a Masterclass. Eu acho que eles têm um certo
cuidado quando vão corrigir alguma obra de compositor brasileiro que eu esteja
tocando

Silvia tem uma trajetória muito peculiar. Do interior de São Paulo, obteve diploma de
piano num conservatório local, além de estudar francês. Depois mudou-se para São Paulo,
onde se graduou em matemática na USP, realizando, em seguida, o mestrado e o doutorado
em linguística, orientada por Luiz Tatit, músico e semiótico que pesquisa a canção brasileira,
mas que também tem uma produção musical com dimensão educativa e pedagógica, além de
artística. Retornou ao interior, pois não tinha como se manter em São Paulo, sem bolsa, após
o doutorado. Prestou concurso e trabalhou como bibliotecária na Unesp por alguns anos, até
se decidir a fazer outro doutorado, mas na França, em musicologia. Concluídos os créditos do
doutorado e finalizada sua bolsa, Silvia precisou dedicar-se mais ao trabalho como musicista
e dedicou-se ao ensino. Com seis dias da semana praticamente tomados por aulas num
conservatório e prática de piano para as aulas, sobram poucas horas para prosseguir na
pesquisa da tese. No aspecto da filiação cultural Silvia também ilustra uma justificativa muito
singular, ressaltando que é comum, no Brasil, uma formação musical que privilegia
compositores e autores estrangeiros, além de que o incentivo à música improvisada também é
raro. Ao contrário, na Europa a exigência por manter um repertório exclusivamente francês
ou europeu não existe e as novidades são bem vindas. Como a produção de composições
brasileiras para piano é extensa, Silvia se abriu para explorar esse repertório, inclusive nas
aulas, além do fato de que a crítica entre pares, também musicistas, torna-se mais branda para
obras que não europeias. Além de que a formação em conservatórios franceses é muito mais
exigente, em termos de técnica, do que a formação brasileira, fato que também foi salientado
na entrevista de Margaret.
Silvia chama a atenção para a importância que pedagogias inclusivas no ensino
musical, desenvolvidas no Brasil por José Eduardo Gramani, Fernando Barba (Grupo
Barbatuques) e Lucas Ciavatta (Método do Passo), têm conquistado na França e de como,
infelizmente, os músicos brasileiros, como ela própria, desconheciam em sua formação:

A primeira vez que ouvi sobre isso foi em Francês, aí caiu a ficha que na verdade
isso daí era do Brasil. Aí eu falei: mas não é possível. Tem 20 anos que estão
30

fazendo isso10 e eu nunca tinha ouvido falar. É super interessante, porque junta a
questão da cultura brasileira, dos ritmos. Não é só questão de leitura da partitura...
Você pode tocar perfeitamente a partitura e não ter o gingado. Eu acho que falta
algo. Você percebe que o brasileiro, a batucada é diferente. Eu já fui no carnaval
aqui duas vezes, os franceses tocaram batucada: é marcha, marcha alemã, é
qualquer outra coisa, é tudo certo, mas não é batucado. Acho que inclusive esse é o
problema, o brasileiro está sempre ali meio que equilibrando. A professora do
―Passô‖ com quem eu estou tendo curso agora, é uma francesa, mas ela foi no
Brasil fazer uma formação...

Os exemplos atrás relacionados ilustram que a filiação cultural pode influenciar de


forma positiva trajetórias profissionais de músicos brasileiros na França, mas isso depende,
em primeiro lugar, de fatores conjunturais, como o tipo de política pública sendo
desenvolvida a respeito do trabalho. Neste caso a contribuição francesa é ambígua já que, de
um lado, valoriza-se o ensino de música improvisada e formas musicais típicas de outras
culturas e institui-se uma permissão de residência (carte de séjour) específica para profissões
artísticas e culturais, assegurando ao músico um tempo maior de permanência no país,
independentemente de outras concessões de permanência que são restritas a pesquisadores,
por exemplo. No entanto, não se assegura a esses estrangeiros o usufruto do regime de
intermitência. Os músicos podem aproveitar seu capital cultural relativo ao aprendizado ou
convivência com gêneros musicais típicos e abrir associações ligadas à produção e difusão de
gêneros como choro, samba e outros, por vezes sendo bem sucedidos nesse investimento.
Porém, essas associações, alçadas à condição de ―empregadoras‖, de contratantes por meio de
CDDs d’usage, nem sempre efetivam essas vinculações de forma favorável aos direitos do
trabalhador, preferindo formas de contratação menos onerosas, como na prática de aceitar
apenas contratos com profissionais constituídos como pessoa jurídica, como entrepreneurs
individuelles. Em última instância, a filiação à turma da ―batucada‖ brasileira pode conduzir
ao travail noir e à exploração predatória da força de trabalho artística. Finalmente, se nos
ativermos especificamente ao campo da música erudita, a filiação cultural pode se revelar até
como um obstáculo a ser superado, decorrente da valorização incipiente do próprio
patrimônio e produção musical no Brasil e, por outro lado, de um aproveitamento mais
seletivo e pragmático dessas contribuições nos cursos de formação musical europeus.

Considerações finais

10
Lucas Ciavatta, mestre em educação pela UFF, criou o Método do Passo em 2006 e desde então vem
viajando, pelo Brasil e no exterior, divulgando essa pedagogia. Luiz Ciavatta criou o método. Esteve na França,
em diversas cidades, inclusive Paris, em 2006, 2009 e 2010, ministrando cursos e realizando turnês e oficinas.
31

Embora não seja possível generalizar com base numa amostra de 17 musicistas
entrevistadas/os, é possível ressaltar algumas relações encontradas ou confirmadas não
somente com base nesse pequeno conjunto, mas numa literatura já produzida sobre o trabalho
de músicos, em enfoque sociológico, incluindo diversas obras em que foram realizadas
entrevistas na França. A própria seleção da amostra foi guiada pelo exame prévio de
inúmeras páginas e perfis pessoais de músicos brasileiros na França, obtidas principalmente
no site ―Spectacles e musiques du monde‖ (http://www.musiquesdumonde.fr/), na Wikipedia
em aplicativos de redes sociais frequentados por músicos, como MySpace, Soundcloud e
Facebook. A identidade social de músicos brasileiros na França permanece ligada à
tradicional distinção entre música erudita e música popular, contrariamente ao que supus
antes da pesquisa, pensando na pluriatividade que caracteriza o trabalho musical e na
eventualidade de que realizassem atividades nesses dois domínios. O ensino musical na
França é muito mais regulamentado do que no Brasil, a competitividade é maior, as
exigências para lecionar em escolas públicas ou conservatórios praticamente afasta desse tipo
de exercício músicos brasileiros que não tenham obtido, no Brasil, pelo menos o diploma em
conservatório ou no ensino superior (instrumento, regência ou musciologia) ou que não se
tenham destacado em orquestras ou grupos instrumentais ainda no Brasil, ou ainda obtido
formação superior e licenças ou certificados para ensino de artes na França. A realização de
doutorado ou a formação profissional, que é incentivada pelas agências do setor de artes e
espetáculos, dificilmente faculta ao músico estrangeiro a possibilidade de disputar, em
concurso, a condição de agrégé e lecionar em conservatórios nacionais superiores. Ainda
assim, o ensino e suas formas correspondentes de contratação, por meio de CDDs renováveis
anualmente ou, após muitos anos de exercício, o CDI, sem mencionar as aulas particulares
eventualmente na informalidade, integra a trajetória da imensa maioria dos músicos na
França, incluindo os estrangeiros. No que concerne à performance, a intermitência é a tônica
para quem se dedica sobretudo à musica popular, com maior frequência ainda para músicos
que se estabelecem na ―província‖. Arranjos articulando CDDs no ensino e CDDs d’usage na
intermitência são mais comuns entre mulheres do que para homens, principalmente em razão
da estabilidade econômica que a condição de maternidade requer. Os arranjos domésticos e
familiares entre casais em que pelo menos uma das pessoas é musicista são fundamentais
para a permanência na trajetória. A endogamia ocupacional também é frequente, talvez mais
do que ocorre entre os músicos franceses em razão da condição de acesso à cidadania que
pode proporcionar para estrangeiros.
32

A rejeição à condição de intermitente é comum entre músicos brasileiros eruditos,


acompanhada da justificativa de que o regime seria incompatível com a realização de um
trabalho sério, dada a necessida de assumir projetos que envolvem animações culturais e
atividades relacionadas a campos conexos, como propaganda ou produção audiovisual.
Entretanto, esse tipo de justificativa torna-se refutável diante de que o acúmulo de CDDs de
ensino, aulas particulares e cachês de eventuais performances pode ser excessivo, acarretando
patologias relacionadas ao trabalho, além de que, sem a complementação que o regime de
intermitência garante, pode se tornar insuficiente para a manutenção de necessidades básicas
e da relativa disposição mental que um trabalho criativo requer. A valorização da
intermitência, no campo erudito, ficou restrita a casos de músicos que já lecionam em
conservatórios e conseguem manter apresentações comprovadas regularmente, o que parece
constituir uma minoria, tanto entre músicos estrangeiros como no mercado de trabalho em
geral, no campo erudito.
A questão das fraudes no sistema de intermitência é importante, pois relaciona-se com
a rejeição que o regime apresenta no campo erudito, em que os contratantes frequentemente
se recusam a registrar formalmente apresentações, pois o valor das taxas é alto e,
diferentemente de casas de espetáculos de entretenimento, como bares e cafés, não contam
com outras fontes de receita ligada à venda ou produção de alimentos ou bebidas. Pierre-
Michel Menger, ao analisar o ―argumento da fraude‖, que é usado por músicos que não
ingressam no regime, mas também por contratantes, a respeito do impacto dos impostos no
valor das contratos, acaba revelando um problema do próprio sistema, que se torna passível
de rejeição pelas políticas governamentais. Numa lógica típica à do ―dilema do prisioneiro‖
na teoria dos jogos, o músico, já que obtém seu benefício a partir de 507 horas de trabalho em
12 meses, passa a não querer trabalhar mais do que essas horas ou, quando aceita contratos
além desse valor, o faz sem exigir comprovação, embora aceitando o pagamento de seus
serviços em valor meor, o que acaba favorecendo o contratante, que deixa de pagar os
impostos e opera na informalidade. No entanto, como o regime depende estruturalmente da
manutenção do tripé artista-contratante-agência seguradora, essa situação desfavorece o
último polo, representado por instituições como Assedic (agência que paga o seguro-
desemprego), Audiens, Afdas, que passam a denunciá-la nos meios de comunicação, o que
leva a crises, tentativas de desregulamentação e sucessivos arranjos operacionais no sistema.
Concebido na perspectiva de um suposto equilíbrio entre as demandas de serviços artísticos
no mercado, as necessidades dos trabalhadores em um setor ―naturalmente‖ caracterizado
como intermitente e as agências arrecadatórias responsáveis pela indenização compensatória,
o regime não previu, contrafactualmente, as próprias transformações no mercado, como o
33

barateamento nas tecnologias de produção e difusão de mídias culturais, o envelhecimento


dos trabalhadores que dele usufruem e a mudança de hábitos dos consumidores.
Um último ponto a comentar é a respeito das perspectivas de ascensão social de
músicos brasileiros que trabalham na França, comparada à situação que experimentaram
antes no Brasil e às de músicos franceses ou de brasileiros já naturalizados. Em relação à
comparação com o Brasil, é praticamente unânime entre os entrevistados o juízo de que a
permanência na França foi favorável em relação à situação anterior no Brasil. De certa forma,
ainda que consideremos as diversas crises que o regime de intermitência sofreu e ainda pode
atravessar, evidencia-se um esforço de regulamentação que, ainda que não seja unicamenente
desenvolvido na França, como asseveram diversos músicos,11 tem acarretado, pelo menos, a
diminuição do abandono ou deslocamentos para outras ocupações, sobretudo por jovens que
continuam ingressando nos conservatórios em nível médio ou superior, na perspectiva de
seguirem carreiras como artistas, em seus desdobramentos na performance, ensino,
composição, regência, arranjo, produção e pesquisa musicológica. Entretanto, o rendimento
em atividades estritamente musicais ainda é relativamente baixo, mesmo na França.
Presenciei em diversos concertos que assisti, em salas menores que não os grandes teatros e
auditórios, com acesso livre sem ingresso pago, a passagem do chapéu para depósito
voluntário de colaborações, um ritual que contrastava paradoxalmente com o alto nível
técnico e artístico dos profissionais que se apresentavam, geralmente jovens. O deslocamento
desses jovens para lecionar em pequenas cidades, no interior da França, é frequente,
eventualmente contrariando uma perspectiva acalentado por anos de treinamento, formação e
especialização visando carreiras bem sucedidas e turnês internacionais. Essas observações,
ainda que não sistematicamente coletadas, indicam que as perspectivas no setor são incertas e
a precariedade ronda a trajetória de parte considerável de musicistas na França, ainda que em
proporção menor do que no Brasil. Finalizando, saliento que as contratações por
apresentações isoladas, mais no setor de entretenimento e animação do que propriamente no
de artes e espetáculos, ocorrem também no campo erudito, como me foi relatado por músicos
com quem conversei, embora não tenham aceito realizar entrevistas gravadas. É comum,
assim como no Brasil, a apresentação de performers de alto nível em casamentos e

11
Catherine B.Grosset, em publicação recente, analisa as políticas de regulamentação dos direitos dos
artistas em países como Bélgica, Alemanha e Itália e Países Baixos, admitindo que há pontos em comum, como
medidas de indenização, criação de um fundo social para artistas de espetáculos, é difícil reunir todas as
condições para a indenização de períodos de desemprego de intermitentes como ocorreu na França, ainda que
problemas como a multiplicação excessiva de contratos de CDD, em parte dos casos correspondendo a um único
contratante, ameacem a confiabilidade do sistema, pois nesse caso as empresas passam, para se livrar de
impostos relativos a contratações CDI, a realizar sucessivos CDD’s no mesmo ano para cada empregado,
surgindo assim um grupo que ficou conhecido como os ―permitentes‖, contração de permanentes com
intermitentes.
34

comemorações das mais diversas, geralmente realizadas em castelos na Europa, ou


condomínios fechados de alto padrão, no Brasil. A quebra da autoestima que pode advir da
multiplicação de contratos desse tipo, aliados ou não ao regime de intermitência.
A atuação de músicos brasileiros na França não é estritamente diferente das trajetórias
vivenciadas por músicos na França. A instabilidade e a incerteza marcam ou, de acordo com
a análise de Menger a respeito do trabalho criativo, constituem o próprio princípio de ação
(Cf. 2011) no contexto contemporâneo de trabalho por projetos, sobretudo entre os/as que
trabalham principalmente com gêneros populares. Ainda que praticamente a totalidade desses
profissionais brasileiros esteja ocupada parcialmente no campo do ensino e do treinamento,
seja em instituições escolares ou por aulas particulares, este tipo de atividades é mais comum
entre aqueles/as que tiveram formação na música erudita (savante), dentre os quais se
incluem, por exemplo, estudantes de pós-graduação que, após ou durante essa formação,
vieram a se integrar no mercado de trabalho musical na França. A pluratividade é também a
regra entre brasileiros músicos: ensino ou treinamento em escolas ou sessões de animação ou
prática cultural (oficinas, workshops etc.), performances em concertos, recitais ou espetáculos
de casas noturnas, elaboração de arranjos e composições, sessões de gravação, produção e
organização de eventos, um certo nomadismo sazonal na realização de turnês e apresentações
na França ou no exterior. Finalmente, há considerável dispêndio de tempo em atividades de
divulgação e produção que, em outras contextos da produção musical, eram delegadas a
outros setores: participação em redes sociais, elaboração de perfis e homepages para
divulgação, gravação de vídeos para divulgação em plataformas (Youtube, SoundCloud etc.),
constituição de associações e coletivos para obter recursos e fortalecer uma identidade
cultural, além de outras. A multi-inserção também é comum entre esses profissionais, como,
por exemplo, a possibilidade de trabalhar em lojas de instrumentos musicais, compartilhando
atividades com editores, luthiers, comerciantes e clientes, em contratos de tempo
indeterminado e jornadas mais curtas, dedicando o tempo restante a atividades de
composição, performance e produção, em caráter intermitente, ainda que não usufruindo dos
abonos dedicados a intérpretes intermitentes de espetáculos, por já serem assalariados em
CDI.
A especificidade de atuação de músicos brasileiros na França está na filiação cultural
a gêneros como samba, bossa, choro, ―música nordestina‖, eventualmente combinados com
gêneros ―característicos‖ latinoamericanos, como tango, salsa, cueca etc. Esse tipo de filiação
pode ser compreendido como uma estratégia coletiva num mercado competitivo, mas também
na construção subjetiva de uma identidade profissional esfacelada pela pluriatividade e a
instabilidade.
35

Referências

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