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Grupo de proteção social exclusivamente dedicado aos profissionais do audiovisual, da
comunicação, da impensa e do espetáculo. O grupo orienta, direciona, as ações socialmente responsáveis
pelo acompanhamento de processos relativos à trajetória ocupacional/profissional dos trabalhadores:
aposentadoria complementar, segurança pessoal, médica, prevenção e serviços aos profissionais.
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A Enquête Emplois continue é uma pesquisa realizada pelo INSEE na França a partir de 2001
(sucedeu a Enquête Emplois anual), com objetivo de observar de forma estrutural e conjuntural a situação
das pessoas no mercado de trabalho.
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anos, privilegiar o ensino em suas atividades e ter a maior parte de sua renda mediante
contratos de duração determinada (CDD), em conservatórios, por exemplo. Nesse caso
ele não aparece nesta tabela, mas é contabilizado como professor em outro grupo
ocupacional. Assim, os músicos aqui representados são principalmente os que vivem,
em cada ano considerado, sobretudo de contratos por prestação de serviços intermitentes
(apresentações em casas noturnas, concertos, animações culturais em eventos, aulas
particulares, gravações em estúdio etc.), designados como CDDs d’usage (contratos
eventuais por prestação de serviços musicais). Podem acumular, dentre de um limite,
horas de CDDs em estabelecimentos escolares ou até em outros setores de atividades,
sem perder o direito ao abono por intermitência, desde que contabilizem pelo menos xx
apresentações em espetáculos pelo período de um ano ou, a partir de 2004, por dez
meses. Embora a tabela não inclua outras variáveis que permitam avaliar melhor a
situação, é razoável considerar que a porcentagem de não-assalariados no setor
corresponde à de musicistas que se aproximam da informalidade e da precariedade
considerando apenas o vínculo no mercado como artistas de espetáculos, pois embora
tenham acumulado CDDs por apresentações, não o fizeram em número e carga horária
suficiente para receberem a complementação salarial pelo regime de intermitência, já
que neste o trabalhador é considerado sempre como assalariado, ainda que
necessariamente alterne, de forma intermitente e sucessiva, durante o ano, períodos de
emprego e desemprego. O rendimento corresponde à remuneração média líquida apenas
no trabalho principal, ou seja, como músico, não incluindo outros rendimentos como no
ensino em escolas de música. Nesse aspecto não é possível comparar rendimentos de
músicos imigrados e franceses, pois em alguns anos não foram entrevistados músicos
imigrados e a amostra da qual se infere o número de trabalhadores ativos é pequena, já
que provinda não de um recenseamento, mas da Enquête Emplois. Ainda assim, supõe-
se que haja algum desnível, em termos da condição de músico imigrado, similar ao que
ocorre no mercado de trabalhadores ativos como um todo, representado na tabela e que
se manteve relativamente constante, na faixa de 12%. No entanto, esse desnível
provavelmente não está relacionado significativamente a um tipo de preconceito, mas
sim a uma diferença no capital cultural, ligado à formação escolar ou capacitação e ao
tempo de trabalho exercido na ocupação, em ambos os casos.
Há outros dados que nos permitem inferir que a França tenha acolhido mais
imigrados como profissionais de artes e espetáculos, ainda que as condições mais
imediatas para a acolhida de estrangeiros no mercado de trabalho não seja muito
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favorável, conforme aponta Mantelin (2003), destacando, por exemplo, a não concessão
do regime de intermitência a imigrados que ainda não adquiriram a nacionalidade
francesa. Entretano, o afluxo de estrangeiros na formação musical de nível superior tem
sido crescente, conforme ilustra o gráfico 1, a partir de 2003-4, no que concerne ao
número de estudantes em ensino superior na área cultural de espetáculos ao vivo,
fenômeno que não tem ocorrido em outras áreas correlatas, como ensino de arte, artes
plásticas, patrimônio, arquitetura, cinema e audiovisual. Por outro lado, tem ocorrido,
nos últimos quinze anos, uma profunda transformação nos hábitos de consumo de bens
culturais, ilustrada no gráfico 2: mais do que dobrou o que se gasta na França com
espetáculos ao vivo; diminuíram as despesas com livros e jornais impressos, ainda que,
sob outro aspecto, o crescimento dos gastos com bens e serviços relacionados à cultura,
como computadores, jogos e softwares, celulares e serviços de distribuição de RTV e
streaming, tenha aumentado em relação a serviços relacionados ao trabalho de produção
cultural.
Gráfico 2 – Consumo dos domicílios em bens e serviços culturais – França – 1980 – 2015
Fonte: INSEE
Quadro 1 – Vínculos em ocupações, rendimentos e estatuto de assalariado por ano – Artistas - França – 2003-2016
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Artistas plásticos 27.063 19.372 22.988 30.469 33.628 34.951 28.830 30.344 34.447 27.244 27.746 35.406 33.200 37.706
Músicos 24.148 21.946 26.723 39.996 35.956 21.377 36.762 30.921 27.279 30.839 31.393 34.695 36.831 31.096
Atores 22.702 17.346 14.959 18.438 8.689 18.791 21.761 19.992 19.044 23.419 21.538 22.205 26.916 20.239
Dançarinos e 6.709 3.595 5.838 6.250 6.646 9.025 9.472 9.991 15.709 12.250 12.796 7.371 7.477 6.887
circenses5
Renda média mensal 1249 1570 2143 1616 1516 1665 1735 1729 1796 1841 1326 1061 1451 973
na oc. princ.
% renda 85 89 88 88 86 88 89 92 88 92 86 86 85 87
imigrados/franceses
% assalariados em 88,80 89,22 89,47 88,92 89,19 89,45 89,17 88,58 88,41 88,24 88,21 87,69 87,81 87,80
geral
% músicos 78,79 83,87 78,38 85,42 78,43 86,67 81,25 83,05 83,33 76,67 71,70 63,93 68,25 73,68
assalariados
Fonte: microdados da Enquête Emplois em continu, INSEE6
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Não está representado na tabela o agrupamento de ―professores de arte (fora de estabelecimentos escolares)‖, código 354g, concernente sobretudo a aulas particulares de
arte. Apesar de ser o mais numeroso da família ocupacional de artistas, o agrupamento inclui professores de teatro, música, dança ou artes plásticas, impossibilitando isolar
especificamente professores de música.
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Agradeço aqui o professor Laurent Villemez, diretor do Printemps em 2018 por intermediar a obtenção dos microdados em formatos para pesquisa, junto à Fundação
Quetelet, bem como à engenheira Alexis, que me esclareceu a respeito da obtenção e uso dessas bases.
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França. O Fundo foi criado em 1939 para gerenciar o regime de indenização de abonos pagos
a trabalhadores (artistas e técnicos) intermitentes ligados à realização e produção de
espetáculos. O regime diferenciado tornava-se necessário para compensar as condições de
trabalho precárias e a existência de múltiplos empregadores nas trajetórias típicas no setor, O
regime de trabalhadores intermitentes de espetáculos foi alterado significativamente em 2003
e em 2014 tornou-se acessível a assalariados em contrato por tempo indeterminado, sob
certas condições. O acompanhamento longitudinal de fichas cadastrais de trabalhadores/as
beneficitários/as do Fundo, associado a entrevistas de profundidade e pesquisa histórica por
pesquisadores componentes do CESTA embasaram empiricamente obras de referência
obrigatória sobre trabalho e gênero de músicos na França (p. ex. MENGER, 2011;
COULANGEON, 2004, RAVET, 2011). Entretanto, é necessário considerar o regime de
trabalho intermitente associado: a) ao crescimento do número de músicos em atividade na
França, como categoria principal de artistas intérpretes, a partir da década de 1990; ao
crescimento significativo de unidades de ensino artístico na França e, por outro lado, de
valorização, a partir de 1980, da valorização das artes ligadas ao entretenimento (Cf.
COULANGEON, 1999) e de formas musicais populares como o jazz, o rock, o rap e os
diversos estilos da chamada música étnica. Linhas de ensino e pesquisa ligadas ao jazz e
música improvisada passaram a ser criadas, a partir de 1990, nos conservatórios nacionais,
únicas unidades de ensino responsáveis pela habilitação do ensino de música em nível
superior, na França, privilegiando, ainda que indiretamente, músicos adeptos de estilos mais
livres de composição, arranjo e performance, outrora inseridos exclusivamente no campo da
música popular.
A segunda referência é a pesquisa coordenada por Coulangeon (2004) dos músicos
intérpretes na França, com dados da pesquisa realizada pelo CESTA e entrevistas de
profundidade com músicos no período que antecedeu a mudança em 2003 do regime de
trabalho intermitente. Com base em variáveis como rendimento, sexo, nível de escolaridade e
outras relativas ao trabalho, como ocupação, tempo de experiência, forma de contratação
(CDI, CDD ou intermitente), duração média do contrato, tipo de inserção (ensino, espetáculo,
produção) e outras ao mundo da música, como gênero (erudito ou popular) e tipo de atividade
(performance, composição etc.), Coulangeon construiu uma tipologia do trabalho de músicos
intérpretes, mediante uma análise de correspondência múltipla em que se identificou os
seguintes perfis de atividade, aqui empregados para orientar a seleção de músicos
entrevistados: ocasionais, precários, quase-permanentes, acumulador de atividades,
periféricos e multi-inseridos (cf. COULANGEON, 2004, p. 182-228).
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Mas na época era muito mais bem pago, você tocava e podia viver disso e apareceu
um projeto para eu gravar dois discos na Alemanha e, estava tudo dando certo aí...
eu terminei o doutorado e acabei ficando porque não tinha ainda o cargo no Brasil
para eu propor nada pra ir trabalhar lá também. Fiquei mais como interprete aqui e
trabalhei também como musicóloga e sempre na área da música brasileira, porque
fiz música brasileira, seja clássica ou popular, era meu projeto como interprete e
como compositora, lógico, eu sou brasileira, então eu não tive que criar um espaço
aqui forçado, sabe?
Depois que se casou e teve o primeiro filho, decidiu prestar um concurso público,
ingressando como professora de ensino artístico no Conservatório Darius Milhaud de Antony,
cidade muito próxima de Paris, onde passou a residir. Maria Inês elogia o contrato de
trabalho no conservatório onde ingressou, em comparação com o CDI e o regime de
intermitência:
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Como eu tinha doutorado fiz uma equivalência passei o concurso e tenho então o
Grade A , aqui na França tem esse estatuto, que eu considero melhor ainda que a
intermitência, que é ser professor de ensino artístico, né? Eu tenho dezesseis horas
de aula e tenho o resto do tempo pra continuar a ser músico porque eles consideram
que o professor do conservatório tem que ser músico, não pode dar aula o tempo
todo, senão ele para de criar, isso não existe em nenhum lugar do mundo. É um
estatuto único, que eu saiba, a gente só tem dezesseis horas e tem um salário como
se trabalhasse quarenta. Porque considera-se que você tem que produzir, então tudo
que você faz, quer dizer, compor, publicar, fazer formações pedagógicas e organizar
projetos, faz parte do perfil do professor que eles querem nos conservatórios. É
torcer pra esse estatuto continuar existindo, porque tem sempre os que querem
agredir esse espaço...
Eu gostaria que no futuro toda essa parte de ensino fosse mais formal. Eu dou aula
semanalmente na escola de música no subúrbio perto de onde eu moro. O que
acontece? A semana passada a gente fez um show de final de temporada. Vai fazer
uma pausa e volta em abril. Eu não tenho nenhuma garantia de que aqueles alunos
vão voltar. Eles podem falar: vamos continuar, vamos ter outra apresentação em
junho. Só que assim eu posso no primeiro dia de aula me confrontar com a realidade
que, finalmente, eles não estejam interessados. De uma semana pra outra você pode
perder uma grande parte do seu rendimento, insatisfação profissional de ter aquela
classe perto da sua casa e tal. No show é mais difícil ainda adquirir essa
estabilidade. Mas no ensino é possível.
menção. Entretanto estou seguindo e continuo fazendo uma tese que é a dedicada a
Gilberto Mendes, aqui em Paris com a Sorbonne.
Então na verdade você tem que fazer muito cachê, você tem que viver fazendo
cachê, uma coisa que eu não gostaria. Eu gosto de trabalhar, por exemplo, uma
orquestra que vai montar um repertório, ano que vem você vai continuar com o
mesmo componentes, você vai poder aumentar o nível do trabalho. O cachê é um
trabalho esporádico e que você faz e termina o cachê e pronto, não tem nenhum
vínculo com o trabalho. Geralmente é difícil você ter um trabalho artístico bem
acabado, ter o mesmo nível, a mesma participação quando é algo que você tem um
vínculo [de trabalho] como outro que é só um trabalho esporádico.
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Outra coisa às vezes eu faço: eu tenho uma empresa, aí eles me pagam uma quantia
determinada, eu mesmo pago as minhas comissões sociais, os impostos e tudo mais.
Raramente [o músico] tem um CDI, porque CDI é mais no conservatório... O ruim é
estar preso no Conservatório, na minha concepção, porque você fica preso com a
estrutura, você tem horário marcado, você tem que participar de reuniões, seu plano
pedagógico tem que está aliado ao diretor e aos outros professores, às vezes você
tem que definir repertório segundo o plano do conservatório.
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Samuel declarou que o trabalho como PJ compõe entre 40 a 50% de sua carga horária
laboral, mas o que ganha nessas condições compõe mais de 60% de seu rendimento total: ―eu
ganho muito mais sendo empresário do que sendo empregado‖. Apesar de que a situação de
trabalhar como PJ corresponda a um tipo de relação desfavorável ao empregado, em razão da
ausência de proteção social e do ônus com impostos que caberiam ao empregador, Samuel a
valoriza, de certa forma, com a justificativa de que vínculos mais estáveis em conservatórios
acarretariam perda da liberdade criativa e da autonomia. Nesse ponto seu argumento
assemelhar-se ao de músicos que trabalham com gêneros populares, ainda que estes, por
outro lado, abracem o regime de intermitência [na conclusão colocar espírito empreendedor x
valorização da identidade como músico].
Margaret e Heloisa são musicistas brasileiras que estão há 38 anos na França e são da
mesma geração. Ambas estão ativas no mercado de trabalho, voltadas preponderantemente
para a educação musical e fizeram jus a CDI. Margaret é pianista, trabalhava no
Conservatório Charles Munch, em Paris e era vicediretora na ocasião da entrevista. Veio para
a França quando cursava, na Unesp, o ensino superior em música. Foi encorajada pela
pianista Anna Stela Schic, que intermediou a ida à França de diversos musicistas brasileiros,
juntamente com seu marido Michel Phillipot, pianista, matemático e compositor que lecionou
também na UFRJ. Margaret tem outros vínculos, além do CDI no conservatório, onde é
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Mas não é religioso pra ser tocado na igreja católica; é religioso do sentido
de música sacra mesmo. Sacra para que qualquer um ouça e entenda que tem
alguma coisa mais elevada. Não é só pra quem vai a uma igreja especifica. Poderia
ser budista, poderia judaica, pouco importa. Eu espero da minha música recente
alguma coisa que deve elevar você, a mais espiritual. Foi um percurso bem
estranho, bem atípico.
Apaixonada pela tecnologia, Heloisa foi uma das pioneiras em Paris ao trabalhar com
teclados eletrônicos no ensino de músicas para crianças:
equivalente à segunda fase do ensino fundamental, não é, stricto sensu suficiente para
ingressar no ensino secundário, que requer o exame de agregation. Assim, tanto Margaret
como Heloisa demoraram muito mais tempo para obter seus CDIs do que os cidadãos
franceses que, geralmente, já conseguem obter seu CAPES aos vinte e cinco anos, pois é um
certificado que requer já estar cursando o mestrado, pelo menos. Assim, apesar de já terem
qualificação superior há muito tempo, só na maturidade conseguiram regularização e
estabilidade completa. Porém, quando se atinge esse patamar, configura-se um bom emprego,
uma carreira bem sucedida, em comparação com a vida de um músico que se volta para o
ensino, no Brasil, conforme comenta Heloisa:
respeito da primeira vez em que um dos grupos de que participa, o Trio In Uno (violão de
sete cordas, violoncelo e saxofone), se apesentou no L’Ermitage:
Acho que esperei, fiquei cativando ali, deslumbrando de tocar lá durante quatro a
cino anos, pra você ter uma ideia. Sempre foi uma sala que admirei muito, o som é
maravilhoso e sonhava um dia tocar lá, sala bonita, pessoal bacana, programação
top. Infelizmente rolou um primeiro show lá num show coletivo que tinha três
grupos tocando. Então não era nosso show principal, mas já tive um primeiro
contato com eles. Pouco a pouco você vai desmistificando as coisas. Hoje
felizmente eu tenho uma relação boa com eles. A gente pode falar diretamente com
os gerentes, os donos e eventualmente programar algumas coisas que a gente tem
feito lá. Pra mim foi grande mudança na minha inserção musical de Paris... Hoje em
dia se precisar tocar na ―L’Ermitage‖ não tem mais mistério é uma das salas que
podemos contar. Mas não foi no começo, tem que ter produção para tocar lá, ter um
disco gravado na gravadora tal, é só coisa de renome e um grupo bem estabelecido.
Mas pouco a pouco os anos vão se passando você vai se fincando, vai ficando meio
conhecido e as pessoas ouvem falar dos seus projetos. Aí as coisas vão fluindo.
Marco teve sua primeira formação musical numa escola municipal de artes em
Goiânia, o Centro Livre de Artes, em flauta doce. Logo passou ao violão, com aulas
particulares, quando aprendeu a ler partitura, tornando-se autodidata a partir daí. Seus pais
não eram músicos, mas incentivavam a formação musical na educação dos filhos: ―Não veio
essencialmente da família porque minha família não teve um impulso forte pra música a não
ser o fato que minha mãe botou nós três [irmãos] na escola de música. Por uma questão da
educação da criança. Vai na natação, judô e vai na música também. Mas sem nenhuma
pressão: meu filho vai ser músico‖. Ainda com 17 anos Marco vivenciou um intercâmbio
cultural, morando na Holanda durante um ano, morando com uma família ―muito musical,
muito artística‖, o que o fez valorizar mais a viabilidade de uma profissão musical. Herdeiro
de um capital cultural de família de classe média, Marco, após retornar desse intercâmbio
cultural durante o qual conheceu outros países europeus, foi apoiado pela família para
tentarse estabelecer como artista em outros países. Viveu nos Estados Unidos e depois na
Argentina, num período em que gravou dois discos, tocando com Ricardo Mello, também
violonista. Estabeleceu-se na França a partir de 2007, residindo em Paris. Cursou violão
clássico no CNSMD de Paris, mas hoje se ressente da lacuna na formação para o estilo que
hoje cultiva profissionalmente:
Fiz violão clássico aqui em Paris durante três anos. Eu estava preparado para esse
modelo de violonista que tem que fazer concurso internacional e fazer recital. Não é
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exatamente meu perfil. Foi muito formador e aprendi muito, mas deixou várias
lacunas que eu precisava completar para fazer o que eu gosto de fazer que é tocar:
Brazilian Jazz, que tem muita improvisação, conhecer bastante esse estudo dos
acompanhamentos dos ritmos brasileiros e entender as diferentes possibilidades do
violão tanto na área harmônica.
Meus dias são muito levados pela a música. Hoje em dia eu vivo uma rotina.. Um
ritmo de vida onde eu trabalho quatro dias na loja e todos os outros dias são
dedicação exclusiva à música e à noite, depois das 7h, estou sempre em ensaio ou
preparando alguma coisa ou estudando em casa ou ensaiando com alguém,
preparando shows. Eu gosto muito disso porque não me dá a oportunidade de me
perder. As vezes você tem muito tempo assim e tem duas semanas vazias e sem
nada. Você vai ficar estudando e as vezes você pode ficar ali meio uma coisa
redundante. Então pelo o fato deu tocar em vários grupos diferentes e sempre estar
acontecendo alguma coisa, isso me dinamiza muito, porque eu tenho que trabalhar
esse repertório pra amanhã. Acabou isso. tenho que preparar uma gravação depois
de amanhã com outro projeto, depois tem outro ensaio. Então a própria agenda tem
me dado um ritmo muito bacana e muito saudável assim. eu gosto muito de passar
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de uma coisa pra outra, sempre no aprendizado. Amo demais na música estar
sempre colhendo frutos e recolhendo os frutos. É muito legal.
Marco é casado com uma musicista italiana, com quem divide projetos e
parcerias musicais. Tive a oportunidade de vê-los em apresentações em dois grupos, o Trio in
Uno e o Bécots de la Lappa, este uma formação maior, com vozes, percussão, cavaquinho,
além de violão e saxofone. Envolvendo também a produção de CDs e eventos, a trajetória de
Marco ilustra como a inserção na rede de cooperação de músicos na França e especificamente
a rede de músicos brasileiros que desenvolvem projetos relacionados a formas típicas
brasileiras é importante.
Existem outras associações de músicos em cidades ―da provícia‖, como nos casos de
Lylle e Toulouse, que já abrigaram associações de choro e festivais de música brasileira. No
interior o recurso ao regime de intermitência é bem mais frequente e, pode-se dizer,
necessário, principalmente quando se pretende priorizar um trabalho com gêneros musicais
típicos. É o caso de Nane, artista nascida em Santos, diplomada como bailarina clássica e
depois em piano em conservatórios, ainda no Brasil. Chegou à França em 2003, juntamente
com seu ex-marido, filho de uma francesa que morou no Brasil desde 12 anos de idade.
Obteve formação superior em Canto e Treinamento Vocal e em Músicas Populares e
Tradicionais pela Universidade de Toulouse II. No Brasil trabalho quatro anos como
professora de dança em escola municipal. Em Toulouse tem trabalhado como professora de
canto e dança, mas 90% de seu rendimento provem de numerosos projetos como artista, cujas
horas de apresentação lhe conferem direito ao regime de intermitência. Contratos de CDD
renováveis anualmente em escolas da região lhe garantem os 10% restantes. O acúmulo de
uma parcela de horas como CDD em atividades de ensino foi admitido no estatuto da
intermitência em reformas na legislação ocorridas em 2014. Hoje Nana, que tem duas filhas,
cursa musicoterapia e consegue, com dificuldade, alternando a guarda das meninas com o ex-
marido, realizar o número de horas requerido para a condição de intermitente do espetáculo:
Faz cinco anos que sou intermitente. Quando eu comecei nós tínhamos que fazer 46
datas em 10 meses e meio. Coisa que não é muito fácil... Tem suas vantagens e suas
desvantagens como sistema. Não é muito fácil você conseguir 46 datas declaradas
em 10 meses e meio. Agora nós estamos há 12 meses e continua não sendo fácil
conseguir 43 datas declaradas em 12 meses [segundo a legislação atual do regime
de intermitência]. É um pouco mais confortável, mas ainda é complicado. O artista
não é necessariamente declarado. Então nós estamos sempre nessa corda bamba, a
gente se torna um pouco escravo do sistema, porque às vezes a gente acaba
correndo muito atrás dessa questão: tenho que conseguir datas para poder renovar o
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meu estatuto. O lado artístico as vezes acaba ficando de lado. A gente acaba
fazendo apresentações como eles chamam aqui: ―alimentares‖. São mais animações
do que projetos com uma qualidade artística. Então difícil em relação a esse estatuto
é você conseguir esse equilíbrio entre a qualidade artística e a quantidade de datas
que você tem que fazer para poder atender ao estatuto.
Ainda que os músicos que trabalham com formas populares reconheçam as virtudes
do regime de intermitência, não faltam críticas em diversos aspectos e o depoimento de Yaya
Supé, artista que também se estabeleceu na região próxima Toulouse, há vinte anos atrás. Sua
formação inicial foi no teatro, em Salvador, caracterizando em vários peças ou em
companhias que atuavam ―na rua‖, personagens que tocavam instrumentos, que fazia músico.
Sentindo-se incapaz, no aspecto técnico, para expressar essa musicalidade, começou a
investir na formação musical: ―vivo como músico, sou intermitente de espetáculo. Mas até
hoje eu não me sinto músico na alma de músico. Eu digo sempre que o violão, o canto, é um
álibi para estar em cena, para falar e comunicar. Quando eu penso a música eu penso sempre
de uma forma mais interpretativa do que de uma musicalidade instrumental.‖ Seus
rendimentos provêm exlusivamente do trabalho como intermitente. Engajado politicamente e
envolvido com associações musicais, Supé recorre a agências ligadas ao regime de
intermitência, como a AFDAS7, inclusive para financiar cursos de formação. É importante
salientar que o tempo dispendido em formação também é contabilizado como horas de
trabalho, no regime de intermitência. Entretanto, o regime não tem propriamente um estatuto:
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Estrutura associativa de gestão paritária que coleta as contribuições das empresas no que concerne ao
quadro de financiamento da formação profissional, no caso da formação artistas de espetáculos.
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É como se você ganhasse um salário, mas não é num regime geral dos assalariados
daqui da França, funciona diferente.Todo ano você renova sua intermitência para
renovar você tem que ter feito 507 horas de trabalho no ano, sabendo que um cachê
vale 12 horas e está incluindo o tempo que você vai ao concerto, o tempo que você
volta. Eles estimam que o músico ensaia em casa, trabalha tarde em estúdio quando
está gravando, trabalha em horários diferentes de quem trabalha 8 horas por dia
normalmente, num escritório. Então é contado diferente, o cálculo é feito e
adaptado pra pessoa ligada ao espetáculo. Isso te dá uma garantia porque você tem
um fixo todo mês. Então isso muda muito, isso te dá um conforto de vida.
Claude Sicre, ativista cultural de Toulouse, que articulou um grupo chamado Fabulous
Trabadours (Fabulosos Trovadores), inspirado nos repentistas nordestinos: ―Então o comitê
do carnaval universitário de Toulouse queria relançar o carnaval, fazer um grande carnaval.
Foram pedir opinião pro Claude Sicre, foi ele que lançou no fim dos anos 70 a batucada na
França.‖ Começou daí um intercâmbio sucessivo de equipes ou delegações, ora para ver o
carnaval na Bahia, ora para relançar o carnaval em Toulouse:
Contrataram ele [Osmar] pra vir aqui e tocar no carnaval de Toulouse, eu não vim
nessa viagem, mas foi uma grande festa com 100 mil pessoas na ruas de Toulouse,
tem todo um arquivo, eu tenho documentos e tal. Enfim, no ano seguinte o sucesso
foi muito que trouxeram eles de novo para a festa da música. Foi na época que eu
já estava no 3º ano de faculdade, eu já fazia licenciatura em música em Salvador, na
Bahia na Católica. Mas eu queria fazer regência na Federal. Aí meu pai me disse: já
que você quer fazer música como seus irmãos, porque ele tentou com todo mundo
[que fossem engenheiros, como ele], mas ninguém quis. Então eu tenho amigos na
França, você vai passar um ano lá pra estudar e aprender uma língua e estudar no
conservatório. Enfim, me deixar aqui para ver qual era as minhas possibilidades, eu
fui ficando e voltando, ficando e voltando até que o dia eu comecei a voar com as
minhas próprias asas e fiquei.
Não é simples assim: chegou e você é intermitente. Primeiro porque é muito difícil
você ter 43 datas declaradas no ano. Parece fácil, parece nada, mas é muito difícil.
Eu pra conseguir isso por exemplo eu tenho 6 projetos, eu não tenho um grupo, eu
tenho 6. É lógico quando você tem um grupo que funciona bem... Teve uma época
que eu só tive um grupo durante 17 anos, rodava a França toda, inclusive fomos
tocar no Brasil, lançamos três discos e tal. Paramos e depois não fiz outro grupo que
tivesse essa mesma notoriedade... Quando você faz um disco entra num outro
patamar... Ainda mais que é um disco cantado em francês, pessoa que toca comigo é
francesa. A gente é considerada canção toulousiana, tem o Brasil no meio e tal, mas
se expressa em francês, a gente se localiza aqui como grupo francês. Entra na
canção francesa. Porque só fazendo música brasileira, só cantando em português,
lógico que as pessoas adoram, tem contrato, mas se você não se dirige ao povo
daqui, na língua, você fica nas pessoas que gostam e conhecem o Brasil e gostam da
música brasileira e das associações que fazem música brasileira e não vai muito
além daí, na minha opinião.
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todo sistema tem problemas e esse também tem. Atravessadores... Então tem gente,
músicos e artistas que burlam as leis em todo lugar, infelizmente. Eles tentam
comprar notas, passa por uma empresa de um amigo e não sei o que lá, enfim,
coisas assim. Para conseguir as tais 43 datas anuais para ter o direito ao salário de
intermitente. Existe também as estrelas da música francesa que comem uma grande
parte desse dinheiro e que a gente vai cair na mesma problemática de sempre; eles
acabam dominando os espaços que a gente poderia tocar.
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Agradeço aqui a pesquisadora Helena Hirata, que reside em Paris e, na ocasião, sabendo que eu
estava pesquisando o trabalho de músicos na França, me convidou para assistir ao show de Elio, juntamente com
colegas que estavam presentes num seminário da APEB – Associação de estudantes e pesquisadores brasileiros
na França.
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Aqui você tem que trabalhar do mesmo jeito. Talvez mais duro, senão você vai
passar o tempo jogando uma capoeira que você não joga, dançando o que você não
dança. Poxa vida, não é isso que a gente quer! Eu tive desentendimentos com
algumas pessoas da comunidade brasileira de Paris há dois anos justamente por
conta disso, eu não quero estar num barquinho no Sena ganhando 30 euros, é isso
que eles ganham. A exploração é em todo lugar. A pior coisa que existe aqui é você
trabalhar com brasileiro. Onde já se viu. Desde que estou aqui eu faço concertos de
40 minutos a uma hora e vinte, no máximo, e sou super bem recebido, com atenção
e um público bacana, de pessoas que estão a fim de saber. As primeiras vezes que
eu cheguei e fui procurar trabalho aqui era pra tocar em barquinho para ganhar 30
euros.
A pesquisa que deu origem a esta comunicação envolveu uma questão subjacente,
uma preocupação inicial, que se pode enunciar de várias formas: como a representação que se
faz dos brasileiros no exterior, supostamente ligada ao futebol, ao carnaval, ao samba, se
aplica aos músicos brasileiros que tentam se estabelecer no mercado de trabalho na França?
Esse tipo de representações orienta o trabalho desses músicos, no sentido de fazê-los se
aproximar ou se afastar de formas musicais típicas, como samba, choro, baião e bossa-nova?
Essas representações influem significativamente na identidade profissional dos músicos
brasileiros na França? Uma rápida consulta no sítio do Consulado-Geral do Brasil em Paris
leva a uma seção intitulada ―cultura brasileira‖, espaço ―dedicado à divulgação de entidades,
escolas e profissionais ligados à cultura brasileira e à promoção/ensino da língua portuguesa
na França‖. Há 75 entidades listadas na seção e, se procurarmos algumas palavras ligadas a
formas musicais típicas, a mais frequente é ―samba‖, com oito ocorrências, mas há também
maracatu e choro, com uma ocorrência cada. No entanto, a palavra ―capoeira‖ aparece 28
vezes. Embora a lista presente no sítio do Consulado represente apenas uma pequena parcela
das associações ou entidades constituídas em torno de práticas culturais ou do trabalho
artístico desenvolvidos por brasileiros, é evidente que esse tipo de ―filiação cultural‖,
outorgada ou construída, está presente nas representações sobre o Brasil na França. Há alguns
trabalhos na literatura sociológica que abordam essa questão, como a tese defendida por,
Anaïs Vaillant (2009) em 2013, na Universidade de Aix-en-Marseille: La batucada des
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Minha vontade sempre foi querer ter um trabalho sobre polir minhas composições,
meus arranjos... e hoje é o que eu faço na França com a minha esposa, a gente
trabalha juntos. Ela é bandolinista, autora e cantora, ela escreve, ela é francesa, né?
E na transmissão também, tem 15 anos agora que a gente tem uma associação na
França pra divulgação da música brasileiras, através, sobretudo, de choro, rodas de
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A batucada dos gringos: apropriações europeias de práticas culturais brasileiras.
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Cristiano vem divulgando seu trabalho em duo com Claire, mas também em grupos
maiores, como Zé Boiadé, nos players digitais, como Soundcloud, Youtube e Deezer, além de
apoiar outros grupos por meio da associação ―La Roda‖, na qual são diretores artísticos. Esse
tipo de atuação releva também a importância dos eventos de filiação cultural ligados ao
trabalho artístico de brasileiros na França. É o caso, por exemplo, das rodas de choro, de
samba, das oficinas de baião, maracatu, também realizadas em casas de espetáculos como o
L’Ermitage, em Paris, que se transforma, nessas ocasiões, numa animada gafieira onde
participam, além de brasileiros que habitam Paris, estudantes de escolas de dança,
conservatórios e associações, como o Club du Choro, envolvidas com ensino de formas
musicais brasileiras. Estive, durante o trabalho de campo na pesquisa, em duas dessas rodas
de choro, uma em Montreuil, subúrbio parisiense e outras duas, que ocorrem com mais
frequência, no bairro de Belleville, a Roda do bar de Lauriers e a do Bar Mineirinho.
Por outro lado, os músicos de formação erudita tendem a executar e ensinar obras de
compositores brasileiros, como Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Mignone e outros. Nesse aspecto
ressalto contribuições de musicistas como Margaret e Maria Inês que, nos conservatórios em
que lecionam, incentivem, por meio de projetos, a produção e a difusão de compositores
brasileiros. Como exemplo, em maio de 2018 o Conservatório Charles Munch, de Paris,
organizou um espetáculo aberto à comunidade, intitulado ―|L’Amazone Bleue‖, com a
participação de alunos e docentes do conservatório e a execução de obras pouco conhecidas
do repertório de Villa-Lobos, como o ―Sexteto Místico‖, única obra que o compositor
escreveu para celesta, numa formação também inusual: violão, flauta, oboé, clarineta,
saxofone e harpa, além da celesta. A concepção do espetáculo, bem como a performance na
celesta, foram realizadas pela professora e vice-diretora Margaret.
A razão de privilegiar autores brasileiros, entretanto, pode ser não provir da escolha
pessoal, ou do sentimento de se reconhecer como brasileiro/a ou de expressar publicamente
esse reconhecimento ou afiliação cultural. A pianista Silvia, por exemplo, remete a uma
antecipação da crítica que pode receber do público:
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Eu acho que tenho um pouco mais de autoridade pra tocar músicas brasileiras do
que tocar música europeia aqui, por exemplo. Eu percebo isso. Tanto em concerto
quanto para professores, quanto a Masterclass. Eu acho que eles têm um certo
cuidado quando vão corrigir alguma obra de compositor brasileiro que eu esteja
tocando
Silvia tem uma trajetória muito peculiar. Do interior de São Paulo, obteve diploma de
piano num conservatório local, além de estudar francês. Depois mudou-se para São Paulo,
onde se graduou em matemática na USP, realizando, em seguida, o mestrado e o doutorado
em linguística, orientada por Luiz Tatit, músico e semiótico que pesquisa a canção brasileira,
mas que também tem uma produção musical com dimensão educativa e pedagógica, além de
artística. Retornou ao interior, pois não tinha como se manter em São Paulo, sem bolsa, após
o doutorado. Prestou concurso e trabalhou como bibliotecária na Unesp por alguns anos, até
se decidir a fazer outro doutorado, mas na França, em musicologia. Concluídos os créditos do
doutorado e finalizada sua bolsa, Silvia precisou dedicar-se mais ao trabalho como musicista
e dedicou-se ao ensino. Com seis dias da semana praticamente tomados por aulas num
conservatório e prática de piano para as aulas, sobram poucas horas para prosseguir na
pesquisa da tese. No aspecto da filiação cultural Silvia também ilustra uma justificativa muito
singular, ressaltando que é comum, no Brasil, uma formação musical que privilegia
compositores e autores estrangeiros, além de que o incentivo à música improvisada também é
raro. Ao contrário, na Europa a exigência por manter um repertório exclusivamente francês
ou europeu não existe e as novidades são bem vindas. Como a produção de composições
brasileiras para piano é extensa, Silvia se abriu para explorar esse repertório, inclusive nas
aulas, além do fato de que a crítica entre pares, também musicistas, torna-se mais branda para
obras que não europeias. Além de que a formação em conservatórios franceses é muito mais
exigente, em termos de técnica, do que a formação brasileira, fato que também foi salientado
na entrevista de Margaret.
Silvia chama a atenção para a importância que pedagogias inclusivas no ensino
musical, desenvolvidas no Brasil por José Eduardo Gramani, Fernando Barba (Grupo
Barbatuques) e Lucas Ciavatta (Método do Passo), têm conquistado na França e de como,
infelizmente, os músicos brasileiros, como ela própria, desconheciam em sua formação:
A primeira vez que ouvi sobre isso foi em Francês, aí caiu a ficha que na verdade
isso daí era do Brasil. Aí eu falei: mas não é possível. Tem 20 anos que estão
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fazendo isso10 e eu nunca tinha ouvido falar. É super interessante, porque junta a
questão da cultura brasileira, dos ritmos. Não é só questão de leitura da partitura...
Você pode tocar perfeitamente a partitura e não ter o gingado. Eu acho que falta
algo. Você percebe que o brasileiro, a batucada é diferente. Eu já fui no carnaval
aqui duas vezes, os franceses tocaram batucada: é marcha, marcha alemã, é
qualquer outra coisa, é tudo certo, mas não é batucado. Acho que inclusive esse é o
problema, o brasileiro está sempre ali meio que equilibrando. A professora do
―Passô‖ com quem eu estou tendo curso agora, é uma francesa, mas ela foi no
Brasil fazer uma formação...
Considerações finais
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Lucas Ciavatta, mestre em educação pela UFF, criou o Método do Passo em 2006 e desde então vem
viajando, pelo Brasil e no exterior, divulgando essa pedagogia. Luiz Ciavatta criou o método. Esteve na França,
em diversas cidades, inclusive Paris, em 2006, 2009 e 2010, ministrando cursos e realizando turnês e oficinas.
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Embora não seja possível generalizar com base numa amostra de 17 musicistas
entrevistadas/os, é possível ressaltar algumas relações encontradas ou confirmadas não
somente com base nesse pequeno conjunto, mas numa literatura já produzida sobre o trabalho
de músicos, em enfoque sociológico, incluindo diversas obras em que foram realizadas
entrevistas na França. A própria seleção da amostra foi guiada pelo exame prévio de
inúmeras páginas e perfis pessoais de músicos brasileiros na França, obtidas principalmente
no site ―Spectacles e musiques du monde‖ (http://www.musiquesdumonde.fr/), na Wikipedia
em aplicativos de redes sociais frequentados por músicos, como MySpace, Soundcloud e
Facebook. A identidade social de músicos brasileiros na França permanece ligada à
tradicional distinção entre música erudita e música popular, contrariamente ao que supus
antes da pesquisa, pensando na pluriatividade que caracteriza o trabalho musical e na
eventualidade de que realizassem atividades nesses dois domínios. O ensino musical na
França é muito mais regulamentado do que no Brasil, a competitividade é maior, as
exigências para lecionar em escolas públicas ou conservatórios praticamente afasta desse tipo
de exercício músicos brasileiros que não tenham obtido, no Brasil, pelo menos o diploma em
conservatório ou no ensino superior (instrumento, regência ou musciologia) ou que não se
tenham destacado em orquestras ou grupos instrumentais ainda no Brasil, ou ainda obtido
formação superior e licenças ou certificados para ensino de artes na França. A realização de
doutorado ou a formação profissional, que é incentivada pelas agências do setor de artes e
espetáculos, dificilmente faculta ao músico estrangeiro a possibilidade de disputar, em
concurso, a condição de agrégé e lecionar em conservatórios nacionais superiores. Ainda
assim, o ensino e suas formas correspondentes de contratação, por meio de CDDs renováveis
anualmente ou, após muitos anos de exercício, o CDI, sem mencionar as aulas particulares
eventualmente na informalidade, integra a trajetória da imensa maioria dos músicos na
França, incluindo os estrangeiros. No que concerne à performance, a intermitência é a tônica
para quem se dedica sobretudo à musica popular, com maior frequência ainda para músicos
que se estabelecem na ―província‖. Arranjos articulando CDDs no ensino e CDDs d’usage na
intermitência são mais comuns entre mulheres do que para homens, principalmente em razão
da estabilidade econômica que a condição de maternidade requer. Os arranjos domésticos e
familiares entre casais em que pelo menos uma das pessoas é musicista são fundamentais
para a permanência na trajetória. A endogamia ocupacional também é frequente, talvez mais
do que ocorre entre os músicos franceses em razão da condição de acesso à cidadania que
pode proporcionar para estrangeiros.
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11
Catherine B.Grosset, em publicação recente, analisa as políticas de regulamentação dos direitos dos
artistas em países como Bélgica, Alemanha e Itália e Países Baixos, admitindo que há pontos em comum, como
medidas de indenização, criação de um fundo social para artistas de espetáculos, é difícil reunir todas as
condições para a indenização de períodos de desemprego de intermitentes como ocorreu na França, ainda que
problemas como a multiplicação excessiva de contratos de CDD, em parte dos casos correspondendo a um único
contratante, ameacem a confiabilidade do sistema, pois nesse caso as empresas passam, para se livrar de
impostos relativos a contratações CDI, a realizar sucessivos CDD’s no mesmo ano para cada empregado,
surgindo assim um grupo que ficou conhecido como os ―permitentes‖, contração de permanentes com
intermitentes.
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Referências
CHHUM, Frédéric. L’intermittent du spectacle. 2ed. Les nouvelles règles après la réforme de
2003. Paris : Éditions du Juri-Classeur, 2013 [2004].
FURTADO, Luís Carlos Vasconcelos. Flautear: uma atividade muito além de ―levar a vida
na flauta‖: a construção identitária do flautista brasileiro como trabalhador. 2014. Tese
(Doutorado em História) — Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
GROSSET, Catherine Benzoni. Tour d’horizon des dispositifs en faveur des astistes dans le
pays européens. In : PÉLISSIER, Nicolas; LACROIX, Céline. Les intermittents du spectacle.
De la culture aux médias. Paris : L’Harmattan, 2008. p. 73-98.
RAVET, Hyacinthe. Musiciennes. Enquête sur lês femmes et la musique. Paris: Autremont,
2011.
SEGNINI, Liliana R.P.. Questions sur les carrières des femmes musiciennes. In:
GUIMARAES, Araújo; MARUANI, Margareth; SORJ, Bila. (Org.). Genre, race, classe.
Travailler en France et au Brésil. Paris: L’Harmattan, 2016. p. 221-233.