Você está na página 1de 21

TOTEMISMO REVISITADO:

PERGUNTAS DISTINTAS,
DISTINTAS ABORDAGENS*

MARIA CATARINA CHITOLINA ZANINI**

Resumo: este artigo objetiva efetuar uma revisão bibliográfica das teorias
sobre o totemismo, encontradas em alguns autores clássicos. Entre elas estão
a teoria evolucionista presente na obra de Durkheim e Freud, a ritualista
presente na obra de Radcliffe-Brown e a estruturalista presente na obra de
Levi-Strauss.

Palavras-chave: totemismo, teoria, religião

E ste artigo tem por objetivo efetuar uma breve revisão de lite-

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


ratura sobre o totemismo e suas diferentes abordagens. O texto
se apresenta dividido em três momentos distintos: o primei-
ro refere-se à fase evolucionista, em que são analisados auto-
res como Durkheim e Freud; o segundo momento trata da
leitura do totemismo enquanto relação ritual, e o terceiro
momento é uma leitura da abordagem estruturalista presen-
te na obra de Levi-Strauss.

A PREOCUPAÇÃO COM AS ORIGENS

No final do século XIX e no início do século XX,


muitos autores se propuseram a estudar o totemismo. Entre
os fatores que influenciaram os rumos da ciência naquele
contexto específico, podem-se citar a Revolução Industrial e
as transformações da sociedade ocidental como um todo, a
513 crença na razão e no progresso da mente humana1, o darwi-
nismo que havia criado uma “victorian crisis of faith” (STO-
CKING,1987, p.188) e a obra de Tylor, Primitive culture, de
1871. A preocupação em desvendar as origens dos fenôme-
nos sociais e naturais era uma constante para aqueles estudiosos,
a maior parte influenciada pela teoria evolucionista que, sa-
indo do campo das ciências naturais, amplificou-se aos estu-
dos das sociedades humanas. Pelo método comparativo,
pretendia-se revelar a genealogia de uma História linear uni-
versalizante, bem como esboçar o princípio de causalidade
dos fenômenos (STOCKING, 1987). Embora de formas di-
ferenciadas, vários autores tentaram decifrar a origem das
instituições sociais, entre elas o totemismo. Neste artigo, se-
rão abordadas as obras de Durkheim e Freud.
A palavra totem deriva de dotem, termo usado pelos
índios Ojibwa, da América do Norte, para denotar um membro
de um clã (WAGNER, 1987). O termo totemismo, de acor-
do com a literatura estudada, teria sido usado pela primeira
vez por McLennan (em 1869 e 1870), nos artigos da Fortnightly
Review intitulados The Worship of Animals and Plants que
estabeleceu, como forma deste, a tríade “fetichismo, mais
exogamia, mais descendência matrilinear” (LEVI-STRAUSS,
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

1975, p. 24). Segundo Durkheim (1996), foi McLennan quem


procurou mostrar que o totemismo era uma religião e que
dele teria derivado um grande número de crenças e de práti-
cas presentes em sistemas religiosos tidos como mais avança-
dos. O que McLennan teria denominado de totemismo seria
o fato de cada grupo (ou clã) estar associado a uma espécie
particular de animal ou planta. Segundo Freud (1974), ape-
sar de McLennan ter iniciado os estudos sobre o tema, abste-
ve-se de publicar a sua opinião sobre a origem do totemismo.
Para se compreender as idéias de Durkheim acerca
do totemismo, considero relevante apresentar, mesmo que
brevemente, algumas das noções sobre o totemismo presen-
tes nas obras de Frazer, com quem aquele dialoga constante-
mente. Para Frazer, o totemismo seria uma das formas primevas
de desenvolvimento humano, uma solução intelectual para
problemas cognitivos colocados por diferentes fenômenos 514
naturais inexplicáveis. Durkheim (1996, p.45)2 salientava que,
para Frazer, o totemismo seria apenas um sistema mágico,
uma espécie de ciência grosseira e errônea e um primeiro
esforço para descobrir as leis das coisas. Em suma, o totemismo
estaria classificado como uma atividade mágica, do que ele
discordava substancialmente. A relação estabelecida pelo totem
seria mais forte que a de sangue ou de família, pois este era
transmitido pela linha materna e talvez, no princípio, não
fosse considerada a herança paterna. Segundo Freud (1974,
p. 143), a versão acerca do totemismo presente em The Golden
Bough é derivada da crença na “alma exterior”. Contudo, após
tomar conhecimento da obra de Spencer e Gillen, Frazer te-
ria renunciado a essa hipótese e formulado a teoria sociológica
do totemismo. Para ele, os homens se teriam dividido em clãs
de acordo com uma classificação prévia das coisas3, ou seja,
as relações lógicas entre as coisas teriam fornecido bases às
relações sociais dos homens e o totemismo seria derivado desse
processo.
Pode-se dizer que a obra de Durkheim, As formas
elementares da vida religiosa, de 1912, abre um diálogo com
várias teorias do totemismo e algumas das idéias de Frazer

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


acima expostas são questionadas. Para Durkheim, o totemismo
seria a forma mais elementar da vida religiosa, por ser “a mais
simples”. Para provar sua hipótese, o autor utiliza dados
etnográficos de sociedades australianas tidas como casos exem-
plares por serem sociedades “simples”4 e uniformes. As soci-
edades estariam submetidas a leis necessárias e constituiriam
um reino natural e, no interior dessa concepção que poderia
ser denominada de positivista, a religião cumpriria uma fun-
ção que seria, em palavras simples, manter o curso normal da
vida e dar uma representação total do mundo, bem como
estabelecer coesão entre a sociedade e seus membros. Da mesma
forma, não haveria religiões falsas, todas, de alguma forma,
pertenceriam ao real e o expressariam. A conclusão geral da
obra de Durkheim é que o totemismo é religião e a religião
é, por sua vez, uma coisa eminentemente social, sendo o
515 totemismo considerado um vasto sistema de coisas sagradas.
O totemismo, forma elementar da vida religiosa, seria
um sistema classificatório de idéias, reproduzido com base
na matriz social e que ofereceria uma concepção do universo
na qual as fratrias serviriam de gêneros e os clãs, de espécies
(DURKHEIM,1996). O totem não seria apenas um nome,
mas, antes de tudo, um emblema. Ou seja, Durkheim con-
clui que as imagens do ser totêmico são mais sagradas do que
o próprio ser totêmico, porque o representam e estão reple-
tas de força social. Da mesma forma, o homem pertence ao
clã, pois ele tem o nome desse animal ou planta, e se conside-
ra que a identidade do nome implica uma identidade de na-
tureza. Seriam coisas sagradas para o totemismo, então, o
emblema totêmico, a planta ou animal cujo aspecto esse
emblema reproduz e os membros do clã (DURKHEIM,1996).
O que as coisas sagradas revelam é a força anônima e impes-
soal que se manifesta em cada um desses seres sem, no entan-
to, confundir-se com nenhum deles. Igualmente, são símbolos,
prenhes de força religiosa e, como a parte lembra o todo, são
evocados também os sentimentos que o todo sugere. Assim,
o que promoveria a santidade de uma coisa seria o sentimen-
to coletivo de que é objeto e, nas palavras do autor, a socie-
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

dade suporia uma organização consciente de si que nada mais


seria que uma classificação. A classificação das coisas repro-
duziria, dessa forma, a classificação dos homens em socieda-
de (DURKHEIM,1984).
A distinção entre o sagrado e o profano é vital na
obra de Durkheim que os concebe como de natureza dife-
renciada, como mundos separados, hostis e rivais um do ou-
tro5. As coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem
e isolam, e as profanas aquelas às quais se aplicam as proibi-
ções e que devem manter-se distanciadas das primeiras
(DURKHEIM,1996). Nas palavras do autor, o que faz a san-
tidade de uma coisa é o sentimento coletivo de que ela é
objeto. De acordo com Lukes (1984), a dicotomia sagrado
versus profano presente na obra de Durkeim estaria intima-
mente ligada à dicotomia social versus individual e explicar-
se-ia por ela, estando o sagrado vinculado à vida da sociedade 516
e o profano à vida do indivíduo (LUKES, 1984). Esse dualismo,
com certeza, percorre a obra de Durkheim como um todo.
Em suma, o totemismo seria uma forma de classifi-
cação que revelaria uma hierarquia que para o autor é exclu-
sivamente uma coisa social. Nessa trajetória, conclui-se que
foi a sociedade que forneceu o suporte por meio do qual
opera o pensamento lógico. O homem primitivo, em
Durkheim, possui uma lógica, por mais estranha que possa
às vezes parecer. Nesse aspecto, observa-se uma clara distin-
ção entre a sua concepção de totemismo e a de Frazer, por
exemplo. Igualmente, para o autor, entre a lógica do pensa-
mento religioso e a lógica do pensamento científico, não ha-
veria um abismo como supunha Frazer. Para Durkheim, as
classificações primitivas seriam uma primeira filosofia da
natureza. Por quê? Porque a sociedade não teria sido sim-
plesmente um modelo pelo qual o pensamento classificatório
trabalhou. Para Durkheim (1984), foram os próprios qua-
dros da sociedade que serviram de quadros ao sistema.
Em Durkheim (1996), totemismo e organização clâ-
nica6 são elementos inseparáveis, sendo que o princípio totê-
mico é o próprio clã, mas hipostasiado e representado às

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


imaginações sob as aparências sensíveis do vegetal ou do
animal que serve de totem. Dessa forma, a sociedade se iguala
a Deus e provoca nos indivíduos a sensação de uma “perpé-
tua dependência” (DURKHEIM,1996, p. 211)7, um res-
peito e detém uma autoridade moral. Em suma, ela possui
força. Mas, por qual meio se daria tal eficácia das represen-
tações? Para ele, a eficácia se deve unicamente às proprieda-
des psíquicas e é precisamente por esse sinal que se reconhece
a autoridade moral, e Deus-sociedade, no fundo, seria uma
autoridade da qual o ser humano dependeria e uma força
sobre a qual se apóia a sua própria força. A relação entre
pensamento, Deus e sociedade é tão presente na obra que o
autor chega a declarar que o que o fiel oferece realmente a
seu Deus não é o alimento que deposita no altar nem mes-
mo o sangue que faz correr de suas veias: “é seu pensamen-
517 to” (DURKHEIM,1996, p. 373).
Mas, o que leva um clã a escolher para si um emble-
ma e por que esses emblemas foram tomados do mundo ani-
mal ou vegetal? Diz Durkheim que os emblemas produzem
o sentimento de coesão e unidade moral. A tatuagem,
promovedora de ligações simbólicas, é emblema do totemismo
e expressa a comunhão das consciências. E, por que plantas e
animais? Porque, para o autor, tinham de ser possíveis de
serem desenhadas, tinham de estar em contato com os gru-
pos, fazendo parecer que cada grupo tenha tomado por in-
sígnia o animal ou vegetal mais difundido nas vizinhanças
do lugar na qual tinha o hábito de se reunir. Mas, e qual seria
a origem da religião totêmica? Na teoria proposta por Durkheim
e pelo exemplo tirado das sociedades australianas, que se dis-
tribuem em duas fases sazonais, uma na qual procuram ali-
mento e outra na qual se condensam, seria nesta fase, quando
havia “efervescência social”, que teria nascido a idéia religio-
sa. Nas palavras de Durkheim (1996), a sociedade seria a
causa objetiva, universal e eterna das sensações sui generis
que compõem a experiência religiosa. Em síntese, o totemismo
é uma forma de classificação do mundo que deriva do social.
Afora as falhas metodológicas (de crer que partindo
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

de um caso particular se pode generalizar), etnográficas, o


excesso de positivismo, o evolucionismo, a teoria de Durkheim
é um exercício fantástico de explicação sobre o fenômeno
religioso e as formas de pensamento, ou antes, da própria
gênese do pensamento. Contudo, como foi apontado por Evans-
Pritchard (1984), algumas críticas merecem ser feitas à sua
obra: a separação extremada que há entre o sagrado e profa-
no; se o totemismo é uma religião de clãs, como se explicaria
o fato de haver totemismo sem clãs e sociedades clânicas que
não possuem totemismo; há um peso excessivo na represen-
tação das figuras totêmicas e o esmagamento da noção de
indivíduo na teoria religiosa. Van Gennep (1920, p. 50), sem
poupar críticas a Durkheim, diz que um culto a uma entida-
de impessoal seria inconcebível, sobretudo entre os primiti-
vos e “faire du totem une sorte de logos social, ce n´est point
penser en primitif, mais en métaphysicien trés civilisé”. E, como 518
diz Levi-Strauss (1956), toda a grandeza e toda a debilidade
da obra de Durkheim se encontram nas Formas elementares
da vida religiosa.
Freud também se preocupou em desvendar a ori-
gem do totemismo. Em sua obra Totem e Tabu, de 1913,
inspirado em Frazer, esboça o que Van Gennep (1920) cha-
mou de teoria psicoanalítica do totemismo. Por quê? Porque
Freud acreditava que o homem primitivo aplicava ao mundo
exterior a estrutura de sua psique. O que faltava à análise do
totemismo, diz ele, era levar em conta o caráter emocional
dos assuntos a serem explicados. A teoria freudiana sobre a
origem do totemismo é simples e ao mesmo tempo difícil de
ser provada, pois se baseia numa suposição “mitológica” do
assassinato do pai e no posterior sentimento de culpa dos
filhos pelo crime. Para ele, totemismo e exogamia seriam
inseparáveis, pois os filhos, antes organizados em hordas, passam
a se organizar em clãs e, culposos da morte do pai, abdicam
sexualmente de suas “irmãs”8 e passam a venerar a figura do
Deus-pai na forma de totem e rendendo a ele obediência
póstuma.
Da mesma forma que Frazer, Freud considera a ma-

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


gia uma forma atrasada de pensamento9, sendo o homem,
nessa fase, dominado pela “onipotência das idéias”, acredi-
tando ter poderes sobre a natureza e as coisas exteriores. Diz
ele que, na fase animista, o homem atribuiu a si mesmo a
onipotência; na fase religiosa, cede aos deuses essa faculdade,
sem, contudo, renunciar a ela por completo, pois se reservam
o poder de influenciar os deuses, por influências variadas ao
sabor dos seus desejos e na concepção científica do mundo, já
não haveria mais lugar para a onipotência do homem, uma
vez que reconheceu a sua própria pequenez e resignou-se à
morte como a todas as necessidades naturais. Nesse raciocínio,
o homem primitivo e o neurótico são igualados, pois neles não
haveria a distinção precisa entre pensar e agir. Para o homem
primitivo, portanto, não havendo inibição, o pensamento trans-
formar-se-ia imediatamente em ação. A conclusão freudiana é
519 que no princípio foi o “Ato” (FREUD, 1974) e que tanto o
selvagem quanto o neurótico acreditam que podem interferir
no mundo exterior com um simples pensamento seu. Esse é
um dos aspectos mais criticados na obra de Freud, pois as ações
dos neuróticos são fruto de estados subjetivos individuais, ao
passo que para o “homem primitivo” elas são impostas tradici-
onal e socialmente pela sua cultura. Outro elemento crítico na
obra de Freud é a sua concepção de uma psique universal vin-
culada à evolução biológica. Diz ele que, se os processos físicos
de uma geração não continuassem na geração seguinte, cada
uma delas seria obrigada a adquirir de novo a orientação ante
a vida, de maneira que não haveria progresso nem tampouco
evolução. E, como seriam transmitidos esses elementos? Para
Freud, uma parte dessa continuidade seria assegurada pela herança
das disposições físicas que, segundo ele, precisam de certos
estímulos na vida individual, para se desenvolverem plenamente.
Desta forma, haveria uma linha de continuidade em que ne-
nhuma geração poderia ocultar às seguintes fatos físicos de
certa importância e na qual os mais simples impulsos hostis
para com o pai e a existência do fantasioso desejo de matá-lo e
devorá-lo poderiam bastar para provar aquela reação moral
que criou o totemismo e o tabu.
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

Esta é, em síntese, a teoria freudiana acerca do


totemismo. Para Kroeber, num artigo publicado na American
Anthropologist, de 1920, a obra de Freud poderia ser lida con-
siderando-se 11 “falhas” (algumas etnográficas, outras
metodológicas). Contudo, ressalta Kroeber, a psicologia e o
movimento psicanalítico fizeram contribuições significantes
que os etnólogos deveriam tomar em consideração. E, se-
gundo ele, talvez o mais relevante não fosse buscar as origens
do totemismo, mas sim procurar desvendar como ele funcio-
nava no presente. Outro crítico da postura freudiana é Evans-
Pritchard (1984) que diz haver em Freud uma redução
psicologizante, em que tanto a magia quanto a religião são
reduzidas a estados psicológicos, tais como: tensões, frustra-
ções, emoções, sentimentos, complexos e decepções.
Durkheim e Freud foram por mim selecionados jus-
tamente por algumas de suas características em comum: a 520
preocupação em desvendar a origem do totemismo, a busca
por explicações universalizantes e generalizantes mediante a
utilização do método comparativo e a presença de um racio-
cínio evolucionista. Além disso, Freud, transforma-se num
contraponto a Durkheim (e a Frazer também) na medida em
que introduz no totemismo o aspecto afetivo. Não que tal
aspecto não estivesse presente em Durkheim, mas o desta-
que em Freud é justamente uma forte carga atribuída ao in-
divíduo e ao inconsciente quanto aos afetos e seu desdobramento
em formas de comportamento. Se há emoções, para Durkheim,
elas são criadas pela sociedade e só se tornam reais porque
são reconhecidas coletivamente. Lévi-Strauss (1975), em sua
obra Totemismo Hoje, diz que, em Durkheim, a teoria do
totemismo parte da necessidade e se completa recorrendo ao
sentimento10. O que, na teoria freudiana, dar-se-ia de forma
inversa, sendo a religião antes uma maneira de se relacionar
com os sentimentos de culpa do que uma forma de coesão
social, como em Durkheim. Além disso, se na obra de
Durkheim, a sociedade é Deus, na obra de Freud, o pai é
Deus (EVANS-PRITCHARD, 1984).

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


O TOTEMISMO ENQUANTO RELAÇÃO RITUAL

Minha sugestão é que no empenho de


compreender uma religião devemos
primeiro concentrar atenção mais nos ritos
que nas crenças. (Radcliffe-Brown)

Radcliffe-Brown mantém, em larga medida, um di-


álogo com Durkheim. Contudo, há grandes contrastes entre
ambos, em especial, quanto ao que seria mais relevante no
universo religioso, se as crenças ou as práticas (ou ritos) reli-
giosos. Pode-se dizer que em Durkheim, inequivocamente, a
primazia recai sobre a crença. Radcliffe-Brown (1973) criti-
cara este postulado e desenvolvera uma compreensão do
totemismo baseada no estudo da relação geral entre o ho-
521 mem e as espécies naturais na mitologia e no ritual.
Metodologicamente, a crítica que Radcliffe-Brown
(1978) elabora a seus antecessores residiria no “problema geral
do totemismo”, qual seja: como se poderia compreender os
costumes pelos quais grupos e divisões sociais são distingui-
dos pela associação de um grupo ou divisão particular com
uma espécie natural particular?. Esse problema seria, no fun-
do, derivado de outros dois questionamentos: de que manei-
ra, numa sociedade particular, a relação dos seres humanos
com as espécies naturais é representada e como os grupos
sociais vêm a ser identificados em conexão com algum em-
blema, símbolo ou objeto que tenha referência simbólica ou
emblemática. O autor deseja enfatizar o modo pelo qual os
próprios nativos pensam a respeito da divisão dual como uma
parte de sua estrutura social. Em suma, diz ele, ao invés de se
perguntar por que todas estas aves? deve-se perguntar: “por
que particularmente gavião-real e corvo, e outros pares?”
(RADCLIFFE-BROWN, 1978, p. 47). E a resposta é que
todo objeto ou fato que tenha derivações importantes, seja
no plano material ou espiritual de uma sociedade ou tudo o
que signifique ou represente quaisquer desses objetos ou fa-
tos, tende a tornar-se objeto de comportamento ritual.
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

Em Radcliffe-Brown, o mundo da vida animal é


representado em termos de relações sociais similares àquelas
da sociedade humana. Pode-se dizer que, se em Dukheim há
uma projeção da sociedade no mundo e na natureza externa,
em Radcliffe-Brown, a assim chamada natureza externa vem
a ser incorporada na ordem social como parte essencial dela.
Dessa forma, a ordem natural integra e torna-se parte da or-
dem social.
Quanto à questão das origens do totemismo, Radcliffe-
Brown considera não haver provas conclusivas acerca destas
e é crítico às posturas evolucionistas lineares. Para ele, igual-
mente não há totemismo, mas totemismos (de clã, de sexo,
de metades, de secção e patrilinear). Quanto à obra de
Durkheim, um dos pontos centrais a ser criticado, segundo
Radcliffe-Brown (1973), é a idéia de que o totem é sagrado
para os membros do grupo e que as espécies naturais só se 522
tornam sagradas porque são escolhidas como representantes
de grupos sociais. Para ele, é preferível falar que há uma “re-
lação ritual” entre as pessoas e seu totem. Sustenta que, pelo
contrário, as espécies naturais são escolhidas como represen-
tantes de grupos sociais, tais como clã, porque são já objeto
de comportamento ritual. E os rituais teriam por função ex-
primir e manter viva a solidariedade do grupo social, bem
como individualizar e separar o grupo em relação aos de-
mais, ou seja, salientar a sua especificidade.
Do interior de seu quadro teórico triádico, compos-
to dos conceitos de estrutura, processo e função, Radcliffe-
Brown (1973) apresenta uma questão relevante: por que em
certas sociedades uma atitude ritual para com certas espécies
de objetos naturais impõe-se aos membros de determinado grupo
social?. E, nesse ponto, concorda com Durkheim ao respon-
der que a função da relação totêmica é manter viva a solidarie-
dade do grupo enquanto tal. Contudo, para além desse aspecto,
ressalta que a mais ampla unidade e solidariedade de toda socie-
dade totêmica se exprime pelo fato de que a sociedade como
um todo, por meio de seus segmentos, fica numa relação ritual
para com toda a natureza e que, para descobrir a função social

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


dos ritos totêmicos, deve-se considerar o corpo de idéias
cosmológicas de que cada rito seria uma expressão parcial. Enfim,
para o autor, o totemismo é parte de um todo maior e que
permite às sociedades totêmicas a representação do universo
como ordem social ou moral. E, o que impulsiona uma socie-
dade ao totemismo? As respostas seriam duas: a primeira é a
dependência total ou parcial sobre produções naturais para sub-
sistência, e a segunda é a existência de organização segmentária
em clãs ou em outras unidades sociais semelhantes (RADCLIFFE-
BROWN, 1973). No artigo Os Métodos da Etnologia e da An-
tropologia Social, publicado originalmente no South African Journal
of Science, em 1923, Radcliffe-Brown (1975) formulou qua-
tro leis gerais acerca do totemismo que acreditava serem possí-
veis de comprovação pelos métodos lógicos de indução ordinários.
Essas leis, em síntese, diriam o seguinte: que nas sociedades
523 primitivas, todas as coisas que têm conseqüências importantes
sobre a vida social se converteriam, necessariamente, em ob-
jetos que despertariam atitudes rituais que teriam por fun-
ção expressar, fixar e perpetuar o reconhecimento do valor
social dos objetos a que se referem; Numa sociedade, que
depende muito de espécies animais e vegetais, em especial as
utilizadas para alimento, converter-se-iam em objeto de ob-
servância ritual; Em sociedades diferenciadas, os vários seg-
mentos tenderiam a se distinguir uns dos outros mediante
diferenças de ritual; Nas sociedades diferenciais, a tendência
geral seria desenvolver relações rituais especiais entre cada um
dos segmentos e uma ou mais espécies de animal ou planta e,
às vezes, divisões especiais da natureza que inclui uma série de
espécies.
Para o autor, importante é desvendar o totemismo,
não em suas origens, mas, sim, em sua forma de funciona-
mento, o que deve ser feito pelo método indutivo. Contudo,
salienta que somente um estudo integrado e organizado, no
qual estivessem combinados os estudos históricos e socioló-
gicos, faria chegar ao entendimento autêntico do desenvolvi-
mento da sociedade humana (RADCLIFFE-BROWN, 1975).
A trajetória de Radcliffe-Brown no estudo do totemismo fez
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

com que ele tomasse como objeto de estudo uma sociedade


que não conhecia o fenômeno, nas ilhas Andaman, e dedi-
casse muitos anos à pesquisa do tema11. A importância deste
autor para as reflexões acerca do totemismo são fundamen-
tais, pois redimensionam a relação sociedade versus natureza,
mostrando o quanto esta é recíproca e o quanto a natureza é
incorporada ao mundo social e não subordinada a este12.
Lévi-Strauss é crítico das hipóteses de Radcliffe-Brown
(1975) e afirma que sua noção de totemismo teria sido forja-
da com elementos tomados de empréstimo de instituições
diferentes. Evans-Pritchard (1984) diz que, ao tentar reformular
a teoria durkmeiniana, o que Radcliffe-Brown fez foi torná-
la absurda ao tentar mostrar que o totemismo não seria se-
não uma forma particular de um fenômeno universal da
sociedade humana, ou seja, da lei geral segundo a qual todo
objeto ou acontecimento que afeta fortemente o bem-estar 524
material ou espiritual de uma sociedade tende a tornar-se
objeto de atitudes rituais. Será? Creio que não. Há muito
ainda a ser desvendado em Radcliffe-Brown. E, ele próprio,
foi, ao longo de sua produção acadêmica, repensando suas
hipóteses acerca do totemismo.

A ILUSÃO É REAL?

Sempre há uma distância razoável de Cil a Caribdes: diacronia


e sincronia, fato e estrutura, estética e lógica, sua natureza só
pôde escapar aos que pretendiam defini-la apenas por um aspecto.
Entre o profundo absurdo das práticas e das crenças primitivas
proclamadas por Frazer e sua validação especiosa através das
evidências de um pretenso senso comum invocado por Malinowski,
há lugar para toda uma ciência e toda uma filosofia (LÉVI-
STRAUSS, 1989, p. 90).

Lévi-Strauss (1975) introduz uma nova abordagem


sobre o totemismo (o seu reverso, diz ele) numa época em
que poucos (ou nenhum) estudiosos o fariam. Para o autor,
em seu trabalho Totemismo Hoje, de 1962, a noção de totemismo

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


havia colocado algumas sociedades no domínio da natureza.
Sobre a teoria concepcionalista de Frazer, diz ele que a asso-
ciação entre o totemismo e a ignorância da paternidade não é
mero acaso, pois o totemismo aproximaria o homem do ani-
mal e a alegada ignorância do papel do pai na concepção
levava a substituir o genitor humano por espíritos mais pró-
ximos ainda das forças naturais. A tese de Lévi-Strauss é que
o mundo animal e o mundo vegetal não são utilizados ape-
nas porque existem ou sejam úteis, mas porque propõem ao
homem um método de pensamento, ou seja, contrariando a
premissa funcionalista de Malinowski e outros, as espécies
naturais não seriam escolhidas por “serem boas para comer”,
mas justamente por serem “boas para pensar”. Essa tese deri-
varia no que ele denominou de a “ciência do concreto”, ex-
tensamente trabalhada em sua obra O pensamento selvagem,
525 também de 1962.
A conclusão a que chega Levi-Strauss (1975, p. 27)
é que o totemismo é uma ilusão e que seu valor aparente
provém de uma “infeliz divisão da realidade” e que a noção
mesma de totemismo é ilusória e não somente a sua unidade
enquanto fenômeno. A ilusão deriva do fato de que o “pretenso
totemismo” seria apenas um caso particular do problema ge-
ral das classificações e um exemplo, entre tantos outros, do
papel freqüentemente atribuído aos termos específicos para
elaborar uma classificação social (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.
78). A grande distinção entre totemismo e religião seria a de
que a religião seria composta por relações metonímicas e o
totemismo por relações metafóricas. O que quer dizer que a
metonímia corresponderia mais à ordem do acontecimento e
a metáfora, à ordem da estrutura.
Lévi-Strauss (1975) critica bastante a obra de Du-
rkheim, denominando sua teoria de “reducionista” e enfati-
zando que as imagens são projetadas, não recebidas, ou seja,
a sua substância não seria extraída de fora. E, prossegue ele
dizendo que, se a ilusão encobre uma centelha de verdade,
esta não estaria fora de nós, “mas em nós” (LÉVI-STRAUSS,
1975, p. 108). Mas, como operariam as classificações totê-
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

micas para Levi-Strauss? Para ele, o princípio lógico seria o


de sempre se poder opor termos que um empobrecimento
prévio da totalidade empírica permitiria conceber como dis-
tintos, ou seja, os sistemas de denominação e classificação
totêmicos retirariam seu valor operatório de seu caráter for-
mal, sendo códigos aptos a veicular mensagens transponíveis
nos termos de outros códigos e a exprimir em seu próprio
sistema as mensagens recebidas pelo canal de códigos dife-
rentes. Em suma, o totemismo seria um sistema formal cuja
função é garantir a convertibilidade ideal dos diferentes ní-
veis da realidade social. E, as instituições totêmicas invocam,
de acordo com Levi-Strauss (1975), uma homologia, não entre
grupos sociais e espécies naturais, mas entre as diferenças
que se manifestam, de um lado, no nível dos grupos, de ou-
tro, no nível das espécies13. E, portanto, aí reside uma enor-
me distinção entre Levi-Strauss e Durkheim que concebia o 526
sistema classificatório do totemismo pela via do mundo soci-
al ao mundo lógico, ou seja, as coisas só se tornariam lógicas
porque seriam, antes, sociais e coletivas. Em Levi-Strauss, a
capacidade lógica é humana e não residiria no social.
Como funcionaria o operador totêmico em Levi-
Strauss? Ele teria por função mediar as relações entre natu-
reza e cultura. O totemismo, diz Levi-Strauss, não estaria
no domínio da natureza, como supunha Malinowski ou da
sociedade, como supunha Durkheim, mas, sim, seria um
meio (ou uma esperança) de transcender essa oposição. Como
se daria essa transcendência? É que as relações do homem
com o meio natural desempenhariam o papel de objetos de
pensamento, sendo que o homem não as perceberia passi-
vamente, mas as trituraria depois de tê-las reduzido a con-
ceitos, para posteriormente “inferir um sistema que nunca
é predeterminado” e que ainda comportaria múltiplas siste-
matizações (LEVI-STRAUSS, 1989, p. 111). Além disso,
seriam aparentados de outras crenças e outras práticas que
estariam, direta ou indiretamente, ligados a esquemas
classificatórios que permitiriam apreender o universo natu-
ral e social sob a forma de totalidade organizada. E as proi-

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


bições e as regras de exogamia, que são também regras de
ação? Diz ele que as proibições não são resultado das pro-
priedades intrínsecas de espécie, mas “do lugar que lhes é
designado em um ou vários sistemas de significação” (LEVI-
STRAUSS, 1989, p. 115) e se tornam meios equivalentes
para significar a significação dentro de um sistema lógico
cujas espécies consumíveis constituem, no todo ou em par-
te, os elementos (LEVI-STRAUSS, 1989). Dessa forma, entre
as proibições alimentares e as regras de casamento, haveria
uma “ligação de fato”14. As críticas de Levi-Strauss são enca-
minhadas aos autores que se mantiveram presos ao totemismo
enquanto realidade institucional. Diz ele que tudo o que se
pode conceder aos “adeptos do totemismo” é o fato de terem
acertado na importância conferida à noção de espécie consi-
derada como operador lógico. Para Levi-Strauss, as espécies
527 naturais, por sua distintividade natural, forneceriam ao pen-
samento não um modelo definitivo e imediato de pensamen-
to, mas seriam um meio de acesso a outros sistemas distinti-
vos que repercutiriam sobre o primeiro. Enfim, a noção de
espécie é operador que permite se passar da unidade de uma
multiplicidade à diversidade de uma unidade.
Em suma, diz Levi-Strauss (1989), o relevante é que
se reconheça que os povos chamados primitivos souberam
elaborar métodos racionais para inserir, sob o duplo aspecto
de contingência lógica e da turbulência afetiva, a irracionalidade
na racionalidade, enfim, souberam como o processo lógico
opera com as categorias do sensível. A mensagem final da
obra O Pensamento Selvagem é justamente esta, ou seja, a de
que o homem primitivo possui apetite de conhecimento ob-
jetivo e que vive, sente e pensa, não somente por causa da
satisfação de suas necessidades orgânicas ou econômicas, mas,
sim, porque almeja ordenação em sua realidade, ou antes,
talvez, viver seja eternamente ordenar. E o totemismo, dessa
forma, torna-se um sistema formador de códigos que permi-
tiria a conversão ideal dos diferentes níveis da realidade soci-
al. Racionalizador demais? Universalista demais? Talvez.
Contudo, para além das críticas elaboradas ao estruturalismo
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

de Levi-Strauss (vide GEERTZ, 1973), suas reflexões acerca


do totemismo são uma luz no túnel, válidas e preciosas. De
acordo com Da Matta (1986, p. 1242), os teóricos do passa-
do teriam sabido perceber o lado positivo da identidade totêmica
e Levi-Strauss, o outro lado dessa identificação, “sua face ne-
gativa, que permitia distinguir os grupos sociais da sociedade
que se utilizava dessa lógica totêmica”.

CONCLUSÃO

O totemismo não foi nem é um tema que possua


uma leitura inacabada. Os autores que se propuseram a estudá-
lo, afora as críticas teórico-metodológicas que possam ser ela-
boradas contemporaneamente, fizeram-no com afinco e com
os instrumentais analíticos de seu período. E, dessa forma,
pode-se dizer que cada uma das teorias acerca do totemismo 528
trouxe, para o seu período, uma preciosa contribuição à re-
flexão sobre o tema, bem como contribuiu para a própria
consolidação da Antropologia enquanto ciência. O método
comparativo, seja da forma utilizada pelos evolucionistas, seja
na formulação de Radcliffe-Brown, foi, sem dúvida, um dos
primeiros passos na tentativa de se compreender os domínios
do humano e suas particularidades. Com Metodologias equi-
vocadas, por pressupostos colonialistas, com certeza o totemismo
foi um dos temas que serviu para, em alguns autores, de-
monstrar o quanto o mundo primitivo estava distante do mundo
civilizado.
Por que os estudiosos (antropólogos, filósofos etc.)
perderam seu interesse pelo estudo do totemismo e isso mui-
to antes de Levi-Strauss ter declarado tratar-se de uma ilu-
são? No início do século XX, foram enumeradas, na obra de
Van Gennep (1920), L´état actuele du probléme totémique,
41 teorias acerca do totemismo e eram muitos os estudiosos
que se debruçavam sobre elas. Para Evans-Pritchard (1984),
o declínio se deve ao fato de que uma investigação sobre esse
particular requer um espírito poético capaz de transitar com
desenvoltura entre as imagens e os símbolos, o que talvez,

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


em minha compreensão, falte na Antropologia contemporâ-
nea. Considero, igualmente, que a reflexão acerca das rela-
ções existentes entre as ordens natural e social, o individual e
o coletivo, nos termos propostos pelas grandes teorias do fi-
nal do século XIX e do início do século XX, merece ser ques-
tionada. O totemismo, nessa perspectiva, foi um dos temas
gerais que, à medida que os dados empíricos foram salien-
tando as diversidades existentes, ficou impossível de ser agru-
pado sob uma mesma denominação. Desse ponto de vista,
trata-se de uma ilusão, com certeza.

Notas

21
Para Stocking (1987, p. 237), “But whether or not evolutionary
writings provided specific guidelines for colonial administrators and
529 missionaries, there can be no doubt that sociocultural thinking offered
strong ideological support for the whole colonial enterprise in the later
nineteenth century”.
22
Uma das críticas efetuadas por Durkheim (1996, p.3) a Frazer é justa-
mente o fato deste não ter sabido reconhecer o aspecto “profundamen-
te religioso” das crenças e dos ritos.
23
O que em Durkheim (1994, p. 198) se dará contrariamente, alegando
este que os homens classificariam as coisas por estarem socialmente
divididos em clãs, ou seja, as classificações partem do social.
24
Ao que Van Gennep (1920, p. 42), em sua obra L´état actuel du probleme
totémique, responde que “en effect, les sociétes inférieurs sont, non pas
plus simples, mais aussi complexes que les sociétes supérieurs, sinon comme
formes extérieurs, du moins comme mécanisme interne et comme
enchevêtrement des fonctions sociales”.
25
Segundo Durkheim (1996, p. 19), “Todas as crenças religiosas conhe-
cidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter co-
mum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os
homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designa-
dos geralmente por dois termos distintos que as palavras profano e
sagrado traduzem bastante bem”.
26
Para Durkheim (1902, p. 117), “Le totem, en effect, n´est pas seulement
une source d´influences bienfainsantes (curatives, prophylactiques, etc) pour
le groupe et pour ses membres; il est, à la lettre, condition de son existence”.
27
“Por ter uma natureza que lhe é própria, diferente da nossa nature-
za de indivíduo, ela persegue fins que lhe são igualmente específi-
cos, mas, como não pode atingi-los, a não ser por intermédio de
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

nós, reclama imperiosamente nossa colaboração. Exige que, esque-


cidos de nossos interesses, façamo-nos seus servidores e submete-
nos a todo tipo de aborrecimento e privações e sacrifícios, sem os
quais a vida social seria impossível. É assim que a todo instante
somos obrigados a sujeitar-nos a regras de conduta e de pensamen-
to que não fizemos e nem quisemos e que, inclusive, são às vezes
contrárias a nossas inclinações e a nossos instintos mais fundamen-
tais” (DURKHEIM, 1996, p.211).
28
Segundo Freud (1974, p. 174), a religião totêmica não contém somen-
te as manifestações de arrependimento e as tentativas de reconciliação,
mas serve também à recordação do triunfo sobre o pai.
29
Diz Frazer (apud FREUD, 1974, p. 105), que os homens tomaram
erradamente a ordem de suas idéias pela ordem da natureza e por
isso imaginaram que o controle que têm (ou supõem ter) sobre os
próprios pensamentos lhes permitiu o correspondente controle so-
bre as coisas.
10
E, diz Lévi-Strauss (1975, p. 77), [“..] não são as emoções atuais, sen-
tidas por ocasião das reuniões e das cerimônias que engendram ou 530
perpetuam os ritos, mas é a atividade ritual que suscita as emoções
[...] Em verdade, as pulsões e emoções não explicam nada; elas sempre
resultam: seja do poder do corpo, seja da impotência do espírito. São
conseqüências nos dois casos, jamais causas. Estas só podem ser pro-
curadas no organismo, como só a biologia o sabe fazer, ou no intelecto,
único caminho oferecido à psicologia e à etnologia”.
11
Considero enriquecedora a trajetória do autor para chegar à constru-
ção de suas hipóteses sobre o totemismo: “La primera vez que me
intersó el totemismo fue hace dieciséis años, y decidí empezar estudiando
un pueblo primitivo que no conociera el totemismo, en caso de que se
pudiera encontrar. Encontré esse pueblo en las ilas Andaman, y, después
de trabajar entre ellos, me arrriesgué a formular una hipótesis de trabajo
sobre el totemismo en forma muy parecida a como acabo de enunciársela
a ustedes. Después fui a Australia, na qual se encuentran algunas de las
formas más interesantes de totemismo, com la intención de pasar allí los
ocho o diez anõs que pensé serían necesarios para verificar mi hipótesis.
Desgraciadamente mi trabajo se vio interrumpido después de poco más
de dos años por la guerra, y, aprovechando una oportunidad, fui después
a Polinesia, na qual se pueden encontrar los que parecen restos de un
sistema totémico ahora incorporado a un sistema de politeismo” (LEVI-
STRAUSS, 1975, p. 43).
12
A relevância da obra de Radcliffe-Brown foi tão grande que Stocking
(1987, p. 288)afirma que depois dos anos trinta, a Antropologia britâ-
nica passou, graças a ele, de funcionalista a estrutural-funcionalista,
bem como passou a abandonar o idioma da “cultura” (STOCKING,

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


1987, p.289).
13
Ou seja, “o totemismo repousa em uma homologia postulada entre
duas séries paralelas – a das espécies naturais e a dos grupos sociais –
das quais, não esqueçamos, os termos respectivos não se assemelham
dois a dois; somente a relação global entre as séries é homomórfica:
correlação formal entre dois sistemas de diferenças dos quais cada um
constitui um pólo de oposição” (LEVI-STRAUSS, 1989, p. 250).
14
Diz Levi-Strauss (1989, p.125): “Se por meio de proibições alimentares os
homens negam uma natureza animal real em relação a sua humanidade, é
porque lhes é necessário assumir os caracteres simbólicos com o auxílio
dos quais eles distinguem os animais uns dos outros (e que lhes fornecem
um modelo natural de diferenciação), para criar diferenças entre si”.

Referências

AECKERMAN, R. J. G. Frazer his life and work. Cambridge: Cambridge


531 University Press, 1990.
BENEDICT, R. Padrões de cultura. Lisboa: Edição Livros do Brasil, [19 _ _].
BESSON, M. Totemismo. Barcelona: Labor S/A, 1931.
BOAS, F. The origin of totemism. American Anthropologist, Lancaster,
v.18, n.1, jan./mar. 1916. p. 319-326.
DA MATTA, R. Totemismo. In: SILVA, B. (Coord.). Dicionário de ciências
sociais. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1986. p.1241-1244
DURKHEIM, È. Sur le totemisme. L´année Sociologique, Paris, p. 82-
121, 1902.
DURKHEIM, È. Representações individuais e representações coletivas.
In: DURKHEIM, È. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro, 1970.
DURKHEIM, È. Algumas formas primitivas de classificação. In:
RODRIGUES, J. A. Durkheim. São Paulo: Ática, 1984. p.183-203
DURKHEIM, È. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: M.
Fontes, 1996.
EVANS-PRITCHARD, E. Las teorias de la religión primitiva. Madrid:
Siglo XXI, 1984.
FRAZER, J. G. O ramo de ouro. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
GEERTZ, C. The interpretation of cultures. New York: Basic Books, 1973.
KROEBER, A. L. Totem and taboo: an ethnologic psychoanalysis.
American Anthropologist, Lancaster, v.22, n.1, jan./mar. 1920. p. 48-55
LEVI-STRAUSS, C. La Sociologia francesa. In: GURVITCH, G.; MOORE,
, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.

W. Sociología del Siglo XX. Buenos Aires: El Ateneo, 1956.p.1-31


LEVI-STRAUSS, C.Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1975.
LEVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
LUKES, S. Émile Durkheim. Su vida y su obra. Estudio histórico-critico.
Madrid: Centro de Investigaciones Sociologicas, 1984.
MALINOWSKI, B. Magia, ciencia, religión. Barcelona: Ariel, [19 _ _].
MALINOWSKI, B. Uma teoria científica da cultura. 2. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1970.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva.
Petrópolis: Vozes, 1973.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. El método de la antropologia social.
Barcelona: Anagrama,1975.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. O método comparativo em Antropologia Social.
In: MELATTI, J. C. Radcliffe-Brown. São Paulo: Ática, 1978. p. 43-58
ROBERTSON SMITH, W. Religion of the semites. London: Adam and
Charles Block, 1907. 532
STOCKING, G. W. Functionalism historicized. [S.l.]: The University of
Wisconsin Press, 1984.
STOCKING, G. W. Victorian anthropology. New York: The Free Press;
London: Collier Macmillan Publishers, 1987.
VAN GENNEP, A. L´etat actuel du probleme totémique. Paris: Leroux, 1920.
WAGNER, R. Totemism. In: ELIADE, M. The Encyclopedia of religion.
New York: Macmillan Publishing Company, 1987. p. 573-576. V.14.

Abstract: this article aims to establish a dialogue with different theories


about the totemism, which are: the evolutionary aspects presents in Freud,
Frazer and Durkheim, the ritualistic, present in Radcliffe-Brown´s studies
and the structuralist, present in theory created by Levi-Strauss.

Key words: totemism, theory, religion

, Goiânia, v. 4, n.1, p. 513-533, jan./jun. 2006.


* Este artigo foi construído partindo de questões por mim elaboradas
quando cursava a disciplina de Teorias Antropológicas Clássicas no
primeiro semestre de 2000 no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da USP. O paper elaborado para a disciplina, mais
extenso e panorâmico, serviu-me de começo. Confesso, contudo, que
há, ainda, questões em aberto para mim. Agradeço ao Professor Julio
Cesar Melatti a leitura de uma versão posterior e as criticas por ele
efetuadas. Admito, contudo, que as idéias aqui apresentadas são de
minha inteira responsabilidade.

** Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo.


Professora no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal
533 de Santa Maria. E-mail: cmzanini@terra.com.br.

Você também pode gostar