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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: MORFOLOGIA SINCRÔNICA E DIACRÔNICA...................8

CAPÍTULO 2: A LÍNGUA É CONDICIONADA À HISTÓRIA DO POVO QUE A


FALA.................................................................................................................11
2.1 HISTÓRIA EXTERNA E HISTÓRIA INTERNA..........................11
2.2 A DIALETOLOGIA, PRECURSORA DAS SOCIOLINGUÍSTICAS
.................................................................................................................13
2.3 SINOPSE E ESCLARECIMENTOS DO LATIM (218. a.C.) AO
PORTUGUÊS DO SÉCULO XX
................................................................................................................14

CAPÍTULO 3: ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O LATIM VULGAR........18

CAPÍTULO 4: DE VOLTA À DERIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA.........28

CAPÍTULO 5: SOBRE A MORFOLOGIA VERBAL: DO LATIM AO


PORTUGUÊS......................................................................................................44
5.1 ALGUNS ÉTIMOS VERBAIS LATINOS E SUAS MUDANÇAS EM
PORTUGUÊS.......................................................................................48
5.1.1 ÉTIMOS LATINOS DIRETOS...................................................48
5.1.2 ÉTIMOS LATINOS INDIRETOS...............................................49
5.1.3 ÉTIMOS LATINOS SINTAGMÁTICOS...................................49
5.2 CONCLUSÃO PARCIAL SOBRE ÉTIMOS LATINOS VERBAIS
...............................................................................................................50

CAPÍTULO 6: CONSIDERAÇÕES PANCRÔNICAS SOBRE LOCUÇÕES


VERBAIS COM “TER” E “HAVER”.................................................................51

CAPÍTULO 7: VISÃO DIACRÔNICA DA GRAMATICOGRAFIA NAS


DEFINIÇÕES DA CLASSE DOS VERBOS E O PROBLEMA DA “VOZ
VERBAL”...........................................................................................................59

CAPÍTULO 8: VOZ REFLEXIVA OU VOZ MEDIAL?..................................75

8.1 O PROBLEMA COLOCADO ANTES DA NGB..........................75


8.2 A QUESTÃO DEPOIS DA NGB...................................................83

CAPÍTULO 9: AS NOÇÕES “GRAMATICAIS” DE AGENTE, PACIENTE E


VOZ: CASOS DE
GRAMATICALIZAÇÃO?..........................................................100

CAPÍTULO 10: FORMAÇÃO DO LÉXICO: CAMADAS DA CONSTITUIÇÃO


DO LÉXICO: FUNDO INTERNO (ERBGANG ) E FUNDO EXTERNO
(LEHRGANG )...................................................................................................114
A CAMADA INTERNA OU HEREDITÁRIA OU
TRANSMITIDA.................................................................................115
CAMADA INTERNA OU TRANSMITIDA: EVOLUÇÃO
(DERIVA)....................................................................117
CAMADA INTERNA OU TRANSMITIDA:
NEOLOGISMOS..................................................................................119

10.2 A CAMADA EXTERNA OU ADQUIRIDA OU


INCORPORADA...............................................................................121
10.2.1 EMPRÉSTIMOS...........................................................121
10.2.2 VOCÁBULOS CULTOS OU ERUDITOS...................131

CAPÍTULO 11: ANALOGIA NA FORMAÇÃO DO LÉXICO......................132

REFERÊNCIAS................................................................................................137
PREFÁCIO: Duas palavras
EVANILDO BECHARA, Professor Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
da Universidade Federal Fluminense, Membro da Academia de Ciências de Lisboa, da
Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia

O professor Marcelo Moraes Caetano, cuja competência e atividade docente o levaram ao


campo dos estudos diacrônicos, projeta uma larga obra no cenário da Morfologia da Língua
Portuguesa , de cuja primeira parte se ocupa o presente volume, que terá como subtítulo Breve
História Filológica do Latim ao Século XX . Estamos a ver que se trata de obra de largo fôlego,
para cuja realização não faltam preparo e talento do jovem professor universitário.
Para mergulhar no amplo campo de seu objeto, escolheu a área da morfologia verbal que,
como sabemos, é o mais rico domínio que se apresenta a qualquer investigador, sobressaindo
esta importância na escolha da categoria dos verbos, vista como alma de toda a engrenagem da
organização gramatical de uma língua, especialmente de uma rica língua neste campo como é a
portuguesa.
Como filólogo, não é difícil entender que seu interesse se volte preferentemente para uma
visão diacrônica do problema, preparando o leitor para entender melhor os resultados dessa
organização gramatical nos resultados explicitados na realidade sincrônica.
Para tão vasta amplidão de pesquisa, arma-se o professor Marcelo de uma rica bibliografia
voltada para os estudos morfológicos numa visão diacrônica e sincrônica, não só consultando as
obras consagradas pela tradicional investigação linguística, mas também pelo que vieram
acrescentar ao tema os novos conceitos para a modernização trazida pela investigação mais
recente.
Por tudo isto terá o leitor a certeza de que, lendo a presente obra, estará adquirindo
informações e conhecimentos para usufruir o que expõe esta primeira parte do trabalho, bem
como se preparando para compreender melhor os temas que comporão as partes subsequentes
projetadas.
Sabedoria e modéstia são fatores que esperamos contribuam para o êxito deste primeiro
início de jornada. São os votos deste primeiro leitor atento e desde já agradecido.
APRESENTAÇÃO
CLAUDIO CEZAR HENRIQUES, Professor Titular de Língua Portuguesa do Instituto de Letras
da UERJ, Membro da Academia Brasileira de Filologia

Esta obra tem como objeto de pesquisa o percurso da Língua Portuguesa e dos povos que a
falam e falaram desde sua origem, calcada no Latim. Trata-se de um guia prático e conciso para
que o estudioso possa localizar-se segundo as perspectivas geográfica, antropológica, histórica,
filosófica. Configura-se como um manual didático de extrema praticidade, com sinopses
explicativas e remissões a obras mais extensas em que seja possível o aprofundamento em cada
um dos temas aqui trazidos à leitura. Esmiuçando a morfologia da Língua Portuguesa e,
sobretudo a classe dos verbos – palavras fulcrais do idioma –, o livro prepara e sedimenta
terreno em que o estudioso de Ciências Humanas poderá vasculhar o vasto território de quase
3000 anos de História, apresentados como um mapa cujos pontos cardeais estão devidamente
explicados. Nesse mapa, a bússola é a língua, fator central na constituição da identidade de
qualquer cultura. Em suma, eis aqui uma guia que permitirá ao pesquisador articular-se com
outros campos de conhecimento.

*****

OBJETIVOS DESTE LIVRO


MARCELO MORAES CAETANO

Este livro interessa basicamente ao público universitário de Letras. Como se trata de uma
obra de História da Língua, os alunos de História, Antropologia, Ciências Sociais em geral
podem também vir a interessar-se por ele, já que, pelo percurso da língua portuguesa, a partir do
latim clássico, a História dos povos que falavam essas línguas — a România — é trazida nesta
obra. Em termos mais específicos, a obra abarca as áreas de História, Antropologia, Língua
Portuguesa, Línguas Clássicas, Linguística Histórica, Sociolinguística, Dialetologia.
Meu principal objetivo ao escrever esta obra se originou do fato de que, ao ministrar
disciplinas de História da língua portuguesa, Filologia, Linguística histórica e outras disciplinas
afins, no Brasil e na Europa — tanto em turmas de graduação, quanto de pós-graduação —, eu
percebia que os alunos se sentiam perdidos na vastidão do tema, o que acabava por desmotivá-
los, em muitos casos.
Minha percepção me mostrou, ainda, que essas circunstâncias se davam pela razão de a
bibliografia relativa ao assunto ser muito extensa, e haver obras longas e densas sobre cada
ponto específico da História da Língua — como as obras de Bechara, Carolina Michaëlis, J.J.
Nunes, Augusto Epifânio da Silva Dias, Said Ali, Ivo Castro, Paul Teyssier, José Leite de
Vasconcelos, Serafim da Silva Neto, Mattoso Câmara, Segismundo Spina, Rosa Virgínia Mattos,
Clóvis Monteiro, Eneida Bomfim etc.
Com isso, mesmo que se aplicassem textos de um ou outro autor, como artigos ou
capítulos de livros, a visão panorâmica ficava de certa forma pulverizada em aprofundamentos
sem que, previamente, se tivesse alcançado uma visão global que permitisse situar as aludidas
profundidades em seus devidos locais cronológicos — o que é sine qua non para um estudo
adequadamente reflexivo de qualquer tipo de História e historiografia.
Também observei que a História da Língua pode ser confundida com a Linguística
Histórica. Por isso, escrevi dois pequenos capítulos iniciais (o capítulo 1 e o capítulo 2) em que
abordo conceitos como sincronia, diacronia, história externa, história interna e dialetologia, que
são conceitos fundamentais tanto na História da Língua, quanto na Linguística Histórica, para
que se evidencie que, embora partícipes de perspectivas diferentes, esses conceitos e até essas
perspectivas podem interligar-se e complementar-se para o entendimento maior da Filologia
aliada à Linguística.
Desse modo, escrevi esta obra pensando no aluno e em situá-lo nos marcos miliários
históricos, diacrônicos, de que ele não poderia prescindir. Pretendi criar, antes de tudo, uma
espécie de manual didático , um mapa, uma sinopse, uma espinha dorsal que situasse, por um fio
condutor objetivo, mas que eu não quis que fosse demasiado superficial, as questões que virão a
ser, posteriormente, aprofundadas no que tange à História da língua portuguesa e à Filologia
como um todo.
Sinto que, sem essa prévia visão panorâmica, a chance de desmotivação do aluno é
potencializada, ocasionada pelo fracionamento excessivo das informações, espargidas lá e cá
(quando não se dispõe do tempo necessário à leitura e discussões sobre todas elas), em vez de
compiladas, para um primeiro contato, numa única obra que sirva de manual de estudo. Este foi
meu propósito primeiro para escrever este livro Morfologia da língua portuguesa — Breve
histórico filológico do latim ao século XX . Não há outra obra cuja proposta tenha sido esta, ao
menos não de forma tão compacta; por essa razão, senti-me impelido a escrevê-la.
Escolhi a morfologia como objeto privilegiado — embora não único — do referido fio
condutor a que me propus pelo fato de que, com o estudo do léxico, sua estrutura e formação,
podem-se compreender melhor os pontos de inflexão ocorridos ao longo da deriva da língua.
A morfologia é parte que aponta muito estreitamente a estrutura ou o sistema de uma
língua. A propósito, se percebemos que a língua é em grande parte convenção (convenção que
preside não apenas à língua padrão, como a todos os seus demais registros), a morfologia é uma
das partes em que com mais nitidez se percebe a motivação dos falantes, conscientes e ativos na
criação e decodificação de significados. Os usuários que dominam os meios vernaculares serão
capazes de criar e decodificar significados infinitos de um número finito de constituintes
menores e recicláveis: os morfemas.
Por isso mesmo, quando mudanças nos morfemas começam a ser muito numerosas,
passamos a observar que outra língua está nascendo. Assim, a morfologia ilustra o manual que
pretendo aqui elaborar: com ela (embora não exclusivamente com ela, reitero), percebem-se com
clareza as mudanças das balizas que acarretaram as variações > mudanças havidas
diacronicamente nos latins e destes para a língua portuguesa. O domínio da morfologia, assim, é
fundamental para demonstrar que o usuário conhece a estrutura profunda de seu idioma e, dessa
maneira, sabe pensá-lo crítica e reflexivamente, averiguando, até, o que proporcionou mudanças
nesse idioma.
Precisei, entretanto, articular a exposição e os comentários sobre morfologia a aspectos
outros que com ela dialogam: precisei, portanto, sempre que solicitado pela morfologia e a “vida
das palavras”, como lembra Darmesteter, recorrer a partes várias do estudo do sistema de uma
língua e de suas inserções igualmente diacrônicas.
Por essa razão, tive de, às vezes, tecer algum comentário de cunho fonético-fonológico,
sintático, estilístico, semântico, lexicológico, discursivo, pragmático, pois a palavra ou o
vocábulo — objetos centrais da morfologia —, como dito, inúmeras vezes requerem esses outros
recortes epistemológicos a fim de que se esclareçam, a quem os estuda, pontos que, no fim,
iluminam aspectos relativos à morfologia em si. Com esta, estimula-se o aprofundamento nos
pontos basilares da História da língua e da Filologia que desejo que despertem interesse
crescente — pois assim deve ser a trajetória acadêmica — no aluno.
Em resumo, a obra tem como objetivo primeiro ou geral prover o aluno das informações
básicas e basilares da História da língua portuguesa e seu encaixamento em suas origens
românicas e em seus desdobramentos até o século XX, onde a estagnei.
O objetivo intermediário da obra reside na criação de uma estrutura concisa, sem ser
perfunctória ou rasa, da História da Língua em cotejo com a Linguística Histórica e disciplinas
que dialoguem com ambas, o que permite ao aluno observar, como num panorama, pontos em
que ele, posteriormente, e no decurso das próprias aulas de graduação ou pós-graduação, possa
aprofundar-se.
Por fim, o objetivo específico da obra é fomentar no aluno o interesse pelo
aprofundamento nas obras dos grandes mestres sobre o vastíssimo campo da História da língua
portuguesa e das Filologias românica e portuguesa, bem como sua inter-relação com a
Linguística.
O aluno pode vir a interessar-se, por exemplo, pelo latim vulgar; pelas definições de
“romanço” e suas descrições e problematizações possíveis; pelas questões de fundo hereditário
ou inovador; por algum período específico da História da Língua (descrito na periodização por
meio de balizas ou mesmo por um recorte didático baseado em séculos, autores, obras
específicas); pela dialetologia e pela sociolinguística; pela ecdótica e crítica textual; e assim por
diante. Mas creio que esses interesses serão obliterados — o que consequentemente pode
ocasionar a perda de talentos investigativos nas áreas — se o aluno não dispuser, previamente,
de uma obra que lhe mostre, de modo sinóptico, tudo o que se passou do latim ao português do
século XX.
A morfologia mostrou-se-me elemento privilegiado para este fim, reitero, pelo fato de
dialogar com outros campos dos saberes enunciativo, idiomático e expressivo, para lembrar uma
tricotomia de Coseriu. O tratamento enfático que endereço à pesquisa sobre verbos, nos
capítulos finais da obra (capítulos 5 a 9), se justifica pelo fato de tratar-se do vocábulo que
apresenta mais morfemas, e mais variedades destes (flexionais, derivacionais, categóricos,
semantemas), em língua portuguesa, o que desejo que incentive o aluno a verificar que a
complexidade da morfologia, na História da Língua, é muito producente em termos de pesquisa
acadêmica, e que, portanto, sempre estará à espera de quem se debruce sobre suas bases e raízes,
seus desdobramentos e frutos e suas áreas afins.
O livro tem, portanto, e por fim, um caráter didático. Trata-se tão somente de um manual
que eu desejei que situasse e guiasse o aluno para vergéis vastos e prolíficos de História da
Língua e Filologia em que ele, posteriormente, assim espero, quererá adentrar.

CAPÍTULO 1
MORFOLOGIA SINCRÔNICA E DIACRÔNICA

A morfologia, ou “estudo das formas”, numa língua, está intrinsecamente ligada ao


estudo dos vocábulos que compõem esta língua, cujo conjunto se denomina LÉXICO.
Aproximando nossa luneta do objeto da morfologia, seu interesse se revelará tanto maior,
no que se refere aos vocábulos, na estrutura (perspectiva analítica) que estes apresentam, bem
como nas possibilidades de, por meio dessas estruturas, haver formação (perspectiva sintética)
de vocábulos (novos) no léxico (neologismos), expandindo-o ou adequando-o semanticamente
às necessidades de nomeação que os tempos nascituros impõem às sociedades e à sua chancela
mais concreta — a sua língua.
Assim, veremos que, ao entrarmos no que Tarallo chamou de “túnel do tempo”, em seu
método pancrônico de análise das línguas, tanto a estrutura quanto a formação dos vocábulos se
nos mostrarão de modo claro. Com isso, legitima-se o estudo diacrônico da morfologia como
igualmente importante para os novos rumos da linguística em relação a essa morfologia.
Uma das razões pelas quais o estudo da Filologia permanece atual e necessário — em
ambas as suas vertentes básicas: a da fidedignidade ao texto escrito e a dos estudos
dialetológicos [1] — é o fato de que a pesquisa diacrônica pode ajudar na explicação de fatos
sincrônicos ocorrendo na deriva de uma língua. Desse modo, quando alguns linguistas procuram
basear suas explicações exclusivamente na língua falada e sincrônica, promovendo o que
chamam de “descrição linguística”, estão eles, na verdade, atrelados a um método que (talvez
eles não saibam) é de cunho oitocentista e ultrapassado até mesmo nos postulados básicos de
Saussure.
Cabe à sintaxe, grosso modo — que será objeto de outras publicações nossas —, o
estudo das possibilidades de combinação dos vocábulos na frase (ordem), além da dependência
que esses vocábulos emanam a partir dessas combinações (relação), que, por fim, deriva
mecanismos explícitos ou implícitos de conexão entre esses vocábulos (aderência). Então, o
estudo da vida dos vocábulos na frase e, em segunda instância, no discurso e no texto, cabe à
sintaxe, aliada, uma vez expandida ao discurso e ao texto, a disciplinas afins, como a estilística,
análise do discurso, a linguística textual, o gerativismo, a psicolinguística, a linguística
cognitiva, a pragmática e outras.
Voltando então à morfologia, é nossa intenção, nesta obra, apresentar um panorama dos
modos como os vocábulos — objeto anterior e posterior da morfologia — entraram na língua
portuguesa e como esse registro se deu ao longo dos séculos. Nossa ênfase, em relação aos
aludidos vocábulos, se dará sobre a classe morfológica dos verbos, por ser a que apresenta maior
quantidade de variações oriundas de meios mórficos em língua portuguesa [2] .
Cremos que dois pontos devem ser tocados aqui. O primeiro diz respeito ao fato de que
outros campos dos estudos de língua também se interessam pelo LÉXICO. É o caso da
LEXICOGRAFIA e da LEXICOLOGIA.
Por isso, cabe investida brevíssima sobre este campo, para que fique relativamente clara
a distinção entre ele e a morfologia, que nos interessa de modo mais direto nesta obra.

O QUE É LEXICOGRAFIA?
LEXICOGRAFIA é uma disciplina intimamente ligada à LEXICOLOGIA. Ela se
ocupa da descrição do LÉXICO de uma ou mais línguas, a fim de produzir obras de
referência, principalmente dicionários (em formato impresso ou eletrônico) e bases
de dados lexicológicas. Dessa LEXICOGRAFIA PRÁTICA distingue-se a
LEXICOGRAFIA TEÓRICA, ou METALEXICOGRAFIA, que estuda todas as
questões ligadas aos dicionários (história, problemas de elaboração, análise, uso).
(HENRIQUES, 2011, p. 15, sublinhei)

O Denominado dicionário de língua, a mais prototípica das obras lexicográficas, é o


único lugar em que o léxico de um idioma é registrado de forma sistemática. Isto lhe
atribui o estatuto de instância de legitimação do léxico, constituindo-se, em
consequência, em paradigma linguístico modelar dos usos e sentidos das palavras e
expressões de um idioma. (KRIEGER, 2007, p. 156)

A modalidade escrita
Uma investigação que tencione levantar propriedades sintático-semânticas do léxico
tem que começar por verificar quais são as grandes linhas de circulação vocabular
em todos ou num registro determinado das duas modalidades básicas de
manifestação da língua: o oral e o escrito. A primeira impressão que se tem é de
dispersão ou de difusão um tanto desordenada ou arbitrária, que dá lugar, em
seguida, à percepção de uma estreita relação texto/contexto associada à variação de
acepções. Em vista disso, decidiu-se limitar o campo de observação e análise,
mesmo porque, sem isso, haveria o risco de se ficar no vago e no genérico.
(BORBA, 2003, p. 17)

O segundo ponto que devemos reiterar é a defesa de que a morfologia estudada de


maneira diacrônica é, também, objeto central do interesse da morfologia como um todo. Como
veremos, o fato de haver registros de estrutura e formação dos vocábulos ao longo da história,
inclusive registros de mecanismos relativos a sistemas de épocas distintas (a “projeção
sincrônica” de que nos falam Saussure e Coseriu), nos concede a chancela de cientificidade
filológica e linguística para adentrarmos no passado da língua e, com isso, aumentarmos nosso
repertório de análise que aponte para novos rumos, municiados de repertório de que, muitas
vezes, mentes brilhantes já se valeram no passado próximo ou mesmo remoto.

CAPÍTULO 2
A LÍNGUA É CONDICIONADA À HISTÓRIA DO POVO QUE A FALA

2.1 HISTÓRIA EXTERNA E HISTÓRIA INTERNA

Para iniciarmos, apresentarei de modo sinóptico acontecimentos havidos na chamada


História Externa da língua portuguesa, desde a invasão da Península Ibérica (218 a.C.) até a
descolonização da África, na década de 70 do século XX de nossa era. Com isso, cubro — e até
ultrapasso — o que me parecem os aspectos diacrônicos a que me proponho neste livro. Também
passarei por importantes gramáticas do séc. XX.
Explicarei, em seguida ao quadro sinóptico, a importância de alguns desses marcos e,
mais adiante, como a História Interna da língua foi influenciada, no que tange à
morfologia/léxico, por alguns dos acontecimentos aqui listados.
Antes de o fazermos, é importante entendermos que estes dois conceitos de “História” —
Externa e Interna — se inter-relacionam, sobretudo quando observados a partir do prisma da
linguística histórica, que tem em autores como Humboldt, Meillet, Vendryès, Darmesteter,
Coseriu, Weinreich, Herzog e Labov, entre outros, importantes pesquisadores.

Como ensina Saussure, os fatos de uma língua podem ser estudados sob dois pontos
de vista: o do funcionamento (sincronia) e o da evolução (diacronia). O estudo
diacrônico compreende a história externa (evolução sociolinguística) e a história
interna, ou seja, a evolução estrutural da língua em seus aspectos fonológicos e
morfossintáticos. No caso do português, uma língua românica, esse estudo deve ter
como ponto de partida a distinção latim clássico/latim vulgar. (CARVALHO, 2004)

História Interna é conceito que toca de perto nos aspectos categoriais, sistêmicos e
estruturais de uma língua ao longo do tempo. Assim, por exemplo, a observação da queda da
categoria de declinação, que havia em latim, quando nos referimos à língua portuguesa, constitui
conclusão da História Interna da língua. A ausência de artigos em latim e o aparecimento dessa
categoria externada nos planos do conteúdo e da expressão em língua portuguesa perfazem
afirmações da História Interna da língua
Por História Externa entendemos os fatores de natureza geopolítica, social, antropológica,
econômica etc. que ensejaram movimentos de indivíduos e de povos que, por sua vez,
acarretaram acontecimentos relevantes e influentes na deriva (“drift”, cf. Sapir) da língua. É um
elemento atinente à História Externa da língua, por exemplo, o fato de que, em 1759, o Marquês
de Pombal expulsa os jesuítas do solo brasileiro e estabelece as escolas régias leigas, o que
implicou a oficialização da língua portuguesa diante da chamada “língua geral” (o tupinambá).
Em 1279, em Portugal, D. Dinis torna a língua portuguesa a língua oficial do reino, numa
política de língua de que o Marquês de Pombal veio a aproximar-se.
Dito isso, é necessário que se reflita sobre o modo como a História Externa influi sobre a
História Interna de uma língua. Embora um dos postulados mais célebres de Saussure nos
aponte que o objeto da linguística é a língua em si mesma e por si mesma, a linguística histórica
veio, justamente, restabelecer a importância dos estudos da História Externa — bem como da
diacronia de um modo geral — na compreensão até mesmo dos fenômenos “meramente”
sincrônicos, tão caros a Saussure.
A propósito, Ferdinand de Saussure, no Cours de Linguistique Générale , define assim as
tarefas da Linguística:

a)fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder conhecer, o que redunda
em estabelecer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida do
possível, as línguas matrizes de cada família; b) sondar as forças que estão em jogo
de maneira permanente e universal em todas as línguas e induzir às leis gerais a que
se podem referir todos os fenômenos particulares da história; c) delimitar-se e
definir-se a si mesma. (SAUSSURE, 1972, p. 22)

Carlos Alberto Faraco o complementa:

[....] estudos empíricos, no presente e no passado, vêm sugerindo que fatores sociais
têm influência direta ou indireta nos processos de mudança das línguas. Desse
modo, não parece adequado tratar a língua como uma realidade autônoma, imune à
história de seus falantes. Por isso, buscar uma metodologia que integre história
interna e história externa (encaixamento estrutural e encaixamento social) é diretriz
básica para muitos linguistas históricos. (FARACO, 2006, p. 61)

2.2 A DIALETOLOGIA, PRECURSORA DAS SOCIOLINGUÍSTICAS

Desse modo, é inerente aos estudos filológicos o estudo da Dialetologia . A História


Externa e Interna da língua acaba por necessitar de conhecimentos do que se chamou
originalmente Geografia Linguística (Jules Gilliéron e Edmond Edmont: Atlas línguístico
francês , publicado em fascículos de 1902 a 1912).
A obra de Adolfo Coelho Os dialetos românicos ou neolatinos na África, Ásia e América,
de 1881, é considerada o marco inicial das obras do gênero em língua portuguesa.
Após esta obra, e avalizando-a definitivamente, surgiu Esquisse d´une dialectologie
portugaise , de 1901, elaborada por Leite de Vasconcelos.
No entanto, embora ainda numa perspectiva distante da moderna metodologia científica,
o primeiro dialetólogo português, de fato, foi Jerônimo Contador de Argote, que, em 1725,
escreveu Regras da língua portuguesa . Verney, em 1746, em sua A verdadeira arte de estudar ,
traz também contribuições à dialetologia, por exemplo quando, prescritivamente, determina que
não se pronuncie a africada onde houver a grafia –ch- ou –x- (/tše/), evitando-se, segundo
parâmetros da época, “galeguismos”.
Com isso, se fundam os estudos da dialetologia como fundamentais à linguística, à
linguística histórica, à filologia e às História (Interna e Externa) das línguas.
No Brasil, devem ser mencionadas, entre outras, as obras O dialeto caipira , de Amadeu
Amaral (1920), O linguajar carioca , de Antenor Nascentes (1922), O falar cearense , de
Antônio Sales (1927), A linguagem dos cantadores , de Clóvis Monteiro (1933), A língua do
Nordeste , de Marroquim (1934), O falar mineiro , de José A. Teixeira (1938), Introdução ao
estudo da língua portuguesa do Brasil , de Serafim da Silva Neto (1950).
Passemos então à sinopse que nos parece relevante a fim de, em seguida, oferecermos as
características da estrutura morfológica mais relevantes nas Histórias — Externa e Interna — da
língua portuguesa, a cuja noite dos tempos (os romanos) retrocedemos.
Como este livro se propõe ser um manual, não nos aprofundaremos nas periodizações da
língua portuguesa empreendidas pelos eruditos. No entanto, sempre que necessário,
recorreremos a algumas delas.

2.3 SINOPSE E ESCLARECIMENTOS DO LATIM (218. a.C.) AO PORTUGUÊS DO


SÉCULO XX

Eis alguns marcos de História Externa que interessam à língua portuguesa. Em seguida,
apresentaremos as explicações breves que os coerem.

218 a.C. Romanos invadem a Ibéria

27 a.C. Lusitânia, Bética e Gallaecia

212 d. C. — Edito de Caracala

476 d.C. — Fim do Império Romano do Ocidente (início da Idade Média)

Sécs. V, VI, VII - Invasões Bárbaras na Península Ibérica (409 d.C.)

Séc. VIII – Invasões Árabes na Península Ibérica (711 d. C.)

842 d.C. — Juramento de Estrasburgo

Séc. XII – Batalha de São Mamede – Criação/Independência do Reino de Portugal – 1128 – D.


Afonso I / 1140

Séc. XIII – Testamento de Afonso II – 1214

Sécs. XIII-XIV – (circa 1200) D. Sancho I / (circa 1300) D. Dinis


1255 – D. Afonso III – começam a ser escritos em português os documentos de chancelaria

1279 – D. Dinis torna sistemático o uso do português, e não do latim, em documentos oficiais

1350 – Morte de D. Pedro, conde de Barcelos, o “último dos trovadores”

1420 – Fernão Lopes

1489 – Tratado de confissom — primeiro texto publicado tipograficamente em português

1488 – Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança

1498 – Vasco da Gama chega às Índias

1500 – Chegada dos portugueses ao Brasil

1532 – Início da colonização brasileira


Nheegatu e Abanheenga e línguas africanas

1400 a 1640 — Bilinguismo hispano-português (Dom Quixote , 1605 e 1615; Lusíadas , 1572)

1536 – Gramática da Linguagem Portuguesa , de Fernão de Oliveira; representação do último


auto de Gil Vicente (“Floresta de enganos”); morte de Garcia de Resende

Século XIX – 1808 — Chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro

Século XIX – 1881 – A “Gramática” de Julio Ribeiro

Século XX – 1974: descolonização da África lusa, que opta pelo idioma português como língua
oficial

Século XX – Gramáticas históricas e escolares da língua portuguesa são firmemente delineadas

Em 218 a.C., os romanos chegam à Península Ibérica, impelidos pela Segunda Guerra
Púnica. Toda a Península, exceto os bascos, adota o latim como língua oficial (superestrato),
embora as línguas aborígines célticas (substratos), originárias sobretudo do Noroeste da
Península, tenham permanecido em convivência (adstratos). Podemos dizer, ainda de modo
inicial, que esses adstratos ou convivências entre o latim (eminentemente falado ou vulgar) e as
línguas aborígines formaram o que se chama protorromance, a cuja definição voltaremos.
Os romanos, a propósito, eram bem flexíveis em relação a aspectos culturais (línguas,
hábitos, religiões etc.) anteriores à sua colonização. Haja vista que, mesmo sendo pagãos,
aceitavam o judaísmo como outra de suas religiões oficiais, onde era geograficamente
professado.
A chegada dos romanos à Península possui uma explicação. O general cartaginês
Amílcar conquistara o Sul da Península Ibérica. Seu filho Aníbal deflagra a Segunda Guerra
Púnica contra Roma em 218 a.C., partindo da Península Ibérica até os Alpes, chegando à
Península Itálica, sem atingir Roma. Daí as célebres palavras com que Catão, embaixador em
Cartago, terminava todos os seus discursos: “Delenda Carthago”.
Em 27 a.C., Otaviano, “o Augusto” (título outorgado pelo Senado), cria a Lusitânia e a
Bética. Otaviano Augusto é o primeiro Imperador de Roma, e seu comando vai de 27 a.C. a 14
d.C. A partir de Otaviano, Roma torna-se oficialmente um Império. Antes, era uma República.
Entre 7 e 2 a.C., a parte da Lusitânia ao norte do Douro, que se chamava Gallaecia , é anexada à
antiga Hispania Citerior, agora chamada de Província Tarraconense. “A área linguística do que
virá a ser o galego e o português delineia-se, pois, desde a época romana [...]” (TEYSSIER,
2004, p.4)
O latim clássico , de base eminentemente escrita, abarca o fim do latim da fase
republicana e avança pelo período de vigência do Império Romano (século I d.C. a IV-V d.C.,
com algumas variantes nessas datas, como veremos), cujo primeiro imperador, como visto, foi
Otaviano Augusto. Em seguida houve uma série de mudanças nas rígidas normas do latim
clássico castiço, ocorridas por causa da crescente influência do latim falado e das invasões
bárbara e árabe. Essas mudanças redundarão no latim vulgar (como veremos no capítulo 3:
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O LATIM VULGAR), que, no caso da língua portuguesa,
exerceu influências fonéticas, morfológicas e sintáticas muito mais fortes do que o latim
clássico.
Com a extinção oficial do Império Romano do Ocidente, após a vitória do germânico
Odoacro, em 476 d.C., seguiram-se três séculos de conquistas maciças de povos de origem
germânica na Península Ibérica e no seu entorno: alanos, vândalos, godos, ostrogodos, visigodos,
suevos. São as chamadas conquistas bárbaras. Isso ocorreu de modo mais sistemático entre os
séculos V, VI e VII d.C. Há autores que situam o início das conquistas bárbaras ou germânicas
no ano 409, isto é, ainda durante a existência do Império Romano do Ocidente, que só se
extingue oficialmente em 476 d.C., como vimos [3] .
Sobre as influências dos bárbaros nas línguas provenientes do latim que se falavam na
Península, há certo consenso de que sua consequência foi antes de tudo desagregadora, criando
condições para que, a partir do século VIII, até o século XII, emergisse o protorromance do que
viria a ser o galego-português.
Com essas conquistas, além disso, começa a cravar-se, já, forte distinção entre o galego-
português e o castelhano. Exemplo disso é que E e O breves (timbre aberto), quando ÁTONOS,
ditongam-se em castelhano, mas jamais em português. Maria Helena Mira Mateus chega a
considerar essa ditongação, ao lado da manutenção do –n- intervocálico, ambos no castelhano,
como a grande distinção, oriunda já do tempo de que falamos, entre o português e o castelhano:
cf. corpo/cuerpo; lua/luna etc.

Latim clássico > Latim imperial > Galego-português > Castelhano


Pĕdem > péde > pé > pie
Dĕcem > déce > dez > diez
[....]
Nŏvem > nóve > nove > nueve
Fŏrtem > fórte > forte > fuerte
[....]” (TEYSSIER: 2004, p. 15, com adaptações)

CAPÍTULO 3
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O LATIM VULGAR
Como afirma Ivo Castro (1991), aqui parafraseado, a história do português começa por
ser uma história do latim. Vimos no capítulo 2, como o superestrato latim encontrou substratos
ibéricos, criando adstratos.
No princípio, existia apenas o latim: prisca latinitas . Trata-se de uma língua da família
itálica, proveniente, segundo Meillet (entre outros eruditos), do indo-europeu, protolíngua que
desapareceu e não está atestada em documentos.
Outras línguas do indo-europeu são o celta, o germânico, o gótico, o balto-eslavo, o
hitita, o armênio, o albanês, o indo-iraniano, o helênico etc. Meillet, Benveniste e Martinet
situam as origens desse povo no Sudeste da atual Rússia, mais de 5000 anos antes da nossa era.
Esse povo não deixou documentos, como foi dito, mas deixou resquícios arqueológicos
significativos.
O grupo itálico ocorre em parelha com o osco e o úmbrio, que se falava no Lácio. Seu
suposto primeiro documento, o “Manius me fecit Numerio ”, do século VII a.C., hoje é
contestado como fraude de seu descobridor.
Portanto, é preciso retroceder ao século IX a.C., para se ter maior acuidade com as
origens do latim, como salienta Ivo Castro.
O início das línguas românicas, de que falaremos em breve, tem como ponto de partida o
latim falado a partir do século I a.C. ou até III a.C., a depender dos critérios de filologia
estabelecidos.
Romanus era, na origem, um adjetivo de caráter étnico e político, presente em locuções
do tipo Senatus Populusque Romanus (SPQR). Os lugares invadidos pelos romanos eram
chamados de “províncias”, e nelas se falava “à moda latina”, ou “à moda romana”, com os
advérbios latine ou romane loqui .
Dava-se o nome de “romanização” à expansão da língua e cultura latinas por suas
províncias.
Essas províncias recebiam o nome de Romania , e eram divididas com bases étnico-
geográficas, como nos ensina Antenor Nascentes em Elementos de Filologia Românica .
Podemos citar algumas das províncias da época da romanização: Hispania, Gallia, Britannia,
Valaquia, Dalmatia, Norica, Colquida, Caledonia, Helvetia, Germania, Betica, Gallaecia,
Lusitania, Panonia, Cartago etc.
A propósito, em 1816, Franz Bopp provou, com o seu Sistema de conjugação do
sânscrito , haver parentesco entre o latim, o grego, o gótico, o alemão, o céltico, o albanês, o
eslavo.
O trabalho de Bopp teve como precursor o de William Jones, que, em 1786, já observara,
com base na gramática de sânscrito de Panini, que as semelhanças entre aquelas línguas não
poderiam constituir mera coincidência.
No fim do império e no período posterior ao latim clássico, o latim imperial, surgiu a
expressão romanice parabolare ou fabulare . Aqui, ao lado de romanus, portanto, surge o
conceito adjetivo de romanicus , ou “semelhante ao romano”.
Ivo Castro lembra que com o Edito de Caracala (212 d.C.), todos os cidadãos da
România passam a ser romanos. Suas línguas, a partir de então, são designadas de “romances”
ou “romanços”, numa fusão do advérbio romanice com o adjetivo romanicus .
Com Lívio Andrônico (240 a.C.), que traduz a Odisseia , e outros escritores, como Ênio,
criou-se e estabeleceu-se a tenacidade no latim literário (ou metonimicamente clássico ), ao lado
do latim coloquial (ou vulgar).
Eram, portanto, variantes sincrônicas, e uma dessas variantes — o latim vulgar —
perfará a mudança que originou a maioria das línguas neolatinas, entre elas a língua portuguesa.
A essa divisão clássico / vulgar se deu o nome de sermo urbanus e sermo vulgaris.
Desde que se fixou o latim escrito, o latim falado conviveu com a variação clássica,
como nos atesta Rafael Lapesa.
O latim literário pode ser dividido em 3 fases:

1) Arcaico: até I a.C. — Lívio Andrônico, Plauto e Terêncio (também considerados


marcos do latim vulgar);
2) Clássico — Cícero, Virgílio, Horácio, Júlio César;
3) Imperial: II a V d.C . — Plínio, Tácito, Suetônio.
As pessoas das classes socioeconômicas mais elevadas evitavam, mesmo em conversas
espontâneas e particulares, o uso do latim vulgar.
Na Idade Média e na Renascença (do século V até o século XVIII) haverá os chamados
“Baixo latim”, “Latim bárbaro”, “Latim tabeliônico” e “Latim tardio”.
Portanto, os romanos, na prisca latinitas (voltemos a eles), denominavam como latine
loqui (“falar de modo latino”) a uma série de variantes sincrônicas, já devidamente nomeadas
por eles. Exemplos delas são o latim culto (urbanitas ), o latim vulgar (das classes médias e a
linguagem familiar, despretensiosa), o latim dos bairros pobres e as gírias e calões (slums ), o
latim dos campos (sermo rusticus ), e até o latim dos estrangeiros (sermo peregrinus ).
Cícero, em uma de suas cartas, já demonstra conhecer a importância do contexto e da
situação, para adequar seu registro, quando afirma que, nas cartas íntimas, usa o sermo plebeius ,
ao passo que em seus discursos “aprimora” essa linguagem para o sermo urbanus .
Convém reforçar que o latim que penetrou a Península Ibérica, que se tornaria o romanço
ibérico foi o latim vulgar. O romanço lusitânico, posterior e consequente, estabelece-se entre o
século V d. C., com as invasões bárbaras na Península, e o ano 842, data do “Juramento de
Estrasburgo”, sublinhado por Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
As fontes do Latim Vulgar mais frequentemente citadas, porquanto arqueologicamente
comprovadas, são as seguintes:

Tábuas execratórias
Inscrições de Pompeia (Terremoto 63 d.C.; Vesúvio 79 d.C.)
Varrão — I. a.C.
Probo — III d.C.
Appendix Probi — III d. C.
Comédias de Plauto e Terêncio
Apicius — De re coquinaria (V. d. C.)
Petronio (morto em 66 d.C.) — Satiricon
Santo Agostinho (354 a 430 d.C)
São Jerônimo — Vulgata (383 d.C.)
Peregrinatio ad loca sancta (381-388 d.C.)
Cartas — a maioria de Claudius Terentianus a Claudius Tiberianus (filho e pai) — II d.C.
Glossários da Idade Média

Um único e loquaz exemplo de inscrição de Pompeia:


Pupa que bela is, tibi
Me mirit qui tuus es: ual(e).
(Tradução: Rapariga, que bela és, a ti me enviou quem tem é: vale!)

As principais características morfológicas do Latim Vulgar em face do Latim Clássico


evidenciam a sua paternidade e maternidade em relação à língua portuguesa. Elaborei,
sinopticamente, as seguintes:
1) Perda do –M final do acusativo;
2) Fusão dos nomes de 4ª e 2ª declinações;
3) Fusão dos nomes de 3ª e 5ª declinações;
4) Redução para caso-sujeito e caso-regime;
5) Na Gália: caso oblíquo e caso reto;
6) Na Hispania: só acusativo;
7) Surgimento do morfononema /A/ para feminino e /O/ para masculino e neutro e /S/
para plural:
a) 1ª declinação: regina/reginas
b) 2ª declinação: sensu/sensus
c) 3ª declinação nomine/nomines
8) Necessidade da preposição para suprir as funções sintáticas: Habito Romae > habito
in Roma / Eo Roman > Eo ad urbem / Venio Roma > Venio ex urbe;
9) Vestígio do dativo em português – ILLI > LHE
10) Desaparecimento do neutro, que convergiu foneticamente com o masculino e seu
morfofonema /O/. Daí a concordância nominal “Homem e mulher educados ”, “Caros
colegas”, em que “educados” e “caros” não pertencem ao gênero masculino, mas, sim,
neutro.
11) Os antigos neutros plurais em –A acabaram tornando-se femininos singulares: festa,
fada, obra, lenha;
12) Comparativo em –ior é substituído pela perífrase magis + adjetivo: magis formosius
. Em português, há resquícios do arcaico –ior em formas como melhor, pior, maior,
menor, ulterior, anterior, posterior, inferior, interior.
13) Superlativo com –issimus foi trocado pela perífrase máxime + adjetivo ou multum +
adjetivo. O retorno ao arcaico –issimus se deu com os empréstimos eruditos da
Renascença, no latim tardio.
14) Uso frequente do demonstrativo dêitico ille ou ipse no discurso, como anafórico.
Isso forjou, mediante esvaziamento semântico, o que viria a ser o artigo definido na
língua portuguesa: illu(m) / illos // illa(m) / illas
15) O numeral unus passou a designar também substantivo não mencionado
anteriormente, criando as condições pragmáticas para o surgimento da classe do artigo
indefinido em português.
16) Também na conjugação verbal se notaram mudanças sistêmico-estruturais; por
exemplo:
a) na voz passiva: amor > amatu sunt = sou amado (passagem do sintetismo para o
analitismo);
b) No futuro do presente do indicativo: cantabo > cantare habeo > cantarei
(passagem do sintetismo para o analitismo e retorno, recategorizado, do sintetismo);
a fixação dos tempos compostos (habere + verbo no infinitivo) como marcadores
categoriais de tempo verbal se estabelece nos anos trezentos d.C., como atestam os
Diálogos de São Gregório, Crônica Geral de Espanha e outras;

c) No futuro do pretérito do indicativo, por analogia com o futuro do presente do


indicativo (caso b), acima): cantare habebam > cantaria ;
17) Reforço fônico, alterando os radicais de muitas palavras no português: os > bucca /
auris > auricula ;
18) Preferência pelas formas vulgares quando havia sinonímia: casa por domus / cabalus
por equus / focus por ignis ; essas formas perfazem, por exemplo, parte substancial do
Appendix Probi , que lista e prescreve que se usem as formas eruditas, em vez de as já
disseminadas formas vulgares.
19) Síncope das consoantes intervocálicas –l-, –n-, -d- (exceto em verbos, que se dará
mais tarde) e –g-: colubra > cobra / luna > lua / pede > pé / magis > mais;
20) Encontros PL/CL/FL transformam-se em CH: pleno > cheio / clamare > chamar /
flama > chama . Nas áreas de influência moçárabe, esses encontros transformaram-se
respectivamente em PR/CR/FR, como atestam vocábulos como plano > prano > porão /
clavus > cravo / flacus > fraco .

A apresentação dos fatos morfológicos sob a perspectiva diacrônica, neste mesmo


período (a passagem do latim clássico para o latim vulgar), é esmiuçada por Castelar de
Carvalho da seguinte forma:

Morfossintaxe Diacrônica
Redução dos casos
Cada um dos seis casos do LC [Latim Clássico] desempenhava funções sintáticas
específicas. Representados por morfemas gramaticais chamados desinências casuais,
correspondiam os casos latinos às seguintes funções sintáticas em português:
nominativo = sujeito e predicativo do sujeito; vocativo = vocativo; acusativo =
objeto direto e adjunto adverbial (de causa, lugar, tempo); genitivo = adjunto
adnominal e complemento nominal; dativo = objeto indireto e complemento
nominal; ablativo = adjuntos adverbiais e agente da passiva.
Devido a causas fonéticas (desinências iguais) e sintáticas (analitismo: emprego de
preposições e da ordem direta), os casos foram se reduzindo pouco a pouco, até
restar apenas um: o acusativo. Vale lembrar que nos primórdios da língua latina já
havia a tendência a reduzir os casos: o locativo e o instrumental acabaram
absorvidos, em sua maior parte, pelo ablativo. Quanto ao emprego de preposições
como partículas coadjuvantes dos casos, também é tendência que remonta ao LC: o
acusativo e o ablativo, ambos podiam ser preposicionados. Lembremos, por
exemplo, que para se referir ao lugar onde, aonde e de onde, dizia-se
respectivamente: in templo , in templum , ex templo. Como se vê, para tornar mais
claro o seu pensamento, recorreram os falantes latinos a dois expedientes sintáticos:
a ordem direta e as preposições. Não foi por acaso, portanto, que a posição e a
preposição (que tornaram dispensáveis os casos) converteram-se nos dois
marcadores sintáticos por excelência na frase românica.
Depois de um longo período de evolução, os casos acabaram reduzidos a apenas
dois no LV [Latim Vulgar] da Península Ibérica: nominativo (casus rectus ), com
suas antigas funções e mais a do vocativo, e acusativo (casus obliquus ), com suas
funções próprias e mais as do genitivo, dativo e ablativo. Posteriormente, perdendo
o acusativo o -m final que o caracterizava no singular, acabaram os dois casos por
se neutralizar. No plural, entretanto, o -s final permanecerá como marca forte e
inconfundível do acusativo e da flexão de número, do que dão testemunho as
inscrições, nas quais é o acusativo, e não o nominativo, que aparece na função de
sujeito: filias matri fecerunt “as filhas dedicaram à mãe”, quiescant reliquias “(que)
os restos descansem” (Ap. Coutinho, 1969:228).
Tornado caso único, o acusativo, auxiliado por preposições, passou a desempenhar
todas as funções sintáticas na frase do LV da Península Ibérica. Ao acusativo
também é que se vincularão etimologicamente, em sua maior parte, os nomes
portugueses (subst. e adj.), daí ser conhecido como o nosso caso lexicogênico, ou
seja, gerador do léxico.
Do ponto de vista morfológico, é do acusativo que se derivam as três vogais
temáticas nominais da língua portuguesa: -a, -o, -e, que correspondem,
respectivamente, à 1ª (fem.), 2ª (masc.) e 3ª (masc. e fem.) declinação do LV. Sirvam
de exemplo os seguintes nomes: rosa(m) > rosa , lŭpu(m) > lobo, valle(m) > vale
e ponte(m) > ponte . É também o acusativo que nos transmitirá as desinências de
gênero feminino (-a ) e de número plural (-s ): lŭpa(m) > loba , lŭpas > lobas .
Embora o acusativo seja o nosso caso lexicogênico, a língua portuguesa conservou
alguns vestígios dos outros casos latinos. Do nominativo restaram os pronomes
pessoais retos: ego > eu, tu > tu, ĭlle > ele, nos > nós, vos > vós e os
demonstrativos: ĭste > este, ĭpse > esse, *accu +ĭlle > aquele, além de certos
nomes próprios – Cícero, César, Nero, Marcos, etc. – e comuns: júnior, sênior, sóror,
deus. Estes nomes foram preservados por influência eclesiástica ou erudita. Quanto
ao vocativo, seu único vestígio em português é a saudação litúrgica Ave-Maria .
Do genitivo restaram uns poucos vestígios, não mais percebidos sincronicamente,
como, por exemplo, patronímicos do tipo Fernandici > Fernandes, Antonici >
Antunes e nomes diacronicamente compostos: aquae +ductu > aqueduto, terrae
+motu > terremoto, agri +cultura > agricultura. Quanto ao dativo, seus vestígios
estão representados pelos pronomes oblíquos tônicos (objeto indireto) mihi > mi
(arc.) > mim, tibi , sibi > ti, si (por analogia a mi) e ĭlli > lhe (este é átono). As
formas átonas ti e si , do português arcaico, deram te e se , o que explica o uso
dessas formas, no português contemporâneo, como objeto indireto, a par do seu
emprego como objeto direto, herança, neste caso, do acusativo latino te e se .
Redução das declinações
Os nomes latinos distribuíam-se por um sistema morfossintático que compreendia
cinco declinações, mas no próprio LC já existia acentuada tendência para confundir
essas declinações, pois havia nomes que podiam ser declinados tanto por uma
quanto por outra declinação. Por exemplo: avarities , ei , materies , ei , luxuries , ei ,
nomes da 5ª, também podiam ser avaritia , ae ,materia , ae , luxuria , ae , isto é,
declinados pela 1ª. Nomes como cantus , us , laurus , us , pinus , us , domus , us , da
4ª, também podiam ser cantus , i , laurus , i , pinus , i , domus , i , ou seja, da 2ª. A
acentuação dessa tendência foi tão grande que levou ao desaparecimento de duas
declinações no LV: os nomes da 5ª, quase todos femininos, foram incorporados à 1ª,
e os da 4ª passaram à 2ª (esta também recebeu alguns neutros da 3ª: corpus , oris
, pectus , oris , tempus , oris > corpus , i , pectus , i , tempus , i ). Uns poucos nomes
da 5ª, como plebes , ei , passaram à 3ª do LV:plebs , is (esta duplicidade já havia no
LC). Em resumo, LC → 5 declinações; LV → 3 declinações. Com o
aprofundamento do analitismo e a conseqüente redução/eliminação dos casos, as
declinações perderam o sentido, desaparecendo de todo na fase final do LV.
Desaparecimento do neutro
No LC os nomes se dividiam em três gêneros gramaticais: masculino, feminino e
neutro (neuter = nem um nem outro), tipologia morfossemântica nem sempre muito
nítida e que só se tornava explícita na frase, através da concordância do adjetivo com
o substantivo: pulcher lupus , pulchra pirus , pulchrum templum . Acontece que no
próprio LC já havia a tendência para fazer desaparecer o gênero neutro,
confundindo-o com o masculino. Era comum a presença, em textos, de formas
masculinas como fatus , dorsus , caelus , vinus , vasus em vez do neutro fatum
,dorsum , caelum , vinum , vasum . No neutro plural a confusão era ainda maior. Os
neutros tinham três casos, nominativo, vocativo e acusativo, que faziam o plural em
-a , mas tornou-se frequente na fala popular, e até mesmo na língua escrita, o
emprego de formas do masculino plural, como castellos , templos , monumentos ,
onde o certo seria o neutro plural castella , templa ,monumenta .
Essa tendência se generalizou a tal ponto que motivou o completo desaparecimento
do neutro, tornando-se masculinos todos os nomes pertencentes a esse gênero, como
ensina Maurer Jr. (1959:79): “A confusão do neutro singular com o masculino
operou-se na língua popular em época bem antiga”. Outra alteração importante:
muitos nomes vindos do plural neutro, por causa da terminação -a , acabaram
incorporados ao feminino (já que esta terminação, por acaso, também era a do
feminino), daí a duplicidade de gênero, em português, de certas palavras: masc. <
neutro sing.: lĭgnu > lenho, brachiu > braço, ŏvu > ovo, fructu > fruto; fem. <
neutro plur.: lĭgna > lenha, brachia > braça, ŏva > ova, fructa > fruta. Em resumo,
neutros no LV: no singular > masculino; no plural > feminino.
Em português não existe o gênero neutro como categoria gramatical. O que restou
do neutro latino são apenas alguns vestígios, conservados em nossa língua em
situações específicas, tais como: a) pronomes demonstrativos: aquilo, isto, isso; b)
pronomes indefinidos: tudo, nada, algo; c) certas palavras de sentido pluralício:
vestimenta, ferramenta, lenha, braça, ova, fruta; d) adjetivos na forma não-marcada
de masculino, como determinantes de substantivos usados em sentido geral:
É proibido entrada, É necessário paciência, Fruta é bom para a saúde; e) adjetivos
neutros (masc.) de um infinitivo: É doce e honroso morrer pela pátria (Dulce et
decorum est pro patria mori . Horácio).
Redução das conjugações
O LC possuía quatro conjugações verbais, caracterizadas no infinitivo pelas
seguintes terminações: 1ª) -are : amare ; 2ª) -ēre : ardēre ; 3ª) -ĕre : facĕre ; 4ª) -ire
: partire . No LV da Península Ibérica houve desde cedo certa preferência pela 2ª
conjugação em –ēre , devido à preferência pelos paroxítonos na fala popular. A 1ª
conjugação era não só a mais produtiva como também a mais resistente: recebeu
verbos de outras conjugações (torrēre > *torrare > torrar, fidĕre > *fidare >
fiar, mollire > *molliare > molhar) e não perdeu nenhum. A 2ª conjugação do LV
resultou da fusão da 2ª com a 3ª do LC: ponĕre > ponēre > põer/poer (arc.) >
pôr, dicĕre > dicēre > dizer, facĕre > facēre > fazer. Além disso, no próprio LC,
havia verbos que se conjugavam ora pela 2ª, ora pela 3ª: fervĕre > fervēre >
ferver, stridĕre > stridēre > ranger. A 3ª conjugação do LV corresponde à 4ª do LC
– audire > ouvir, punire > punir – e foi formada ainda por verbos vindo da 2ª e da
3ª: fugĕre > fugire > fugir, lucēre > *lucire > luzir. Mais tarde, na própria língua
portuguesa, a 3ª conjugação se ampliou, recebendo verbos de outras
conjugações: cadĕre > cadēre > caer (arc.) cair, corrigĕre > corrigēre > correger
(arc.) > corrigir. Os verbos em -ĕre , de introdução mais recente, passaram à 3ª
conjugação em -ir : affluĕre > afluir, illludĕre > iludir, retribuĕre > retribuir.
(CARVALHO, 2004)
CAPÍTULO 4
DE VOLTA À DERIVA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Em seguida, no século VIII, as investidas árabes acirraram-se. Em 711 d.C., árabes e


berberes do Maghreb, seguidores do Islã, entram na Península.
De 409 a 711, há uma forte aceleração da passagem do latim imperial para o
protorromance, surgindo certas isoglossas, como a da parte ocidental, de onde sairá o galego-
português, e a da parte central da Península, de onde surgirão o leonês e o castelhano.
Como vimos, entre os séculos VIII e XII se configuram circunstâncias linguísticas
capazes de criar a deriva do protorromance galego-português, que, a partir do marco miliário de
1214, com o “Testamento de D. Afonso II”, rompe-se definitivamente em galego e português,
dois idiomas distintos. Trata-se, arqueologicamente, da data de nascimento da língua portuguesa.
“Surgirá, assim, nos séculos IX a XII, o galego-português, cujos primeiros textos escritos
aparecerão somente no século XIII” (TEYSSIER, 2004, p. 15).

Quando a língua portuguesa começou a ser escrita – no início do século XIII – seu
léxico reunia cerca de 80% de palavras de origem latina e outros cerca de 20% de
palavras pré-romanas, germânicas e árabes. (AZEREDO, 2000, p. 72)

Voltando um pouco aos árabes muçulmanos, estes exercem domínio sobre os cristãos e
os judeus da Península Ibérica até o século XI. Al-Mansur destrói Compostela, na Galiza, em
997. É o apogeu do Califado de Córdova, como lembra Teyssier.
Perto do ano 1000, no entanto, os cristãos começam a expulsar os mouros para o sul da
Península. Em 1128, na Batalha de São Mamede, Afonso I (Afonso Henriques, filho de
Henrique de Borgonha) separa-se de seu primo Afonso VII, rei de Castela e Leão. Forma-se,
logo em seguida, com o reconhecimento do Rei Afonso I, o reino autônomo de Portugal (1140).
Com o Tratado de Windsor (1386), a comunidade internacional reconhece a Dinastia de Avis e,
pois, o Reino de Portugal.
Entre o século XIII e metade ou final do XIV (o ano 1350 é considerado lapidar), embora
o certificado de alforria da língua portuguesa já se tivesse dado (1214, “Testamento de D.
Afonso II”, como visto), e até a chancela geográfica corroborasse a isoglossa portuguesa (a
independência de Portugal, em 1128 e a criação do Reino em 1140), filólogos concluíram a
existência de um período chamado TROVADORESCO, cuja característica, não única, era a
convivência de um romance galego-português que, apesar das muitas semelhanças, apresentava
já, também, muitas distinções, interessando-nos aqui as de ordem morfológica. Bechara nos
mostrará em pormenores a questão.
Serafim da Silva Neto inicia esta fase — a qual denomina “arcaica” — a partir do século
XII e a estenderá, como veremos melhor, até o século XVI. Cremos que o século XII seja de fato
relevante pela presença de D. Sancho I, notável figura na expulsão dos árabes (a Reconquista),
com traços evidentes na História Interna da língua portuguesa.
Bechara assinala o que segue relativo à época de que falo (Bechara o estende até o fim
do século XIV, e não apenas ao ano 1350). Considero importante expor as balizas que seguem
para reiterar o que sempre nos alertou a mestra Carolina Michaëlis quando falava do terreno
escorregadio que se pisava quando se busca definir o que vem a ser um “romance” ou
“romanço”.
Serafim da Silva Neto, em dado momento, sucintamente assim estabelece: “Romanço é
um falar intermediário entre o latim corrente e as línguas neolatinas. Ao romanço falado na
Lusitânia, que vai até o século IX, chamaremos lusitânico ” (SILVA NETO, 1976, p. 86).
Apresentamos agora as balizas conferidas por Bechara no que tange à separação entre o
português e o galego na fase conhecida com frequência exclusivamente como a fase do romanço
galego-português:

Fatos tipicamente portugueses :


a) O pronome tudo;
b) A tendência para mudar o átono em u, quer em posição de sílaba inicial (curaçõ),
final e em palavras enclíticas (nus, vus, de pus);
c) A forma palavra;
d) As formas verbais louvar e ouvir;
e) A terminação –emento;
f) As terminações –oos (de –ones);
g) As grafias lh e nh; mh, bh e vh, onde o h vale por i.

Fatos tipicamente galegos :


a) a forma reina (de regina), em oposição o resultado rainna, típico do português;
b) o pronome che, em face do português te;
c) a desinência verbal –sche (-ste)
d) a desinência –o na 3ª. Pess. S. do pret. Perfeito;
e) i e u metafônicos (por e e o, respectivamente) na conjugação (pidimos, fugir);
f) a grafia x por s (xe, xi, por se)
g) a alternância b / v;
h) –eí- (oriundo de –aí-: einde, seir);
i) –oi- (oriundo de u + i)
j) A terminação –aas por –aes (-ais), do latim ales (oficiaas);
k) Empréstimos castelhanos (tais como si por se, -d e –t por –de; conservação do –l-
e do –n-; le / li por lle / lli).

Sabendo-se que muitas dessas formas concorrem num mesmo texto dessa fase
primitiva, é um profundo estudo da frequência de determinados fatos que vai decidir
a procedência galega ou portuguesa dessa unidade entendida por galego-português.
(BECHARA, 1985, p. 52)
Muitos estudiosos têm se debruçado sobre a periodização da História Interna da língua
portuguesa, estabelecendo balizas em que se possam fiar para determinar o fim de uma fase, a
transição a outra e, enfim, o estabelecimento desta outra.
O objetivo deste livro não é o aprofundamento nas teses defendidas sobre tais balizas. No
entanto, não podemos nos eximir de sua breve análise em alguns momentos, como ficou
registrado. Isso se dará sempre que as referidas balizas, nesta obra, disserem respeito aos traços
pertinentes à morfologia da língua portuguesa.
As primeiras tentativas de periodização, pelo que indicam os filólogos eminentes, estão
em Fernão de Oliveira (1536), João de Barros (1540), Pero de Magalhães Gândavo (1574),
Duarte Nunes de Leão (1576) e, certamente, até em eruditos anteriores a eles, antes da
Renascença ou Renascimento. Os séculos XIV e XV, como salienta Sylvain Auroux em A
revolução tecnológica da gramatização (1992), são os séculos exatamente do início da
normatização gramaticográfica e lexicográfica. Dicionários e gramáticas foram escritos em todo
o Ocidente europeu.
Das línguas neolatinas, a primeira gramática de que temos registro é a de Nebrija (da
língua castelhana), de 1492. O mesmo Antonio de Nebrija publicou um dicionário Latim-
Espanhol, no mesmo ano 1492, e seu subsequente dicionário Espanhol-Latim em 1495. A
primeira gramática portuguesa é a de Fernão de Oliveira. O primeiro dicionário da língua
portuguesa, no entanto, veio muito tardiamente: publicado entre 1712 e 1728, o Vocabulário
português e latino (Vocabulario portuguez e latino , no original), do padre Raphael Bluteau,
sacerdote de origens britânica, francesa e portuguesa. Tecnicamente, o primeiro dicionário,
assim nomeado, da língua portuguesa foi publicado, de fato, apenas em 1789, pelo brasileiro
(carioca) Antonio de Moraes Silva: trata-se do “Diccionario da lingua portugueza composto
pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva .
Logicamente, houve dicionários no período colonial brasileiro, elaborados no Brasil por
jesuítas. Eram bilíngues, e pode ser citado o Vocabulário na Língua Brasílica , manuscrito
anônimo do Português-Tupi do século XVI-XVII.
Portanto, como se vê, e repetindo as palavras de Ivo Castro, a história da língua
portuguesa começa na história do latim. Para estudar os registros históricos da língua
portuguesa, desse modo, é preciso incursão na filologia românica.
A origem dos estudos de filologia românica é consensualmente atribuída às duas obras
do alemão Friedrich Diez: Gramatik der Romanischen Sprachen [4] (1836) e Etymologisches
Wörterbuch der Romanischen Sprachen [5] (1854). Seguiu-lhe os passos seu discípulo austríaco
Hugo Schuchardt, com Vokalismus der Vulgärlateins [6] (1866). Depois dele, Meyer-Lübke
escreveu o capítulo “Die lateinische Sprache in den romanischen Ländern ” [7] , no 1º volume da
obra Grundriss der romanischen Philologie [8] , de Gröber (1888).
Voltando às questões de periodização da língua portuguesa, é concedida a primogenitura
dos estudos científicos dessa metodologia de periodização, por meio de balizas
arqueologicamente documentadas, a Antônio das Neves Pereira, no fim do século XVIII.
Muito próximo a ele, está Francisco Adolfo Coelho, que publicou, em 1868, obra com
este escopo, intitulada A língua portuguesa: fonologia, etimologia, morfologia e sintaxe.
Manuel Pacheco da Silva Júnior, com sua Gramática histórica , de 1878, foi outro nome
de envergadura no propósito.
A ele, seguiram-se os estudos de José Leite de Vasconcelos, que, após publicar inúmeras
obras, consolidou seu nome na filologia, no que concerne à história da língua portuguesa, em
1911, com Lições de Filologia Portuguesa .
A sábia Carolina Michaëlis de Vasconcelos elaborou, entre 1911 e 1913, o que viria a ser
duas obras fundamentais aos estudos da língua portuguesa: Lições de Filologia Portuguesa e
Lições práticas de português arcaico.
Em 1917, Augusto Epifânio da Silva Dias tem publicada, postumamente, sua Sintaxe
histórica portuguesa .
De Said Ali, a Gramática histórica da língua portuguesa , como nos ensina Bechara, foi
o concurso editorial das obras Lexeologia (1921) e Formação de palavras e sintaxe do
português histórico (1923), que não deixaram de imergir profundamente no problema da
periodização da história da língua.
Paul Teyssier foi erudito importantíssimo e muito original em suas investidas sobre os
problemas da língua portuguesa, inclusive a periodização ancorada em balizas comprováveis. A
primeira edição de sua História da língua portuguesa , de 1980, ganha edições até os dias de
hoje, dada a clareza e a objetividade com que o mestre trata o assunto.
Naturalmente houve outros estudiosos que contribuíram para a questão. Júlio Moreira,
J.J. Nunes, Antenor Nascentes, Jacques Raimundo, Mário Barreto, Silva Ramos, Sousa da
Silveira, Evanildo Bechara, Rodrigues Lapa, Celso Cunha, Lindley Cintra, Clóvis Monteiro,
Silva Neto, Pilar V. Cuesta, Ismael de Lima Coutinho, Rosa Virgínia Mattos e Silva, Ivo Castro,
Maurer Jr., Mattoso Câmara Jr. e muitos outros.
Sempre que necessários, recorreremos a muitos desses sábios a fim de mostrarmos
aspectos morfológicos da língua portuguesa pela perspectiva histórica.
Cabe aqui, um momento de inserção da História da ortografia portuguesa. Considero
importante que nos detenhamos em ortografia pelo fato de que, como mostrarei na PARTE II
desta coleção MORFOLOGIA DA LÍNGUA PORTUGUESA, a morfologia (plano do conteúdo)
se ancora na fonologia (plano da expressão), e esta, por sua vez, possui um subplano, que
denominei de “subplano gráfico”, correspondendo à ortografia e sua unidade epistêmica, o
grafema. Então, nesta parte da coleção, por estarmos tratando de história, é mister enveredarmos
pela história da ortografia, ainda que brevemente.
Cláudio Cezar Henriques lembra haver 3 períodos ortográficos da língua portuguesa,
iniciando-a em 1196. Divide assim:

A história da ortografia portuguesa divide-se em três períodos:

a) O fonético, que coincide com a fase arcaica da língua, estende-se desde 1196
(data provável de uma cantiga de maldizer de João Soares de Paiva contra o rei
de Navarra: Ora faz ost´o senhor de Navarra , primeiro texto datado e escrito em
língua portuguesa) até o final do século XV [9] ;

b) O pseudoetimológico, inaugurado no Renascimento, inicia-se em 1489 (data


do primeiro documento impresso em língua portuguesa, o Tratado de Confissom
, que já mostra as características que predominariam a partir do século XVI) e
vai até os primeiros anos do século XX;

c) O histórico-científico , que se inicia com a adoção da chamada “nova


ortografia”, começa em 1904, ano da publicação de Ortografia Nacional , de
Gonçalves Viana. (HENRIQUES, 2009, p. 1)

1.3. PERÍODO HISTÓRICO-CIENTÍFICO (OU SIMPLIFICADO)


Na história da ortografia portuguesa, Adolfo Coelho pode ser considerado o pioneiro
nos estudos com base científica. Graças aos trabalhos por ele realizados a partir de
1868 foi possível o estabelecimento de uma nova visão a respeito do assunto.
(HENRIQUES, 2009, p. 1-3)

Ainda com relação a essa fase arcaica, que que, como vimos, o galego e o português ora
se fundem, ora de distanciam, o que, diga-se mais uma vez, dificulta, na prática, a definição de
“romance” ou “romanço” galego-português, Bechara estabelece as seguintes balizas, que
analisaremos a seguir. Observe-se que todas elas dirão respeito a fatos morfológicos da História
Interna da língua portuguesa.

1) Encontros vocálicos átonos ou tônicos em hiato resultantes da queda de


consoante intervocálica, passando por uma fase de desnasalização quando se trata de
–n-: maa, ser, viir, soo, nuu, mao, moesteiro, coorar, diaboo, bõo etc.;
2) Terminação – om nas formas da 3ª. Declinação latina: sermon (sermom).
3) Terminação –on (-om) nas formas verbais oriundas de –unt (amáron (amárom),
quiseron (quiserom) etc.;
4) Formas participais em –udo da 2ª. Conjugação: temudo, recebudo etc.
5) O –d- etimológico da desinência de 2ª. Pess. Plural (no pres. Ind., fut. Ind., pres.
Subj. e imperativo): amades, fazedes, queredes, seeredes, leixedes, fazede etc.
6) Uniformidade genérica nos nomes em –or, -ol-, -ês e –nte;
7) Existência de pronomes possessivos femininos de formas proclíticas (ma, ta, as)
ao lado de formas normais (mha, miá, tua, sua), sem que a língua arcaica usasse
distinção com rigor de emprego. (BECHARA, 1985, p. 53-54)

A queda das consoantes intervocálicas nessa fase (e nas posteriores) concedeu ao


português uma de suas características morfológicas mais marcantes: a convivência de forças
conservadoras e inovadoras na formação de seu léxico. Essa é uma característica da índole (do
Geist , na acepção de Hegel) da língua portuguesa. Exemplos dessa convivência se comprovam
exaustivamente na análise de nosso léxico contemporâneo, onde as formas sincopadas (onde
houve a queda da consoante intervocálica) se estabeleceram sem, contudo, abandonarem
cognatos cujos radicais, mesmo sincronicamente, reitere-se, mantêm as consoantes sincopadas
do período arcaico.
Assim, a síncope do –d- (exceto nas formas verbais, que só será constatada na fase
posterior), do –l-, do –n- e do –g- revelam sincretismo na deriva atual da língua, mostrando a
dualidade entre forças tenazes e inovadoras da língua portuguesa. Excetuando algumas
retomadas ao latim que só ocorrerão no classicismo da língua portuguesa (por exemplo com
Camões, ou mesmo antes, no fim do século XV), as formas divergentes/cognatas não podem ser
classificadas como algo artificioso, erudito, técnico ou literário, e constituem verdadeira
manutenção espontânea no nível discursivo espontâneo, vernáculo do idioma. Sobre os
empréstimos eruditos, falaremos no capítulo 10, seção 10.2.2. São alguns exemplos dessas
convivências formas como:
Mão/manual
Pão/panificação
Pé/pedal/pedestre
Lua/lunar
Diabo/diabólico
Mestre/magistério
Vinte/vigésimo

Há uma fase que se prolonga da segunda metade do século XIV até a primeira metade do
século XVI. Para Bechara, a mesma fase vai do início do século XV à primeira metade do século
XVI, já que, como vimos, ele estende a fase arcaica até o fim do século XIV. Ele a chama de fase
arcaica-média.
Serafim da Silva Neto, como vimos, abarca as fases a que Bechara chama de arcaica e
arcaica média sob a única denominação de “português arcaico”, que, segundo Silva Neto (1976,
p. 85), vai do século XII até o século XVI. Já vimos que a Reconquista (com a preeminência de
D. Sancho I) inicia, talvez, esta proposta de Silva Neto e ela, por sua vez, engloba toda a
complexidade, brevemente exposta acima, do caso do galego-português / galego e português e o
início e estabelecimento da prosa histórica:

O período arcaico divide-se, nitidamente, em duas partes:


1 — a fase trovadoresca, que vai do último terço do século XII até 1350, ou até 1385
(Aljubarrota). É a galego-portuguesa;
2 — a fase da prosa histórica, verdadeira e exclusivamente portuguesa, de 1385 até o
século XVI. (SILVA NETO, 1976, p. 91)

Devemos salientar que, na segunda parte apontada por Silva Neto, houve também o
apogeu da prosa artística portuguesa, com Fernão Lopes, que escreveu a partir do início do
século XV (circa 1420) as obras Crônica de D. Fernando, Crônica de D. Pedro e Crônica de D.
João I. Seguiu-se a ele Gomes Eanes de Zurara.
Em todo esse período arcaico, segundo a proposta de Silva Neto, estabelecem-se, na
morfologia portuguesa, mudanças ou assentamentos em classes gramaticais como a dos verbos,
numerais, pronomes oblíquos átonos, pronomes possessivos, pronomes demonstrativos,
pronomes relativos, pronomes indefinidos, locuções, advérbios e conjunções .
Alguns exemplos arrolados são os que seguem (SILVA NETO, 1976, p. 100-3),
elaborados sinopticamente (e seletivamente) por mim:

CONJUGAÇÃO VERBAL : perda (síncope) do –d- intervocálico na segunda pessoa do plural


(falaremos disso um pouco adiante).
NUMERAL : ũu (< ũnu), ũa (< ũna), çinque, viinte ( < viginte), trinta ( < triginta). Ordinais
como seismo e sesmo , significando “sexta parte”. Um “distributivo” senhos ( < * selhos <
singulos ), com o significado de “cada um seu” “e tenhamos senhos círios nas maãos açesos”
(séc. XIV, apud Leite de Vasconcelos, in Liç. De Fil., p. 303) (SILVA NETO, 1976, p. 101)
PRONOME OBLÍQUO : che = te: “bem sabes tu que me deste filho non cho pidindo eu a ty ”
(Test. Velho, III, p. 52, apud SILVA NETO, 1976, p. 101). “e fazede de guisa que... xe mi nin
envy´outra vez querelar” (id. Ib.).
PRONOMES DEMONSTRATIVOS : Havia mais pronomes demonstrativos na língua arcaica
do que na contemporânea. Isso porque ainda coexistiam formas como esta, aquesta, esse,
aquesse, esto, aquesto, aquisto, esso, aquesso, elo, aquelo,
ADVÉRBIOS e CONJUNÇÕES e PREPOSIÇÕES : alá, aló, acá, ende, em, allende, aquende, u
( = onde), eire ( = ontem), ogano ( = este ano), anvidos ( = contra a vontade), avonde, avondo ( =
bastante). Preposições como ata, ataa, atees, atem. Conjunções como ca (comparativa ou
integrante), porende (adversativa), mentre.

A segunda parte que Silva Neto aponta viu, também, florescer o gênio da poética de
Camões, inserido no contexto do Renascimento. Para Ali e Bechara, Camões está, contudo,
inscrito em outro contexto, que veremos a seguir.

O Renascimento, o italianismo, o humanismo, a censura inquisitorial, a


Contrarreforma e o controle da educação pelos jesuítas, a reação neoclássica e a
Arcádia, o liberalismo e o romantismo, o realismo e o naturalismo, etc. (TEYSSIER,
2004, p. 43)

Rosa Virgínia acrescenta a importância do livro impresso a este tempo. Como vimos, a
primeira obra impressa em português foi o Tratado de Confissom , em 1489.
Como vimos, enfatizamos agora a fase que se prolonga da segunda metade do século XIV
até a primeira metade do século XVI.
Bechara (1985) nos ensina que a baliza por excelência é a queda do –d-, agora verbal, na
desinência da 2ª. Pessoa do plural, exceto nas formas em que hoje ainda persiste.
Explicitando o caso, havia a forma (vós) sabedes , que se tornou, hoje, (vós) sabeis ,
tendo passado por crase (vós) sabees , cuja ditongação (-ee- >-ei-) foi aspecto assimilatório
fonético natural.
O –d- intervocálico na segunda pessoa do plural persiste, ainda hoje, em alguns verbos
monossilábicos (e seus derivados prefixais), no presente do indicativo e nos imperativos
(afirmativos) daí oriundos, e em verbos com mais de uma sílaba na desinência modo-temporal
do futuro do subjuntivo e no infinitivo flexionado. Alguns exemplos que fornecemos de nossa
parte:
ALGUMAS FORMAS VERBAIS DO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO QUE MANTÊM O
–D- INTERVOCÁLICO EM “VÓS”

TODOS OS INFINITIVOS FLEXIONADOS


+
TODOS OS FUTUROS DO SUBJUNTIVO [10]

CRER: (vós) credes / crede (vós) / (quando vós) crerdes / (para vós) crerdes
LER: (vós) ledes / lede (vós) / (quando vós) lerdes / (para vós) lerdes
VER: (vós) vedes / vede (vós) / (quando vós) virdes / (para vós) verdes
REVER: (vós) revedes / revede (vós) / (quando vós) revirdes / (para vós) reverdes
IR: (vós) ides / ide (vós) / (quando vós) fordes (para vós) irdes
VIR: (vós) vindes / vinde (vós) / (quando vós) vós vierdes / (para vós) virdes
PÔR: (vós) pondes / ponde (vós) / (quando vós) puserdes / (para vós) pordes
TER: (vós) tendes / tende (vós) / (quando vós) tiverdes / (para vós) terdes
SER: sede (vós) [11] / (quando vós) fordes / (para vós) serdes
FAZER: (quando vós) fizerdes / (para vós) fazerdes

Mestre Said Ali (Gram. Histórica, I, 140) lembra que a tendência da síncope do
–d- persiste insistentemente nos sermões de Vieira, ao lado, como seria natural,
da forma plena: “para (vós) seres bem julgados” (5, 83); “se morreres no estado
presente, se não chegares a esse depois, que há de ser de vós?” (5, 152).

Acredito que este fato se explicaria não só prosseguimento da deriva, mas ainda
pela razão de já contarem os seiscentistas com mecanismos linguísticos outros
para distinção entre a situação respeitosa e a familiar. (BECHARA, 1985, p. 56)

A língua até então só possuía o tuteamento (tratamento com TU) e o voseamento


(tratamento com VÓS) para demonstrar respeito. Expressões como mercê, senhoria, graça,
excelência (precedidas ou não de Vossa ) , senhor , e verbo na 3ª. Pessoa do singular só
começam a se desenvolver em 1500, e fixam-se muito tempo depois. Escritores seiscentistas
estabelecem uma espécie de tentativa de rompimento com essa forma.
Vem da gramaticalização de Vossa Mercê, como se sabe, o surgimento da forma VOCÊ
na língua portuguesa, com todas as consequências morfológicas e pragmáticas daí
provenientes.

As estratégias de referência ao interlocutor e, em especial, a alternância você/tu tem


sido objeto de investigação de diversos estudos sincrônicos e diacrônicos. Tais
estudos apontaram que, entre os séculos XVIII e XIX, iniciou-se o processo de
gramaticalização do você, que passou a ser a forma mais frequente em relações de
menor intimidade e na escrita de mulheres (RUMEU, 2008), ocorrendo também
como sujeito pleno. O antigo pronome tu , por sua vez, era a estratégia mais
recorrente entre os séculos XIX e início do XX, ocorrendo preferencialmente nulo
nas relações de maior intimidade entre missivistas homens.

Segundo Duarte (1993, 1995), a frequência do pronome você superou a da forma tu


a partir dos anos de 1930, período que coincide com a mudança na marcação do
parâmetro do sujeito nulo no PB.
Essa alternância tu e você, no entanto, não poderia sempre ter sido considerada como
um fenômeno de variação em termos labovianos (LABOV, 1994, 2001) já que, em
alguns contextos, o emprego de tu ou de você poderia ter uma finalidade linguística
específica. Em dados dos séculos XVIII e XIX, o tu ocorria em contextos de
individualização e contraste, e o você era empregado em fórmulas fixas ou indicava
deferência/distanciamento.
Entretanto, a gramaticalização do você permitiu que tal forma ampliasse seus
domínios estruturais e sociofuncionais de atuação, invadindo os contextos de uso
típicos do tu .

Rumeu (2008), ao analisar cartas pessoais escritas entre a virada do século XIX para
o XX, observou que a forma mais recorrente ainda era o tu , no entanto, fatores
como o gênero, a expressão do sujeito e o parentesco influenciavam no emprego de
você . Além disso, a autora constatou que o você, nesse período, apresentava
indícios de pronominalização.

No entanto, sua análise vai até os anos de 1940, o que não nos permite visualizar a
implementação do você na segunda metade do século XX.

Avançando para a metade do século XX, Machado (2011) analisou as estratégias de


referência ao interlocutor a partir de peças teatrais escritas entre 1843 e 2003. Os
resultados obtidos mostraram que o você ‗tomou‘ os espaços outrora ocupados pelo
tu , tornando-se a estratégia predominante a partir de 1950. A visão panorâmica da
mudança do quadro pronominal de 2ª pessoa, apresentada pela autora, restringe-se
ao estudo de peças teatrais, que representam o vernáculo de personagens de uma
época, sob o ponto de vista do autor da peça. Não se trata, pois, da produção escrita
de um informante em um momento específico no tempo. (SOUZA, 2012, p. 21-22)

São, portanto, balizas do que Bechara nomeou fase ARCAICA MÉDIA (primeira metade
do século XV à primeira metade do século XVI):

a) A eliminação dos hiatos constituídos por encontros de vogais iguais


através da crase: a-a / a; e-e / e; i-i / i; o-o /o; u-u / u;
b) A confusão fonética das terminações –om de nomes oriundos da 3ª.
Declinação com os finais –am e –ão;
c) A normalização da variedade de gênero nos nomes em –or/ -ora, -ês / -
esa;
d) A eliminação do particípio em –udo da 2ª. Conjugação;
e) A eliminação das formas possessivas femininas ma, ta, as. (BECHARA,
1985, p. 57)
O segundo fenômeno — a confusão fonética da terminação –om (de –onem e
*udinem e de verbos em –unt) com as terminações –am (de nomes em –anem e
de verbos em –ant) e –ão (de nomes em –anum e de –adunt na forma verbal
vadunt) — se completou durante o século XV, mais particularmente
documentado na segunda metade do século XV, conforme o testemunho de
Cancioneiro Geral, em que o final –om desapareceu (exceto em bom, com,
raramente nom etc.), conservando em arcaísmos gráficos que rimam com
formas em –am (por exemplo, contemplaçom e revellaçom rimam com
ermitam). (BECHARA, 1985, p. 60)
Bechara estabelecerá uma “fase moderna”, que se estende da 2ª. Metade do século XVI
ao final do século XVII. Assim sendo, Camões está, para Bechara, neste contexto, subdividido
da proposta anterior, de Silva Neto, que vimos.
São características de História Externa e Interna deste período exposto por Bechara fatos
como o Classicismo português, o Movimento renascentista, a ação gramatical e filológica,
segundo Adolfo Coelho, a “Gramatização”, segundo Sylvain Auroux, de que já tratamos. Por
esse prisma, acrescente-se a Camões as seguintes ponderações de Said Ali:

Camões não foi propriamente o criador do português moderno, porque essa


linguagem escrita já vinha empregada por outros escritores. Libertou-a, sim, de
alguns arcaísmos e foi um artista consumado em sem rival em burilar a frase
portuguesa, descobrindo e aproveitando todos os recursos de que dispunha o
idioma para representar as ideias de modo elegante, enérgico e expressivo.
Reconhecida a superioridade da linguagem camoniana, a sua influência fez-se
sentir na literatura de então em diante até nossos dias. (ALI, 1971, I, 4)

Bechara, neste período, estabelece as seguintes balizas:

a) A fixação não pleonástica da negação pré-verbal;


b) Afixação do plural dos nomes em –ão (mãos, cães, leões) e do feminino
dos adjetivos em –ão (são / sã);
c) A eliminação dos anafóricos (h)i e em como formas independentes;
d) A eliminação progressiva da concordância em gênero e número do
particípio componente de um tempo composto com o complemento direto
desse verbo;
e) A progressiva criação de novas formas de tratamento com verbo na 3ª.
Pessoa do singular;
f) A progressiva ação analógica do radical do infinitivo sobre o radical da
1ª. Pessoa de muitos verbos, como senço / sinto, menço / minto, arço / ardo
etc.;
g) A presença obrigatória do pronome demonstrativo antecedente do
pronome relativo em construções do tipo eu sou o que, tu és o que, nos
somos os que etc. (construção que persiste até fins do século XVIII).
(BECHARA, 1985, p. 64)
A propósito da letra b) acima exposta por Bechara (o surgimento do –ÃO), vale a
complementação que segue. A forma –ão do português tem origens muito diversas. Ivo Castro
(1991, p. 245, com adaptações) nos mostra os principais casos dessa convergência (muitas vezes
homeotrópica):

1) Vadunt > vão;


2) Por analogia: dam, estam, som > dão, estão, são;
3) Cã > cão
4) Visõ > visão

LATIM CLÁSSICO > PORTUGUÊS ARCAICO > FINAL DO SÉC. XV

-AM (por ex. TAM) > -ã >


-ANT (3ª p. do pl.) > -ã > -ÃO
-ĀNEM (acus. Sing.) > -ã >
-ŬM (p. ex. SUM) > -õ >
-ŬNT (3ª p. do pl.) > -õ > -ÃO
-ŌNEM (acus. sing.) > -õ >
-ŬDĬNEM (acus. sing.) > -õ >

-ĀNUM (acus. Sing.) > -ão >


-ADŬNT (p. ex. VADŬNT) > -ão > -ÃO

Como sabemos, os plurais de substantivos e adjetivos terminados em –ÃO se formarão,


mais tarde, remontando exatamente ao étimo latino originário dos radicais:

MANO > MÃO > MÃOS


LEONE > LEÃO > LEÕES
PANE > PÃO > PÃES
A propósito, também os plurais de palavras em que houve a síncope do –l- intervocálico
se estabeleceram: soles > soes > sóis; civiles > civis; azules > azuis.
Naturalmente há marcas da língua portuguesa da variante brasileira nos domínios fonético,
morfológico, sintático, estilístico, discursivo, pragmático etc. Ivo Castro (1991) assevera que as
condições externas para a separação entre as variantes europeia e brasileira da língua portuguesa
cessaram no século XIX. Seguindo seus passos, firmo algumas balizas do português variante
brasileira (quase sempre oral, aqui):

1) Pronomes pessoais átonos em próclise mesmo em início absoluto: “Me traz água”.
2) Uso do pronome pessoal oblíquo como sujeito: “Pra mim fazer”.
3) Pronome pessoal reto em função de objeto: “Eu vi ela”.
4) Simplificação dos paradigmas flexionais dos verbos: EU versus NÃO EU/supressão
do VÓS : Eu amo, tu ama, ele ama, você ama, a gente ama, nós ama, eles ama.
5) Variação em número de apenas um elemento do sintagma nominal (o primeiro), seja
ele um determinante, seja ele o núcleo: “Os menino alto”; “Meninos comportado”.
6) Uso do pronome reto como sujeito em orações subordinadas cujas principais
possuam verbos causativos ou sensitivos: “Deixa eu ver” / “Escutei ele falar”
7) Uso do pronome reto como sujeito, seguido de gerúndio, e não de infinitivo, em
orações subordinadas cujas principais possuam verbos sensitivos: “Escutei ele falando”
[12]
.
Algumas dessas balizas, entretanto, ainda apresentam caraterísticas de estigmas em
determinados domínios discursivos. Com isso, podem ser categorizadas dentro de uma das
fases que levam da variação à mudança, estabelecidas por Fernando Tarallo segundo os
princípios da sociolinguística variacionista de Labov: 1) fatores condicionadores; 2)
encaixamento; 3) avaliação; 4) transição; 5) implementação. Para Coseriu, a mudança se
estabelece quando ocorre a adoção , devendo ser estes conceitos, portanto — mudança e
adoção —, considerados análogos no que se refere à linguística histórica.
CAPÍTULO 5
SOBRE A MORFOLOGIA VERBAL: DO LATIM AO PORTUGUÊS

A classe dos verbos nos parece de importância capital para observarmos a


diacronia da estrutura lexical da língua portuguesa. Isso porque o verbo, a rigor, é o vocábulo
com maior número de morfemas na língua portuguesa, tanto do ponto de vista quantitativo
quanto qualitativo. Isto é, o verbo, por poder chegar a mais de 60 variações, a partir de sua forma
lexemática simples (o infinitivo), possui muitos morfemas (aspecto quantitativo), e variedade
deles (aspecto qualitativo). No português contemporâneo, como sabemos, uma forma flexionada
pode atingir, grosso modo , o paradigma seguinte:

PREF.+RAD. [13] +V.T. [14] +D.M.T.+D.N.P.

Como em RE+CONQUIST+A+RE+MOS

E, por algumas análises morfológicas, haveria ainda um acréscimo de sufixo aspectual


em alguns verbos, cujas flexões, portanto, o assimilariam. Neste caso, o paradigma aumentaria
para:

PREF.+RAD.+ SUF .+V.T.+D.M.T.+D.N.P.

Como em RE+FLOR+ESC +E+RE+MOS

Façamos uma sinopse das mudanças havidas na deriva do verbo da língua portuguesa
para, em seguida, aprofundarmo-nos em algumas que nos pareçam mais relevantes:

1) No século XIII, as reestruturações modo-temporais já estavam praticamente


concluídas.
2) Do português arcaico para o português contemporâneo, as grandes diferenças
serão de caráter morfológico.
3) Desde o latim, o verbo é a palavra de maior caráter flexional nas línguas latina e
nas que dela provieram.
4) Do ponto de vista semântico, o verbo se volta primordialmente para o sujeito da
frase, pois já havia DNP. No português contemporâneo, há outras funções sintáticas
com que o verbo se aferra, como predicativos e adjuntos adnominais (em
concordâncias atrativas) e até mesmo com a ideia que o sujeito encerra (em
concordâncias ideológicas).
5) Também o verbo já marcava significações internas, como modo, tempo, aspecto.
6) Os aspectos básicos do verbo, tanto no português arcaico quanto no
contemporâneo, dizem respeito a ações concluídas ou não concluídas.
7) Embora alguns autores atribuam exclusivamente ao latim morfemas específicos
para designar aspecto, observamos que o português contemporâneo também os
possui. Há autores que dizem que, no português contemporâneo, o aspecto ficou
confinado a perífrases verbais (analitismo), perdendo de todo o caráter morfológico
stricto sensu (sintetismo). Talvez a afirmação se deva a uma diferença de perspectiva
do que era e do que é, atualmente, o conceito de aspecto, pois, como mostramos, o
português contemporâneo pode marcar aspectos (por exemplo o iterativo) por meio
de morfemas, como em “saltar” ao lado de “saltitar”, ou mesmo a forma “gotejar”,
em que –ej- é morfema exclusivo para a designação do aspecto.
8) Em latim, havia desinência para voz, que foi perdida em português.
9) Havia também a voz passiva analítica no latim vulgar, como vimos: ESSE + PP
(sunt amatu). Ocorria ao lado do depoente, que passou para o português arcaico
concorrendo na formação do TEMPO COMPOSTO (em que nos aprofundaremos no
capítulo 6) com HAVER/TER.
10) O emprego semântico-morfológico do depoente existe até hoje no português,
sendo caracterizado como uma estrutura morfológica de voz passiva com sentido
semântico de voz ativa: Exs. “mulher viajada” = “mulher que viaja”; “mulher lida” =
“mulher que lê”.
11) O emprego ergativo ou inacusativo de alguns verbos no português
contemporâneo, que já existia no latim, é evitado em algumas variantes língua.
Assim, por exemplo, uma frase como “A calça rasgou” seria mais bem aceita em
Portugal se se lhe restituísse o caráter acusativo do verbo, como em “Alguém rasgou
a calça”.
12) No latim, havia formas nominais no verbo que não mais existem no português
contemporâneo, ao menos não mais como VERBOS. Havia, por exemplo, o
infinitivo presente e o infinitivo pretérito (este último inexistente no português
contemporâneo), que não se declinavam; o particípio pretérito (ou passado), o
particípio presente (este transformado em adjetivo, conjunção ou substantivo em
português contemporâneo, como em “passante”, “tirante”, “amante” etc.) e o
particípio futuro (basicamente remanescente nas formas terminadas em –uro, como
em “nascituro”).
13) As mudanças no paradigma verbal se processaram no latim vulgar do Império
Romano, e é dessas mudanças uqe decorrem os paradigmas verbais românicos
contemporâneos.
14) Perda dos futuros simples do latim: infectum – AMABO / perfectum –
AMAVERO. Os futuros do presente simples em português provieram de perífrases
verbais com HABERE, e, em seguida, com a gramaticalização dessas perífrases
(Amar+EI / AMAR+IA) [15] .
15) Com a perda dos futuros simples do latim, também passou a haver uso do
presente para indicar futuro (como ocorre até hoje).
16) Em latim havia imperativos presente e futuro.
17) O modo subjuntivo em latim podia ocorrer em orações principais, não sendo
modo adstrito à servidão gramatical, portanto, isto é, um modo REGIDO. No
português contemporâneo, um resquício dessa possibilidade de o subjuntivo não ser
regido, ocorrendo em orações principais, se dá nas chamadas orações
optativas:”Bons ventos o tragam”.

No português contemporâneo, temos 3 conjugações verbais, delimitadas por suas vogais


temáticas:

1ª. Conjugação: V.T. –A- : AM-A-R


2ª. Conjugação: V.T. –E- : BEB-E-R
3ª. Conjugação: V.T. –I- : PART-I-R

Como este livro trata de morfologia diacrônica, é fundamental lembrar que o verbo PÔR
e seus derivados prefixais são os únicos que, no infinitivo, perderam a vogal temática –E-
etimológica do latim, que, no entanto, reaparece em formas conjugadas do português
contemporêneo: põE, pusEste, pusEsse etc.
Os contemporâneos alomorfes de vogal temática se dão assim:

A > E – 1ª. Pessoa do singular (P1) do pretérito perfeito do indicativo: amEi


A > O – 3ª. Pessoa do singular (P3) do pretérito perfeito do indicativo: amOu

E > I
a) Particípio regular da maioria dos verbos desta conjugação: bebIdo, trazIdo;
b) Pretérito imperfeito do indicativo: vendIa, trazIa
I > E – Em algumas pessoas e números do presente do indicativo: partE, partEs etc.

Sobre os alomorfes de V.T. no português arcaico (e mesmo no latim vulgar ), cabe a


seguinte tábua de considerações:

1) Os atuais alomorfes da V.T. –A- já existiam em português arcaico e, na verdade,


provêm do latim vulgar: amei/amou vêm de amavi/amavit respectivamente.
2) Onde a V.T. hoje desaparece, ocorria, frequentemente, o mesmo apagamento no
português arcaico.
3) V.T. –E- da 2ª. Conjugação aparecia com alomorfes no português arcaico em:
a) Subjuntivo presente: cómha ~ cómia (-I- alomorfe de –E-), de comEat , do
latim;
sábha ~sábia, de sapEat , do latim;
b) Imperativo: bévi ~beve / colhi ~ colhe / enténdi ~entende
c) Já eram fixos deve, deves, devem, sem flutuações com <i>, exceto no
imperativo, conforme a letra b) acima;
d) Este ~isti – ascondisti / conhocisti / recebisti / respondisti;
e) Particípio em –UDO até fins do século XIV: sanhudo, perdudo, conheçudo;
f) Verbos irregulares de conjugação especial (Matos e Silva, 1993): soube
~soubi / trouxe ~trouxi / ouve ~ouvi / pude ~pudi / ave ~ávi
4) V.T. –I- da 3ª. Conjugação aparecia com alomorfes no português arcaico em:
a) Parte, partes, parteu
b) No imperativo da 2ª. Pessoa do singular (P2) podia variar com <i>:
“Parte de mim, molher”; “Levanta e fúgi (por foge) muit´agiha”;
c) Em alguns casos de 1ª. Pessoa do presente (P1): sérvio ~ servho (>
sirvo); dórmio ~ dormho (> durmo)
d) Futuro do pretérito: partiria ~ parteria

As principais distinções entre o período arcaico e agora estão na V.T.


<U> do PP de CII; a V.T. como semivogal em verbos de CII e CIII; a
variação possível entre as representações <e> e <i> para formas de CII e
CIII, que, provavelmente, indicam variantes fônicas. A morfologia da
V.T. em CI já era a mesma que a atual. (MATOS E SILVA, 1993, p. 44)

5.1 ALGUNS ÉTIMOS VERBAIS LATINOS E SUAS MUDANÇAS EM PORTUGUÊS

Veremos que as formas dos verbos latins geraram verbos em português de maneiras que
nomeio DIRETAS, INDIRETAS e SINTAGMÁTICAS. As principais são as que seguem, e, em
cada uma delas, procurarei estabelecer por que a adoção dos conceitos DIRETO, INDIRETO,
SINTAGMÁTICO.
5.1.1 ÉTIMOS LATINOS DIRETOS

Chamo-os de DIRETOS pelo fato de que ao aspecto INFECTUM latim correspondeu a


formação de tempos no modo IMPERFEITO em português, isto é, em ambos os casos havendo
aspecto não concluído. Por outro lado, são também diretos os étimos que, em latim, eram
PERFECTUM, o ocasionando igualmente o PERFEITO em português, ambos com ideia de ação
concluída:

5.1.1.1
INFECTUM LATIM > IMPERFEITO (NÃO CONCLUÍDO) PORTUGUÊS

AMO > AMO (presente do indicativo)


AMABAM > AMAVA (pretérito imperfeito do indicativo)
AMEM > AME (presente do subjuntivo)

5.1.1.2
PERFECTUM LATIM > PERFEITO (OU MAIS-QUE-PERFEITO) PORTUGUÊS

AMAVI > AMEI (pret. perf. do ind. Alomorfe da V.T.)


AMAVIT > AMOU (pret. perf. do ind. Alomorfe da V.T.)
AMAVERAM > AMARA (pret. mais-que-perf. do ind.)

5.1.2 ÉTIMOS LATINOS INDIRETOS

Aqui, ao contrário do que ocorreu em 5.1.1, o aspecto foi transformado em seu oposto, na
mudança do latim para o português, ou mesmo suprimido:

LATIM > PORTUGUÊS

AMAVISSEM (pretérito PERFECTUM do subj..) > amasse (pretérito IMPERFEITO do


subjuntivo)
AMAREM (pretérito INFECTUM do subjuntivo) > amar (futuro [Ø] do subjuntivo)

5.1.3 ÉTIMOS LATINOS SINTAGMÁTICOS

Como vimos, da queda, no latim vulgar, do futuro simples do presente do latim, surgiram,
mediante sintagma ou locução verbal de INFINITVO + HABERE, os futuros simples do
presente e do pretérito em português. Reiterando-se:

LATIM > PORTUGUÊS


AMABO > AMARE HABEO > AMAR
HEI > AMAREI
AMARE
HABEBAM > AMAR (HAV)IA > AMARIA

AVER DE era “modo volitivo”, correspondendo a TER DE (ou TER QUE, em alguns
domínios discursivos do português contemporâneo). Já aparecem no Testamento de D. Afonso II
e nos Diálogos de São Gregório (século XIII), podendo existir o correlato AVER A:

Ei de fazer a obra
Avia de perecer
Sse meu filho ou mia filia que no meu lugar ouver a reinar

5.2 CONCLUSÃO PARCIAL SOBRE ÉTIMOS LATINOS VERBAIS

O modo subjuntivo em português simplificou a categoria aspectual do latim, em que o


subjuntivo podia ser perfectum ou infectum. No português, o subjuntivo como que se confinou à
categoria aspectual de infectum (não concluído).
Exemplos disso:
1) Total desaparecimento de um presente PERFECTUM do subjuntivo latim
(amaverim), que não deixou correspondente em português;
2) O pretérito PERFECTUM do subjuntivo latim criou o pretérito IMPERFEITO do
subjuntivo português (amavissem > amasse), como vimos.
3) O antigo pretérito INFECTUM do subjuntivo latim se deslocou para criar o futuro
(INFECTUM) do subjuntivo português (amarem > amar), já que o pretérito imperfeito
do subjuntivo português já tinha provindo do pretérito PERFECTUM do subjuntivo
latim.

CAPÍTULO 6
CONSIDERAÇÕES PANCRÔNICAS SOBRE LOCUÇÕES VERBAIS COM
“TER” E “HAVER”

Vendo o triste pastor que por enganos


lhe fora assi negada sua pastora,
como se a não tivera merecida ,

tornando já a servir outros sete anos,


dezia: –Mais servir(i)a, se não fora
p[e]ra tão longo(s) a[m]o[r] tão curta vida. (Camões, 1989: 887,
grifei)

O verso destacado, extraído dos dois últimos tercetos de célebre soneto camoniano, não
se enquadra à norma padrão do idioma português contemporâneo: há uma concordância nominal
participial (em gênero; cf: “merecida”) inadequada à forma que a Gramática Normativa de hoje
prescreve.
Qual o motivo desse descompasso sintagmático? Revelaria ele algum descompasso
semântico explicitado no decurso da língua?
É o que esboçaremos neste capítulo.
Atualmente, a Gramática Escolar da Língua Portuguesa dividirá as conjugações verbais,
entre outras classificações que se atribuem às variações por que passa um verbo, em simples ou
compostas , no que denominam, mais especificamente, tempos simples e tempos compostos .
Estes últimos são formados por uma locução (ou sequência ou perífrase) verbal formada pelos
auxiliares “ter” ou “haver” e um particípio. Muitos desses tempos apresentam as duas
possibilidades de existência contemporaneamente, sem qualquer distinção semântica, apesar de
traços de variantes notáveis, como de cunho
estético, estilístico, diatópico, diafásico etc. É o caso dos correspondentes (1)
e (2) adiante:

(1) Ele trouxera o trabalho antes do fim do expediente.


(2) Ele tinha (ou havia) trazido o trabalho antes do fim do expediente.

Observamos, portanto, que o pretérito mais-que-perfeito do indicativo (os dois casos


apresentados), tanto em sua forma simples (1) quanto composta (2), acarreta exatamente o
mesmo significado e o mesmo aspecto: algo que ocorreu antes que outra coisa tivesse ocorrido.
No entanto, nem sempre foi assim. Nem sempre os verbos “ter” e “haver” puderam
desempenhar, na língua portuguesa, o papel meramente instrumental de formadores de
sequência indicadora de tempo composto.
Momento houve em que tais verbos eram apenas nocionais (itens lexicais, portanto), não
sendo concebidos, a princípio, como instrumentos gramaticais.
Naquele momento, eles possuíam a noção de posse (haver ), e de manutenção,
retenção, contenção (ter ). São interessantes as palavras de Dante Lucchesi sobre esse fato,
apontando que as mudanças linguísticas são encaixadas na estrutura da língua e, pois, se
determinam mutuamente, numa ideia que Saussure ou bem refutava peremptoriamente ou bem,
em alguns momentos, via de forma velada e intencionalmente imprecisa:

Temos, por exemplo, os verbos ser, haver e ter , na história do


português. No latim, o verbo ESSE recobria a área de significação
existencial, enquanto a HABERE cabia a significação de posse.
Já no português antigo, haver começa a ser usado com o sentido
de “existir”, penetrando na área do verbo português ser (< esse).
Na evolução o português, haver vai assumir definitivamente a
significação existencial, deslocando o verbo ser . Por sua vez, haver
é deslocado da área de significação de posse pelo verbo ter . E,
atualmente, no português do Brasil, ter concorre com haver na área
de significação existencial. Fica, pois, patente a lógica sistêmica
dessas mudanças de significação, tanto que fatos como esses vão
fundamentar a concepção de E. Sapir de que as mudanças, longe
de serem acidentais e particulares, seguem uma deriva (drift ) que
pode ser visualizada a partir da organização estrutural da língua
(Lucchesi, 2004, p. 67)

Ademais, é mister ressaltar-se que, mesmo hoje, há um por assim dizer descompasso
entre o pretérito perfeito em suas formas simples e composta, respectivamente os números (3) e
(4) abaixo.

(3) Eu bebi toda a água.


(4) Eu tenho (ou hei) bebido toda a água.

Ocorre que, em que pese à circunstância de a Gramática Normativa classificar ambos


como pretérito perfeito, em (4), nota-se o aspecto inceptivo (início da ação), mas sobretudo
durativo, permansivo, aproximadamente como um gerúndio em perífrase verbal com “estar”. Em
outras palavras, o arcabouço semântico do pretérito perfeito, ou perfectivo, que é o de ação
conclusa no passado, não se dá, no português contemporâneo, quando o pretérito perfeito é
composto (4). Essa diferença aspectual, no entanto, já foi completamente neutra no passado não
tão longínquo da língua, conforme revela o verso de Gregório de Matos:
(5) “Pequei, Senhor, não porque hei pecado” (Matos, 1992.)

Ou nesta outra de D. Dinis:

(6) Pêra ueer meu amigo,


Que talhou preito comigo,
Alá uou madre.

Pêra ueer meu amado,,


Que mig´á preyto talhado,
Alá uou, madre.
(D. Dinis, 2002)

Voltando ao português contemporâneo, em que a diferença de aspecto se nota,


Augusto Epiphanio da Silva Dias buscava dar a seguinte explicação
ao fato:

Do pretérito perfeito definido


§ 254. a) O pret. Perfeito definido emprega-se, em primeiro lugar,
quando, transportando-nos mentalmente ao passado, registamos
acontecimentos que então se deram, considerados como simples
momentos históricos (perfeito histórico):
A Hespanha romano-germanica transformou-se na He s p a n h a
rigorosamente moderna no terrível cadinho da conquista árabe
( Herc. Eur ., 314)
(....)
Do pretérito perfeito indefinido
§ 255. a) O pret. Indefinido exprime a continuação ou repetição
duma ação desde certo momento até o momento em que falamos.
b) Também serve de exprimir que no momento em que a pessoa
fala, uma ação está consumada, com a ideia acessória de que não há
possibilidade, necessidade ou vontade de continuá-la (por outra, em
contraposição ao que seria mister, ou poderia ainda fazer-se)
Tenho acabado, Fieis, o meu discurso (Vieira, I, 950)
(Silva Dias, 1933, p. 188)

Como foi dito, duas questões devem ser analisadas: a) o fato de que nem sempre os
verbos “ter” e “haver” eram meramente relacionais (ou auxiliares), pois já houve tempo em que
eles representavam semanticamente ideias ou noções; b) o fato de que, depois de
gramaticalizados (ou ainda em transição), essas perífrases (ou sequências ou locuções) verbais
nem sempre tiveram diferença aspectual, o que, hoje, sobretudo no perfeito do indicativo, é
bastante perceptível.
A primeira questão a se considerar, quando se diz em gramaticalização de “ter” ou
“haver” com consequente formação de tempo composto, é a questão crucial da concordância,
que passa a ser neutra ou a não mais existir.
Este será o marco, ou o elemento balizador, que representará a passagem, que
naturalmente foi paulatina, do momento no português (português arcaico e arcaico-médio) em
que “ter” e “haver” expressam ou posse ou manutenção para o momento em que eles se
esvaziam semanticamente (português moderno), perdendo, repita-se a sujeição do respectivo
particípio acompanhante à concordância verbal com o termo não preposicionado.
No mesmo caminho, respectivamente ao que se disse sobre “ter” e “haver” o particípio
passado que os acompanhava se esvaziou e perdeu seu caráter lexical de adjetivo (quando
concordava em gênero e número com um complemento não preposicionado, que seria seu
suposto elemento modificado) e assumiu um caráter ou uma posição verbal, ficando sempre no
masculino singular. O fato é que, já no século XVI, é raríssimo haver concordâncias, e, quando
as há, ocorrem por razões estilísticas.
O fato é que essa gramaticalização, como salienta Eneida Bomfim, gera a seguinte
conclusão:

Como se viu na parte introdutória deste estudo, um dos pontos


apontados como diferenciador dos chamados tempos compostos
do português antigo e do atual diz respeito à concordância. Fala-se
também na possibilidade de construção com os auxiliares ter e haver .
Quero enfatizar que, nas estruturas em que se dá a concordância,
não se pode falar em tempos compostos, nem tampouco em verbo
auxiliar. Com referência a ter , observa-se que, além de tomar o lugar
de haver na expressão de posse, está prevalecendo sobre este na
função de auxiliar. O enfraquecimento de haver como auxiliar pode
estar ligado a dois fatores conjugados: 1. à substituição gradativa
por ter nas estruturas de posse e 2. ao fato de passar a assumir o
valor existencial que era próprio de ser .
A reflexão sobre estes tópicos pressupõe a análise da língua em
funcionamento e, como decorrência, precisa contar com um corpus
representativo das fases do português anteriores ao século XVII,
quando supostamente se deu a mudança.
(Bomfim, 2002, p. 10, sublinhei).

Pode-se afirmar que a concordância neutra foi motivadora para a não concordância
mesmo nos verbos intransitivos, o que foi gerando o processo de mudança aludido, qual seja o
de gramaticalização dos verbos “ter” e “haver”.
Ocorre que, num primeiro momento, como se mostrará, a concordância neutra
se deu em três circunstâncias, mas todas com os verbos transitivos diretos sem complemento
preposicionado:

Objeto Direto oracional


OD exercido por termos neutros (o, esto, aquello)
OD não explícito ou não expresso
(3´) OD masculino singular

Exemplificam-no, respectivamente (todos os exemplos são da Crônica Geral de Espanha, de


1344, do cap. XLVII a CXC, p. 76 a 304, do volume II da CGE, 1955):

(1) e avya defeso em toda a sua hoste que... (p. 239, 5)


(2) esto ouve feyto (p. 174, 14)
(3) assy como avemos dito (p.115, 27)
(3´) em seu outeyro que avyam tomado (CGE: p. 115, 15)

Tal prática [- concordância] se via, embora raramente, na mesma obra em outros exemplos,
como em casos em que havia objetos diretos femininos, com o particípio no masculino singular,
no entanto, o que apontava para o processo de variação em curso que acabaria gerando a
mudança que ora se vê no português atual:

E, quando Cipion esto vyo, foy muy ledo e teve que lhe avya Deus
feyto muyta mercee(p. 105, 18)
E, quando alguũ dos príncipes de Roma viinha d´alguma grande
conquista que avya feito (p109, 9)
Estas cousas que avedes ouvydo (CGE: p.282, 16)

Na CGE, no entanto, os exemplos de [+ concordância] são muito mais frequentes, pois


não foi esta a época em que efetivamente se deu a mudança da referida gramaticalização. Os
exemplos acima escolhidos serviram, apenas, para mostrar como, já no século XIV, percebia-se
o processo através da presença da variável <concordância> em relação aos verbos “ter” e
“haver”, que, na passagem da fase arcaica e arcaica-média para a moderna viria a consagrar a
mudança que agora é patente na língua portuguesa.
Na mesma CGE, assim sendo, vale ressaltar que a concordância ocorria frequentemente,
como nos seguintes exemplos, evidenciando a coexistência das formas, ora com “ter” e “haver”
iniciando processo de esvaziamento semântico e caminhando em direção à posição de verbos
auxiliares (em tempos compostos), ora com esses mesmos dois verbos imbuídos ainda da noção
semântica de posse (“haver”) ou retenção, contenção, manutenção (“ter”), explicitando a não
existência, quando havia concordância do particípio (com emprego adjetivo) para comprová-lo,
de locuções verbais:

jura que avya feyta (p. 83,2)


males e dapnos que avyã feytos (p 81, 12)
razoões que já avemos dictas (p. 115, 19)
contenda que avyam começada (p. 114, 9)
ouverom destroida hua parte da cidade (p131, 21)
Julio César ouve conquistadas as terras (CGE: p. 111, 10)

Em trabalho sobre a obra em questão, a Eneida Bomfim, tratando da questão


<CONCORDÂNCIA> na Crônica Geral de Espanha , analisou corpus da referida obra, com
base em 144 capítulos (do XLVII ao CXC). Num teste referente às 95 primeiras páginas do
documento, apresentou os resultados quantitativos que se seguem:

<CONCORDÂNCIA> na CGE
[+concordância] [-
concordância] [Neutra] TOTAIS
T % T % T % T
HAVER 44 64 9 13 16 23 69 100
TER 10 100 0 0 0 0 0 0
(Fonte: Bomfim, 2002, p.11)

Desse modo, as considerações aqui balizadas sugerem que a deriva da língua se imbui de
modificar questões semânticas de seus subsistemas (aqui, estudadas as alterações havidas no
traço nocional de ter e haver ).
Após isso, depois de ter-se iniciado o curso dessas modificações, a estrutura
morfossintática da língua, ao menos a da língua portuguesa, parece criar traços redundantes que
corroborem a passagem ou modificação, como foi o caso dos ajustes ocorridos na concordância
nominal (em gênero) do particípio de ter e haver para que estes dois verbos se consagrassem
como auxiliares formadores de perífrases de tempos compostos, patenteando-se o seu
esvaziamento semântico de verbos nocionais que eram.
Portanto, a língua adapta seus meios gramaticais às expressões semânticas, num esforço
nítido de criar igualdade entre o plano do conteúdo e o plano da expressão, na célebre dicotomia
de Hjelmslev-Martinet.

CAPÍTULO 7
VISÃO DIACRÔNICA DA GRAMATICOGRAFIA NAS DEFINIÇÕES DA CLASSE
DOS VERBOS E O PROBLEMA DA “VOZ VERBAL”

A definição da classe dos verbos, ao longo do tempo, nas gramáticas normativas e, mais
recentemente, nos livros de linguística, parece flutuar entre critérios que tangenciam a lógica
cognitivista, a semântica, o formalismo (verbo como entidade mórfica passível de flexões
específicas), a sintaxe (verbo como centro imprescindível da oração declarativa, embora presente
em outros tipos de oração), parâmetros pragmático-discursivos e, enfim, a soma de dois ou mais
desses critérios, em perspectivas que, pode-se dizer, acabam sendo híbridas. Essa proliferação de
pontos de vista torna a pesquisa em tela inicialmente difícil: “[....] a variedade e abundância de
doutrinas, tantas vezes contraditórias, são [....] não um índice de riqueza, mas de confusão e
desorientamento.” (Carvalho, 1973, p. XIII, v. I.)

[....] é recomendável cautela na análise do verbo, que está vinculada a


seu significado ou emprego na frase, onde sua predicação se torna
evidente. [....] Recomendamos a leitura do item “Transitividade e
intransitividade”, no livro Iniciação à Sintaxe do Português (Rio de
Janeiro, Zahar, 1993 – a 1ª edição é de 1990), de José Carlos Azeredo,
p. 75-7. (Henriques, 1997, p. 30)
Para uma primeiríssima consideração, o próprio fato de o critério para a definição de
verbo variar conforme se considere, grosso modo , forma, ou significação, ou o tratamento do
processo verbal em relação ao sujeito (como veremos melhor) dificultará a definição, por
exemplo, da voz e, mais especificamente, da voz reflexiva .
Faremos, em breve, um panorama das principais definições empreendidas no decurso
acima mencionado. Por ora, basta-nos a asserção de que há, em comum à maioria delas, a
afirmação de que o verbo é a palavra que exprime processo, entendendo-se, por isso, a
temporalidade e a modalidade por natureza, além de possuir, em sua estrutura mórfica,
inerentemente, as categorias flexionais de número e pessoa, de que lançará mão por meio de
desinências próprias (daí o fato de constituir uma flexão). Com essas categorias,

[....] ele [o verbo] pode apresentar perto de sessenta formas diferentes.


Essa peculiaridade tem uma explicação: o verbo é responsável pela
expressão do mais numeroso e complexo conjunto de conteúdos
gramaticais reunidos em uma só espécie de palavra: tempo, modo,
aspecto [16] , número e pessoa.
Do ponto de vista estritamente morfológico, portanto, verbo é a classe
de palavra capaz de ocorrer nos enunciados sob diferentes formas (a
que chamamos “vocábulos morfossintáticos”) para a expressão das
categorias de tempo, modo, aspecto, pessoa e número. (Azeredo, 2012,
pp. 13-14. Grifo original)

Antes de partirmos a esse adejo histórico pelas gramáticas, ressaltamos, aqui, o fato de
que muitas delas não incluem como um dos acidentes próprios do verbo (uma vez que não
incluem este conceito na sua definição) o conceito de voz. Ademais, muitas gramáticas, quando
apõem o conceito aludido à definição de verbo, simplesmente o mencionam como um dos
acidentes próprios da classe morfológica perquirida, sem defini-lo, partindo diretamente às suas
supostas três ocorrências (ativa, passiva e reflexiva), que, com efeito, foram as adotadas pela
NGB [17] , e, após brevíssima definição semântica, baseada na dicotomia agente/paciente, partem
para exemplificações.
Sobre a NGB, aliás, valem essas palavras iniciais:

A terminologia oficial [18] refere-se ora ao sentido, ora à forma, aliás,


mais exatamente à função sintática. As denominações preposição e
conjunção baseiam-se num critério de forma; a denominação de
substantivo num critério de sentido; direto remete à primeira
(complemento) objeto ao segundo. (Génouvrier & Peytard, 1974, p.
128)

Assim sendo, merece discussão, sobretudo, a categoria de voz e, mais especificamente, a


de voz reflexiva, pois que, ao que nos parece, este conceito encerrou, de modo reducionista, um
conjunto muito heterogêneo de noções gramaticais, semânticas, morfológicas, morfossintáticas,
lexicológicas – que de modo algum satisfazem à metalinguagem gramaticográfica.
Vale ressaltar que, em nossa metodologia, demos preferência à análise de
gramaticógrafos, e não de linguistas que tecem considerações, conquanto relevantes, sobre os
conceitos de voz.
Por fim, diante do material perquirido, procuraremos demonstrar que conceitos atinentes
à construção das definições de voz (como “agente” e “paciente”, por exemplo) subjazem ao
processo de gramaticalização, e, por tal processo, podem, de modo verossímil, ser, também, em
complementaridade com outros critérios e parâmetros, alocados.
É notável a parcimônia ou mesmo ausência no que tange à definição de voz verbal
quando se conceituam verbos. Por essa razão, não nos prolongaremos muito em cada definição
apresentada pelos autores que, ao longo do tempo, escreveram gramáticas.
A distinção, no Ocidente, ao que tudo indica, iniciou-se com Platão, ao diferenciar onoma
(nome) de rema (argumento, ou verbo) (cf. Platão, s/d).
Não obstante tão antiga, e mesmo originária, a distinção dada por Platão parece nortear
importantes estudos da ciência linguística moderna. Outra não é a razão por que Mattoso Câmara
Jr., por exemplo, assim se expressa: “VERBO – Classe de palavras que se opõem aos nomes (v.
Nome) pela natureza dos seus semantemas: ‘indicam os processos, quer se trate de ações, de
estado ou da passagem de um estado a outro’ [....]” (MEILLET, 1921, p. 175, apud Câmara Jr.,
1957, p. 383-4. SU: VERBO).
Aristóteles, por seu turno, descreveu, em sua Retórica (Aristóteles, 1998, p. 260 e
passim), as partes do discurso, em que descreveu, além de noções estilísticas e de adequação a
determinados tipos de pessoas ou auditórios, a importância da extensão do que ele chamou de
“período”, e da forma como tais períodos deveriam coordenar-se por meio de conectores
próprios à clareza e simplicidade. Dionísio da Trácia, em seu breve trabalho,o Téchné
grammatiké , estabelece as 8 classes gramaticais que, daí em diante, serão retomadas e/ou
desdobradas (cf. Neves, 2003); a saber: nome, verbo, advérbio, artigo, preposição, conjunção,
particípio, pronome.
A partir da Idade Média (mais especificamente entre 1200 e 1300 d.C., como vimos, entre
D. Sancho I e D. Dinis), semeou-se o que viria a ser bem mais tarde a tradição das chamadas
gramáticas filosóficas, cuja principal característica seria a tentativa de igualar os usos da
linguagem (concretizados na língua) às categorias lógicas do pensamento humano. Nessa Idade,
foram comuns as chamadas gramáticas especulativas, em cujo étimo latim, speculum
(“espelho”), percebe-se a ideia de que elas refletiriam fidedignamente os meandros do
pensamento. Para essas gramáticas, as palavras seriam reflexos (espelhos) de conceitos de
natureza universal. A linguagem e a língua constituiriam, portanto, uma maneira de construir e
refletir o pensamento e as ideias de maneira lógica. Por essas razões, essas gramáticas passaram
a ser chamadas de lógicas, racionais, mentalistas ou filosóficas.
A primeira das gramáticas a seguir a tradição filosófica foi a gramática de Port-Royal [19] (cuja
definição de verbo veremos adiante), fortemente influenciada pelo pensamento de René
Descartes (como, aliás, foram-no também muitas das ideias de Ferdinand de Saussure, no século
XX), que constitui

[....] uma reviravolta na história europeia da gramática: “Antes deles,


inseriam-se análises do sentido em esquemas formais. Com eles, o
sentido toma o primeiro lugar, e o estudo das relações lógicas prevalece
sobre o estudo das formas” [ Chevalier, 1968, p. 491 [20] ]. Como
escreve A. Arnault no início de sua gramática: “Não podemos
compreender bem os diferentes tipos de significação encerrados numa
palavra se antes não tivermos compreendido perfeitamente o que se
passa nos nossos pensamentos, já que as palavras não foram inventadas
senão para dá-los a conhecer” (Genouvrier & Peytard, 1974, p. 139)

Outra importante gramática a seguir essa tradição, ora aplicada à análise da Língua
Portuguesa, foi a de Jerônimo Soares Barbosa (1822), que assim se expressa, em dado momento:
Por outra parte, sendo a gramática de qualquer língua a primeira teoria
que principia a desenvolver as ideias confusas da idade pueril; e
dependendo da exatidão de seus princípios o bom progresso nos mais
estudos, deve ela ser uma verdadeira lógica, que ensinando a falar
ensine ao mesmo tempo a discorrer. (Barbosa, 1792 [21] , Apud
Genouvrier & Peytard, 1974, p 140)
Grande parte do mérito dessas gramáticas, como se viu, foi a inserção do elemento do
significado (o que viria a chamar-se “semântica”, mais tarde) como fundamental à análise da
língua, da linguagem e da gramática. Antes disso (e, de certa forma, também depois, da
Renascença até os dias atuais), as gramáticas portuguesas buscavam, quase exclusivamente,
maneiras de adaptar as categorias da língua portuguesa às da língua latina, assim como, outrora,
as gramáticas da língua latina buscavam adaptar suas categorias às da língua grega.
Com efeito, essa tentativa de assimilação automática do latim para o português parece
ser uma das razões pelas quais a categoria de voz foi inserida, quase mecanicamente, no estudo
dos verbos. Isso porque, em latim, assim como em grego, havia desinências características para
definir a voz passiva, algo que passou a não acontecer na Língua Portuguesa. Portanto, a noção
de diátese grega, que Câmara Jr. (1957, p. 142, s.v. DIÁTESE), trata como sinônimo de VOZ,
passou a como que impor-se na terminologia gramaticológica da Língua Portuguesa.
Essa e outras tentativas de deslocamento automático das categorias formais latinas para o
português geraram múltiplos embaraços no arrolamento conceitual da gramática.
Com isso, ao fiarem-se peremptoriamente (ou até exclusivamente) no deslocamento de
categorias de formas , perdiam de vista muitas mudanças efetivadas ao longo da História da
língua que deveriam ser consideradas. João de Barros, por exemplo, “declina” em português,
uma vez que as declinações existem em latim:

1ª Declinação: a, e, i, o, u
Nom. A rainha As rainhas
Gen. Da rainha Das rainhas
Dat. À rainha Às rainhas
Acus. A rainha As rainhas
Voc. Ó rainha Ó rainhas
Abl. Da rainha Das rainhas (Barros, s/d [1540])

A mais recente das gramáticas de tradição mentalista ou cognitivista é a gramática


gerativa ou transformacional de Chomsky. Nela, observamos estruturas que buscam, por meio da
lógica, explicar os mecanismos, que o autor considera inatos e universais (gerais), propiciadores
da linguagem, baseados em reflexos das ideias, dos conceitos, do pensamento, em suma (cf.
Chomsky, 1984 [1957]).
Para Antonio de Nebrija, que escreveu a primeira gramática científica de língua românica,

Verbo é uma das dez partes da oração, que se declina em modos e


tempos, sem casos. E chama-se verbo, que em castelhano significa
palavra, não porque as outras partes da oração não sejam palavras, mas
porque, sem ela, as demais não constroem sentença alguma, esta se
denominou palavra por excelência. (Nebrija, 1980 [1492], p. 184,
tradução José Carlos Azeredo)

Observe-se como, na definição de Nebrija, diz ele que o verbo se “declina”, palavra que
se usava em latim, e, ainda, como o mesmo autor concentra-se nas categorias de modo e tempo
para distinguir o verbo das demais classes de palavras.
Com efeito, a palavra “flexão”

É a tradução que o filólogo Friedrich Schlegel fez do alemão


“Biegung” (“curvatura”) para indicar que a palavra podia “se dobrar” a
novos empregos.
Segundo Sílvio E. Elia [22] , flexão ou desinência “é a alteração
que as palavras ditas variáveis sofrem na sua parte final para indicar
alguns dos acidentes gramaticais”.
O autor cita como desinências verbais as que exprimem os
acidentes de pessoa, número, tempo, modo e voz [23] e lembra que o
latim, além de possuir desinências de voz para os verbos (“desinências
da voz ativa e da voz médio-passiva”), possuía, para os nomes, a
importantíssima flexão de caso [24] .
Como o português preferiu as formas analíticas às sintéticas, a
flexão de voz passiva se faz não mais por desinências (por exemplo : r,
ris, tur, mur, mini, ntur ), mas sintaticamente, por meio de certas
estruturas frasais. A esse tipo de flexão Hockett (citado por Francisco
da Silva Borba, Pequeno vocabulário de linguística moderna , SP,
Nacional, 1971, p. 68) dá o nome de flexão frásica (ex.: serei amado)
(Hauy, 1992, p. 76).

Sabemos, pela lição de Mattoso Câmara Jr., que “[....] o gramático latino Varrão (116
a.C. – 26 a.C.) distinguia entre o processo de derivatio voluntaria, que cria novas palavras, e a
derivatio naturalis , para indicar modalidades específicas de uma dada palavra.” (Câmara Jr.,
2001, p. 81). Assim, a derivatio naturalis corresponderia analogamente à flexão, ao passo que a
derivatio voluntaria estaria próxima ao conceito de derivação propriamente dita, ou
simplesmente derivação.
Antes, contudo, de definir o verbo segundo o critério formal da flexão (ou da presença de
desinências), as gramáticas filosóficas o conceituavam por parâmetros que, como vimos, eram
eminentemente lógicos, ligados à formulação do raciocínio. Assim, a gramática de Port-Royal
define verbo da seguinte maneira:

O verbo é uma palavra cuja missão principal é a de significar a


afirmação, isto é, a de assinalar que o discurso no qual se encontra não
é apenas o discurso das palavras com que exprimimos o conceito das
coisas, mas ainda o discurso com que as julgamos e afirmamos
(Arnauld & Lancelot, [1660], p. 90, tradução de José Carlos Azeredo
da versão espanhola)

Antes disso, na mesma gramática, os autores assim se expressam:

Hasta ahora hemos explicado las palabras que significam los


objetos del pensamiento. Nos queda hablar de las que significam sus
modos que son los Verbos, las Conjunciones y las Interjecciones.
El conocimiento de la naturaleza del verbo depende de lo que
dijimos al principio de este discurso: que el juicio que hacemos de las
cosas (como cuando digo la Tierra es redonda ) contiene
necesariamente dos términos: um llamado sujeto , que es del que se
afirma, como Tierra ; y otro llamado atributo , que es lo que se afirma,
como redonda ; y además la unión entre ellos, que es propiamente la
acción de nuestro espíritu que afirma el atributo del sujeto. [25] (Arnauld
& Lancelot, 2001, p. 119)

Como se percebe – e é o que aqui queremos enfatizar – a preocupação da gramática


filosófica sempre circundava os aspectos ligados ao pensamento, ao raciocínio. Assim, a
tricotomia sujeito/verbo/atributo era praticamente indissociável, e a definição de um dos seus
elementos pressupunha a definição de outro ou dos outros: o sujeito é definido em função do
verbo e do atributo; o atributo em função do verbo; o verbo, em função do sujeito e do atributo e,
além disso, de uma noção de juízo de valor de afirmação “do nosso espírito”.
Ainda sobre a outra gramática filosófica que vimos analisando, a de Jerônimo Soares
Barbosa, este autor assim define a classe em questão:

O verbo é uma parte conjuntiva do discurso, a qual serve para atar o


atributo da proposição com o seu sujeito debaixo de todas suas relações
pessoais e numerais, enunciando por diferentes modos a coexistência e
identidade de um com outro, por ordem dos diferentes tempos e
maneiras de existir. (Barbosa, 1875 [1822], p. 132)

Observamos que a conceituação primeira dada por J. S. Barbosa é muito similar à dos
gramáticos de Port-Royal, na medida em que o verbo é, antes de tudo, definido como “uma parte
conjuntiva” que serve para “atar” o “atributo” ao “seu sujeito”, isto é, ocorre a mesma tricotomia
sujeito/verbo/atributo que permite a definição desses três membros.
No entanto, já aparece um critério que busca formalizar os conceitos lógicos passíveis de
ser expressos pelo verbo, como pessoa, número, modo, tempo e “maneiras de existir” (o que
viria a ser um vislumbre do que se estudaria posteriormente como aspecto).
Assim, Jerônimo Soares Barbosa não falará em vozes verbais. Ele subdivide os verbos,
ainda, em substantivos e adjetivos, sempre encarecendo que “[a essência do verbo] consiste
propriamente na enunciação da coexistência de uma ideia com outra, e não na expressão destas
ideias, que já para isso têm palavras destinadas nos substantivos e adjetivos [....] (op. cit. p. 132)
Para ele, o verbo substantivo, que seria o verbo propriamente dito, é o que viria a chamar-se
“verbo de ligação”, exatamente em conformidade com sua definição de que ao verbo cabe atar
ideias, e não enunciá-las de modo autônomo. Os verbos a que ele chama de “adjetivos” serão os
que, mais tarde, serão chamados de verbos “nocionais”.
Por fim, da análise de J. S. Barbosa, como dissemos, aparecem as 5 categorias (que ele
chama de “ideias acessórias”) seguintes:

1ª A do sujeito da oração debaixo das três relações pessoais [...] 2ª A de


número, ou singular ou plural de cada uma destas pessoas, como eu
sou, tu és, ele é, nós somos, vós sois, eles são . 3ª A dos diferentes
modos de enunciar esta mesma existência, ou simples e vagamente, ser
amante , ou direta e afirmativamente, sou amante , ou indireta e
dependentemente, for amante . 4ª A dos tempos desta existência,
pretérito, presente e futuro , como fui, sou, serei . 5ª Enfim a dos
diferentes estados desta mesma existência, ou começada só e vindoura,
ou persistente e continuada, ou finda já e acabada, para o que toma o
verbo substantivo a ajuda dos verbos auxiliares, como hei de ser, estou
sendo, tenho sido. (id. ib.) [26]

Observe-se que a 5ª “ideia acessória” é um primeiro passo para os estudos posteriores de


aspecto verbal, que José Carlos Azeredo virá a definir assim: “O aspecto refere-se ao desenrolar
do fato expresso no verbo, independentemente da época em que esse fato ocorre: em
desenvolvimento ou habitual (passava), concluído ou pontual (passou), frequente ou persistente
(tem passado) etc.” (Azeredo, 2012, p 14).
Com Julio Ribeiro, o verbo passa a ser, primeiramente, assim definido: “158. Verbo é
uma palavra que enuncia, diz ou define alguma cousa. O verbo implica sempre uma asserção ou
afirmação” (Ribeiro, 1885 [1881] p. 73). Como se percebe, ainda está presente um conceito
filosófico na definição de Julio Ribeiro, ao definir verbo como “uma palavra que enuncia ”.
Em seguida, Julio Ribeiro já desdobra outras conceituações para o verbo, as quais serão
sobejamente utilizadas em gramáticas posteriores, como os conceitos de verbo intransitivo,
verbo transitivo (op. cit., p. 73-4), auxiliar, regular, irregular, impessoal, defectivo, perifrástico
[periphrastico], frequentativo-terminativo, pronominal (op. cit. 75-6).
É de notar-se que, em Julio Ribeiro, as definições de voz aparecem da seguinte maneira:
“162. Os verbos transitivos podem estar na voz ativa e na voz passiva. Estão na voz ativa quando
a ação transitiva que representam é exercida pelo sujeito da oração: estão na voz passiva quando,
pelo contrário, tal ação é exercida sobre esse sujeito” (op. cit., p. 74).
Como se percebe, o autor cita as propriedades de variação em vozes, a princípio, apenas
ativa e passiva. Ribeiro lançará duas indagações que reverberarão, até hoje, na classificação da
voz reflexiva : a primeira, como veremos, dirá respeito ao fato de que ele, lançando mão dos
estoicos (de quem, mais uma vez, também Saussure lançou mão para grande parte da formulação
de suas teses), estabelece a possibilidade de verbos neutros, ou, como poderíamos interpretar,
sem voz; a segunda, quando, não falando em momento algum numa suposta “voz” reflexiva, ele
apenas assim se reporta, ao falar em verbos pronominais, tecendo, até, crítica em
desdobramentos terminológicos de cunho gramatical a este fato:
161.
9) Pronominal – quando por uso da língua emprega-se sempre
com um pronome objetivo que representa o sujeito, ex.: “Queixar-se –
condoer-se”.
A distribuição da ação do verbo em recíproca, reflexiva. Etc.,
está mais no domínio da lógica do que no da gramática [....]. (op. cit., p.
76)

Voltando à primeira das reflexões lançadas por Julio Ribeiro, há pouco aludidas, ele
sugere ser importante distinguir os verbos, seguindo a tradição estoica, de acordo com a voz em
que estão, sem, contudo, dar a definição para voz, senão, repita-se, no contraste do tipo de verbo
que a puder criar. Assim fala-nos o autor, evocando R. Schmidt [27] :

Os Estoicos chamaram ao verbo transitivo em voz ativa – Καθηλό ρημα


ορθόν [28] – verbum rectum, verbo direito ; ao verbo transitivo em voz
passiva deram o nome de – ύπτιον – verbum supinum, verbo deitado de
costas ; ao verbo intransitivo classificavam eles como – οϋδέτερον –
verbum neutrum, verbo que não era direito, nem deitado de costas .
Essas denominações foram tomadas, ao que parece, das atitudes
diversas dos atletas ao darem e receberem golpes. (op. cit., p. 74-5)
Percebe-se que as definições de voz estão atreladas, em Julio Ribeiro, às noções de
atividade e passividade, por exemplo quando o autor menciona o étimo proveniente da analogia
dos atletas “em darem e receberem golpes”. Portanto, subjaz a ideia de que a voz é definida
segundo o processo verbal em relação ao sujeito, e segundo esse sujeito, em Julio Ribeiro e nos
Estoicos, possa ser, até mesmo em função da natureza significativa do verbo, agente, paciente,
agente e paciente ou nenhuma das três possibilidades anteriores.
Analisemos, agora, a conceituação de dois gramáticos anteriores à NGB (Eduardo Carlos
Pereira e Manuel Said Ali), e, em seguida, passaremos ao bosquejo do que alguns eminentes
gramáticos pós-NGB traçaram como conceituação da classe aqui analisada.

649. Verbo é a categoria gramatical que tem por função representar, na


frase, a vida, o movimento, a atividade dos seres. Por isso define-o Ayer
como a palavra que exprime a ação. Esta ação, porém, característica da
função verbal, pode ser concebida apenas latente ou inerente nos seres,
como acontece com os verbos NEUTROS [29] – ser, estar, viver, morrer,
sofrer ; ou formal e expressa, como acontece com os verbos ATIVOS –
lançar, andar, correr, escrever, partir, subir . (Pereira, 1956, p. 335)

Adiante, E. C. Pereira aludirá à terminologia de verbos substantivos versus adjetivos ou


atributivos, pondo-lhes, porém, a ressalva de pertencer “a sua origem na lógica da escolástica,
antes que nos fatos da linguagem, como o demonstramos (205)” (id.ib.).
Nos §§ 204 (op. cit., p. 118) e 655 a 664 (op. cit., p. 338-340), o autor tratará das
definições de voz. Importante observar-se que Pereira empreende uma classificação do verbo
quanto ao sujeito (op. cit., p. 160-163), nos §§249 a 258, classificando-os como verbos ativos,
passivos, reflexivos e neutros. Como veremos, essa distinção semântica ou relacional (estrutual,
dicotômica, pois que relaciona a significação do verbo à do sujeito) terá implicações nas
definições de voz passiva. Isso pelo fato de que o que Pereira chama de “verbo reflexivo” será o
verbo pronominal, e, segundo ele, nem sempre a circunstância de possuir pronome é suficiente
para dar-lhe um estatuto de reflexividade, pelo que ele, citando Andrés Dello, chama-os de
“quase-reflexos”, por terem “uma reflexividade quase imperceptível” (op. cit. p. 162), em verbos
essencialmente pronominais, como “Em – eu me arrependo, ele se queixa, os pronomes – me, se,
não indicam claramente uma reflexão da ação verbal sobre o respectivo sujeito, mas apenas uma
revolução do sujeito sobre si mesmo.” (id. ib.)
Ainda na esteira dos verbos pronominais, E. C. Pereira trata o verbo de maneira que, ao
que se sugere, a noção de reflexividade (e, pois, de VOZ reflexiva) não se consuma com a mera
presença do pronome reflexivo:

257. [VERBO] PRONOMINAL ACIDENTAL é o verbo ativo quando


aparece na frase acompanhado de pronome oblíquo, que claramente
determina a reflexibilidade da ação verbal, exemplos: amar-se,
envergonhar-se, louvar-se, refletir-se, assentar-se, pôr-se, etc.
Exemplos:

Junto dos rios de Babilônia nos assentamos e pusemos a


chorar, lembrando-nos de Sião.

Obs. – Cumpre distinguir, entre os verbos pronominais, os verbos


chamados RECÍPROCOS. Quando dois ou mais sujeitos praticam a
ação verbal entre si, o pronome oblíquo , que indica esta reciprocidade
de ação, e o verbo dizem-se RECÍPROCOS, exemplos: Pedro e Paulo
feriram-se reciprocamente. – Nós nos ofendemos um ao outro. –
Saudai-vos uns aos outros. – Se a estes verbos quiséssemos dar valor
reflexo, teríamos de dizer: Pedro e Paulo feriram-se a si próprios. –
nós nos ofendemos a nós mesmos , etc. Assim, os verbos reflexos e
recíprocos se confundem, e para se evitar a ambiguidade é necessário
juntarem-se ao verbo RECÍPROCO as expressões reciprocamente, um
ao outro ou uns aos outros, e ao REFLEXIVO – a si próprios, a nós
próprios, a vós mesmos . (op. cit. p. 162-163).

Autores como Gama Kury (1997, p. 38) parecem ter proposto solução exequível para o
problema, uma vez que a NGB não esposou a nomenclatura de “voz medial ou média”, pondo
todos os casos em que há pronome reflexivo junto ao verbo dentro do conceito de VOZ
REFLEXIVA, subdividindo-a de acordo com critérios de cunho semântico ou de conexão do
verbo com o sujeito a que se relaciona, isto é, utilizando-se, por assim dizer, critérios semânticos
e lógicos (cognitivos) para a subdivisão da voz reflexiva. Como veremos oportunamente, é
importante salientar, entretanto, que o mesmo Gama Kury (loc. cit.) adota a terminologia: VOZ
REFLEXIVA OU MEDIAL.
O outro autor anterior à NGB que queremos aqui trazer á discussão é Manuel Said Ali.
O autor define verbo da seguinte forma:

VERBO é a palavra que denota ação ou estado e possui


terminações variáveis com que se distingue a pessoa do discurso e o
respectivo número (singular ou plural), o tempo (atual, vindouro ou
passado) e o modo da ação ou estado (real, possível, etc.).
As diversas formas verbais dividem-se em dois grupos: finitas
ou infinitas [30] .
Chamam-se formas finitas todas aquelas que vêm sempre
referidas a alguma das três pessoas do discurso:
(eu) escrevo, (tu) escrevias, (nós) leremos, (ele) ficou, etc.
São FORMAS INIFITAS as que funcionam como substantivo
(INFINITIVO), adjetivo (PARTICÍPIO) e advérbio (GERÚNDIO).
Exemplos:
Escrever, falar; escrito, falado; escrevendo, lendo, etc.
As formas infinitas não definem a pessoa do discurso em
quem a ação ou estado se passa.
Excepcionalmente oferece o infinitivo português, a par da
forma própria ou impessoal, uma forma pessoal ou flexionada: o
escreveres tu, o falarmos nós. (Ali, 1963 [1927], p. 68)

Como veremos, Said Ali definirá “voz”, chamando o que a NGB determinaria como voz
reflexiva de voz média ou medial, incluindo, nesta, uma possibilidade de alcance da
reflexividade propriamente dita ou da reciprocidade.
Para fecharmos este capítulo, cotejaremos, ora, três gramáticos cujas obras nasceram
depois da NGB, para observarmos como ocorrem suas definições de verbo.
Os primeiros serão Celso Cunha e Lindley Cintra, que estabelecem o que chamam de
“Noções preliminares”, assim expressando-se:

1. VERBO é uma palavra de forma variável que exprime o que se


passa, isto é, um acontecimento representado no tempo:

Um dia, Aparício desapareceu para sempre.


(A. Meyer, SI, 25)

A mulher foi educada por minha mãe.


(Machado de Assis, OC, I, 343)

Como estavam velhos!


(A. Bessa Luís, S, 189)

Anoitecera já de todo.
(C. de Oliveira, AC, 19) (Cunha & Cintra, 1985, p. 367)

Em seguida, os autores apresentam um subtítulo denominado FLEXÕES DO VERBO


(id.ib.), referindo-se a elas da seguinte maneira: “O verbo apresenta as variações [31] de
NÚMERO, de PESSOA, de MODO, de TEMPO, de ASPECTO e de VOZ” (id.ib.).
Apesar de não estarem elencados entre as categorias aqui descritas, Cunha-Cintra
arrolam ASPECTOS. Esse deslocamento parece dever-se à conceituação mesma que os autores
empreendem ao aspecto:

Diferentemente das categorias do TEMPO, do MODO e da VOZ, o


ASPECTO “designa uma categoria gramatical que manifesta o ponto de
vista do qual o locutor considera a ação expressa pelo verbo” [32] . Pode
ele considerá-la como concluída, isto é, observada no seu término, no
seu resultado; ou pode considerá-la como não concluída, ou seja,
considerada na sua duração, na sua repetição (op. cit. p. 370).

Assim, Cunha-Cintra já observam, na realidade, 6 variações a que o verbo, por assim


dizer, submete-se.
No momento oportuno, um pouco abaixo, veremos como os autores conceituam a voz
reflexiva, de modo a respeitar inteiramente a já então vigência da NGB, o que, como veremos,
reduzirá uma série de conceitos e critérios, que antes eram mais bem explorados e desdobrados
sob a denominação de voz medial ou média, à chancela exclusiva, repita-se, da voz reflexiva.
O último autor que queremos trazer à discussão é o eminentíssimo Evanildo Bechara,
para quem “Verbo é a palavra que, exprimindo ação ou apresentando estado ou mudança de um
estado a outro, pode fazer indicação de pessoa, número, tempo, modo e voz”.
Mais modernamente, e em consonância com o avanço dos estudos sociolinguísticos,
pragmáticos e discursivos, muitas outras definições têm sido aventadas à classe dos verbos. São
conhecidas a de Borba (1990), a de Azeredo (2012), a de Travaglia (1981 e 1991) e a de Neves
(2000), entre outras.
Não avançaremos muito sobre obras como as de Bechara, Borba, Azeredo, Moura Neves
etc. pois estaríamos fugindo dol escopo deste livro, que é diacrônico. Deixamos as análises mais
profundas desses mestres para a PARTE II desta coleção: NOVOS RUMOS DA LINGUÍSTICA
DO SÉCULO XXI: TENTATIVA DE ELABORAÇÃO LEXEMÁTICA.
No entanto, como o objetivo deste capítulo foi a promoção de uma reflexão sobre a
diacronia gramaticográfica do verbo, com ênfase na voz reflexiva, as definições sobre verbo
parecem, até aqui, satisfatórias à consecução da breve análise que se pretende empreender de
agora em diante.
CAPÍTULO 8
VOZ REFLEXIVA OU VOZ MEDIAL?

8.1 O PROBLEMA COLOCADO ANTES DA NGB

Como parece ter ficado claro até aqui, as definições de verbo obedecem a critérios tão
variados, e que mudaram tanto ao longo dos séculos, que quaisquer conceituações acabam
encontrando guarida e justificativa segundo os parâmetros a que estiverem vinculadas.
No entanto, o que nos parece um caso a ser estudado, dentre muitos outros no que tange
à estrutura morfológica, semântica e sintática do verbo, é o que diz respeito à nomenclatura de
“voz reflexiva”.
Como sabemos, esta foi uma das três vozes que a NGB, concluída em 1958, estipulou
para os verbos.
Assim, Celso Pedro Luft, para explicar pontos relativos à então recém-instaurada NGB,
escreve sua Gramática resumida: explicação da Nomenclatura Gramatical Brasileira , e assim
define as vozes verbais, de modo a fugir de meandros semânticos que supostamente dificultem a
classificação, por calcarem-se ora na natureza do semantema do verbo em si, ora na relação
deste verbo com o sujeito, sob noções de agente ou paciente de alguma ação, que, por sua vez,
poderia ser intencional ou não intencional:
Voz é a “forma em que se apresenta o verbo para indicar a
relação que há entre ele e o seu sujeito” ( DFG [33] , s.v. VOZ) –
relação de: 1) atividade , 2) passividade , ou 3) as duas coisas
simultaneamente, ou seja, reflexividade . A voz é:
1) ativa , quando o sujeito é agente, ou pelo menos ponto de
partida da afirmação (sujeito formal, gramatical): O lobo ataca , o
lobo morre, o lobo recebe um tiro ;
2) passiva , quando o sujeito sofre a ação verbal: O lobo foi
ferido ; feriu-se o lobo . A voz passiva se apresenta de duas maneiras:
com verbo auxiliar ou com pronome apassivador. E temos (cf. PG ,
§112 [34] ):
A) Com [Auxiliar + Particípio] – passiva analítica:
a) de ação (Aux. ser ): Ele é abraçado . Foi feita a emenda .
b) de estado (Aux. estar, andar, viver ) : Ele está (anda, vive)
cercado de amigos .
c) de mudança de estado (Aux. ficar ): Ele ficou rodeado por (de)
curiosos .
d) de movimento (Aux. ir e vir ): A mala ia (vinha) carregada pelo
homem .
B) Com pronome apassivador se – passiva sintética:
Consertam-se, remendam-se (verbos transitivos diretos) calçados .

3) reflexiva , quando o sujeito é agente e paciente, ao


mesmo tempo, isto é, pratica e sofre a ação. (Luft, 1978, p. 105)

Neste ponto, Luft, mais uma vez, recorre à sistematização de Gama Kury (Kury, 1959, §
112). Por essa razão, deixaremos a discussão do problema para ser trazida, primordialmente,
pelo próprio Gama Kury, que, em outra obra, assim se expressa: “Convém notar que sob a
denominação genérica “voz reflexiva” a NGB engloba outros casos diversos [….]” (Kury, 1997,
p. 38)
Antes de partirmos ao desmembramento empreendido por Gama Kury, analisemos
algumas definições para voz (quando as há) e, mais detidamente, as explicitações que se
apresentam para o conceito de voz reflexiva.
Para essa empresa, iremos, mais uma vez, a dois autores que antecederam a NGB, de
cujas conceituações para VERBO nos valemos até aqui, quais sejam Eduardo Carlos Pereira e
Manuel Said Ali. Em seguida, voltaremos aos autores que sucederam a Nomenclatura, para, por
fim, demonstrar que a terminologia de “voz reflexiva” engloba, como salientou Gama Kury
(loc.cit.) outros casos, razão, até, pela qual este autor, como veremos, manteve a terminologia de
VOZ MEDIAL.
Com efeito, certamente no escopo de simplificar e homogeneizar a lista de
terminologias, os autores da NGB parecem ter deixado de levar em consideração que, no que
chamam de “voz reflexiva”, há fenômenos de todo alheios à reflexividade [35] . Essa pluralidade
de fenômenos, nos dois autores anteriores à NGB que analisaremos, já eram esmiuçadas, e
acabou ficando, de certa maneira, vácua após a vigência da NGB, exceto pelas discussões
epilinguísticas levadas a cabo por gramáticos que escreveram suas obras após o documento em
questão.
Por ora, basta-nos salientar uma diferença havida entre o momento que antecedeu e o que
sucedeu a publicação da NGB no que tange aos estudos sobre voz verbal: antes da NGB, a voz
não é apresentada, como vimos, no quadro da morfologia do verbo; após a Nomenclatura, a voz
passou a figurar no âmbito da categoria morfológica. No entanto, por ela ser peremptoriamente
sintática (pois diz respeito à estruturação do predicado), houve muitos pontos obscuros sobre a
categoria em questão.
Há muitas gramáticas que, por isso, não definem “voz”, e partem diretamente aos
exemplos das construções que as caracterizam. Ademais, há conceituações polissêmicas ou
homonímicas, como a de que a “voz exprime a relação entre o predicado e o sujeito”, uma vez
que outras categorias verbais, como número, pessoa e mesmo tempo, também o exprimem. O
caso parece agravar-se quando se chega à análise da voz que a NGB chamou de “voz reflexiva”,
pelas razões que procuraremos perquirir abaixo.
Antes da NGB, Eduardo Carlos Pereira, ao tratar de vozes do verbo, restringe-se,
primeiramente, à demonstração por exemplos:

204. A ação verbal pode ser praticada pelo sujeito , como O soldado
feriu o preso ; ou recebida por ele, como: O preso foi ferido pelo
soldado ; ou, ainda, praticada e recebida pelo mesmo sujeito, como: - O
soldado feriu-se . No primeiro caso, o sujeito é o AGENTE da ação
verbal , e o verbo se diz estar na VOZ ATIVA; no segundo, o sujeito é o
RECIPIENTE ou PACIENTE da ação verbal , e o verbo se diz estar na
VOZ PASSIVA; no terceiro caso, o sujeito é, ao mesmo tempo, O
AGENTE e o PACIENTE da ação verbal , e o verbo se diz estar na
VOZ MÉDIA OU REFLEXA. (Pereira, 1956, p. 18)

Só em seguida, ele esboça uma definição para voz, que atrela o verbo, em sua expressão,
em relação ao sujeito:

O VERBO, pois, em sua expressão característica preeminente, assume


três aspectos fundamentais em relação a seu sujeito; as três vozes – a
ATIVA, a PASSIVA e a REFLEXA, são três maneiras em que podemos
encarar o enunciado verbal em relação à pessoa ou coisa a que é
atribuído. (id. ib.)

Embora Eduardo Carlos Pereira ponha como sinônimo “voz reflexa e medial”, o que
Said Ali não faz (como veremos logo abaixo), ele, ora em consonância parcial com Said Ali,
classifica não a voz, mas o verbo de reflexivo, quando assim se manifesta:

253. Verbo reflexivo é o verbo ativo quando exprime umja ação


praticada e recebida pelo próprio sujeito, que é, por isso,
simultaneamente AGENTE e PACIENTE, exemplos: Eu me firo, tu te
feres, ele se fere – ferir-se. (Pereira, 1956, p. 161)

Abaixo, entretanto, ele volta a divorciar-se da visão de Said Ali ao afirmar que “Não há
igualmente forma especial para o reflexivo, e tal verbo outra coisa não é senão a voz reflexa dos
verbos ativos-transitivos”. (id.ib.)

Said Ali, por exemplo, sem definir o conceito amplo de voz, explicita cada uma das três,
e, no caso que nos interessa, assim se manifesta:

Chama-se voz média ou medial ao verbo conjugado com o


pronome reflexivo. Emprega-se com significações diferentes:

1º Ação rigorosamente reflexa, que o sujeito, em vez de dirigir


para algum ente exterior, pratica sobre si mesmo:

Pedro matou-se. (Ali, 1964, p. 96)

Observamos que, neste caso, que Said Ali chama de 1 º, ocorre, rigorosamente, um
sujeito consciente, intencional ou não, que age sobre si mesmo, recebendo, portanto, o resultado
da própria ação.

2 º Estado ou condição nova, equivalendo a forma reflexa à


combinação de ficar com particípio do pretérito:

Renato feriu-se nos espinhos [= ficou ferido].


O menino afogou-se no rio [= ficou afogado]
O gelo derreteu-se [= ficou derretido]
Carlos zangou-se com o irmão [=ficou zangado] (Ali, id.ib.)

Neste 2 º caso, percebe-se que se agrupam, para Said Ali, tanto os casos em que o sujeito
não dispunha necessariamente de consciência e intencionalidade sobre a ação, como,
principalmente, o matiz semântico de que a ação que o sujeito sofre (paciente) não foi por ele
empreendida, não podendo ser este mesmo sujeito chamado, portanto, de agente. É o caso das
frases cujos sujeitos são Renato (feriu-se nos espinhos) e O menino (afogou-se).
Said Ali arrola, também neste caso, o que se pode insinuar como o caso dos seres
inanimados: O gelo (derreteu-se). Por fim, parece que ele arrola um dos verbos essencialmente
pronominais com sujeito animado (zangou-se), pelo simples fato de, no caso, esta frase poder
converter-se no paradigma por ele proposto como modelar, qual seja a substituição do verbo com
o pronome reflexivo pela perífrase ficar + particípio: Carlos zangou-se com o irmão [= ficou
zangado]. Este último caso, como veremos, só não poderá aparecer no 4 º caso, que veremos
abaixo, pelo fato de que, nos exemplos do 4 º caso, não se pode recorrer á substituição pela
perífrase citada, embora, em ambos, o sujeito apareça “vivamente afetado”.
3 º Ato material ou movimento que o sujeito executa em sua
própria pessoa, idêntico ao que executa em coisas ou outras pessoas,
sem haver propriamente a ideia de direção reflexa como no 1 º caso:

Afastei-me do fogo [à semelhança de Afastei a criança, o livro


do fogo].
Ele arremessou-se sobre o inimigo [à semelhança de:
arremessou uma pedra].
A mãe deitou-se na cama [à semelhança de deitou a criança na
cama].
Sentamo-nos no sofá (Ali, id.ib.).

Aqui, Said Ali parece arrolar, antes de tudo (embora não sejam seus primeiros
exemplos), verbos acidentalmente pronominais, com parte expletiva, isto é, verbos que, com
pronome reflexivo ou sem ele, expressarão a ideia de que o sujeito praticou e sofreu a ação. São
os casos de A mãe deitou -se na cama (cp. = A mãe deitou na cama ) e Sentamo -nos no sofá (cp.
= Sentamos no sofá).
Dos dois outros exemplos (os dois primeiros), ainda deste caso 3º , parece que a única
diferença substancial em relação ao 1º caso é o fato de que, neste 3º, a ação praticada pelo
sujeito precisa ser praticada por ele (que, com efeito, ao que se sugere, precisa ser um ente
animado) integralmente, ou seja, por seu ser integral, por todo o seu corpo.
Assim, a diferença que parece haver entre matar-se , de um lado, e afastar-se/arremessar-
se , de outro, nem é o fato de que afastar-se e arremessar-se poderiam dizer respeito a outra coisa
ou pessoa, pois matar também poderia (cf. Pedro matou o réu). A diferença, como dizíamos,
parece ser a de que, em matar-se , o ato pode ter sido desferido por uma parte do corpo (por
exemplo, a mão), ao passo que, em afastar-se/arremessar-se , somente o corpo todo poderia ter
praticado a ação que, portanto, recai sobre esse mesmo corpo todo. Este parece, pois, ter sido o
critério adotado por Said Ali para separar os semantemas em questão em casos distintos (1º e 3º).
Ousaríamos dizer que Said Ali, pelo que sugere seu parâmetro, arrolaria casos como A
menina se penteava deveriam ser colocados, a priori , no 1º caso. No entanto, como veremos
abaixo, ele abre um espaço para elencar os verbos que chama de “reflexivos”, casos em que se
poderia adjungir as expressões a si mesmo, a si mesmos, a si mesma, a si mesmas . Com isso, a
lacuna para o 1º caso parece preencher-se tão somente com a (parcimoniosa) constatação de que
o ato praticado pelo sujeito agente obteve uma consequência irreversível; muito embora essa
constatação, até pela exiguidade do único exemplo dado, pareça demasiado especiosa.

4 º Ato em que o sujeito aparece vivamente afetado:

Ufano-me de ser brasileiro.


Todos se queixaram da grave injustiça.
Colombo atreveu-se a empreender viagem tão arriscada. (Ali,
id.ib.)

O que se precebe aqui são os verbos essencialmente pronominais, de que fazem parte,
entre outros, suicidar-se (embora a simples fossilização do pronome não o afaste
semanticamente do exemplo dado no 1 º caso), esgueirar-se, arrepender-se, condoer-se, abster-
se, dignar-se, indignar-se .
Com efeito, Said Ali dirá, abaixo: “OBSERVAÇÃO. – Verbos que sempre se usam na
voz média, como atrever-se, queixar-se, denominam-se VERBOS essencialmente
PRONOMINAIS” (Ali, id. ib.).
Ainda sobre o 4 º caso, Said Ali arremata dizendo:

Não há regra segundo o qual se possa determinar quais os


verbos que devem entrar nesta última categoria. Muitos verbos
denotadores de atos em que o sujeito é vivamente afetado dizem-se sob
a forma ativa. É tudo questão de tradição e uso. Dizemos simplesmente
ousar , ao passo que seu sinônimo atrever-se não dispensa o pronome
reflexivo.
A forma medial serve finalmente nos casos em que há dois ou
mais sujeitos, para denotar a ação recíproca. Diz-se então que o verbo é
RECÍPROCO. Havendo necessidade de o distinguir do verbo reflexivo,
ajuntam-se-lhe um ao outro, uns aos outros . O verbo reflexivo por sua
vez se caracteriza, acrescentando-lhe a nós mesmos, a vós mesmos, a si
mesmos .

Honramo-nos um ao outro ou reciprocamente.


Honramo-nos a nós mesmos .
Estimam-se uns aos outros .
Estimam-se a si mesmos . (Ali, id. ib.)

Da conclusão de Said Ali, e após lido tudo o que ele tece sobre a voz medial , percebe-se
que o critério primordial é em relação à significação do verbo (critério semântico), à sua
interferência sobre o sujeito, incluindo a potência do resultado adquirido (critério lógico ou
cognitivista), à possibilidade de excluir-se o pronome reflexivo sem perda da noção de
reflexividade (critério morfossemântico). Ou seja, de uma forma ou de outra, a análise precisa
passar, antes de tudo, pela natureza léxica do verbo e, em alguns casos, é preciso conectar-se
essa natureza léxica à do próprio sujeito (se é ser animado ou inanimado, se a consciência e a
intencionalidade são imprescindíveis, sugeridas ou improváveis).
Perceba-se, por fim, que, no único momento em que Said Ali usa o termo “reflexivo”, ele
faz menção ao verbo , e não à voz (q.v. 4º caso). Isso sugere que, para ele, a reflexividade não é
condição sine qua non para o que a NGB viria a chamar, exatamente, de voz reflexiva . Tratar-
se-ia, para o gramático em tela, apenas de uma possibilidade da voz medial .
Para arrematarmos a questão, parece-nos importante voltarmos, antes da pesquisa sobre o
que dizem os autores pós-NGB, às judiciosas palavras de Eduardo Carlos Pereira sobre a questão
da voz média ou reflexa em cotejo com os verbos reflexivos, numa comparação que vai
diacronicamente ao latim e ao grego, lançando luzes sobre a questão, mesmo do ponto de vista
sincrônico:

Obs. – O português, como o latim, não possui forma simples ou


sintética para os verbos REFLEXIVOS. O GREGO POSSUI UMA
FORMA ESPECIAL, CHAMADA VOZ MÉDIA OU REFLEXA, QUE
POUCO SE DIFERENCIA DA FORMA PASSIVA. No português,
como no latim, para indicarmos o sentido reflexo (reflectere = dobrar)
em que a ação verbal como que se dobra sobre o próprio sujeito que a
pratica, valemo-nos de um pronome oblíquo da mesma pessoa que o
sujeito.
Consideradas em sua essência – diz Bournouf – a média e a
passiva têm um caráter comum: é exprimirem que a ação recai sobre o
sujeito. Há, porém, entre elas, a seguinte diferença: a média indica uma
ação feita pelo próprio sujeito, e a passiva uma ação feita por outro.
Não é, pois, de admirar que se confundam muitas vezes gradações tão
próximas. (id.ib.)

Com estudos mais aprofundados sobre a natureza da voz, constatou-se que, na voz
reflexiva, o sujeito é sempre caracterizado, de fato, como paciente. Ele até pode cumprir a
função de agente , e em alguns casos o faz, mas ele deve, inevitavelmente (como se verá nos
casos logo abaixo, analisados por Said Ali, e nos gramáticos posteriores à NGB), cumprir a
função de paciente . Portanto, o papel de paciente é sempre o do sujeito, e, só ocasionalmente,
esse papel também pode ser o de agente. Exemplos:

A mãe se emociona com a carta do filho – o sujeito (“a mãe”)


é apenas paciente, mas a voz é, pela NGB, reflexiva.
A menina se penteava – o sujeito é agente e paciente, e a voz,
também pela NGB, é a mesma reflexiva. [36]
Assim, a voz parece, em traços muito panorâmicos,

constituir-se como a categoria responsável pela caracterização do papel


semântico desempenhado pelo sujeito: origem, alvo, origem e alvo.
Para os funcionalistas, há os dois extremos aludidos: origem e alvo de
ação atribuível ao sujeito. Entre esses extremos, há uma gradação um
gradiente. Essa é uma das razões por que, às vezes, torna-se difícil uma
afirmação exata sobre uma das três vozes apontadas pela NGB como
classificação satisfatória para o enunciado que se tenha. [37]

8.2 A QUESTÃO DEPOIS DA NGB


Passemos, agora, às conceituações de voz reflexiva dadas por alguns dos principais
gramáticos pós-NGB. Antes do mais, quero dizer que as tentativas de sistematização e
estruturação do conceito de “voz”, nos compêndios escolares, de um modo geral, não foram
significativas após a publicação da Nomenclatura.
Diante de todas as lacunas que foram acima apontadas, antes da aludida publicação, que,
como ficou dito, não foram investigadas cabalmente pela maioria dos gramaticógrafos, será fácil
perceber a flutuação de critérios para a definição dessas vozes, e, até, a ausência, como aliás já
se alertou, de definições para elas, ficando alguns gramáticos com a simples exposição de
exemplos sintáticos que constatam, empriricamente, sem teoria, a voz que se quer descrever.
No fim, seguindo a esteira de Gama Kury (1997), que Luft (1978) também seguiu ao
explicar a NGB tão logo ela veio à luz, e a proposta de síntese de Azeredo (2010), mostraremos
que os esquemas empreendidos por eles vêm, de certa maneira, a suprir a lacuna que o
reducionismo do termo “voz reflexiva” encerrou. Entretanto, queremos dizer que houve autores
outros que contribuíram efetivamente, com suas observações e suas pesquisas atiladas, com o
desenvolvimento da conceituação de voz (sobretudo a da voz reflexiva), que pretendemos, aqui,
levar a cabo.
Proporei que os conceitos de “agente” e “paciente”, indispensáveis à conceituação, ao
menos como se vê atualmente nas gramáticas, de “voz”, podem constituir casos de
gramaticalização. Escolhi a voz reflexiva como objeto empírico maior desta análise exatamente
pelo fato de ela ser, nos compêndios, a que reúne, a um só tempo, o sujeito como “agente” e
“paciente” da “ação” verbal (termos que serão desdobrados).
Sabemos que o conceito de voz se distingue entre autores. Basicamente, privilegiam a
significação (agentividade, passividade, reflexividade, reciprocidade), a forma (como o verbo se
comporta sintaticamente para expor as vozes) e, por fim, o tratamento do processo verbal em
relação ao sujeito. Não raro, mais de um desses critérios constitui a base da definição, e, também
não raro, nenhum deles é adotado, de modo que as vozes são expostas, uma a uma, sem uma
definição epistemológica que as englobe, com meros exemplos e algumas asserções, geralmente
semânticas (e algumas vezes sintático-semânticas ou até morfossemânticas, sempre mais raras),
sobre a maneira como o verbo se conecta ao sujeito do ponto de vista de 1) ação; 2) ponto de
partida da ação; 3) ponto de chegada da ação.
Um dos raros autores contemporâneos a enfrentar cabalmente o problema da
epistemologia da voz, como um instrumento gramatical (esta é a razão por que propugnarei, à
frente, que se trata de um caso de gramaticalização, pois ser instrumento gramatical, proveniente
do discurso, é constatação para o processo de gramaticalização), é José Carlos Azeredo, assim
criando a definição epistêmica de “voz”, que ele, por sinal, trata em capítulo muito expressiva e
cientificamente intitulado “12.1- Vozes do verbo e questões correlatas ” (Azeredo, 2011):

A voz é expressa por um sistema de recursos sintáticos que


definem certos padrões formais do sintagma verbal. Distinguem-se
tradicionalmente três vozes – ativa, passiva e reflexiva –, que se
exemplificam típica e respectivamente nas frases

- Laura penteia Clarisse


- Clarisse é penteada por Laura
e
- Laura se penteia (Azeredo, 2011, p. Grifei)

É de se notar, como será explicitado abaixo, que Azeredo (2011), assim como Gama
Kury (1997), prefere a denominação de voz média, e não reflexiva. Outro teórico
contemporâneo, Luiz Carlos Travaglia (Travaglia, 2011), adotará, como também será mostrado,
a possibilidade de 4 vozes: ativa, passiva, reflexiva e média.
Voltando à análise empreendida por Azeredo (2011), o autor passa a judiciosas
constatações teóricas e empíricas sobre o problema (semântico) de que o sujeito deva ser
encarado como alguém ou algo que “pratica” a ação, sendo, pois, sempre que isso acontece,
supostamente, um “agente”.
Assim, elenca três fatores segundo os quais as palavras se distribuem na construção das
orações:

1) as classes a que pertencem em virtude de seu enquadramento


sintagmático (cf. 6.9.5.1.3);
2) os lugares a ela destinados pela hierarquia informacional interna
dos enunciados e
3) os significados relacionais que, devido a essa hierarquia, deverão
exprimir (cf. 6.5.4). (Azeredo, 2011, p.)

E conclui: “Tais possibilidades posicionais são em parte previstas pela categoria sintática
da voz conforme definimos em 12.1” (Azeredo, id.ib. Grifei.).
Como se percebe, Azeredo não abre mão da preocupação formal, estruturalista (no fato
número 1, acima, ao tratar de enquadramento sintagmático), nem das questões semânticas,
pragmáticas e discursivas (no fator número 2), nem, tampouco, da questão peremptoriamente
gramatical, qual seja a de elemento que busca descrever as categorias relacionais does elementos
do discurso (no fator número 3), e, com a conjugação desses 3 fatores, conclui que a voz é uma
categoria sintática , por ater-se à sua descrição dentro do plano da gramática ou da
gramaticologia.
Adiante, passa a criteriosa observação semântica sobre os verbos e “os significados
relacionais com o sujeito” (12.3, cf. Azeredo, 2011, id.ib.). Como tratarei dessa questão adiante,
não pretendo, por ora, me prolongar na importante discussão empreendida pelo gramático em
questão, uma vez que, repita-se, ela será feita adiante.
À frente, Azeredo coteja as vozes passiva e ativa, enfatizando a perspectiva do
enunciador (o ponto de vista) e a capacidade de geração de inferência recíproca de uma dessas
vozes quando se enuncia a outra.
Passemos, agora, às conceituações de voz reflexiva empreendidas após a NGB por três
grandes expoentes da gramaticografia portuguesa: Celso Cunha, Lindley Cintra e Evanildo
Bechara. Em seguida a essas definições, exporemos as sínteses que nos parecem mais adequadas
à problemática da voz reflexiva da NGB, esquematizadas por Azeredo (2011) e Gama Kury
(1997).
Para Bechara,

c) REFLEXIVA: forma verbal que indica que a pessoa [38] é,


ao mesmo tempo, agente e paciente da ação verbal, formada de verbo
seguido de pronome oblíquo de pessoa igual à que o verbo se refere:

eu me visto, tu te feriste, ele se enfeita.

O verbo empregado na voz reflexiva diz-se pronominal.

OBSERVAÇÕES:
1ª) Com verbos como atrever-se, indignar-se, queixar-se,
ufanar-se, admirar-se , não se percebe mais a ação rigorosamente
reflexa, mas a indicação de que a pessoa está vivamente afetada [39] .
Com os verbos de movimento ou atitudes da pessoa “em relação ao seu
próprio corpo” como ir-se, partir-se e outros como servir-se , onde o
pronome oblíquo empresta maior expressividade à frase, também não
se expressa a ação reflexa. Alguns gramáticos chamam o pronome
oblíquo, nestas últimas circunstâncias, pronome de realce.
2ª) A voz reflexiva, no plural, pode assumir sentido de
reciprocidade:

Eles se odeiam (isto é, um odeia o outro ).


(Bechara, 1997, p. 104-5)

Observamos que Bechara prevê a possibilidade de, naquilo que a NGB chamou de voz
reflexiva, não haver, por critérios semânticos, nenhuma noção de reflexividade propriamente
dita.
Já para Cunha-Cintra, a conceituação para voz reflexiva parece ser explicitamente formal
(mais especificamente morfológica) e apenas subjacentemente semântica:

Voz reflexiva: Exprime-se a VOZ REFLEXIVA juntando-se às


formas verbais da voz ativa os pronomes me, te, se, nos, vos e se
(singular e plural):

Eu me feri [= a mim mesmo]


Tu te feriste [= a ti mesmo]
Ele se feriu [= a si mesmo]
Nós nos ferimos [= a nós mesmos]
Vós vos feristes [= a vós mesmos]
Eles se feriram [= a si mesmos] (Cintra & Cunha, 1989, p,
373)

Dessa feita, o que se compreende da lacônica demonstração dos autores é que eles só
consideram a voz reflexiva aquela em que, de fato, haja uma pessoa que seja agente da ação
verbal (pratique-a) e paciente dessa mesma ação/consequência (receba-a). Parece-nos, até, muito
coerente que, pela definição amplamente exposta de que “na voz reflexiva o sujeito seja agente e
paciente da mesma ação verbal”, Cunha-Cintra, embora nem tenham definido a voz reflexiva por
esse critério semântico e relacional, hajam optado exclusivamente por exemplos em que o sujeito
cumpria os pré-requisitos, por assim dizer, para a consecução da voz reflexiva (ou reflexiva
propriamente dita , para muitos autores, como próprio Gama Kury, abaixo analisado. Cf.Kury,
1997).
No entanto, os mesmos autores, adiante, retomam a questão da voz reflexiva,
apresentando-lhe, ora, um critério antes de tudo morfológico (presença do pronome reflexivo) e
sintático (com função do objeto). Assim como Bechara o fizera acima (q.v.), Cunha-Cintra
também parecem, num primeiro momento, concentrar exclusivamente em pessoas a
possibilidade de a voz reflexiva ocorrer, pelo que se retira de sua conceituação prévia; no
entanto, com os exemplos, vemos que essa constatação não se consubstancia. Dizem eles:

VOZ REFLEXIVA

Na VOZ REFLEXIVA o verbo vem acompanhado de um


pronome oblíquo que lhe serve de objeto direto ou, mais raramente, de
objeto indireto e representa a mesma pessoa que o sujeito. Assim:

Eu me lavo (ou lavo-me ).


Ele se deu o trabalho de vir a minha casa (ou deu-se ).

A próclise é preferida no Brasil, a ênclise em Portugal.

O verbo reflexivo pode indicar também a reciprocidade, isto é,


uma ação mútua de dois ou mais sujeitos:

Pedro, Paulo e eu nos estimamos ( estimamo-nos ) [=


mutuamente].
Os dias se sucedem ( sucedem-se ) [=um ao outro] calmos.
(Cintra e Cunha, 1989, p. 395)

Em seguida, Cunha-Cintra estabelecem a importante distinção entre verbos reflexivos e


verbos pronominais. Semelhante distinção será agasalhada pelas teorias de Azeredo e Gama
Kury, de cuja proposta de síntese, inclusive terminológica, procuraremos nos valer. Assim se
expressam Cunha-Cintra:

VERBO REFLEXIVO E VERBO PRONOMINAL

Muitos verbos são conjugados com pronomes átonos, à


semelhança dos reflexivos, sem que tenham exatamente o seu sentido.
São os chamados VERBOS PRONOMINAIS, de que podemos
distinguir dois tipos:
a) os que só se usam na forma pronominal:
apiedar-se queixar-se
condoer-se suicidar-se

b) os que se usam também na forma simples, mas esta difere ou pelo


sentido ou pela construção da forma pronominal, como, por exemplo:
debater [=discutir] enganar alguém
debater-se[=agitar-se] enganar-se com alguém

Observação:

Distingue-se, na prática, o verbo reflexivo do verbo pronominal porque


ao primeiro se podem acrescentar, conforme a pessoa [40] , as
expressões a mim mesmo, a ti mesmo, a si mesmo , etc. Quando o
reflexivo tem valor recíproco, as expressões reforçativas passam a ser
um ao outro, reciprocamente, mutuamente , etc.
Assim:

Feri-me a mim mesmo.


Amavam-se um ao outro. (Cintra e Cunha, 1989, p.395-396)

Antes de partirmos às propostas de Azeredo e Gama Kury, vale a pena trazer as palavras
de Travaglia sobre as vozes e possibilidades de abordagem desse trabalho na realização da
prática de ensino/aprendizado em sala de aula:

7) Voz

Trabalhar a voz mostrando basicamente:

a) que é a categoria verbal através da qual se marca a relação entre o


verbo e seu
sujeito, que pode ser de atividade, passividade ou ambas;

b) que, conforme a teoria, se pode considerar a existência de até quatro


vozes: a ativa,
a passiva (analítica e sintética), a reflexiva (simples e recíproca) e a medial;

c) os recursos de expressão da voz no Português contemporâneo do


Brasil
(sobretudo verbos auxiliares). Aqui pode entrar a questão da baixa produtividade
ou inexistência da chamada voz passiva sintética, com as implicações
significativas e de concordância que isso acarreta;

d) a existência de passividade do sujeito sem haver voz passiva;

e) as diferenças significativas de dizer a “mesma coisa”, usando uma


voz ou outra.
Por exemplo, usando a voz ativa ou passiva. (Travaglia, 2011, p. 167)

Da compreensão dos itens que Travaglia propõe acima que se trabalhem em sala,
considero importante tecer alguns comentários. O primeiro, diz respeito à constatação (presente
na letra a) de que o autor privilegia a definição das vozes, como “categoria verbal” (q.v.) pela
sua característica relacional entre o sujeito e o verbo, e que essa característica é de cunho, antes,
semântico: “atividade, passividade ou ambas” (q.v.).
Voltaremos a tocar no ponto de agente/agentividade/atividade; paciente/passividade e
suas implicações sobre a conceituação das vozes, principalmente na da que a NGB chamou “voz
reflexiva”, por ser a que, em tese, não pode prescindir de um sujeito simultaneamente agente e
paciente.
Na letra b) de sua proposta de plano de aulas ou discussões, Travaglia aventa a
possibilidade de haver outras teorias (cf. “conforme a teoria”, q.v.) que possibilitem a definição
das vozes, e que, por algumas delas, o estudo não cessa na voz reflexiva, mas na medial. Repare-
se que, para o autor, a reflexiva (embora aqui não haja exemplo, mas apenas a explicitação pelos
adjuntos adnominais) parece encerrar-se no caráter “simples” (ao que tudo indica, o que Gama
Kury, 1997, chamará de “propriamente dita”) e “recíproca”. Parece-nos, pois, que tudo o que não
encerra ideia de ação praticada pelo sujeito (o que ele chama em a) de “atividade”), de ação
recebida pelo sujeito (o que ele chama em a) de “passividade”) e, finalmente, de ação praticada e
recebida pelos sujeitos cada um para si mesmo , ou pelos sujeitos uns aos outros
(respectivamente a voz reflexiva simples e a recíproca), deve ser colocado no estatuto de “voz
medial”.
As letras d) e e) serão discutidas.
Azeredo, como demonstrei no início deste subitem, defende a definição antes de tudo
formal para o conceito de voz: “A voz é expressa por um sistema de recursos sintáticos que
definem certos padrões formais do sintagma verbal” (Azeredo, 2011, p. Grifei. q.v.). Isso está em
consonância com o método Estruturalista de fatura gramatical (ir-se da forma à significação e
não o contrário). Assim, Azeredo não descarta a perquirição semântica, mas não parte dela para
achar formas que porventura lhe convenham.
É desse modo que, ao iniciar a discussão sobre a derradeira das vozes (chamo
“derradeira” por ser a que necessita da simultaneidade de um sujeito agente e paciente, ao menos
num primeiro nível de análise, que se mostrará, como veremos, relativamente falho), Azeredo
propõe um trinômio entre pronome reflexivo / verbo pronominal / voz média. Cf. “12.6 Pronome
reflexivo, verbo pronominal e voz média ” (Azeredo, 2011, p. 270).

Com isso ele articula, como será explicitado abaixo, antes de qualquer critério, o critério
formal (morfológico), qual seja o da necessidade de presença do pronome reflexivo . Com efeito,
nenhum gramático relutaria em aceitar que a condição propedêutica (necessária, mas não
suficiente) para a existência da voz reflexiva é a existência de um pronome reflexivo. Talvez,
até, seja este um dos motivos da determinação terminológica “voz reflexiva ”, que poderia, como
que por metonímia, ser oriunda do fato de que não pode ocorrer sem o “pronome reflexivo ”,
muito embora a noção de reflexividade (sobretudo no que tange, como veremos, à questão de um
sujeito que tenha de deflagrar a ação, o que nem sempre ocorre na “voz reflexiva”) não venha
sempre a se consolidar.
Para além desse, vai a um semântico-discursivo, e aponta o impasse intrínseco à
afirmação de que a voz reflexiva é aquela em que o sujeito é agente/paciente da ação verbal,
quando estabelece distinções entre construções pronominais [41] que podem ser, por exemplo,
com verbos de “sentimento” e de “ação”. Para ele, quando ocorrem verbos de sentimento em
construções pronominais, o sujeito do que se chamaria “voz reflexiva” não é agente, mas apenas
paciente do processo verbal. Ele exemplifica, com muita propriedade, verbos como alegrar-se,
“indignar-se, desesperar-se, aborrecer-se, entusiasmar-se, enfurecer-se, entediar-se ” (Azeredo,
id.ib.).
Por fim, ao estabelecer a terminologia “voz média”, em vez de “voz reflexiva”, ele o
justifica da seguinte feita:

A flutuação do papel semântico do sujeito nas construções ditas


pronominais gera grande controvérsia em torno do caráter da chamada
voz reflexiva. De fato, somente numa parte dos casos – e
exclusivamente com os verbos de ação – a construção pronominal
reflexiva contém um sujeito que acumula os papéis de agente e ser
afetado do processo verbal, dando fundamento à classificação de voz
como reflexiva. (Azeredo, id.ib.).

Na conclusão deste trabalho, reitero-me, percebo que esses critérios de “agente” e


“paciente”, e suas implicações nas vozes”, marcam casos de gramaticalização. Isso porque,
como também será mais bem exposto, trata-se de itens que deslizam do estatuto cognitivo
([+abstrato]) para o estatuto gramatical ([-abstrato]), estando, por ora, num gradiente em que,
ainda, não se podem determinar os limites que dariam por concluído o processo de
gramaticalização que aventarei.
Voltando à análise de Azeredo, quando ele percebe a impossibilidade de haver, de fato,
reflexividade, pelo simples uso de verbos pronominais (isto é, quando percebe a impossibilidade
de se juntarem os critérios formal e semântico-discursivo), propõe, muito lucidamente, que

Nos demais casos, em que o sujeito não deflagra o processo – e


portanto não é agente – a construção pronominal realiza o que muitos
linguistas chamam de “voz média”. Esta designação tem a vantagem de
caracterizar a construção pronominal [42] como um meio termo entre a
voz ativa e a voz passiva [43] , e será adotada aqui como um rótulo mais
amplo do que “voz reflexiva”. Esta passa a ser vista como uma
variedade de voz média. (Azeredo, id.ib.)

Em seguida, para dotar de empiria sua conceituação, Azeredo a comprova:

São exemplos de voz média:


- Ela não se incomoda com nada
- As crianças se divertem com as piruetas do macaco
- Ele se embaraçou nas próprias palavras
- As nuvens se desfazem rapidamente
- A praia estende-se por vários quilômetros
- A cortina rasgou-se de velha. (Azeredo, id. ib)

Em seguida, Azeredo esmiúça os verbos pronominais (“12.7 – Verbos pronominais”), e


demonstra que se trata de formas cristalizadas.

Azeredo assim se expressa:

12.9 Uma proposta de síntese


A classe dos verbos pronominais representa a cristalização de estruturas
originalmente constituídas como formações de voz média. Descrições
tradicionais chamam ao pronome que as integra “parte integrante do
verbo”. Como essa forma é idêntica à dos pronomes reflexivos que se
agregam ao verbo em virtude de regras sintáticas, consideraremos as
construções integradas pelos verbos pronominais um subtipo das
construções de voz média em geral. (Azeredo, 2008, p.48)

Em seguida, estabelece uma proposta distribucional de síntese em que desdobra 10 tipos


de construções internas à voz média, subdivididas em 2 tipos de voz média: aquelas

em que houve ou tende a haver cristalização estrutural e construções


explicáveis pela atuação de regras sintáticas do sistema de vozes. As
primeiras compreendem os verbos discriminados abaixo nos itens 1 e 2.
As demais abrangem a reflexividade (itens 3, 4, 5, 6 e 7), a
reciprocidade (item 8) e a ergatividade (itens 9 e 10). (Azeredo, id.ib.)

Essa distribuição proposta por Azeredo vem, muito satisfatoriamente, a explicar a


tentativa de análise que empreendemos, acima, quando Said Ali (1956), antes da NGB, já
organizava a voz medial em 4 casos (q.v.), por critérios que, apenas pela observação dos
exemplos de orações, tentamos esboçar.
Apresentaremos, abaixo, os 10 casos em que Azeredo explicita a natureza estritamente
lexicalizada (fossilizada) dos verbos (itens 1 e 2, como vimos) e as demais pesquisas de cunho
semântico-sintática que ele leva atermo. Usaremos, para cada um dos 10 casos, apenas um
exemplo:

1. Verbos exclusivamente pronominais. São combinações de


verbo e pronome para constituir uma unidade léxica:
- Eles queixavam-se do calor
[....]
2. Verbos que adquirem status lexical novo em virtude da
pronominalização. Distinguem-se dois subgrupos:
a) há perda de vínculo semântico entre a forma pronominal e a
forma sem pronome:
- Comportou-se como um verdadeiro líder
[....]
b) resta algum vínculo semântico entre a forma pronominal e a
forma sem pronome:
[....]
- Vai se apresentar esta noite abrindo o festival
[....]
3. Verbos que denotam movimento corporal sem translação:
-Ele se sacode todo quando ri
[....]
4. Verbos que denotam movimento corporal translacional:
-Afastem-se da fogueira
[....]
5- Verbos ativos que envolvem ou afetam fisicamente o
respectivo sujeito (com ou sem controle do processo). Distinguem-se
dois subgrupos:
a) o verbo expressa apenas o processo:
- Não parava de se coçar
[....]
b) o verbo expressa processo ou resultado:
- Passou pela cerca e arranhou-se nos espinhos.
[....]

6. Verbos que denotam “cuidados” pessoais (o sujeito controla


a execução e os efeitos da ação):
-Calçou-se depressa
[....]
7. Verbos de atitude:
- Quando lhe perguntaram pelo dinheiro, ele se calou
[....]
8. Construções de reciprocidade:
- O mestre e seu discípulo se respeitavam
[....]
9. Verbos processuais que denotam mudança de estado físico:
-Alguns copos se quebraram no transporte
[....]
10. Verbos processuais que denotam mudança de estado
psicológico:
Assustava-se com a buzina dos automóveis
[....] (Azeredo, 2011, p. 270-273)

A proposta de síntese acima efetuada por Azeredo nos parece a que mais amplamente
contempla e açambarca a questão da voz reflexiva, sendo esta, para ele, como vimos, um subtipo
da voz medial.
Partiremos, agora, à sistematização efetivada por Gama Kury, pois que, embora sem os
rigores teóricos e metodológicos que colacionamos da visão de Azeredo, é, entretanto, bastante
didática. Em seguida, no capítulo derradeiro deste trabalho, reiteraremos e arremataremos alguns
casos que pareceram ou ficar suspensos ou carecer, ainda, de desdobramentos, a fim de que se
demonstre, ao cabo, que o processo de gramaticalização pode ser considerado como hipótese
verossímil para a explicação de tantos e tão complexos elementos que se levam em conta quando
da análise das vozes verbais, em especial da “voz reflexiva” (cf. NGB).
Começa Adriano da Gama Kury:

•Voz reflexiva ou medial . [44]

53. Quando a ação denotada por um verbo transitivo direto é


simultaneamente exercida e recebida pelo mesmo ser, diz-se que o
verbo, então acompanhado de pronome, está na voz medial ou
reflexiva:
“ Narciso contemplava- se na água.”
[O objeto direto de contemplava (o pronome reflexivo se )
representa a mesma pessoa do sujeito ( Narciso ). [45] ]
54. Convém notar que sob a denominação genérica de “voz
reflexiva” a NGB engloba outros casos diversos, que podemos assim
sistematizar:

1) Voz reflexiva propriamente dita : aparece exclusivamente com verbos


transitivos diretos, que têm como objeto direto um pronome, de
qualquer pessoa gramatical, que representa o próprio sujeito: “Eu me
penteio, tu te penteias, ele se penteia, nós nos penteamos”, etc. [....] Na
prática se reconhece que o verbo está na voz reflexiva quando se pode
acrescentar a expressão de reforço a si mesmo (e flexões): “Ela se
penteia a si mesma .” (Kury, 1997, p. 38)

Observamos, da análise deste primeiro caso, em cotejo com as que faremos a seguir, que,
para Gama Kury, a voz reflexiva seria, tão só, a que, de fato, há um sujeito que exerce e recebe a
mesma ação. Sua sistematização prossegue, adotando, doravante, exclusivamente o termo “voz
medial” para as suas descrições.

2) Voz medial recíproca : o verbo é igualmente transitivo direto, tem


sujeito simples no plural (ou composto, de mais de um núcleo), e a ação
expressa se distribui no pronome reflexivo objeto, também da mesma
pessoa:

“Os desafetos cumprimentaram-se publicamente.”


“Carlos e Joaninha amavam-se .” (Kury, 1997, p. 39)

Em seguida, Gama Kury apresenta o subterfúgio de reconhecimento da voz medial


recíproca com a possibilidade de acréscimo de expressões de reforço como “um ao outro”, “uns
aos outros”, “mutuamente”.
No terceiro caso que propõe, Gama Kury volta a recorrer a Said Ali, em sua
sistematização que nós, aqui, também trouxemos à luz (Ali, 1956, q.v.).
Assim Gama Kury se expressa:

3) Voz medial dinâmica , que aparece:


a) com verbos que exprimem “ato material ou movimento que
o sujeito executa em sua própria pessoa, idêntico ao que executa com
cousas ou outras pessoas, sem haver propriamente a ideia de direção
reflexa: Afastei-me do fogo (à semelhança de: Afastei a criança, o livro,
do fogo). Ele arremessou-se sobre o inimigo (à semelhança de:
arremessou uma pedra). A mãe deitou-se na cama (à semelhança de:
deitou a criança na cama.” (Said Ali, GS [46] , 138) (Kury, id.ib.)

Conforme eu expus no subitem em que analisei Said Ali como um autor a tratar das
vozes antes da NGB, essa sua classificação causa embaraços, por não deixar claros os critérios
utilizados. De certa forma, como eu dizia neste subitem de agora, com a análise e sistematização
feita por José Carlos Azeredo, um pouco acima (q.v.), este autor parece debelar muitos impasses
de ordem metodológica quanto ao arrolamento proposto por Said Ali.
Ainda tratando da voz medial dinâmica, Gama Kury prossegue:

b) sem qualquer ideia reflexiva, com verbos intransitivos que


também se usam sem pronome , para exprimir movimento ou ação
executada com vivacidade, ou espontaneamente:
“Ele ria- se à toa.” (Cp.: ria à toa); “Foi- se embora.” (Cp.: Foi
embora); “Alma minha gentil que te partiste.” (Cp.: que partiste);
“Deitou- se tarde.”(Cp. Deitou tarde).

Obs. – Nestes casos, o pronome, de valor antes estilístico do


que gramatical, é uma palavra expressiva, de realce, sem denominação
específica na análise sintática. Não deve, nesta, separar-se do verbo.
(Kury, id. ib.)

Dois tópicos chamam a atenção nessa descrição. O primeiro, é o fato de que, à frente,
Gama Kury dirá que verbos intransitivos não possuem voz ativa nem passiva, pois seriam
neutros (Cf. “Obs. 2 – Os verbos intransitivos, transitivos indiretos e de ligação não têm voz
ativa nem passiva: são neutros” Kury, 1997, p. 40). O segundo diz respeito à noção que Gama
Kury estabelece ao dizer que se trata de “ação executada com vivacidade, ou espontaneamente”,
pois, como vimos na discussão que Azeredo propõe, o critério de motivação, consciência, ser
animado e, ora, espontaneidade, parece, vez por outra, circular as tentativas de conceituação de
voz e, antes disso, de agentividade e passividade.
Por fim, Gama Kury fala numa

4) Voz medial pronominal , em que aparece, integrado no


verbo, que nunca se conjuga sem ele , um pronome fossilizado sem
função sintática:

“Queixas -te sem razão.”

E assim arrepender -se de, orgulhar-se de, atrever-se a,


lembrar-se de , etc., verbos que, por se usarem sempre conjugados com
pronome, denominam-se pronominais . (Kuri, 1997, p. 39-40)

CAPÍTULO 9
AS NOÇÕES “GRAMATICAIS” DE AGENTE, PACIENTE E VOZ: CASOS DE
GRAMATICALIZAÇÃO?

Considero importante, neste momento, tecerem-se alguns comentários acerca das noções,
que se querem considerar gramaticais, de agentividade e passividade, as quais, como sabemos,
carreiam a epistemologia sobre vozes e, em especial, sobre voz reflexiva ou voz medial.
Procurarei ater-me estritamente ao âmbito das terminologias adotadas nas gramáticas
normativas, já que é esse o escopo deste capítulo, não me lançando, pois, às soluções (conquanto
relevantes) levantadas pela Linguística, pela Pragmática, pela Análise do Discurso.
Como sabemos, nossa tradição gramaticológica e, consequentemente, gramaticográfica,
baseia-se no Estruturalismo como sua ciência-piloto. Essa constatação se dá pelo fato de que
nossos compêndios gramaticais são baseados na comutação (não apenas de fonemas, como
sugere Câmara Jr., 1956, p. 113, s.v. COMUTAÇÃO).
Para o mesmo estudioso, o Estruturalismo é

Propriedade que têm os fatos de uma língua de se


concatenarem por meio de correlações e oposições (v. oposição),
constituindo em nosso espírito uma rede de associações ou
ESTRUTURA. É por isso que se diz ser a língua um SISTEMA. [....]
Uma gramática compreensiva tem de levar em conta a
propriedade do estruturalismo da língua que ela descreve. No âmbito
dos sons vocais, o estruturalismo se revela no conceito de fonema (v.), e
a fonêmica (v.) é o estudo estrutural desses sons. (Câmara Jr., 1956, p.
169, s.v. ESTRUTURALISMO)

Observamos que Mattoso Câmara lança mão da terminologia proposta por Ferdinand de
Saussure na descrição de uma língua (“estrutura”, “sistema”, “rede de associações”) e considera
que a gramática deva pautar-se nesses pressupostos a fim de ser adequadamente constituída.
Leodegário Amarante de Azevedo Filho, em sua obra Para uma gramática estrutural da língua
portuguesa (Azevedo Filho, 1971), propugna, como o próprio título explicita, pela mesma
técnica de fatura.
Em termos gramaticográficos, podemos dizer que, sob a égide do Estruturalismo, deve-
se partir da FORMA em direção ao SENTIDO, e não vice-versa. Assim sendo, muito do que nos
parece obscuro, na seara da voz reflexiva/média (e até nas outras vozes verbais, como
mostraremos abaixo), provém da busca concentrada, inicialmente, no sentido, que procura como
que adequar as formas existentes a tais sentidos (ou conceitos) previamente estabelecidos.
Começo tratando da questão do sujeito PACIENTE. Ora, não é preciso investigar um
grande número de gramáticas para observar a quase unanimidade em definir-se esse sujeito
como “aquele que sofre/recebe a ação verbal”.
Como sabemos, e como demonstramos exiguamente acima, o sujeito paciente não é
exclusivo da voz passiva, pois ele ocorre, também, na medial ou reflexiva e, em muitos casos,
até na ativa.
Sobre a questão do sujeito paciente na voz ativa, já Eduardo Carlos Pereira lançara a
noção de “passividade”, quando descreve o que ele chama de VERBO PASSIVO:
251. Verbo passivo é o que expressa uma ação recebida pelo
sujeito, que, neste caso, se diz paciente da ação verbal, exemplos: O
inimigo foi ferido por eles. – A porta foi aberta por mim.
Os verbos – foi ferido, foi aberta, indicam uma ação recebida
pelos respectivos sujeitos.
252. Não há em português, forma simples ou sintética para o
verbo passivo, como havia no latim e no grego. O que se chama verbo
passivo não é mais que a voz passiva [...] (Pereira, 1956, p. 161)

Em seguida, Pereira descreve 3 processos “de que se vale a língua para indicar
passividade” (id. ib.).
Como se percebe (em 252, acima), os dois primeiros processos restringem-se à descrição
das vozes passivas respectivamente analítica e sintética. O 3º processo, entretanto, escapa da
noção de voz passiva, e dá ao verbo o estatuto semântico de fazer recair a ação sobre o sujeito.

252. [....] 3º) Na forma ativa do infinitivo, como complemento


de certos adjetivos, exemplos: osso duro de roer (= de ser roído), lição
fácil de aprender (= de ser aprendida)
Nota. – Além de SE, as formas ME, TE, NOS, VOS, podem,
ainda que mais raramente, indicar passividade [grifei], exemplos : Eu
me chamo Antônio. Nós nos batizamos na Sé. (Pereira, id.ib.)

Seguindo a lição muito de perto, Evanildo Bechara assim explicita o caso:

Voz passiva e passividade . – É preciso não confundir voz


passiva e passividade. Voz é a forma especial que apresenta o verbo
para indicar que a pessoa recebe a ação [47] :

Ele foi visitado pelos amigos.


Alugam-se bicicletas.

Passividade é o fato de a pessoa receber a ação verbal. A


passividade pode traduzir-se, além da voz passiva, pela ativa [48] , se o
verbo tiver sentido passivo:

Os criminosos recebem o merecido castigo.


Portanto nem sempre a passividade corresponde a voz passiva.
(Bechara, 1997, p. 105)

E, remissivamente ao pé de página, Bechara (loc. cit.) complementa, em diálogo com


Eduardo Carlos Pereira:

Assim sendo, não se pode falar em voz passiva diante de linguagem do


tipo osso duro de roer. Houve aqui, se interpretarmos roer = de ser
roído, apenas passividade, com verbo na voz ativa. Sobre o sentido
ativo ou passivo do infinitivo, veja-se página 244. (Bechara, id.ib.)

De minha coleção pessoal, trago dois exemplos da literatura lusófona que corroboram o
uso desse emprego de passividade em voz ativa.
[....] e d. Aurora se espantava, querendo saber se a vesga ficava naquilo
ou se ia expor coisas mais fáceis de entender . (Ramos, 1997, p. 93,
grifei)

Se, porém, os longos sanguinolentos homizios entre linhagem e


linhagem se originavam facilmente das festas mais pacíficas [....],
muito mais de recear era alguma rixa funesta entre homens que
guardavam no coração [....] os mais poderosos ódios humanos [....]
(Herculano, 19910, p. 118, grifei)
Por sua vez, para a noção de agente, ou, mais especificamente, de sujeito agente,
percebem-se paráfrases em torno do conceito seguinte: “é o ser que pratica a ação verbal”. Ora,
como discutíamos acima, parece subjazer às esquematizações propostas por Said Ali sobre voz
medial uma noção, frequente, de consciência ou intencionalidade, como eu chamei.
Seria lícito, pois, perguntarmos se, uma vez que pratica determinada ação , deveria o
agente constituir um ser motivado, ou a imotivação não anularia o conceito, acima resumido, de
agentividade?
Lembramos que a dicotomia entre ser animado X ser inanimado foi motivo de tertúlias,
outrora, acerca da noção de objeto indireto (e mesmo os chamados dativos ético, de interesse e
de opinião), e, pelo que percebo, parece, ora, circundar a noção de agente e, com isso, a noção
das três (ou mais) vozes verbais da língua portuguesa, uma vez que é sobre ela que, ainda que
por comutação estrutural, articulem-se e conceituem-se as vozes.
Assim, poderíamos considerar como sujeito agente (praticante de uma ação) o oriundo da
oração: O Sol nasce para todos ? – Aqui, duplamente, se nos ativermos ao sentido, e não à forma
(explicitarei abaixo), o sujeito não poderia ter praticado a ação, pois o Sol não o fez deliberada e
motivadamente (muito menos com consciência e intenção), e, ademais, ainda que “nascer”
constitua, aqui, clara metáfora, trata-se de um campo semântico que expressa que algo surgiu,
veio à luz, brotou, apareceu etc. SEM a intervenção (sem a prática) do sujeito, que passa a ser,
pois, o alvo da ação.
A discussão acerca de passividade poderia resolver esse caso? O Sol seria, pois, um
sujeito paciente. Mas paciente de quê? Que “ação” recai sobre ele? O que ele “recebeu” ou
“sofreu” ao nascer?
Esse impasse parece insolúvel por uma razão que emergiu de há pouco, quando eu
conceituava “Estruturalismo” segundo seu construto metodológico: dizia eu que, no
Estruturalismo, deve-se ir da forma à significação, e não o contrário. Como, nos casos acima,
parte-se da significação (inclusive dos semantemas dos verbos) à forma e sua consequente
definição, muitos hiatos se abrem.
Apresento outra oração para análise:

Ninguém lembrou o episódio.

“Ninguém” é sujeito agente?


1) “Ninguém” = “Ø pessoa ou coisa”
2) “não lembrar” não constitui ação, nem é motivado, nem consciente, nem intencional.
José Carlos Azeredo assim se manifesta sobre esse ponto:

Esta mesma variação de efeito de sentido


(explicitação/apagamento do agente) produzida pela diferença entre a
construção ativa e a passiva de resultado é frequentemente realizada por
outro tipo de variação sintática, tipicamente exemplificada pelo verbo
esfriar no seguinte par de frases : O vento esfriou a comida / A comida
esfriou .
“Esfriar” pertence a uma classe de verbos – chamados
ergativos ou inacusativos – que expressam tipicamente um processo de
mudança de estado (muitos deles são derivados de adjetivos: esfriar,
envelhecer, remoçar, amarelar, afrouxar, escurecer, murchar, esquentar,
alegrar, afinar, engrossar ; outros de substantivos: enrugar, empedrar,
esfarelar, despedaçar, enlamear, aprumar ). Estes verbos empregam-se
geralmente ora como transitivos (O vento esfriou a comida ) ora como
intransitivos ( A comida esfriou). Esta variação produz uma relação de
sentido análoga – embora não idêntica – à da oposição entre as
construções ativa e passiva: o objeto direto, complemento da
construção transitiva (algo esfriou a comida ), passa a sujeito da
construção intransitiva ( a comida esfriou), conservando, porém, a
condição de paciente do processo expresso no verbo . (Azeredo, 2011,
p. 272. Grifei)

Por essas constatações, acabamos concluindo, de certa forma, que a definição de sujeito,
vem como a de verbo, deveria ser peremptoriamente formal, morfossintática, e que as discussões
semânticas, como a de agentividade e passividade (e, consequentemente, a das próprias vozes
verbais), deveriam tão somente abastecer a epilinguagem reflexiva do âmbito da articulação
entre gramática normativa e teorias do discurso.
Para abordarmos outro ponto sobre a questão da vinculação quase inquestionável, no
ambiente escolar-gramatical, entre “sujeito” que, pelo simples fato de flexionar em número e
pessoa o verbo na voz ativa (ou, em alguns casos, reflexiva), seria “agente”, coletamos o que se
pode chamar de “circunstâncias” (tiro o termo de empréstimo da semântica dos advérbios, como
se verá) outras que não a de agente, para o sujeito que flexiona o verbo nas categorias acima
apontadas: instrumento, lugar, origem, causa, meta [49] . Contribuo com a lição lapidar do
Professor com duas outras circunstâncias (meio e finalidade), que me parecem igualmente
verossímeis à adjunção do papel semântico frequente do sujeito, e ponho, de minha lavra, os
exemplos que me parecem adequados às descrições propostas:

Sujeito com papel semântico ou circunstancial de:


Exemplo:
Instrumento A faca corta o pão.

Lugar O teatro lotou.

Origem A árvore frutificou.

Causa A sombra refrescou o ambiente.

Meta O caderno custa 10 reais.


Água parada dá bicho.

Meio O carro nos levou até o estádio.

Finalidade O ouro ficará acima da ganga.

Por fim, indo, agora, a uma questão que tangencia a da voz de que este capítulo mais se
ocupa – a voz reflexiva ou medial –, precisamos, mais uma vez, recorrer à metalinguagem
praticamente unânime nos compêndios gramaticais acerca dela: “é a voz em que o sujeito pratica
e recebe a ação verbal”.
Mais uma vez, por se basear nos fugidios conceitos de “agente” (que “pratica” a “ação”)
e “paciente” (que “recebe” aquela mesma “ação”), apresentamos três versões semânticas
análogas de oração (sobre o ser animado, motivado, consciente e intencional do enunciado
praticar e receber a ação), que, contudo, estão nas três vozes que a NGB agasalhou como
vinculadas ao estudo do verbo:
1a) O menino se chicoteia . – Voz reflexiva (cf. NGB): Sujeito pratica e recebe a
ação.
2a) O menino chicoteia a si mesmo . – Voz ativa (cf. NGB): No entanto, o sujeito
pratica e recebe a ação.
3a) O menino foi chicoteado por suas próprias mãos [50] . Voz passiva (cf. NGB):
No entanto, o sujeito pratica e recebe a ação.

Retomarei, abaixo, análise que se originará do contraste de duas orações.


Por ora , entretanto, vejo necessidade de um embasamento teórico, a fim de levar à
conclusão de que estamos, em parte substancial, tratando de um caso de gramaticalização.
Peço licença para citar-me. Chamo a atenção, de antemão, ao caso que elenquei, abaixo,
como (2.11), e ao desdobramento de sua explicitação, razão que parece fortalecer a hipótese de
que os conceitos de “voz” ou deveriam ser colocados em paralelo às discussões sobre verbo,
sujeito, ação, estado, situação etc., ou deve ser considerado como fossilização por
gramaticalização, proveniente do material pragmático-discursivo que entrou no âmbito da fatura
de gramáticas da Língua Portuguesa. Também serão, aqui, de importância a percepção atenta dos
subitens subitens (2.1), (2.6), (2.8), (2.10):

O que Meillet (1948[1912]), em seu artigo inaugural, previu


como gramaticalização foi a passagem de um item do inventário aberto
(lexical) para um item do inventário fechado (gramatical), assim
representado:

(2´) [lexical] > [gramatical]

Houve inúmeras contribuições a essa perspectiva de mudança,


inclusive terminológica. Cite-se como importante correlato a
nomenclatura dada por Martinet:

[vocábulo nocional] > [vocábulo instrumental] (Martinet, 1978)


[....]
(2.1) [velhas formas] > [novas funções] (Meillet, 1948)
(2.2) [concreto] > [abstrato]
(2.3)[-abstrato] > [+ abstrato]
(2.4) [-contexto] > [+contexto]
(2.5) [forma livre] > [forma dependente]
(2.6) [-dependente] > [+dependente]
(2.7) [forma dependente] > [forma presa]
(2.8) [forma-fonte] > [forma-meta]
(2.9) [espaço] > [tempo] > [condição] > [concessão] = [-abstrato] > [+abstrato]
[....]
(2.10)[- gramatical] > [+ gramatical]
[....](2.11) [material pragmático-discursivo] > [ + gramatical] [51]

Aqui, em (2.11), pode-se citar, como um primeiro exemplo,


meramente ilustrativo (já que se analisarão casos concretos adiante, na
parte empírica desta dissertação), a comparação entre os empregos do
item também nos dois casos abaixo:

(2.11.a) “A escola está também defasada em termos de


infraestrutura tecnológica” – afirmou o governador.

(2.11.b) [....] Será que você não é nada que eu penso?


Também se não for não me faz mal
Não me faz mal não [....] (Leoni & Kerlakhian, 2010 [52] )

Em (2.11.a), o item também corresponde a uma palavra


denotadora de inclusão, e encontra-se mais afeito a uma percepção
semântica plena, nocional, lexical. Já em (2.11.b), a palavra, no
discurso, tem valor de adversativa, equivalendo a “entretanto”, que é
mais gramatical, porquanto elemento de coesão entre os outros trechos
do discurso (os versos 1 e 2 do trecho). Em (2.11.b), a coesão se torna
mais complexa com a presença do item também do que com sua
ausência. Não se levou em conta, portanto, apenas a mudança
semântica, mas também a mudança funcional, categorial, gramatical,
pois.
Essa complexificação no elemento ou na variável <coesão>,
como se verá, e como já foi esboçado acima, é elemento de
gramaticalização, tanto no nível do item (a palavra: [-elemento de
coesão] > [+elemento de coesão]), quanto no nível da questão discurso
(a presença de conectores: [-conectores] > [+conectores]). Em outros
termos, a gramaticalização, quando observada no âmbito do item
lexical > gramatical, aborda a mudança por um aspecto qualitativo, ao
passo que, operando no nível do discurso como um todo, enfatiza o
aspecto quantitativo (como se viu, a linguagem adulta, em comparação
com a infantil, tende a apresentar maior quantidade de conectores).
Voltando-se à questão da análise por item lexical > gramatical
(e não do discurso como um todo, que será mais bem perquirida
adiante), repare-se que, em (2.11.b), o item também poderia ser retirado
do contexto sem prejuízo semântico, o que comprova a sua função
perempetoriamente conectora e, apenas subsidiariamente, semântica,
relação que se inverte em (2.11.a), demonstrando-se, pois, o processo
de gramaticalização ocorrido [-coesão] > [+coesão] ou mesmo [palavra
nocional] > [palavra instrumental], para voltar-se à terminologia
esposada por Martinet.
Com essa constatação, pode-se perceber que o item também ,
na mudança acima, passou por gramaticalização lato sensu , por assim
dizer (as ligadas ao caso (2.11), acima exposto), mas também stricto
sensu (as ligadas aos itens (2.1) e (2.10) acima). Essa primeira e
preliminar constatação, apenas propedêutica, sugere que não se poderá
estudar o fenômeno conceitual da gramaticalização de modo estanque,
isolado do discurso, do falante, da construção concreta de sentidos
promovida na interação e na produção discursiva real, seja artística
(estética), seja estritamente comunicativa (ética) [53] . (Caetano, 2010, p.
56-8)

Proponho agora, como eu dissera, análise proveniente do contraste entre as duas orações
seguintes:
1b) O pai sacrificou a vida toda pelos filhos . – Voz ativa (cf. NGB)

2b) O pai se sacrificou completamente pelos filhos . Voz reflexiva (cf. NGB)

Nem falarei tanto na possibilidade de falar a “mesma coisa” de modos diferentes, que
Travaglia (2011, q.v. acima) e Azeredo (2011, este ao falar que podem ser ditas de formas
análogas , mas não idênticas , q.v. acima) ressaltaram.
Em 2b), a voz reflexiva obedece a todos os critérios, mesmo os mais rigorosos, para ser
assim classificada na tradição gramaticográfica contemporânea: presença do pronome reflexivo,
sujeito agente e paciente a um só tempo, sujeito como uma pessoa , consciente, motivada,
voluntária (parece ser este um critério adjacente a muitas subcategorizações da voz reflexiva,
pois que uma “ação” precisaria de uma voluntariedade).
O que me parece digno de nota é o fato de que, em 1b), o sujeito (O PAI) e o objeto
direto (A VIDA TODA) parecem-me, por metonímia, representar o mesmo referente, já que “o
pai” e a sua “vida toda” são indissolúveis do ponto de vista de referencial. Assim, pela lógica, se
O PAI e A VIDA TODA (DELE) constituem o mesmo ente, concluímos que o sujeito pratica a
ação (do sacrifício) que recai sobre o próprio sujeito, apenas travestido sintaticamente de objeto
de direto, porém representante semântico e semiótico, na verdade, do mesmo sujeito. Portanto, a
frase 1b), não apenas por dizer “a mesma coisa” que a na voz reflexiva (2b), mas por constituir,
por conexão semiótica, caso em que o referente-ícone O PAI aparece com um hipônimo (ou
hiperônimo?), SUA VIDA TODA, reiterado, caracteriza, no fundo, um exemplo de sujeito que
pratica a ação, a qual é recebida por ele mesmo.

Assim, brevemente, resumiríamos:

Referente: X

Hipônimos de X: o pai / a vida toda [54]

Logo:

X sacrificou X pelos filhos.

Esses casos, então, em que o objeto direto é, semântica e semioticamente, a retomada do


referente do sujeito devem ser considerados como casos de voz reflexiva, inclusive do ponto de
vista estrutural (semiótico)?
Não o podem, e isso por causa da constatação (formal, morfológica) da não presença do
pronome reflexivo, o que desencadeia a anulação desse rótulo (voz reflexiva ou mesmo média).
Assim sendo, chegamos à conclusão, já antes esboçada, de que a presença do pronome
reflexivo, para as vozes média e reflexiva, é propedêutico : necessário (imprescindível), mas não
suficiente.
Ora, a cristalização (obrigatoriedade, fixação) do pronome reflexivo, ainda quando ele
não apresenta sentido reflexo propriamente dito, como nos casos das vozes mediais analisadas
neste trabalho, categoriza claramente o caso de gramaticalização, pois um item gramatical (o
pronome reflexivo SE) passa a ser MAIS gramatical (um pronome medial SE), assim
esquematizando-se:

< SE >

[SE - gramatical] > [SE + gramatical]


[voz reflexiva] > [voz medial]

Os princípios que carreiam a gramaticalização, pela qual, aqui, busco elucidação do


fenômeno da voz reflexiva/medial, repito, estão acima explicitados, em excerto que retirei de
obra minha (Caetano, 2010, p. 56-8, nos subitens (2.1), (2.6), (2.8), (2.10) e (2.11). Q.v.).
Observe-se, entretanto, que essa constatação (a de [SE - gramatical] > [SE + gramatical]
ter como correlato [voz reflexiva] > [voz medial]) não deve gerar uma suposta conclusão de que
a voz medial seria proveniente/consequente da voz reflexiva; até porque, como foi mostrado
acima, parece ser, em alguns casos, exatamente o contrário que ocorre, já que a voz reflexiva se
insinua como subtipo da voz medial. Trata-se de uma constatação, isso sim, de que o pronome
reflexivo , ao apagar esse estatuto de reflexividade, que é semântico, mas ao continuar sendo
imprescindível à constatação da classificação gramatical da voz medial, desliza, por
gramaticalização , portanto, de um item MENOS gramatical (porquanto mais semântico), para
um item MAIS gramatical (porquanto menos semântico).
É exatamente por essa razão que eu propugno, como só agora posso demonstrar, que a
classificação de “vozes” (ativa, passiva, reflexiva), assim como “agente” e “paciente” (bases
sobre as quais as noções de “vozes” se firmam), constitui caso de gramaticalização, se quisermos
mantê-la no âmbito da gramaticografia. Isso porque, segundo os critérios da gramaticalização,
parte-se de uma discussão do campo do sentido (lexicológico/semântico) a um processo de
fossilização no campo da forma (gramaticológico/formal).
Mais claro, como quis demonstrar, é o caso da gramaticalização na voz medial (em
primeiro lugar) e na reflexiva (em seguida), pelo fato de que, na voz medial, um pronome , já
instrumento gramatical , que proveio da subcategoria dos reflexivos , de cuja nomenclatura,
semântica , parece ter-se, por metonímia, nomeado toda a voz de que ele participa (a voz
reflexiva) – embora não exclusivamente dela –, passa a categorizar, também, a voz medial,
passando a ser, portanto, um pronome por assim dizer teleológico, ou seja, unicamente com meta
gramatical (item MAIS gramatical), já que sua noção semântica (de reflexividade) se apagou,
mas sua função (meta) gramatical (de constituinte de voz) permaneceu.
Em outras palavras, quer-me parecer que é mais evidente o caso da gramaticalização
havida na voz reflexiva em fluxo para a voz medial , em função da fixação meramente
teleológica (fonte > meta) do pronome SE, ali (na voz medial) tão obrigatório quanto na voz
reflexiva propriamente dita.
Desse parâmetro, teríamos, no SE (antes reflexivo) com meta ou função de constituinte
de voz medial:

< SE >
[SE semanticamente reflexivo] > [SE Ø reflexivo]
[voz reflexiva] > [voz medial]

Quero dizer, por derradeiro, que, quando a discussão que envolve agentes, pacientes e
vozes entra na fatura de gramáticas normativas, ocorreu gramaticalização, pois o caminho do
sentido em direção à forma, num continuum de maior ou menor abstração ou concretização
(fossilização), caracteriza o processo de gramaticalização, não apenas em relação a itens dos
inventários aberto > fechado, como, de acordo com o que quis demonstrar, também em relação a
tipos de macroconceitos da gramaticografia, como os que ora dou por encerrados neste capítulo.
À guisa de um como que epílogo, todavia, devo dizer: constata-se que, exatamente por
provir de processos plurais, ocorrendo em diversos campos do discurso e da semântica, que
entram na gramática por vias várias, a Teoria Geral da Gramaticalização busca a explicação dos
fenômenos que comprovam que o compêndio gramatical é, na verdade, um fluxo ininterrupto de
fatos e interpretações que somente a análise pancrônica conseguiria abarcar satisfatoriamente. E
mais: que mesmo o recorte num ponto sincrônico não impede que se vejam fenômenos em plena
mudança (não apenas variação dialetológica ou diafásica) que devem, de alguma forma, como
todos os autores acima pesquisados o fizeram, ser discutidos e refletidos. Este ponto sincrônico,
para a gramaticografia, parece estar sempre reclamando subterfúgios diacrônicos (daí a escolha
inevitável pela pancronia como método ancilar) com que se lançam luzes à sua elucidação
honesta e transparente.

CAPÍTULO 10
FORMAÇÃO DO LÉXICO: CAMADAS DA CONSTITUIÇÃO DO LÉXICO: FUNDO
INTERNO ( ERBGANG ) E FUNDO EXTERNO ( LEHRGANG )

Como vimos ao longo deste livro, a formação do léxico de uma língua — e nossa nau foi
a língua portuguesa — obedece a características morfológicas atreladas à História Externa de um
povo, que contribui para as mudanças ocorridas na História Interna. (Q.v. capítulos 1 e 2.) É
desse modo que a Dialetologia, sincrônica ou diacrônica, e as Sociolinguísticas contribuem para
o conhecimento da deriva de um idioma. É desse modo, também, que o estudo da Linguística
Histórica vem ao encontro do arcabouço teórico e prático com que o investigador de História da
Língua deverá lidar.
Vimos, também, que a História Interna, entretanto, muitas vezes pode ser estudada de
forma por assim dizer autônoma das idas e vindas do povo que falava certa língua investigada —
e parece ter sido este um dos postulados de Saussure, a língua em si e por si, infelizmente tantas
vezes levado ao sofisma.
É comum, entretanto, apesar de toda a gama de fenômenos que comprometem a
morfologia, culminando na formação do léxico de uma língua, dividir-se a formação do léxico,
numa perspectiva mais simples (mas nem por isso “simplista”) em duas grandes e básicas
CAMADAS: a interna, hereditária ou transmitida e a externa, adquirida ou incorporada.
“Distingue-se, no vocabulário de qualquer língua, uma camada interna, indígena – e outra
externa ” (SILVA NETO, 1976, p. 131).
Como veremos ao longo deste capítulo 10, podemos dizer que a essas camadas
correspondem os seguintes elementos, que veremos nas seções e subseções deste mesmo
capítulo 10:
CAMADA INTERNA: evolução (deriva) e neologismos
CAMADA EXTERNA: empréstimos (incluindo-se os vocábulos cultos
ou eruditos)

Vamos, portanto, partir ao que importa em cada uma dessas camadas e seus elementos
norteadores.

10.1 A CAMADA INTERNA OU HEREDITÁRIA OU TRANSMITIDA

Esta camada se processa de uma geração a outra. É a que mais comumente se chama de
camada “vernácula”, pois está ligada aos meios espontâneos que os falantes nativos ou
proficientes de uma língua utilizam para manter a sua deriva em andamento.
As palavras podem passar de modo hereditário numa forma por assim dizer “inteira”,
como se fossem realmente o “inventário” de uma herança lexical. E lembramos que a
expressão “inventário” foi usada por Halliday, para referir-se ao léxico tanto em sua parte
aberta (os morfemas lexicais, como substantivos, adjetivos, advérbios), quanto em sua parte
fechada (os morfemas gramaticais, como conjunções, preposições).
Mas também seus morfemas, e apenas eles, podem ser transferidos de pais para filhos,
permitindo a criação neológica, que também é fenômeno hereditário na formação do léxico
de uma língua e na adequação deste a realidades novas que requeiram novos vocábulos que
as nomeiem.
Em resumo, “A [camada] transferida, [é aquela que] que passa de pais a filhos numa
sucessão ininterrupta desde o latim vulgar lusitânico até hoje” (SILVA NETO, 1976, p. 132).

Está na fonética, na morfologia, na semântica, na sintaxe


Exemplos:
a) O <p> sonorizou-se e depois virou <v> : iscopa > escoba > escova
b) cl > lh : oclu > olho
c) “O que nós chamamos uma língua – lembrava Schuchardt – é, na verdade, um conceito coletivo; a reunião
de todas as variedades regionais e sociais.” (” ( SILVA NETO, 1976, p . 137)
d) cl / pl / fl – Séc. I d.C. NORTE → <ch> / SUL (moçárabes e cristãos) → cr / pr / fr
Exemplos: plaga > chaga / praga // planu > (*chanu >) chão /(*pranu>) porão
e) Síncope do -l- intervocálico (mas conserva a tônica)
f) Diabolu, Parabola, Regula, Tabula, Nebula
g) Torneios sintáticos mantidos: “Ego dedi libros ad mea germana > Eu dei livros a
minha irmã.” (SILVA NETO, 1976, p. 132)

Comparando-se portanto duas fases de uma língua, verificam-se


modificações várias.
Essa evolução [55] não se fez caprichosamente, desordenadamente, mas
obedeceu a certas normas, certos princípios. (SILVA NETO, 1976, p. 133)

Exemplos:

a) <au> > <ou> taurum > touro / paucum > pouco / ausare > ousar / laurum > louro
Os filólogos é que, a posteriori, observando a evolução fonética, coordenam e
sistematizam os princípios que regularam as transformações dos sons latinos. (
SILVA NETO, 1976, p. 134)

Não são “LEIS” fonéticas: “É força confessar, porém, que elas só servem para o
passado, são laços que prendem duas fases linguísticas, são simples
correspondências e não podem pôr-se em paralelo com as leis físicas e químicas.
(SILVA NETO, 1976, p. 134, itálicos originais)
Serafim da Silva Neto chega a listar possibilidades para que a transmissão ocorra:

O que passa de uma geração a outra. 4 regras básicas:


1ª) fonemas em posição fraca ficam cada vez menos perceptíveis a
novas gerações e por fim desaparecem;
2ª) determinadas assimilações;
3ª) formas difíceis e irregulares desaparecem e são substituídas por
formas normais. Cp. cabi, fazi, etc.
4ª) palavras raras, de estrutura pouco clara, são sujeitas a novas
associações psíquicas (atração homonímica). (SILVA NETO, 1976,
p.137)

10.1.1 CAMADA INTERNA OU TRANSMITIDA: EVOLUÇÃO


(DERIVA)

Como vimos, o fundo hereditário pode se dar como numa espécie de “inventários”
herdados (aberto ou lexical propriamente dito e fechado ou gramatical), em que palavras e
torneios vêm de forma inteira. Quando isso acontece, o que sobressai é a deriva pura e simples
de uma língua, já que, ao receber os “inventários” variantes, mudanças e transformações
continuam a agir sobre eles.
Carolina Michaëlis de Vasconcelos (VASCONCELOS, 1946) ensina, complementando o
que se viu de Silva Neto. A Mestra ainda esmiúça as camadas apontadas (as herdadas) como
“primitivas” e “posteriores”, num giro didático importantíssimo. Observemos que ela trata, aqui,
dos casos de transmissão de inventários:

Temos de distinguir diversas camadas.


A primitiva abrange o pecúlio que foi comunicado aos celtiberos lusitânicos,
no tempo do Império [Romano], por meio de transmissão direta, oral, popular;
isto é, é o tesouro dos termos indispensáveis, comuns a toda a família
neolatina, com alguns que só se conservam na península, ou mesmo
exclusivamente em Portugal. O fundo panromânico, popula r.

As camadas posteriores abrangem o pecúlio, também vasto, dos termos cultos


, científicos e poéticos, que foram tirados propositadamente da linguagem
escrita latina, em épocas sucessivas de mais ou menos vivaz vida literária.
Por exemplo, no tempo de Carlos Magno, cuja atividade se refletiu em toda a
Europa ocidental; nos reinados de D. João I e D Duarte, que se aplicaram a dar
impulso novo à nação; na era do Renascimento; e nos nossos dias.
(VASCONCELOS, 1946: p. 281, sublinhei)

Seguindo as lições dos eminentes Mestres, vemos, ainda, que as palavras hereditárias, ao
contrário do que muitas vezes se propala, não são exclusivamente latinas, mas podem ter origens
outras. Vejamos algumas delas, extraídas sobretudo às lições de Mestra Carolina de Michaëlis:

PALAVRAS HEREDITÁRIAS DE ORIGEM NÃO LATINA

IBÉRICAS: arroio, páramo, sarna, alguns elementos terminados em –arra, -erro-, -


orro, -urro, como bezerro, cachorro, casmurro, morro, bizarro, modorra
CÉLTICAS: “Os celtismos aceites [pelos latinos] são os verdadeiramente
perduráveis e férteis, propagados pelo mundo afora.” (VASCONCELOS, 1946: p.
292): saia, cavalo, beijo, cerveja, brio, cambiar, embaixada, bardo.
FENÍCIOS, CARTAGINESES E LIGURES: mapa, Cartagena (cartagineses).
GREGOS: “Todos os grecismos que possuímos vieram para Portugal durante o
domínio romano – sobretudo desde a introdução do cristianismo, com os textos
bíblicos (nas traduções chamadas Itala e Vulgata) e pelos atos culturais da Igreja.”
(VASCONCELOS, 1946, p. 294) Filologia, filosofia, teatro, história, museu,
academia, liceu, escola, alfabeto, pergaminho, papel, carta, relógio, época, período.
GERMÂNICOS: burgo, harpa, arenque, guerra, trégua, guarda, espora, estribo,
elmo, roubar, albergue, bandeira, toalha, bordar, rico, branco, orgulho, dançar,
ganhar.
ÁRABES: alfaiate, xadrez, almofada, alguidar, álgebra, alambique, alcatrão,
almíscar, marfim, açougue, acepipe

VOCÁBULOS PROVENIENTES DAS LÍNGUAS FALADAS NA EUROPA, NA


IDADE MÉDIA (VASCONCELOS, 1946: p. 311)

“[....] povos que estavam então em relações comerciais e literárias com Portugal: [....]
Espanhóis, Provençais, Franceses, Italianos – mas também homens do Norte
(Escandinavos, Holandeses, Ingleses). De 1209 a 1500.” (VASCONCELOS, 1946: p.
311)

“A influência civilizadora, que a França exerceu nos séculos XI, XII e XIII e novamente,
embora de outro modo, nos séculos XIV e XV, foi realmente grande.
Já sabem que a França precedeu os outros países românicos em todos os campos de
cultura e que o seu mais antigo documento linguístico é de 842 [“Juramento de
Estrasburgo”].” (VASCONCELOS, 1946: p. 312)

Refrão, jogral, trovador, trova, trovar, linhagem, vantagem, selvagem, mensagem,


viagem.
Sécs. XIV e XV: marquês, arauto, adubar, chapéu, chaminé, chanceler

NORMANDOS, NEERLANDESES E FLAMENGOS: frota, frete, flecha, flanco, lastro,


mastro, dique, escora, guindar, guindaste, singrar, amarrar, quilha; norte, sul, leste, oeste
(anglo-saxônicos).

DAS GRANDES NAVEGAÇÕES:

BRASIL: acaju, goiaba, abacaxi, tapioca, mandioca, mingau, porão, jacaré, tatu, caipira,
garimpo, caboclo, cipó, chácara (VASCONCELOS, 1946: p. 320)

INFLUÊNCIA AFRICANA NO BRASIL (ELIA, 2003: p. 63)


Orixá, Iansã, Iemanjá, Macumba, Mandinga, Olorum, Exu, Oxóssi, Xangô, Babalaô,
Candomblé, abará, aberém, acarajé, angu, bobó, caruru, efó, fubá, mungunzá, lundu,
maracatu, samba, cachaça.

10.1.2 CAMADA INTERNA OU TRANSMITIDA: NEOLOGISMOS

Ainda sobre a camada hereditária, interna ou transmitida, é fundamental falarmos nos


neologismos ou criações neológicas.
Nesse fenômeno linguístico, a morfologia mostra toda a sua pujança vernácula, ao
permitir que o falante proficiente de uma língua, mesmo que esta não lhe seja materna,
identifique morfemas e, com eles, crie vocábulos codificáveis e decodificáveis no idioma.

O NEOLOGISMO
A linguagem humana é feita de uma aparente estabilização e de mudanças
constantes. A estabilização dá ao indivíduo a sensação de tranquilidade
quando da aprendizagem linguística, mas as múltiplas atividades em que se vê
envolvido, seja no campo mental ou físico, exigem-lhe a criação de novas
formas para se expressar. Neste momento, surge a criação neológica.
(MARTINS, 2007: p. 68)

Em vários estudos sobre criações neológicas, distingue-se o neologismo


vocabular do neologismo semântico: este corresponde a um novo significado
para um significante já existente; aquele é um novo significante que se cria na
língua. Encontra-se tal distinção em trabalhos de Ieda Maria Alves, Maria
Aparecida Barbosa, Nelly de Carvalho e em meu artigo ‘A produtividade
lexical em diferentes linguagens’.
Ao abordar a neologia, processo de formação de novas unidades léxicas
(palavras novas e novas combinações), Jean Dubois utiliza outra
denominação: neologia de forma e neologia de sentido . A primeira consiste
em fabricar novas unidades, enquanto a segunda, em empregar um significante
já existente na língua considerada, conferindo-lhe um conteúdo que ele não
tinha até então. (VALENTE, 2012: p. 81-82)

Um bom exemplo de neologia de sentido está no deslizamento de verbos como “ser”,


“haver”, “existir” e “ter”, que, como vimos no capítulo 6, que aqui recapitulamos sinopticamente
em alguns de seus pontos, ora concorriam em termos semânticos, ora se substituíam, convivendo
ou aniquilando-se.
Vimos que “haver” substituiu “ser” no sentido de “existir” no português arcaico e firmou-se
no quinhentista. Há muitas oscilações sobre a concordância do “haver” no sentido existencial,
até mesmo em Gregório de Matos e Camilo Castelo Branco, ainda (segundo Sílvio Elia). “Ter”,
por sua vez, substituiu “haver” no sentido de posse (no português antigo, por influência do latim
vulgar, “haver” (“habere”) indicava “posse mais consolidada”, ao passo que “ter” (“tenere”)
aproximava-se semanticamente de “obter, conseguir”. “Haver” era o verbo auxiliar por
excelência junto às perífrases verbais. Com o tempo, “ter” afastou “haver tanto de um caso (o
semântico) quanto de outro (o das perífrases verbais). Hoje, vem afastando “haver” até mesmo
no sentido de “existir”, embora ainda seja construção evitada em muitos registros (o padrão, por
exemplo). Pode-se considerar isso como um caso de neologismo semântico “hereditário”, pois
além de simplesmente “mudar” o sentido de um vocábulo já existente na língua (daí ser
“neologismo semântico”) retrata um tipo de correspondência historicamente já ocorrida (daí ser
“hereditário”).

10.2 A CAMADA EXTERNA OU ADQUIRIDA OU INCORPORADA

A camada externa é aquela que surge de modo mais ou menos ab-rupto no idioma. “A
[camada] incorporada, ou seja, aquela que não apresenta continuidade.” (SILVA NETO, 1976, p.
132)

10.2.1 EMPRÉSTIMOS
A face mais comum da camada externa está nos chamados EMPRÉSTIMOS, que tanto
podem compreender vocábulos estrangeiros, como estrangeirismos.
VOCÁBULOS ESTRANGEIROS são aqueles que vêm de outra língua e, na língua
portuguesa, mantêm sua grafia (e provavelmente sua pronúncia) como na língua de origem. Até
o século XIX, a maioria dos vocábulos estrangeiros em português eram de origem francesa. Já a
partir do século XX, sobretudo por causa da tecnologia, os vocábulos de origem da língua
inglesa começaram a ser muito mais numerosos: know-how, link, e-mail.
ESTRANGEIRISMOS, num sentido mais apurado, são os vocábulos que vieram de outras
línguas, como os vocábulos estrangeiros, mas incorporaram a grafia e certa similaridade à
pronúncia da língua em que entraram: futebol, clube, abajur, champanhe. “A coexistência entre
esses elementos estrangeiros contemporâneos e as formas mais antigas da língua é também uma
característica da linguagem de qualquer época.” (HENRIQUES, 2014, p. 145)
Os NEOLOGISMOS, que vimos em 10.1.2, embora considerados a rigor da camada
hereditária de uma língua (por ser esta a sua fonte mais profusa) podem também ocorrer por
EMPRÉSTIMOS. Ou seja, podem ser neologismos vernáculos (participantes da camada interna)
ou podem participar da CAMADA EXTERNA de uma língua, sendo neologismos por
empréstimo, com todas as consequências e características que vimos ocorrer nos empréstimos.
São necessárias algumas questões acerca do uso de neologismos, que Claudio Cezar
Henriques aqui aponta:

Para os neologismos vernáculos:

Que argumento justifica seu emprego?


Sua formação está de acordo com os paradigmas da língua
portuguesa?
Para os neologismos por empréstimo:

Que argumento justifica seu emprego?


Sua grafia está de acordo com a convenção ortográfica em vigor?

(OU: − Por que se manteve a grafia na língua estrangeira?)”


(HENRIQUES, 2014, p. 144)

Ele exemplifica:

Exs.: [....] cobalto (< alemão), chucrute (< francês) e pulôver (< inglês), é
razoável que se diga estarmos diante de uma realidade que não existe em
nossa cultura. Porém, até que ponto é possível dizer o mesmo para casos
como os de fast-food e shopping center (, inglês)? Que sucedeu com as
expressões minuta (aportuguesamento de um termo da gastronomia
francesa à la minute) e centro comercial? (HENRIQUES, 2014, p. 144)
Ainda desdobrando a questão dos empréstimos, que basicamente tratamos há pouco em
suas formas de vocábulo estrangeiro, estrangeirismo ou mesmo neologismo, Claudio Cezar
Henriques, munido do repertório teórico de Sandmann e de Ieda Maria Alves, dispõe que há
TRÊS TIPOS DE EMPRÉSTIMOS:

LEXICAL: Incorporação da palavra estrangeira em sua forma


original, seja no aspecto somente fonológico-ortográfico (“pizza, ghost-writer, pole
position”) só ortográfico (“clip, gauche, grid”) ou morfossintático (“campus/campi,
lady/ladyes, blitz/blitze, en”) [Ieda Maria Alves da “businesmEn”, NEOLOGISMO:
CRIAÇÃO LEXICAL, 73-82)
SEMÂNTICO “(Também chamado de decalque)” –
uma tradução literal do termo “hot-dog > cachorro-quente, mezzo-
soprano > meio-soprano, haute couture > alta costura”. [Ieda Maria
Alves, N: CL, 72-83 menciona high technology, alta tecnologia)
ESTRUTURAL: “Consiste na importação de um
modelo que não é vernáculo, como no caso da antecipação do
determinante (Líder Magazine, em vez de “Magazine Líder”;
videoconferência, em vez de “conferência por vídeo”; Atlântico
Praia Hotel, em vez de “Hotel Atlântico Praia”; Esporte Clube
Pelotas, em vez de Clube Esportivo Pelotas”) (HENRIQUES, 2014,
p. 146)
Claudio Cezar Henriques considera que o segundo tipo é um simples neologismo
semântico, e que o terceiro é um item fraseológico.
Todos os casos de neologismo vistos há pouco são chamados, grosso modo, de
neologismos sintáticos. Há, mais raros, os chamados neologismos fonéticos ou fonológicos, em
que o centro da inovação se baseia na camada fônica do novo vocábulo, muitas vezes criando,
até, radicais (semantemas) novos. É difícil, muitas vezes, determinar se um vocábulo provém de
neologismo fonético, pois ele pode, na verdade, ter origem em outra língua, sendo apenas um
neologismo sintático por empréstimo. São casos como parangolé, balangandã, bambambã,
borogodó etc.
Cabe, sobre isso algumas perguntas: haveria ainda casos de neologismo fonético (não
fonológico), em que se escreve uma palavra de um modelo dentro do paradigma da língua
portuguesa, mas esta palavra é lida como de outra língua? É o caso de GOL, empréstimo de
GOAL, que, embora escrito em português, é lido com a pronúncia mantida do inglês, pois a
grafia final <-ol> em português deveria ter o timbre aberto (como em “Sol”). Daí em Portugal
existir o termo “golo”, que no português do Brasil não foi adotado ou implementado pela
comunidade falante.
Os topônimos, antropônimos e patronímicos (os substantivos próprios em geral) podem
ser caracterizados como casos de neologismo por empréstimo (inclusive, muitas vezes, somente
“fonético”)? Que dizer de nomes como Matheus, Sheila, Ingrid, Moraes, Correa (arcaísmos e
vocábulos eruditos são formas de empréstimo), Raphael, São João d´El Rey, Paraty (empréstimo
da língua tupi), Vasconcellos, Goulart etc.?
Com frequência, há línguas (ou povos: como o inglês, o francês o e alemão, e até o
português de Portugal) que, diante de nomes próprios estrangeiros, pronunciam-nos
foneticamente segundo suas regras fonético-fonológicas, mesmo que diante de grafias
patentemente estrangeiras. Houve um tempo em que, aliás, era regra ortográfica da língua
portuguesa aportuguesar os nomes próprios estrangeiros, donde provinham “Rainha Isabel II da
Inglaterra” (como a Rainha Elizabeth é conhecida até hoje em Portugal), “Frederico Diez”, em
vez de “Friedrich Diez” etc. Com os tempos, os nomes próprios vernáculos tendem a acolher a
ortografia contemporânea: Fernão d´Oliveyra > Fernão de Oliveira. Então, enquanto mantém
grafia erudita ou arcaica ou fonética estrangeira, seriam empréstimos?
O estudo sobre substantivos próprios é relevante para o entendimento do léxico.
Historicamente, por exemplo, a manutenção de topônimos e até antropônimos revela substratos
que tenham existido em certos locais.
Além disso, o neologismo sobre nomes próprios ocorre e sempre ocorreu. É frequente,
por exemplo, o uso de palavras-valise (amálgamas) para formar nomes dos filhos fundindo-se os
do pai e da mãe, como Maricleia (Mário e Cleia), Lucimar (Lúcia e Marcos) etc.
Há línguas, como o russo, em que os patronímicos recebem flexão masculina e feminina:
Petrovich é o filho homem de Petro; Petrovna é a filha mulher. Em português, por influência do
que se fazia em latim, havia antropônimos e patronímicos cognatos: Rodrigo e Rodrigues,
Fernando e Fernandes etc. Mattoso Câmara Jr., no Brasil, se deteve sobre o caso.
Na passagem do latim vulgar para o português, pode-se citar como NEOLOGISMO
ESTRUTURAL a formação dos futuros do presente e do pretérito do indicativo, como vimos em
diversos capítulos deste livro. Em latim, esses tempos e modos eram formados pelo INF. +
HABERE (no presente do indicativo ou no pretérito imperfeito do indicativo): AMARE
HABEO / AMARE HABEBAM. Essa ESTRUTURA foi emprestada ao português, que criou
(decalcou?) AMAR HEI / AMAR HAVIA (HIA, forma homônima da P1).
Fiorin fala em 3 caminhos do léxico
O léxico representa a cristalização de toda a vida material e espiritual de
um povo e se forma por três caminhos. O primeiro é o idioma de
origem, que, no caso do português, é o latim. Segundo, os termos
formados a partir do próprio português. Por exemplo, de bom surgiu
bondade. E, em terceiro lugar, vêm os empréstimos linguísticos, que
aparecem em função dos contatos culturais entre os povos. No
português, temos empréstimos linguísticos do árabe. Por quê? Porque
eles ocuparam a Península Ibérica durante sete séculos. Há empréstimos
de línguas africanas, porque trouxemos para cá escravos africanos. Não
se pode tirar do léxico essas palavras. Elas fazem parte da história da
formação do povo brasileiro. Não existe maneira de fechar a porteira.
(J.L. Fiorin, Jornal do Brasil: 04/03/2002, apud HENRIQUES, 2014, p.
148)

Podemos considerar como camada hereditária ou “transferida” não só o que amplia o


léxico do português atual por meio do latim, mas também o que o faz por meio do português
antigo.
Para encerrarmos esta seção, vale a leitura de excelente artigo de Kanavilil Rajagopalan:
A polêmica sobre os "estrangeirismos"
e o papel dos linguistas no Brasil
Kanavillil Rajagopalan
A polêmica instaurada já há algum tempo no Brasil acerca do uso/abuso
(dependendo de que lado da controvérsia se contempla o fenômeno) dos
assim-chamados "estrangeirismos" já se tornou uma verdadeira cause-
célèbre (com o perdão da palavra, é claro!).
De um lado dessa polêmica, um contingente impressionante de pessoas,
ao que parece em número crescente, reivindica uma tomada de atitude
firme e decidida diante da enxurrada de expressões estrangeiras no
português brasileiro e da facilidade e falta de senso crítico com que elas
são absorvidas pelo uso corrente do idioma, quer na mídia, quer nos
cartazes e letreiros. Se depender do desejo desses defensores do idioma,
com certeza será dado um "basta", curto e sonoro, ao processo em curso,
visto que tal processo é tido como nada mais nada menos que uma
agressão a um valioso patrimônio da nação. Nessa perspectiva, quem
não se enquadrar nessa nobre missão de zelar pelo bem público, será
enquadrado na forma de lei e punido de acordo com regras de
comportamento linguístico pré-estabelecidas mediante legislação.
Proteger a língua nacional significa, afirmam eles, salvaguardar a
soberania nacional. E quando o assunto é esse, todo esforço no sentido
de responder à altura a possíveis ameaças à soberania nacional é, sem
sombra de dúvida, válido. Dir-se-á que se trata de uma "razão de
Estado" que, convém lembrar, sobrepõe-se a todos os demais direitos,
estabelecidos por lei ou consagrados pela tradição.
Do outro lado dessa polêmica estamos nós, os linguistas. Não que, como
linguistas, isto é, profissionais interessados em desvendar os mistérios
da linguagem e pensar sobre a melhor maneira de construir teorias sobre
ela, já não nos houvéssemos posicionado a respeito de questões da
ordem da política linguística. Mas a verdade é que a dimensão política
envolvendo as línguas nunca foi o nosso forte. Havíamos nos
acostumado a nos esquivar de questões como planejamento linguístico.
O próprio termo soa, para muitos de nós, como algo que sobrou do
entulho autoritário que marcou outras épocas. Faz parte da cartilha da
nossa disciplina a ideia de que as línguas obedecem às suas próprias leis.
Elas evoluem, se renovam, se ajustam a novas exigências de
comunicação e de contato com outros povos. Em relação às línguas,
portanto, o melhor a fazer deveria ser deixá-las em paz. Mexer com o
destino das línguas revelar-se-ia tão perigoso quanto trabalhar com
engenharia genética- brincar de Deus, o Todo Poderoso, uma vez que
nunca se sabe como tudo vai terminar ou que surpresas desagradáveis
nos esperam pela frente.
O fato é que a maioria de nós foi pega de calças curtas pelos últimos
acontecimentos. As diferentes tentativas de estancar o avanço dos
estrangeirismos, inclusive através de projeto lei, surpreenderam-nos não
só pela maneira como foram feitas, à revelia dos nossos esforços
científicos sobre o assunto, mas também pela enorme repercussão que
tiveram na mídia, como também nas conversas dos bares. Que os leigos
costumam entreter ideias pouco científicas a respeito da linguagem
sempre foi matéria de qualquer curso introdutório sobre a linguística. O
primeiro passo, dizem esses manuais de linguística, para adquirir o
espírito da moderna ciência da linguagem, é justamente o de se
desvencilhar das ideias preconcebidas sobre a linguagem. Infelizmente,
muitas dessas ideias escancaradamente errôneas ou no mínimo
discutíveis, como costumamos ensinar em nossos cursos introdutórios,
acabam se alojando até mesmo no discurso acadêmico mais precavido e
acabam sendo preservadas para a posteridade na forma de preconceitos
linguísticos. Muitos desses preconceitos, por sua vez, acabam
encontrando respaldo nas chamadas "gramáticas tradicionais"-assim
denominadas por não terem sido submetidas ao escrutínio rigoroso dos
métodos científicos da linguística. Afinal, não foi contra a tirania da
gramática tradicional que a Linguística Moderna se insurgiu no começo
do século XX?
Perplexos diante da volta e do recrudescimento de algumas dessas ideias
falsas ou ingênuas, aqueles entre nós mais preocupados com o rumo dos
acontecimentos, perguntam: O que saiu errado? Por que motivo os
ensinamentos da moderna ciência da linguagem não estão tendo a
devida repercussão na sociedade civil? Por que razão a ideia-bastante
elementar e singela para nós-de que as línguas naturais evoluem
constantemente e, ao longo desse processo de evolução, entram em
contato com outras línguas, incorporam novas palavras e expressões, e,
longe de serem prejudicadas pela absorção dos elementos estranhos,
acabam na verdade se beneficiando e se enriquecendo etc., não consegue
sensibilizar aqueles que insistem em legislar contra a própria natureza da
linguagem?
Para podermos fazer qualquer avaliação da maneira como a polêmica
tem evoluído até o momento, é preciso, antes de qualquer outra coisa,
reconhecer que o que presenciamos hoje é um empate. Isto é, a
discussão se encontra simplesmente travada. Cada lado marcou sua
posição irredutível e não está disposto a ceder. O que vem a ser pior,
para quem vê a situação do lado de fora da contenda (hipótese
puramente imaginária, já que os linguistas e os leigos se complementam,
esgotando o universo do discurso), a polêmica se transformou em uma
conversa entre surdos, cada lado gritando cada vez mais, sem ter o
menor interesse em ouvir o que o outro lado tem a dizer, e sem sequer
acreditar que o outro lado esteja realmente interessado em ouvir as suas
razões.
A pergunta com a qual gostaria de iniciar a minha discussão do tema em
pauta é: por que razão está se revelando tão difícil, para não dizer
impossível, um diálogo entre as partes? A resposta instantânea pode ser
resumida numa só palavra: desconfiança. Pois existe uma desconfiança
mútua entre ambas as partes.
Já vimos que a Linguística se ergueu como ciência a partir de um certo
repúdio ao senso comum a respeito da linguagem. O senso comum, diz a
cartilha da disciplina, está repleto de ideias mal pensadas e suscetíveis
de fácil falsificação. O saber científico nasce no momento em que
deixamos em suspense tudo o que o senso comum nos ensina para que
possamos contemplar o fenômeno a ser estudado sem ideias
preconcebidas.
Por sua parte, o leigo (leia-se o não linguista) não consegue entender
como um grupo de estudiosos, de credenciais inquestionáveis, consegue
colocar-se contrário a propostas que, no seu entender, parecem tão
evidentes e em perfeita sintonia com ... bem, o senso comum. Mesmo
disposto a dar-lhes todo o respeito que merecem, o leigo vê os linguistas
como pessoas que investiram tantos anos no estudo da linguagem e que,
no entanto, tomam posições tão difíceis de entender. Ou seja, no atual
empate entre o público leigo e os linguistas, são estes últimos que se
acham cada vez mais isolados e vistos como quem pouco ou nada têm
para contribuir.
Para o linguista, o leigo é demasiado ingênuo e precisa ser devidamente
instruído para pensar de forma correta. Para o leigo, perplexo diante
daquilo que parece pura insensatez por parte do linguista, é preciso
procurar outras fontes do saber quando o assunto é a língua nacional
enquanto patrimônio público.
É fato que, com raríssimas exceções honrosas, poucos entre nós
linguistas paramos para pensar que as línguas, além de serem
instrumentos de comunicação, atributo distintivo do ser humano etc.,
também são verdadeiras bandeiras políticas, atrás das quais se reúnem
povos e em nome das quais muitos se dispõem a derramar o próprio
sangue. Pois não será o caso de levar em conta que muitas das nossas
consagradas teorias a respeito da linguagem estão despreparadas para o
desafio de refletir sobre a política linguística, em particular sobre o
planejamento linguístico de uma nação?
Com o intuito de trazer mais subsídios para a discussão, trago as
seguintes considerações. Em primeiro lugar, é preciso que nós linguistas
nos interessemos cada vez mais pela dimensão política, sob pena de
permanecermos às margens das discussões em curso no país. Se dentro
dos arcabouços teóricos, com os quais estamos habituados a trabalhar,
não há espaço para levantar questões relativas à política linguística,
partamos em busca de novos caminhos. De nada adianta reclamar que as
propostas que vêm sendo oferecidas por políticos ávidos em atender aos
anseios do povo (e, não infrequentemente, canalizá-los em benefício
próprio) estão em desacordo com os ensinamentos da ciência, se não
perguntarmos primeiramente se a própria ciência, no caso, se interessou
pela questão política em algum momento.

É preciso, em outras palavras, reconhecer que a questão da política


linguística não pode ser tratada como um simples adendo a teorias
concebidas ao largo de qualquer vínculo entre linguagem e política. É aí
que talvez tenha havido o nosso maior tropeço: o de tentar achar uma
ligação direta entre duas coisas tão desvinculadas uma da outra. De um
lado, está um corpo de conhecimentos acumulado através de anos de
estudo que, no entanto, nunca teve espaço algum para refletir sobre as
conotações políticas que a linguagem carrega, principalmente para os
falantes dos diversos idiomas. Do outro lado, encontramos propostas
concretas no campo de planejamento linguístico, inclusive propostas da
ordem da "engenharia linguística", com finalidade de intervir em
determinadas realidades linguísticas.

Por bem ou por mal, intervenções políticas no rumo das línguas são
mais comuns do que gostaríamos que fossem. A história da humanidade
está repleta de casos de intervenção proposital no destino de
determinadas línguas, com objetivos diversos. De um lado há casos
como o do hebraico moderno, língua recuperada das poeiras da história
em nome da unificação de um povo e do seu desejo de fundar uma
nação própria, e o do hindusthani, língua literalmente "inventada" pelo
líder indiano Mahathma Gandhi, ao pleitear que o hindi e o urdu
(línguas faladas majoritariamente pelos hindus e muçulmanos
respectivamente no subcontinente da Índia) fossem considerados uma só
língua. Do outro lado, encontramos casos como o do alemão que, em
diversos momentos da sua história, sofreu tentativas de purificação a
partir do expurgo das palavras de origem latina, e o caso, bem mais
recente, do esforço do falecido líder Franjo Tudjman, da Croácia, no
sentido de introduzir sistematicamente grande número de neologismos a
fim de que, com o passar dos tempos, a fala dos croatas se tornasse
incompreensível para os sérvios, vizinhos com os quais compartilhavam
a mesma pátria e o mesmo idioma até o início das hostilidades entre os
dois povos, parceiros da antiga Iugoslávia.
A moral da história: independentemente do que se prevê em algumas
teorias sobre o funcionamento da linguagem e a propriedade ou não de
tentar intervir na evolução de diferentes línguas, a política linguística
sempre imperou no mundo inteiro, em diferentes momentos da sua
história, e sempre houve quem pleiteasse intervenções sistemáticas a fim
de "salvar" certas línguas dos possíveis descaminhos. Mais ainda: como
sempre acontece nesses casos, tais intervenções são feitas, via de regra,
ou com propósitos nobres e justificáveis, como os de unir povos ou de
fazer a paz entre povos que não se entendem ou, ao contrário, para
semear o ódio entre povos e pescar proveito político nessas águas
turvas.
De nada adianta bater na tecla de que falta uma boa dose de linguística
nas discussões políticas a respeito da língua portuguesa e seus rumos no
Brasil. O que falta não é linguística, mas, sim, o reconhecimento de que
com ou sem nós, as coisas vão se desenrolando no cenário político, e
que a atitude mais sensata no atual quadro é entrar na discussão nos
termos em que ela está colocada, com o objetivo de mostrar a todos as
consequências políticas que podem ter, a longo prazo, medidas
apressadas tomadas hoje.
Finalizando: o que se deve perguntar não é se faz sentido tentar
influenciar o destino de um povo, intervindo nas línguas que
efetivamente colaboram na construção da identidade daquele povo. A
pergunta que urgentemente precisamos fazer é: que esforços podem ser
empreendidos de imediato a fim de trazer à baila os interesses ocultos e
escusos que podem eventualmente estar por trás das propostas políticas
e descortinar as consequências longínquas de adotarmos esta ou aquela
política no momento atual.
É preciso, com urgência, encarar a dimensão política da linguagem, sob
pena de sermos ultrapassados pela marcha dos acontecimentos ao nosso
redor. (RAJAGOPALAN, 2016)
10.2.2 VOCÁBULOS CULTOS OU ERUDITOS

No Renascimento, muitos vocábulos foram restituídos à sua forma latina. São os


vocábulos eruditos ou cultos. No momento em que essa inserção ocorria na Língua Portuguesa,
tratava-se de neologismos.
Com muita frequência, essas novas formas passaram a conviver com as formas antigas
(as populares), gerando o que se conhece como vocábulos divergentes: pé/pedal, mês/mensal,
lua/lunar, diabo/diabólico, treva/ tenebroso, rezar/recitar, ruído/rugido, sarar/sanar,
recobrar/recuperar, dobro/duplo, frio/frígido, escuro/obscuro, empregar/ implicar, inchar/inflar,
chamar/clamar, chuva/pluvial, chão/plano, chama/flamígero, céu/celestial.

CAPÍTULO 11
ANALOGIA NA FORMAÇÃO DO LÉXICO

A analogia supõe um modelo e sua imitação regular. Uma forma


analógica é uma forma feita à imagem de outra ou de outras, segundo
uma regra determinada. [...] A analogia se exerce em favor da
regularidade e tende a unificar os processos de formação e de flexão.
(SAUSSURE, 1972, p. 187-8, sublinhei)

Um exemplo dado por Saussure é honos > honor.

A princípio: honos : honose m → rotacismo > honos > honorem


A forma honorem, que concorreu por um tempo com honosem,
encontrou modelo de regularidade em oratorem (orator : oratorem).
Daqui, houve analogia também com o nominativo honos, que, como o
de oratorem (orator), passou a ser honor, e assim ficou.
“oratorem : orator = honorem : x
X = honor

Vê-se, pois, que, para contrabalançar a ação diversificante da mudança


fonética (honos : honorem), a analogia unificou novamente as formas e
restabeleceu a regularidade (honor : honorem).” (SAUSSURE, 1972, p.
188)

EX. No latim vulgar, restaram apenas 3 declinações: 1ª, 2ª e 3ª. A 1ª terminava em –a e a


2ª em o. Como quase todos os nomes da 1ª eram femininos e quase todos os da 2ª eram
masculinos, as terminações –a e –o se transformaram em morfonemas respectivamente das
flexões de gênero feminino e masculino. No português arcaico, havia mesmo palavras que, só
por terminarem em –a, tinham gênero feminino, o que se nota nos cancioneiros e na prosa: “a
planeta, a fantasma, a estratagema”. Por outro lado, nomes que eram femininos e terminavam em
–u ou –o passaram, por analogia, a terminar em –a: “sogra, nora”.
Por analogia, HABEO (P1 do presente do indicativo) virou HEI (EI), já que se
identificava com SABEO, cuja flexão já era SEI.

Os verbos MENTIR, SENTIR e ARDER se conjugavam, na P1 de presente do


indicativo do português arcaico, da forma como haviam evoluído do latim vulgar:
MENTIO > MENÇO (onde o <ç> = africada <ts>)
SENTIO > SENÇO
ARDIO > ARÇO
Depois, avançando no tempo, já no português antigo, regularizou as formas por analogia
com os radicais dos infinitivos que haviam permanecido:

MENTIR > MINTO (o /e/ > /i/ por metafonia, é de supor uma forma *mento)
SENTIR > SINTO (mesma metafonia de MENTIR, por analogia)
ARDER > ARDO (regularidade total na conjugação)
OBS. Repare-se como, nesses casos, ocorreu o mesmo tipo de regularização que as crianças
costumam operar ao dizerem fazi, sabi, dizi.

Foi a escola dos neogramáticos que pela primeira vez atribuiu à


analogia seu verdadeiro lugar, mostrando que ela, juntamente com as
mudanças fonéticas , é o grande fator de evolução das línguas o
processo pelo qual estas passam de um estado de organização a outro.
(SAUSSURE, 1972, p. 189, sublinhei)

A ANALOGIA, PRINCÍPIO DAS CRIAÇÕES DA LÍNGUA


[....] Toda criação deve ser precedida de uma comparação inconsciente
dos materiais depositados no tesouro da língua, onde as formas
geradoras se alinham de acordo com suas relações sintagmáticas e
associativas. (SAUSSURE, 1972, p. 191-192)

As DERIVAÇÕES seguem os valores semânticos dos afixos detectados em outros


vocábulos. Isso é analogia. Até mesmo um valor semântico pejorativo pode ser detectado em
afixos e, ao se criar um vocábulo, isso é feito com o afixo novo que, além de indicar a ideia
intelectiva básica, traz também o valor semântico (melhorativo, pejorativo etc.).
É o caso de palavras com sufixo –ete (Ieda Maria Alves as cita), que, além de indicar
“agente”, traz certo valor disfêmico (alguém que apenas imita, faz sem consciência ou
autonomia, sem criatividade, sem dotes intelectuais). Daí, palavras com este sufixo trarão o
significado de agente com valor semântico de “fazer sem consciência ou autonomia, sem
criatividade, sem dotes intelectuais”: periguete, chacrete...
Saussure, no Cours, trata ainda da analogia nas seguintes partes, aqui meramente
compiladas sinopticamente:

CAPÍTULO V – ANALOGIA E EVOLUÇÃO


PAR. 1. COMO UMA INOVAÇÃO ANALÓGICA ENTRA NA
LÍNGUA
PAR. 2. AS INOVAÇÕES ANALÓGICAS, SINTOMAS DE
MUDANÇAS DE INTERPRETAÇÃO
Por conseguinte, o efeito mais sensível e mais importante da analogia é
o de substituir as antigas formações, irregulares e caducas, por outras
mais normais, compostas de elementos vivos. (SAUSSURE, 1972, p.
199)
PAR. 3. A ANALOGIA, PRINCÍPIO DE RENOVAÇÃO E DE
CONSERVAÇÃO
A imensa maioria das palavras constitui, de um modo ou de outro,
combinações novas de elementos fônicos arrancados a formas mais
antigas. Nesse sentido, pode-se dizer que a analogia, precisamente
porque utiliza sempre a matéria antiga para as suas inovações, é
eminentemente conservadora. (SAUSSURE, 1972, p. 200)
Mediante leitura atenta dos trechos, podemos inferir, basicamente, duas características da
analogia: 1) a analogia retoma a transparência onde algo estava ficando demasiado opaco; 2)
a analogia é conservadora porque freia os empréstimos.
Saussure trata ainda de casos de etimologia popular, isto é, de palavras que se
assemelham a outras, foneticamente ou graficamente, e que são tomadas pela população
como tendo origem diversa da que realmente tem. É o caso de pessoas que pronunciam ou
escrevem “barriguilha”, em vez de braguilha, crendo que o vocábulo é derivação de
“barriga”, e não de “Braga”.

CAPÍTULO VI.
A ETIMOLOGIA POPULAR
A etimologia popular não age, pois, senão em condições particulares, e
não atinge mais que as palavras raras, técnicas ou estrangeiras, que as
pessoas assimilam imperfeitamente. A analogia, ao contrário, é um fato
absolutamente geral, que pertence ao funcionamento normal da língua.
Esses dois fenômenos, tão semelhantes por certos lados, se opõem na
sua essência; devem ser cuidadosamente distinguidos. (SAUSSURE,
1972, p. 202-204)

CAPÍTULO VII
A AGLUTINAÇÃO.
A aglutinação opera unicamente na esfera sintagmática; sua ação incide
num grupo dado; não considera outra coisa. Ao contrário, a analogia faz
apelo às séries associativas [paradigma] tanto quanto aos sintagmas. Vê-
se o quanto importa distinguir entre os dois modos de formação. Assim,
em latim possum não é mais que a soldadura de duas palavras potis sum
, “eu sou dono”, é um aglutinado [....]. (SAUSSURE, 1972, p. 205-207)

ALGUMAS AGLUTINAÇÕES DE PREPOSIÇÕES, ADVÉRBIOS E CONJUNÇÕES DO


LATIM VULGAR QUE RESULTARAM FORMAS NOVAS EM PORTUGUÊS ARCAICO
E CONTEMPORÂNEO:
PER + AD > PARA
PER + LO > PELO
ECCUM + ILLE > AQUELE
EN + A > NA

Terminamos com citação de José Horta Nunes:

Essas diferentes faces da lexicografia brasileira, pelas quais passamos


rapidamente, mostram que a formação do léxico, quando se considera
sua historicidade e seus modos de constituição, não se resume a
transformações ao nível das palavras e expressões, nem à delimitação de
determinados domínios lexicais. Ela está ligada, de um lado, às políticas
linguísticas que definem a produção de um saber lexicográfico (na
relação com as instâncias de um saber em uma formação social), e de
outro, às próprias formas discursivas através das quais esse saber se
apresenta nos instrumentos linguísticos. (NUNES, 1996, p. 112)
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VASCONCELOS, José Leite de. Textos arcaicos . Lisboa: Clássica, s/d.

[1]
De que trataremos no CAPÍTULO 2 deste livro.
[2]
Tratamos dos verbos, numa visão pancrônica, nesta obra, dos CAPÍTULOS 5 a 9.
[3]
O Império Romano do Oriente, ou Bizâncio, situado em Constantinopla, depois Istambul, perdura até 1453. Seu fim
ocasionou o término da Idade Média e iniciou a Idade Moderna.
[4]
Gramática das línguas românicas (traduzi livremente).
[5]
Dicionário etimológico das línguas românicas (traduzi livremente).
[6]
Vocalismo do Latim Vulgar (traduzi livremente).
[7]
A língua latina nas áreas românicas (traduzi livremente).
[8]
Panorama da filologia românica (traduzi livremente).
[9]
Rosa Virgínia Mattos e Silva, em O português arcaico: fonologia , também menciona a mesma cantiga de escárnio, do mesmo ano
(informa que a proposta é de Giuseppe Tavani) e retira o texto de obra de Manuel Rodrigues Lapa, Cantigas de escárnio e de maldizer dos
cancioneiros medievais galego-portugueses (São Paulo/Bahia: Contexto/ Editora da Universidade Federal da Bahia, 1991, pp. 20 e 21).

[10]
-DES tornou-se, aí, D.N.P., sucedendo –R-, D.M.T. de futuro do subjuntivo. No caso do infinitivo flexionado, o –DES
é também D.N.P., e o –R- é, por vezes, chamado de sufixo verbo-nominal.
[11]
No presente do indicativo, SER perdeu o –d- intervocálico, tornando-se SOIS.
[12]
Há autores que veem, nessa construção, uma locução verbal, e não um período composto. Agostinho Dias Carneiro
esposa essa hipótese.
[13]
PREF.+RAD. constitui um supramorfema denominado de RADICAL SECUNDÁRIO.
[14]
RAD.+V.T. constitui um supramorfema denominado de TEMA.
[15]
Como mostramos no CAPÍTULO 3, item 16, b); também no subitem 5.1.3; e mostraremos mais minuciosamente no
CAPÍTULO 6.

[16]
A categoria de aspecto não coincide com todas as definições de verbo nas gramáticas que serão analisadas, em que
pese à sua importância capital para a descrição dessa classe gramatical.

[17]
Concluída em 1958. Cf. Henriques, 1995) HENRIQUES, Claudio Cezar. “A Nomenclatura Gramatical Brasileira –
quantos anos ela tem?” Rio de Janeiro, Inst. De Letras/UERJ – Texto mimeografado para distribuição interna, 2005.

[18]
Os autores, embora franceses, e com obra publicada em Portugal, tratam especificamente da Nomenclatura Gramatical
Brasileira.
[19]
Publicada em 1660, na França, de autoria de dois eremitas da abadia de Port-Royal-des-Champs, Antoine Arnauld e
Claude Lancelot, chamava-se: Grammaire générale et raisonnée contenant les fondements de l´art de parler expliqués d
´une manière claire et naturelle: les raisons de ce qui est commum à toutes les Langues, et des principales différences qui
s´y rencontrent. Et plusieurs remarques nouvelles sur la langue française . Poderíamos traduzir assim : Gramática geral e
racional (ou razoada) contendo os fundamentos da arte de falar explicados de uma maneira clara e natural: as razões do
que é comum a todas as línguas e as principais diferenças que aí se encontram. Observe-se que, no próprio título da
Gramática, explicita-se a intenção de exporem-se os “universais” das línguas humanas, que Chomsky, séculos mais tarde,
como veremos, retomou.

[20]
CHEVALIER, J. Cl. Histoire de la Sintaxe . Naissance de la notion de complément dans la Grammaire Française
(1530-1570), Genebra, Minard, 1968
[21]
Publicada pela primeira vez em 1792, com o título Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza – Principios da
Gramatica Geral applicados à Nossa Linguagem.
[22]
ELIA, Silvio. Dicionário Gramatical , 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1962
[23]
Observe-se que, de acordo com Hauy, Sílvio Elia arrola a voz como caso de flexão verbal. Em que pese ao fato de a
voz não ocorrer por meio de desinências, a maioria das gramáticas elenca a variação de voz como uma das flexões verbais,
de fato, como veremos abaixo. Muitos gramáticos dizem que conjugar um verbo é dizê-lo nos cinco seguintes acidentes:
modo, tempo, número, pessoa e voz (entre eles, Rocha Lima, 1996, p 122). Ademais, essa afirmação parece encontrar
certo respaldo a partir do momento em que se evoca, pouco adiante, uma “flexão especial”, proposta por Hockett e
esposada por Francisco da Silva Borba, que é a “flexão frásica”, que não se dá por desinência, mas por perífrase.
[24]
Observe-se que o termo flexão , aqui, é usado como sinônimo de declinação .
[25]
Traduzimos (id. ib.): Até agora, explicamos as palavras que significam os objetos do pensamento. Resta-nos
falar das que significam seus modos, que são os Verbos, as Conjunções e as Interjeições.
O conhecimento da natureza do verbo depende do que dizemos no princípio deste discurso: que o juízo que
fazemos das coisas contém necessariamente dois termos: um chamado sujeito , aquele de que se afirma, como Terra ; e
outro chamado atributo , que é o que se afirma, como redonda ; e ademais a união entre eles, que é propriamente a ação
do nosso espírito que afirma o atributo do sujeito.
[26]
[27]
Stoicorum Grammatica , Halis, 1839, p. 63
[28]
Infelizmente, o computador que usei não dispunha, nos caracteres gregos, dos espíritos fracos nem fortes para as
vogais iniciais.
[29]
Observe-se que Eduardo Carlos Pereira abona a denominação de verbos “neutros”.
[30]
Evanildo Bechara, nesta edição, lembra que a NGB preferiu a denominação formas nominais do verbo. Rocha Lima
(1996, p. 122, rodapé) lembra que há, também a denominação de verboides (Rodolfo Lenz, La oración e sus partes , 3.
ed., Madrid, Revista de filología española, 5 (1935), p. 396). Mattoso Câmara Jr. (Câmara, 1957, p. 385, SU.
VERBOIDE/VERBO) também abona a nomenclatura “verboide” ao afirmar que “quando uma forma nominal encerra a
ideia temporal de transcurso, isto é, de transitoriedade, típica do verbo, constitui uma forma nominaol do verbo, ou
VERBO NOMINAL, também dita VERBOIDE, apresentando-se na língua portuguesa como infinitivo, gerúndio ou
partcípio”.
[31]
Observe-se que, embora no subtítulo os autores falem em FLEXÕES, em letras versais, na definição dos acidentes
verbais eles falam, ora, em variações , e incluem, dentre elas, a de VOZ.

[32]
Conrad Bureau. In Dictionnaire de la linguistique sous la direction de Georges Mounin . Paris: P.U.F., 1974, p. 41
[33]
Câmara Jr., 1957
[34]
Kury, 1959
[35]
É bem verdade que na própria voz passiva havia conflitos sobre a real passividade do sujeito, ou seu real estatuto de
paciente de uma ação. Assim, o próprio Eduardo Carlos Pereira, seguido por muitos gramáticos, adotou o termo
“passividade” para situações em que, estando a frase na voz ativa, o sujeito não é propriamente um agente da ação verbal.
[36]
Todo este parágrafo, em sua explicação e em seus exemplos, foi coletado em palestra proferida pelo Professor Doutor
José Carlos Azeredo, para a Academia Brasileira de Filologia, na UERJ, no dia 18 de julho de 2012.
[37]
Parafraseio, aqui, explanação proferida pelo Professor Doutor José Carlos Azeredo em aula ministrada no Doutorado
em Língua Portuguesa da UERJ, no primeiro semestre de 2012.
[38]
Aqui, na conceituação de voz reflexiva, o gramático explicitou sua opinião de que o sujeito deva ser exclusivamente
PESSOA, o que ele reitera, no mesmo enunciado, adiante, quando reafirma “verbo seguido de probnome oblíquo de
pessoa ”. Tambéms os exemplos que ele colaciona têm como sujeitos apenas pessoas (embora o terceiro exemplo pudesse
dizer respeito, por exemplo, a um “salão”, o que, contudo, iria de encontro á dupla definição sobre o estatuto de pessoa
que vimos de mostrar no gramático).
[39]
Percebe-se aqui a lição de Said Ali (1964, p. 96), ipsis literis .
[40]
Mais uma vez, como num ato-falho, trata-se de voz reflexiva com vínculo imediato a pessoas.
[41]
Ao usar o termo “construções pronominais”, Azeredo distingue, com rigor científico, tais construções dos verbos
pronominais, que são aqueles que se não podem empregar alheios ao pronome reflexivo, como se verá.
[42]
Observe-se a reiteração do critério formal, morfológico, como o que deve vir em primeiro lugar.
[43]
Observe-se o que parece ser, agora, a articulação do primeiro critério, o formal-morfológico, do pronome reflexivo,
com um critério semântico de atividade/passividade.
[44]
Adiante, Gama Kury faz a ressalva: “OBS. 1 – A NGB não utiliza o termo medial, para as vozes verbais. Empregamo-
lo por necessidade de sistematização.” (Kury, 1997, p. 40)
[45]
Embora esteja entre colchetes, essa observação foi cunhada pelo próprio autor Gama Kury, no exato lugar onde se
encontra neste texto.
[46]
Gama Kury usa a edição de 1927. A que usei para este capítulo é a de 1964, pós-NGB, comentada por Evanildo
Bechara.
[47]
Neste compêndio, observamos, somente aqui, uma possível definição, formal, com efeito, para o conceito de “voz”.
[48]
À guisa de curiosidade, parece-nos ter havido, aqui, o emprego, no enunciado proposto, de uma voz passiva sintética
com agente da passiva: “traduzir-se pela ativa” = “ser traduzida pela ativa”.
[49]
Essa constatação foi levantada em preleção exercida pelo Professor Doutor José Carlos Azeredo em aula no
Doutorado em Língua Portuguesa da UERJ, no primeiro semestre de 2012.
[50]
É claro que este terceiro enunciado não se poderia considerar como espontâneo. Tampouco, assim nos parece, pode-se
ir ao extremo de considerar-se que se trata de enunciado agramatical .
[51]
Aqui também caberia a correlação [-contexto] > [+contexto], cf. item (2.5) acima.
[52]
LEONI & KERLAKHIAN. “Só pro meu prazer”. Disponível em: < http://letras.terra.com.br/leoni/101923/ > Acesso
em: 8 de novembro de 2011

[53]
A distinção aqui entre “estética” e “ética” é etimológica: ambas do grego: Aisthesis = sentimento/ Ethos = costume.
[54]
A VIDA TODA talvez constitua, em relação a O PAI, um hiperônimo, mas, ainda assim, remissivo ao mesmo
referente X.

[55]
O termo “evolução” era muito usado por linguistas e filólogos até o meado do século XX. É preferencial que se
substitua por “deriva”, já que “evolução”, retirado à literatura de Darwin, pode compreender noção de “melhora”, o que é
inadequado ao se falar nas mudanças de uma língua.

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