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RECONTO – A MEMÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ CONTADA

POR QUEM AJUDOU A CONSTRUIR SUA HISTÓRIA

ALEXANDRE AUGUSTO GALVÃO DA SILVA*


RODRIGO BONATTO DALL'ASTA*

1. INTRODUÇÃO

O Centro de Preservação da Memória (Memorial) do Ministério Público do Paraná


(MPPR) foi criado em 4 de setembro de 2014, com a missão de recuperar, conservar e divulgar
testemunhos materiais e imateriais representativos da história da instituição. As origens do
Memorial, entretanto, remontam aos primeiros registros de história oral do MPPR, realizados
em 1991: idealizado pelos procuradores de Justiça Osman de Santa Cruz Arruda e Edson Luiz
Vidal Pinto, após o recebimento em doação de uma câmera de filmagem apreendida pela
Receita Federal, o programa Caminhos de nossa história preservou em vídeo as entrevistas
feitas com o ex-procurador-geral de Justiça Jerônimo de Albuquerque Maranhão e com o ex-
corregedor-geral Eduardo Corrêa Braga.
Alguns anos depois, em 10 de janeiro de 1996, o assunto ganhou novo impulso com a
instituição formal de uma comissão destinada a resgatar a memória histórica do MPPR, que
ficou conhecida como Comissão do Memorial, composta pelos membros ativos e aposentados
Nilton Marcos Carias de Oliveira (presidente), Marco Antonio Teixeira, Jair Cirino dos Santos
(representando a Associação Paranaense do Ministério Público), Noel Nascimento, Ruy
Barbosa Corrêa Filho e Rui Cavallin Pinto e pela historiadora Maria Eunice Rodrigues da Silva.
Em seu primeiro ano de atividades, a comissão se empenhou em resgatar informações históricas
por meio de pesquisas em fontes primárias e secundárias, além de realizar 35 entrevistas com
promotores e procuradores de Justiça e dois ex-governadores do Paraná.
Entretanto, nos anos seguintes, diante da falta de estímulo oficial, as gravações foram
se tornando escassas, de maneira que menos de 30 entrevistas foram realizadas entre 1997 e

*
Alexandre Augusto Galvão da Silva, coordenador executivo do Memorial do Ministério Público do Paraná,
pós-graduado em Gestão Pública pela FESP/PR.
*
Rodrigo Bonatto Dall'Asta, estagiário de pós-graduação do Memorial do Ministério Público do Paraná, mestrando
em História pela UFPR.
2011, ano em que as gravações foram finalmente interrompidas.
Com a criação de uma estrutura formal para o Memorial em 2014, quando foram
constituídos um Conselho Curador e uma Coordenação Executiva, a ideia de se manter um
2

programa de história oral voltou à pauta. Em 2016, o Memorial passou a ter acesso a um
moderno estúdio de filmagem, devido a um acordo de cooperação técnica entre o MPPR e a
Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (Fempar). Assim, o programa de história oral
foi reformulado e ampliado, passando a incluir a história dos servidores da instituição.
Denominado REConto, o programa foi lançado em 15 de junho de 2018, no aniversário de 127
anos do MPPR.
O objetivo deste trabalho, portanto, é apresentar as orientações teóricas e metodológicas
que embasam o projeto atual, assim como alguns resultados das entrevistas de história oral,
possibilitando uma discussão sobre a modalidade de história pública.
Antes dos desenvolvimentos dos parâmetros metodológicos da pesquisa e das
entrevistas, é necessário frisar que as inúmeras transformações que o Ministério Público sofreu
desde seu surgimento modificaram a atuação de seus membros e servidores ao longo do tempo.
Como instituição, o MPPR figura apenas a partir da primeira constituição republicana, porém
ainda muito associado aos poderes judiciário e executivo 1. A partir dos processos históricos
internos e da ação dos seus integrantes, a entidade tem garantidas mais atribuições e autonomia
com a Constituição da República de 1988, assim como uma ampla área de atividades junto à
população, na defesa dos direitos transindividuais, difusos, individuais homogêneos e
indisponíveis, como meio ambiente, patrimônio histórico, consumidor e urbanismo.
O programa REConto pretende, então, resgatar e preservar informações sobre a história
do MPPR e suas transformações, registrando as experiências vividas pelos promotores e
procuradores de Justiça e pelos servidores. Assim, a agência dos entrevistados, as modificações
internas no funcionamento do Ministério Público e as transformações na possibilidade de
atuação de seus membros representam questões importantes no trabalho, principalmente na
construção de identidades institucionais. A relação entre história, memória e identidade será
discutida a partir da fundamentação teórica do projeto de história oral.

2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS NO RECONTO COMO PROJETO

A história oral, especialmente sob uma perspectiva organizacional, se insere num recorte
temporal definido socialmente por uma onda de memórias, sendo uma marca contemporânea

1
O Ministério Público é citado pela primeira vez no Decreto nº 848/1890, que organiza a Justiça Federal. No âmbito
estadual, o Ministério Público do Paraná foi instaurado por meio do Decreto nº 1/1891, que estabelece o Poder
Judiciário. Após sucessivas modificações ao longo de quase cem anos, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu
que "o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." (Brasil,
1988, art. 127)
3

da nova relação que se estabelece entre as temporalidades, em que há uma necessidade de se


preservar o passado, devido ao sentimento de volatilidade do presente e uma ausência de
projetos de futuro (HARTOG, 2013, p. 252-253). A modalidade oral da história, entendida aqui
como um campo de atuação e uma metodologia, define os referenciais teóricos que se alinham
em entender a importância da documentação verbal e de testemunhos, a partir de suas
características e potenciais para o trabalho historiográfico.
É dentro desse "boom" de memória que as próprias entidades, tanto estatais como
privadas, têm buscado o estabelecimento de centros de memória e o desenvolvimento de
pesquisas que tratem da história institucional. A memória torna-se, então, um local onde a
própria organização busca valorizar determinados eventos e agentes internos, principalmente
em funções de liderança, com o intuito de construir uma identidade organizacional por meio da
história, comumente atrelada ao direcionamento institucional (MEIHY & RIBEIRO, 2011,
p.58).
Memória e história partem do mesmo princípio, pois são elaborações realizadas no
presente sobre o passado (TRAVERSO, 2007, p. 5). De tal forma, a relação entre as duas é
embrionária e só se rompe, de maneira oficial, no século XIX, com o estabelecimento da
segunda enquanto disciplina acadêmica, pois a metodologia criada só creditava às fontes
escritas a ideia de fidedignidade e plausibilidade, desconfiando veementemente da primeira.
Ainda nesse momento, o trabalho do historiador significava colocar os fatos retirados das fontes
e ordená-los, evitando-se ao máximo contaminá-los com a subjetividade do pesquisador. Pela
necessidade de uma relação objetiva, a memória não seria objeto da história.
Foi necessária uma revolução epistemológica dentro das ciências humanas para alargar
tanto o conceito de documentação histórica (LE GOFF, 1996, p. 5) quanto as temáticas que a
disciplina tomaria como relevantes (Ibid, p. 10). A documentação oral se encontra nesse
movimento, devido a uma nova relação entre história e memória em que a primeira toma a
segunda como objeto de estudo, perscrutando a realidade social, a maneira de elaboração e
representação dos indivíduos sobre os acontecimentos (MEIHY & RIBEIRO, 2011, p. 84-85).
No complexo esforço de reconstrução de fatos anteriores, o trauma é um mecanismo
importante de entendimento, pois consiste em uma ruptura nesse processo (KAUFMAN, 1998).
Ao dificultar o acesso ao passado por parte do indivíduo, este estabelece algumas estratégias de
como contornar situações traumáticas e elaborá-las: o silêncio compõe uma delas, segundo
Pollak sobre o caso da judia alemã Ruth, que escolhe não se comunicar sobre suas experiências
no campo de concentração para sobreviver na Alemanha pós-guerra (POLLAK, 2010, p. 43).
Logo, a memória é composta não só de fatos do passado, mas pelas formas que o indivíduo os
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elabora no momento do presente, a partir de seus movimentos, gestos, ditos, silêncios e,


principalmente, do que se é esquecido, sendo uma interação contínua entre supressão e
conservação, algo que implica uma seleção do que se é guardado, assim como do que é dito ao
interlocutor (TODOROV, 2002, p. 16).
A dimensão coletiva da memória é apresentada por Halbwachs como algo externo e que
engloba também a questão individual, formando um sistema com leis próprias e independente,
servindo de referência às lembranças particulares (HALBWACHS, 1990, p. 53-54). Pollak
apresenta que tal concepção é positiva em relação à coesão social, mas que a categoria proposta
por Halbwachs não compreende os conflitos que envolvem o estabelecimento de uma memória
coletiva entre os grupos em disputa (POLLAK, 1989, p. 3-4). Enquanto um autor apresenta a
memória coletiva como uma unidade coesa, o outro apresenta os embates que diferentes
memórias acarretam na disputa pela coletividade. A importância do conceito recai justamente
nessa relação entre o indivíduo e o grupo, evidenciando a possibilidade do compartilhamento
de construções sobre acontecimentos e um sentimento de pertencimento e identidade em relação
a diferentes grupos.
O sujeito pós-moderno, como conceituado por Stuart Hall, está envolto numa
multiplicidade de sistemas de significação e representação cultural, que corresponde a um
grande contingente de identidades possíveis (HALL, 2006, p. 13). Portanto, não é incoerente a
conformação com identidades que são, em nível individual, contraditórias. Os integrantes do
Ministério Público, pela função social que representam, acabam criando uma identidade
institucional que se molda pela constituição de uma memória coletiva baseada na atuação deles
e nas questões afetivas, elementos que interessam ao projeto de história oral.
A relação entre memória coletiva e identidade social acontece, portanto, pelo papel
significativo que aquela representa enquanto mecanismo cultural para o fortalecimento do
sentimento de pertencimento a grupos e comunidades (JELIN, 2002, p. 9-10), assim como o de
continuidade e coerência desses sujeitos e do coletivo (POLLAK, 1992, p. 204). Quando a
memória é enquadrada e compartilhada, torna-se um dos fundamentos dessa sensação de
inclusão, representando um sistema que dá referência e se autorreproduz, ligando diretamente
a memória à identidade.
No caso do Ministério Público, um exemplo seria sua participação no processo de
elaboração da Constituição Federal de 1988, cujo texto reconheceu a importância da atuação
ministerial e estabeleceu a independência do chamado "quarto poder". Nesse processo histórico,
os membros do MPPR foram agentes de transformação, o que garante um sentimento
importante de identidade combativa e transfiguração de suas atividades e seu papel em relação
5

à comunidade e outras instituições. Esse sentimento de identificação também se aprofunda com


a atuação individual dos promotores que superaram grandes dificuldades na realidade do
interior paranaense, sofrendo com a falta de infraestrutura e de recursos ou mesmo em razão de
seu trabalho em processos relevantes, como casos de homicídio, corrupção, disputa de terras e
fraude em concursos públicos.
É necessário mencionar que o trabalho de história oral institucional ora estudado
acontece em um órgão público com forte atividade social e que “os trabalhos de história
institucional negociam tanto a intimidade da instituição como sua projeção no mundo externo”
(MEIHY & RIBEIRO, 2011, p. 52). Nesse sentido, Gunter Axt tem uma visão positiva sobre as
possibilidades que tal vertente pode ter dentro de organizações jurídicas, pela possibilidade de
produzir registros sobre os outros poderes, assim como a fuga de uma história baseada em fontes
ditas frias, como os processos e decretos. (BRASIL, 2016, p. 7) Ainda, segundo o autor, no
meio jurídico, um projeto de história oral deve se ater às questões de fundo que envolvem a
ação jurisdicional, como as relações de poder entre os membros da entidade e as outras
instâncias de poder da sociedade, o processo de construção institucional e os processos judiciais
que marcaram a carreira profissional do indivíduo, ou que impactaram o imaginário coletivo
(idem).

3. ASPECTOS METODOLÓGICOS

O principal objetivo do REConto é a reconstrução da história institucional do MPPR


por meio de entrevistas de história oral de vida, que registram as experiências de cada
entrevistado, perpassando por aspectos externos e internos à instituição. Em uma definição
mais detalhada, a história oral de vida:

trata-se da narrativa com aspiração de longo curso – daí o nome de “vida” – e versa
sobre aspectos continuados da experiência de pessoas. Trata de um tipo de narração
com começo, meio e fim, em que os momentos extremos – origem e atualidade –
tendem a ganhar lógica explicativa. Nessa linha, desde logo, a possibilidade
condutiva do narrador merece cuidados a fim de gerar liberdade na autoconstrução
do colaborador (MEIHY & RIBEIRO, 2011, p. 82).

No REConto, considera-se o argumento de Meihy & Ribeiro (Ibid., p. 51) sobre o fato
de a história oral institucional diferir da acadêmica por seus fundamentos, objetivos e critérios
de condução e realização, razão pela qual são dispensados certos aprofundamentos teóricos.
Essa abordagem mais direcionada ao papel social que a instituição possui e menos apegada ao
formato acadêmico facilita a aproximação com um público de não historiadores, que no caso
6

do MPPR envolve os pares dos entrevistados e os operadores do direito, principalmente.


Embora ainda não tenha havido publicações de conteúdos escritos das entrevistas, todas
são transcritas, a fim de permitir as pesquisas textuais que subsidiam os trabalhos do Memorial.
A documentação gerada evidencia que existem versões diferentes da história oficial da
instituição, trazendo a possibilidade de novas interpretações sobre muitos fatos históricos e seus
contextos.
Na medida em que as histórias de vida são exploradas, aumenta o interesse dos
integrantes do MPPR pela história individual e coletiva. Naturalmente, os próprios
entrevistados são os que mais compreendem a importância da memória institucional, tornando-
se os multiplicadores dos trabalhos do Memorial.

4. O RECONTO

Em virtude da cooperação para intercâmbio acadêmico, científico e cultural entre o


MPPR e a Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (Fempar), em agosto de 2016 o
Memorial passou a ter acesso a um moderno estúdio de filmagem, o que permitiu um salto de
qualidade nas gravações das entrevistas. Além disso, a partir de 2017 o programa de história
oral do MPPR foi reformulado e ampliado para além da história dos membros, passando a
incluir também a história de vida dos servidores da instituição. O programa foi, então, intitulado
REConto, em alusão à abreviatura da palavra inglesa “recording”, que indica gravação,
associada à palavra “conto”, que remete à ideia de contar uma história. A primeira entrevista
nesse novo formato foi gravada em 28 de setembro de 2017 com o procurador de Justiça
aposentado Cid Raymundo Loyola Junior.
As vinhetas de abertura e de encerramento dos vídeos do REConto foram desenvolvidas
com a participação de vários profissionais: as músicas foram gravadas em estúdio profissional,
com a utilização de guitarra, baixo e bateria, com os direitos autorais para o MPPR; as
animações foram elaboradas pela equipe da Assessoria de Comunicação do Gabinete da
Procuradoria-Geral de Justiça. A cada entrevista, a vinheta de abertura é editada para apresentar
o nome do entrevistado e a data da gravação.
O programa REConto foi lançado em 15 de junho de 2018, no aniversário de 127 anos
do MPPR, com a publicação de um vídeo promocional e das primeiras 19 entrevistas no canal
de vídeos do Memorial no site YouTube.

4.1. ENTREVISTAS
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Devido ao fato de as entrevistas serem realizadas com o auxílio de equipe técnica


experiente, em estúdio profissional, com iluminação especial e equipamentos modernos para
captação de áudio e vídeo, os registros de história oral do MPPR foram beneficiados no aspecto
da qualidade de som e imagem. Além de haver microfones de lapela e três câmeras de filmagem
– uma para focalizar o entrevistado, outra o entrevistador e uma terceira para captar
simultaneamente a imagem de ambos –, a equipe técnica do estúdio da Fempar realiza a edição
das filmagens, selecionando a câmera mais adequada conforme o desenvolvimento do diálogo,
suprimindo trechos com erros e adicionando as vinhetas de início e fim. Tudo isso resulta num
produto final mais agradável de ser visto e ouvido, facilitando também o trabalho de transcrição
de cada entrevista.
O estúdio da Fempar tem bom isolamento acústico e não há trânsito de pessoas pelo
local durante as filmagens, o que garante tranquilidade aos trabalhos. Percebe-se que o ambiente
de gravação produz nos entrevistados um certo clima de formalidade, o que acaba exercendo
influência nos respectivos discursos. A própria abertura do programa se relaciona com esse
sentimento, mas o suaviza ao indicar que o entrevistado ajudou a construir a história da
instituição2. Essa atmosfera é natural ao projeto, haja vista tratar-se de um programa de história
oral institucional de um órgão eminentemente jurídico. Entretanto, existe um esforço por parte
da equipe do Memorial para que isso seja amenizado, de maneira a deixar os entrevistados mais
à vontade para compartilhar suas memórias.
Na fase de convite das pessoas selecionadas para o programa REConto, após o contato
inicial por telefone, e-mail ou WhatsApp, e uma vez combinada a data da entrevista, o convite
formal é escrito em formato de ofício (externo) ou memorando (interno), inserido num envelope
em que os dados do destinatário são impressos por meio de uma antiga máquina de datilografia.
O envelope é selado com cera vermelha, na qual é impresso o logotipo do Memorial. Essas
características do documento contribuem para remeter o convidado às memórias do passado,
ao mesmo tempo em que despertam no indivídou certa curiosidade pelas atividades de
preservação da memória.
O processo de escolha dos convidados ao programa REConto considera critérios como
idade, saúde, tempo de serviço no MPPR e significância nos direcionamentos da instituição –
seja de forma oficial ou não. Dessa forma, busca-se expandir as entrevistas para além dos
principais cargos políticos ocupados, incluindo as pessoas que trabalharam bastante tempo na

2
Em todas as entrevistas, independente de quem conduza a entrevista, é dita a seguinte frase na apresentação da
trajetória profissional dos entrevistados, “REConto, a memória do Ministério Público do Paraná contada por quem
ajudou a construir sua história”.
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organização e tenham envolvimento direto ou indireto com as mudanças e percepções


institucionais. Em média, os entrevistados têm mais de 32 anos de trabalho no MPPR, com
algumas exceções. Ampliando-se o rol de entrevistados, aumenta-se a quantidade de
testemunhos e opiniões particulares contrapostas aos discursos oficiais, permitindo-se uma
melhor compreensão do funcionamento da instituição e de sua história.
Não obstante, valoriza-se a trajetória pessoal do entrevistado, para que o registro se dê
sob o seu ponto de vista, a partir de como sentiu os acontecimentos e como os interpreta. Para
as pessoas que compartilham ou compartilharam o mesmo espaço de trabalho, a performance
da entrevista serve como catalisador de afetividade e emotividade, valorizando e legitimando a
entrevista por si só.
É importante ressaltar que a maioria dos entrevistados faz parte de uma elite letrada,
consciente de que a documentação produzida ficará para uma posterioridade abstrata e que os
diálogos serão transcritos. É nesse sentido que muitos dos discursos podem ter a intenção de
“dizer o que é importante ser lembrado”, fazendo com que as memórias registradas no REConto
favoreçam a própria instituição.
Da mesma forma, caso a narrativa tenha extrapolado o que é considerado socialmente
adequado para o entrevistado, este pode solicitar a supressão de determinados trechos de seu
próprio discurso – isso, entretanto, ocorreu apenas uma vez dentre as primeiras quarenta
entrevistas.

4.1.1. ENTREVISTADORES

As entrevistas, em sua maioria, são realizadas por procuradores de Justiça aposentados


que se interessam pela atividade de preservação da memória da instituição, um dos quais,
inclusive, é o presidente do Conselho Curador do Memorial do MPPR – em algumas exceções,
o papel de entrevistador é desempenhado por servidores. O conhecimento que os
entrevistadores têm do cotidiano da entidade, da carreira de seus pares e, por vezes, de sua vida
pessoal, permite a ocorrência de um forte sentimento de familiaridade na condução do diálogo.
Essa proximidade deixa os entrevistados à vontade, facilitando a abordagem de memórias para
além dos discursos oficiais, o que tenderia a acontecer caso o entrevistador fosse uma pessoa
exógena à carreira do entrevistado.
Independentemente de quem exerça a condução da entrevista, a equipe do Memorial
elabora sempre um dossiê do convidado, que é submetido ao conhecimento do entrevistador
com antecedência, a fim de auxiliá-lo na condução do diálogo. Assim, pretende-se direcionar a
9

produção da fonte aos objetivos do REConto, munindo o entrevistador com aspectos


biográficos do convidado e uma lista de perguntas sugeridas, que buscam sondar aspectos
cotidianos e políticos do trabalho da instituição. O documento tem por base a ficha funcional
do sujeito, de onde são extraídos os registros de data de admissão, cargos e funções exercidas,
lotações em diferentes cidades, departamentos etc. Adicionalmente, o dossiê é preenchido com
informações colhidas em conversas informais, em recortes de jornais e na internet, de maneira
a enriquecer o dossiê com informações sobre empregos anteriores, hobbies e aspectos da vida
pessoal do convidado.
As perguntas, apesar de ligadas à atuação profissional do entrevistado, têm por objetivo
instigá-lo a elaborar sobre sua experiência de vida, sempre questionando-o sobre sua trajetória
pregressa, o impacto que a nova realidade tem em suas práticas ocupacionais e afetivas,
situações cômicas ou acontecimentos que o indivíduo deseje expor. Também há
questionamento a membros mais antigos sobre a vivência em relação à mudança de atuação que
a Constituição Federal de 1988 trouxe ao Ministério Público brasileiro, tanto no âmbito federal
quanto no estadual.

4.1.2. ENTREVISTADOS

A seleção dos sujeitos obedece a alguns critérios já mencionados, mas também é


impactada pela disponibilidade de agenda dos convidados. De maneira geral, a maioria dos
entrevistados é composta por procuradores de Justiça ativos e aposentados, muitos dos quais
ocuparam cargos de maior relevância no MPPR.
Desde o início das gravações do REConto, foram entrevistados cinco ex-procuradores-
gerais de Justiça, cargo mais alto da hierarquia institucional. Também foram entrevistados oito
ex-corregedores-gerais e quatro ex-ouvidores-gerais.
Uma novidade do REConto, em comparação às entrevistas realizadas de 1991 a 2011,
foi a inclusão da história oral do servidores do MPPR, classe fundamental no funcionamento
da instituição e que permite a exploração de sua história por outro prisma. Além de abordar
aspectos da rotina dos antigos procuradores-gerais de Justiça e dos bastidores de seus gabinetes,
as entrevistas com os servidores possibilitam a sondagem de assuntos relacionados à área meio
de atividade do MPPR, como as transformações ocorridas ao longo do tempo com o
aprimoramento de processos administrativos e com o advento da informatização.

4.1.3. ALGUNS RESULTADOS


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Para ilustrar os resultados do programa REConto observados até o momento, convém


mencionar algumas entrevistas. Por não participarem diretamente das relações políticas
existentes entre os membros do MPPR, os servidores trazem mais memórias sobre situações
cotidianas da instituição e sobre a relação humana entre os funcionários. Por isso, optou-se por
iniciar a reflexão com um exemplo que envolve essa classe.
A entrevista que estreou a participação de servidores no programa, marco importante da
realidade interna do MPPR, ouviu a história de Mari Teresinha Ramos Kotaka3, que trabalhou
na entidade de 1956 a 1986. A senhora Mari viveu a época em que os pareceres dos procuradores
de Justiça eram rascunhados à mão, para depois serem datilografados pelos servidores. Ela
também relatou que sabia de cabeça qual promotor se encontrava em cada comarca do Paraná,
o que facilitava a comunicação com a Procuradoria-Geral de Justiça. Em sua entrevista, ficou
evidente o orgulho e a gratidão que ela sente por ter trabalhado por tantos anos na organização,
quando ela diz que foi muito feliz e fez muitos amigos.
Seguindo o recorte de gênero, é interessante mencionar a entrevista realizada com
procuradora de Justiça aposentada Valéria Teixeira de Meiroz Grilo 4, a primeira procuradora de
Justiça a ser ouvida no programa REConto. Tendo ingressado na carreira aos 25 anos de idade,
a entrevistada relatou as adversidades enfrentadas nas comarcas iniciais, onde precisou aprender
a se defender e a impor respeito, pois havia uma visão social de que o cargo de promotor de
Justiça era uma função eminentemente masculina: "ninguém tinha visto uma mulher sendo
promotora ou juíza".
Por sua vez, a entrevista com o procurador de Justiça Bruno Sérgio Galati5 denota o
impacto que o REConto tem na ressignificação da história de vida e da carreira dos
colaboradores. Após ouvir a apresentação que o entrevistador faz a seu respeito, o convidado,
com a voz embargada, afirma: "você me deixa emocionado ao fazer essas citações, porque
nesses breves segundos a gente vê passar diante dos olhos uma história (...). "É uma
oportunidade rara de a gente se mostrar, se despir da nossa roupa tradicional e das nossas
formalidades". A reação do Dr. Bruno demonstra que a importância do programa de história
oral vai muito além da preservação da memória do MPPR, pois é oportunidade de reflexão
sobre a vida e a trajetória profissional, sobre a participação individual na construção de uma
história coletiva, sobre os erros e acertos.
No que diz respeito aos entrevistadores, em geral existe uma relação de proximidade

3
Entrevista disponível em: https://youtu.be/TUL6U-ctlR8.
4
Entrevista disponível em: https://youtu.be/Yc4ZufcLweg.
5
Entrevista disponível em: https://youtu.be/44xU4qWq_xs.
11

com os entrevistados, o que costuma facilitar a naturalidade dos diálogos e a fluidez das
entrevistas. Houve, no entanto, um exemplo negativo, no qual a relação de afetividade entre os
personagens resultou numa entrevista um tanto desconexa, curta, com muitos assuntos
subentendidos entre ambos, mas não expressos para os espectadores, e que acabou se
aproximando mais de uma conversa entre amigos que de uma entrevista nos modelos expostos.
Na medida em que mais pessoas são entrevistadas no REConto, aumenta a repercussão
do programa e outras tantas se predispõem a compartilhar suas histórias de vida.

4.2. UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A HISTÓRIA PÚBLICA

Diferentemente de trabalhos realizados no interior da academia, o REConto apresenta


as entrevistas como um de seus produtos finais em um formato de vídeo acessível ao público
externo. As gravações são publicadas na plataforma de vídeos YouTube6, tornando-se
disponíveis ao internauta, sem restrições de acesso.
Considerando a importância do Ministério Público na defesa dos interesses sociais e do
patrimônio público, não faria sentido restringir o consumo do REConto à uma audiência
interna. Nos tempos modernos em que a maioria das pessoas se conecta à internet pelo celular,
a disponibilização das entrevistas no YouTube é uma forma de democratizar o acesso ao
conteúdo do programa. Além disso, operadores do Direito e estudantes das ciências jurídicas
que se interessam pela atuação do MPPR e por suas transformações históricas têm acesso a uma
importante fonte de informações sobre o órgão e seus agentes.
A utilização dessa tecnologia atrai uma discussão relativamente recente entre os
historiadores no Brasil, que versa sobre o conceito de História Pública. Assim como em sua
origem, dentro da historiografia estadunidense dos anos 1970, o conceito surge em realidade
brasileira frente a uma crise de legitimidade e estrutural em relação ao trabalho do historiador,
em que grupos da sociedade civil questionam e revisitam o passado em situações de consenso
dentro da historiografia. A história pública brasileira surge junto a uma necessidade interna de
repensar o acesso do público aos trabalhos restritos ao ambiente acadêmico, os quais,
historicamente, são inacessíveis em um país profundamente desigual como o Brasil. A história
pública seria, portanto, um esforço fora dos âmbitos acadêmicos de uma produção que
considere o público e sua recepção (NICOLAZZI, 2018, p. 27).
Portanto, a definição desta nova modalidade concentra o papel do historiador em

6
O programa REConto está inserido no canal de vídeos do Memorial do MPPR, disponível em:
https://www.youtube.com/channel/UCPYFQX3MSGNuv2tqN-yUpkQ.
12

“investigar como se conhece a história: como se lê, se vê, se ouve, se vive a história”
(MALERBA, 2017, p. 140), sendo sua função, além da preocupação com a dimensão ética do
trabalho em relação à “verdade”, o de buscar adequar sua produção pensando no público de
consumo desse produto cultural – retorno social.
Tendo em vista que o público-alvo do REConto abrange não somente os integrantes do
MPPR, mas uma gama de elementos exógenos à instituição, as mídias sociais potencializam a
divulgação do programa para levar a seu exterior aspectos de sua história interna. Assim, o
próprio produto final, as entrevistas, é pensado dentro de uma lógica diferente da produção
acadêmica, sendo considerados outros aspectos que envolvem o meio digital, como o alcance
ao público, a duração e acessibilidade dos vídeos:
Entretanto, potencial leitor de história não é mais o especialista, nem sequer o
indivíduo educado, como no século XIX e praticamente todo o século XX. Blogs e
redes sociais, 14 por exemplo, não aceitam o “textão”. A informação e a análise
devem se veicular em gotas. A capacidade e a disponibilidade de leitura hoje contam-
se em dígitos (MALERBA, 2017, p. 143).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto vem apresentar o programa REConto, de história oral institucional do


Ministério Público do Paraná, descrevendo as especificidades técnicas do trabalho com
identidade, história e memória. A constante luta entre estes elementos perpassa o próprio objeto,
impactando também seus produtores e a condição de produção da fonte.
Naturalmente, o trabalho também evidencia o próprio Ministério Público do Paraná
como um possível objeto de interesse de pesquisas, tanto em relação à história do poder
judiciário quanto à história do estado do Paraná.
Ademais, a apresentação do REConto valoriza o capital humano por trás da instituição,
pois as vivências dos entrevistados contribuem com a construção da identidade combativa
inerente ao MPPR. E no que diz respeito ao trabalho do historiador, apontam-se oportunidades
de atuação fora dos âmbitos tradicionais, como a escola ou a universidade. Na área do Direito,
em órgãos relacionados ao Poder Judiciário, é comum haver a tentativa de se estabelecer
memórias e histórias institucionais, espaços que carecem, muitas vezes, da atuação de um
profissional da História.
Por fim, a apresentação do REConto aos profissionais e acadêmicos que exploram a
história oral permite a exposição do programa aos olhares de entendedores do assunto, criando
oportunidades de aperfeiçoamento dos trabalhos de preservação da memória do Ministério
Público do Paraná, além da consequente divulgação do programa e do acervo de entrevistas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em:
24 jul. 2019.
BRASIL, Ministério Público Militar. Manual de história oral. Por Gunter Axt. Brasília:
Centro de Memória, 2016.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Biblioteca Vértice, 1990.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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