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IV Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP

Otávio Souza e Rocha Dias Maciel (PPGFIL-UnB)

MACIEL, Otávio S.R.D. Racionalidade e Ética na metafísica contemporânea: Meillassoux,


Latour e uma ética material de valores? Apresentação feita no IV Encontro de Pós-Graduação
em Filosofia da USP, publicada no Academia.edu. São Paulo, 2019

Palavras-chave: Realismo especulativo. Anticorrelacionismo. Ética material de valores.


Quentin Meillassoux. Bruno Latour.

Gostaria de começar este encontro agradecendo a comissão organizadora por ter me dado
a oportunidade de apresentar minhas reflexões. Assim que li o tema da linha B “caos, ódio e
medo: insurreições da (ir)racionalidade”, diversas ideias já vieram à minha cabeça. Tenho
conversado com alunos e colegas, em especial Luan Fene, sobre os diversos fenômenos que têm
assolado nosso planeta – e quase todos podem ser delineados com este rótulo da insurreição da
irracionalidade. Gostaria de propor algumas reflexões acerca de como chegamos até aqui.

A sociedade global tem vivido, nos últimos anos em particular, um fenômeno preocupante
da difusão, por todas as direções do globo e em diversos níveis de profundidade, do fenômeno
das insurreições da irracionalidade. Os humanos, que por muito tempo pareciam se identificar,
ainda que obliquamente, com a autodescrição “animais racionais”, têm cada vez mais enxergado
na ignorância o exercício de sua liberdade. Spinoza já havia prenunciado, em meio da
mecanicização da natureza como um dos dogmas da modernidade, que a sabedoria e a filosofia
estavam na compreensão das limitações, enquanto a liberdade estaria na ignorância destas
determinações. O escritor americano Howard Phillips Lovecraft, numa surpreendente passagem
que ressoa este diagnóstico, escreveu:

“A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da


mente humana correlacionar tudo que ela contém. Vivemos em uma
plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e
não estávamos destinados a ir muito longe. As ciências, cada uma
puxando para seu próprio lado, nos causaram poucos danos até agora,
mas algum dia a junção das peças do conhecimento disperso
descortinará visões tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa
posição dentro dela que só nos restará ou enlouquecer com a revelação,
ou fugir da iluminação mortal para a paz e segurança de uma nova idade
das trevas” (Lovecraft, O Chamado de Cthulhu).
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Será que este cenário neomedieval finalmente se concretizou? Depois de sequenciar o


genoma humano, partir subpartículas atômicas e estabilizar novos elementos químicos, os
cientistas se veem numa posição de ter que explicar, pela milionésima vez, que a terra não é plana.
A filosofia, em tantas vezes envolvida com o destino de nações e revoluções inteiras, parece
acastelada discutindo giro linguístico e rinhas de galo entre analíticos x continentais. Os
intelectuais, que outrora se esforçavam em tentar alcançar o público geral com o respeito de se
apresentar de forma acessível, hoje se fecham no esnobismo descabido que só serve para
indiretamente alimentar a ascensão de YouTubers sem quarto ano primário autointitulados
“filósofos”. E, de repente, quando uma trupe de imbecis chega ao poder e declara guerra contra a
educação, os filósofos acastelados e intelectuais insossos acreditam que a sociedade deve os
proteger. Parece que a conta não fecha.

Onde foi que erramos como comunidade acadêmica? Será que temos o direito de nos
revoltar com tanta petulância contra uma sociedade profundamente desorientada pelo ódio e pelo
caos, quando uma de nossas funções sociais era contribuir para a minoração das mazelas da
ignorância? Parece que diversas coisas contribuíram para a alienação da filosofia para longe do
mundo real, onde há pessoas reais com problemas, desejos, interesses, medos e pavores agora.
Vamos explorar duas maneiras de diagnosticar este cenário da falência da filosofia e prenunciar
alguns dos diversos renascimentos que têm ocorrido, ainda de forma certamente tímida ou
insuficiente, mas que acreditamos que poderão revolucionar a maneira própria de se fazer
filosofia. A nossa pista é que a própria modernidade já traz consigo as sementes da difusão da
irracionalidade. Isso se dará primariamente de duas formas: uma concepção estreita de natureza
e de cultura, do “nós”, os modernos”; contra “eles”, os selvagens, bárbaros, ou simplesmente,
“pré-modernos”; e uma frágil maneira de lidar com o dissenso e com o desvio.

Vamos explorar a pista de por que a modernidade pode ser o próprio problema. Em seu
pequeno, porém incrivelmente denso livro Jamais Fomos Modernos (lançado em 1991), o filósofo
francês Bruno Latour examina, do lado do mundo concreto, de seus objetos, das redes e de atores,
como o mito da modernidade serviu para perpetuar diversas atitudes perniciosas em relação às
sociedades humanas e à natureza. O que se apresentou no século XVII como uma solução para
contendas e limitações na ciência acabou se tornando uma bifurcação radical entre natureza e
cultura, para usar a expressão de Alfred N. Whitehead1, onde a tribo dos Modernos inventa para
si uma tarefa infinita purificação desses dois polos que jamais poderiam ser reconciliados – não
obstante a produção de híbridos que deveriam, por determinação dos dogmas modernos, ser

1
Esta expressão é introduzida em seu livro O Conceito de Natureza, publicado em 1919, que, embora
pequeno em extensão, é incrivelmente denso. O tema da crítica à bifurcação se faz presente em outras obras
de Whitehead, em especial o Processo e Realidade (1929). Por sua influência, chega a diversos pensadores,
como Bruno Latour, Isabelle Stengers, Didier Debaise e Maurice Merleau-Ponty.

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expulsos do escopo filosófico. O apagamento ideológico da agência da natureza, dos não-


humanos e dos “menos-humanos” (leia-se, os fora da elite do Atlântico Norte) produziu uma
vertigem do pensamento da purificação, da exaltação da humanidade branca europeia, e do
esvaziamento de sentido de qualquer coisa que não se adequasse ao que esta elite iluminada
decidiu afirmar que era o correto. Tais doutrinas resultaram na oficialização da visão da natureza
como passiva, inerte e desprovida de sentido, um sistema unificado por condições mecânicas
restritiva, onde a liberdade acaba sendo a liberdade de aprender a se conformar com as “luzes”
que uma elite decidiu instalar. Como romper com este sistema fictício da natureza e a liberdade
como conformação? Latour escreve ironicamente que “por seu espírito crítico, os modernos
inventaram ao mesmo tempo o sistema total, a revolução total para acabar com ele, e a
impossibilidade igualmente total de realizar esta revolução, impossibilidade que os desespera
absolutamente!” (Latour, 1994, p. 122).

No entanto, com muita sobriedade, Latour mostra que:

“O pós-modernismo é um sintoma e não uma nova solução. Vive sob a


constituição moderna, mas não mais acredita nas garantias que esta
oferece. Sente que há algo de errado com a crítica, mas não sabe fazer
nada além de prolongar a crítica sem, no entanto, acreditar em seus
fundamentos. Ao invés de passar para o estudo empírico das redes, que
dá sentido ao trabalho de purificação que denuncia, o pós-modernismo
rejeita qualquer trabalho empírico como sendo ilusório e enganador.
(...) O que lhes resta? Instantes sem referências e denúncias sem
fundamento, uma vez que os pós-modernos não mais acreditam nas
razões que lhes permitiriam denunciar e indignar-se”. (Latour, 1994,
p. 50-1).

Parece que, com este diagnóstico, Latour nos legou a pista-chave para solução do que
aconteceu com a filosofia. Embebecida com as fantasias da modernidade, não nos atentamos para
toda a miríade de teses peçonhentas e perniciosas que estavam na alienação da natureza contra a
cultura, a invenção do discurso de totalidade (seja do establishment, seja da revolução contra ele,
seja da impossibilidade de sua concretização) e o decisivo afastamento da filosofia de produzir
redes entre os diversos atores humanos e não-humanos. A resposta, sem dúvida, foi a falência da
modernidade na sua própria radicalização: a metafísica da (inter)subjetividade, com a qual a
modernidade se vangloriava, acabou sendo potencializada na difusão da irracionalidade pós-
moderna do individualismo atômico, separado, fragmentário, que cultua a irracionalidade. No
reino da pós-verdade, Trump e Bolsonaro se tornam presidentes. Se o único critério de verdade é
a “construção social”, então os neomedievais também vão se arrogar no direito de afirmar o que
quiserem, como quiserem. Se o irracional “tudo pode”, a razão não pode chegar nos lugares que

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antes ocupava: deve se contentar em discutir tabelas de verdade, alguma obra irônica de algum
absurdista blasé que “denunciou” a impossibilidade de mudança, e se sentir superior por ter lhe
restado menos de um centésimo de espaço para discutir o mundo.

Com Quentin Meillassoux, indicaremos que o renascimento da metafísica no século XXI


está pautado por um compromisso político muito claro. Meillassoux escreve em seu Depois da
Finitude (2006) que a busca por restaurar a objetividade da filosofia é um compromisso contra o
fideísmo, o fanatismo e a metafísica da (inter)subjetividade que empesteou a filosofia nos últimos
200 anos de antropocentrismo. Seu poderoso argumento para reabilitação das qualidades
primárias, que aparece sob a defesa do arque-fóssil, tem uma missão política de deslocar a
objetividade para além do “para-nós” do que ele chamará de correlacionismo (a ideia de que o
correlato sujeito-linguagem-mundo é a única coisa que podemos ter acesso).

Seu texto de 2006 começa com uma proposta simples, mas ousada: a reabilitação das
qualidades primárias, no velho sentido de Descartes e Locke. Relembrando, as qualidades
primárias seriam, idealmente, propriedades matematizáveis dos objetos; enquanto coisas como
forma, aparência, sabores etc. seriam qualidades secundárias, isto é, dependeriam do sujeito
percipiente. Uma melodia não sabe se é agitada ou pacífica, se é bela ou estranha – mas o
compasso entre as notas é matematizável independentemente destas qualidades secundárias. Esta
tese seria supostamente insustentável depois de Kant, pois assegurava a existência de
conhecimento fora do humano. Meillassoux vai definir da seguinte forma, em tradução livre: “por
correlação nós entendemos a ideia segundo a qual nós não temos acesso que não seja à correlação
entre o pensamento e o ser, e jamais a um destes termos tomados em isolado. Nós chamaremos
de agora em diante correlacionismo toda corrente de pensamento que sustentará o caráter não-
ultrapassável da correlação assim entendida” (Meillassoux, 2006, p. 18).

Há duas formas de correlacionismo, que podemos chamar de simples e de radical2. O


simples é constituído por Kant e seus seguidores mais próximos, que afirmam haver uma distinção
entre pensar e conhecer. O conhecimento, de fato, estaria preso à correlação, mas podemos pensar,
pela razão prática e até pela arte, mundos possíveis, imaginação estética e política, e até mesmo
cenários como o fim do mundo. Os radicais negam esta separação. Pensar e conhecer são tomados
como a mesma coisa, e toda a possibilidade epistêmica é atrelada à metafísica da subjetividade.
Isso significa escolher algum elemento da intersubjetividade humana, como luta de classes,
liberdade, poder, gênero, inconsciente, linguagem (vai da escolha do cliente), e absolutizar tal
elemento como contendo “desde sempre” todas as respostas e perguntas. Hegel, Marx, Heidegger
e Wittgenstein representam grandes expoentes desta modalidade metafísica.

2
Para mais informações, cf. Maciel (2017), especialmente o capítulo I e III.

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Para compreendermos, falarei brevemente sobre a ideia do arque-fóssil. Coisas


cientificamente simples, como datação de carbono-14, mostram que há, por exemplo fósseis de
240 milhões de anos. O processo é simples, sem muitos descalabros. O senso comum não
infectado pelo irracionalismo não chega a ver problema nisso. No entanto, como pensar
filosoficamente o fóssil? Como pensar e apontar para uma realidade absolutamente independente
do humano? Este é o famoso ‘problema da ancestralidade’. Meillassoux mostra como um
“cientista cartesiano” resolve: apelando para as qualidades primárias, pois são matematizáveis e
independem de sensibilidades do percipiente. Resultado: “o sol tem 4,5 bilhões de anos”. Para os
correlacionistas simples, bastaria pregar uma etiqueta do Inmetro-Königsberg e teríamos: “o sol
tem 4,5 bilhões de anos, para nós”. Já soa um pouco esquisito, mas ainda parece aceitável. Todo
este raciocínio razoavelmente simples é acrobaticamente contorcido por correlacionista radicais.
Se tudo é obrigatoriamente “desde-já” no correlato, teríamos frases cômicas, como “a idade da
terra depende do ser-para-a-morte”, ou “pensar a idade da terra é pensar a idade da mãe”; ou
“idade da terra é o capitalismo”. Para não ficar tanto às portas do ridículo, a modernidade
filosófica tardia, e seus filhotes pós-modernos, decidem simplesmente fincar o pé na bifurcação
entre natureza e cultura, para criarem uma reserva de mercado para seus absolutos setoriais.

Citando um trabalho meu de 2017: “Desta forma, o correlacionista chega a uma posição
obviamente insustentável em termos científicos, lógicos, ou até mesmo para o senso comum,
elaborando uma extraordinária afirmação do tipo “o enunciado ancestral é um enunciado
verdadeiro no que tange o seu objetivo, mas tem que ser impossível que o seu referente possa
efetivamente existir tal como a verdade o descreveu”. Meillassoux mostra como este argumento,
ao fim e ao cabo, acaba reproduzindo os dogmas de uma metafísica apriorística, pois afirma a
priori juízos categóricos que os arque-fósseis não podem ser pensados (legitimamente), mesmo
que cientificamente comprovados. O autor faz, então, uma observação sarcástica: o
correlacionista, quando confrontado com o problema dos arque-fósseis, se vê ironicamente ombro
a ombro com os criacionistas mais irracionalistas possíveis, onde tudo só pode ter sido nos últimos
seis mil anos desde toda a mitologia criacionista abraâmica (...). Esta é a base do argumento de
Meillassoux que iremos explorar melhor no [Capítulo] 5, onde ele esboça a polêmica tese de que
a “revolução copernicana” da filosofia transcendental e seus filhotes correlacionistas foi, em
verdade, uma contrarrevolução ptolomaica” (Maciel, 2017, p. 52).

Qual seria, então, o projeto de Meillassoux? Voltar a pensar não apenas o arque-fóssil,
mas o ab-soluto, o “separado”, o “lá fora” (Great Outdoors). Ele critica a ideia de que há algo
necessariamente necessário, como os absolutos setoriais dos correlacionistas radicais. Apesar das
críticas, Meillassoux ainda tem um apreço por Kant, e afirma o que Hilan Bensusan tem chamado
de “duas lições de Kant”: a primeira, bem recebida e compreendida por seus sucessores, é que
todo conhecimento depende de um correlato. A segunda, obscurecida pelos fanáticos, é que todo

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correlato é contingente. A ideia de que todo conhecimento é necessariamente necessário por estar
“desde-já” atrelado ao correlato favorito de algum filósofo é o que Meillassoux quer combater
com sua radical tese: a única necessidade é a contingência absoluta. Para o autor, esta é uma
maneira de combater quaisquer representações fraudulentas do real, inclusive “toda forma de
pseudo-racionalidade que visa estabelecer que o que existe efetivamente deve necessariamente
existir” (Meillassoux, 2006, p. 46).

Para compreendermos bem como este raciocínio nos ajuda a entender, vejamos que cada
um destes absolutos setoriais sempre são apresentados como o “desde-sempre” – portanto, pensar
o inconsciente só pode ser feito perpassando o inconsciente; a luta de classes só pode ser pensada
por luta de classes; a linguagem é só pensável em termos linguísticos, e assim sucessivamente. É
a famosa “jaula transparente” que tanto apavorava Weber3. Meillassoux chama este tipo de
raciocínio de “facticidade”, ou das “invariantes supostamente estruturais do mundo”, “cuja
origem é envolta em mistérios, arbitrariedades, milagres e/ou irracionalidades” (Maciel, 2017, p.
60). Isso aparece em frases como “é fato que tudo é capitalismo”; “é fato que tudo é gênero” ou
“é fato que tudo é a minha religião favorita” etc. A lábia do correlacionista gira em torno da
necessidade necessariamente intransponível de seu absoluto favorito. “O correlacionismo forte
toma como fundamento um conceito improblematizável, incontornável e indiscutível, sendo a
razão um pequeno exercício subserviente e tateante nas tentativas de externalizar mais algum
modo de apresentação da correlação absoluta favorita” (Maciel, 2017, p. 60).

Continuo: “Meillassoux cita o Tractatus de Wittgenstein e o Holzwege de Heidegger


como dois exemplos paradigmáticos do misticismo fideísta que emerge tão resolutamente de seus
correlacionismos fortes, que se espantam não em “como” as coisas são, mas pela “maravilha da
existência” – uma espécie de corolário correlacionista forte de um “milagre ontológico” que
demanda admiração, conformidade com a facticidade, e silêncio. Mais à frente, ele afirma que o
“fim da metafísica”, proclamado pelas mais variadas e até mesmo inimigas entre si correntes do
correlacionismo forte, é visto com extremo ceticismo por sua filosofia, pois se trata de uma vitória
do místico, do inefável, do fanatismo, do fideísmo sobre a racionalidade que a metafísica outrora
buscara” (Maciel, 2017, p. 61).

Vejam, amigos e amigas, que afirmar a contingência ganha, portanto, uma conotação de
política epistemológica contra não apenas o fanatismo leigo, mas também o fanatismo filosófico.
No entanto, depois de nossa breve incursão por Latour, acredito que o público entenderia minha
frustração com Meillassoux ao ver que ele acredita que tal espírito da racionalidade que ele busca

3
A metáfora original é stahlhartes Gehäuse, uma jaula de aço, que aparece no Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo, publicado em 1905.

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é a “racionalização progressiva do judaico-cristianismo sob a influência da filosofia grega”


(Meillassoux, 2006, p. 64-5).

Vejamos como a solução proposta por ele não é tão agradável. O retorno à matematização
da natureza pode soar certamente um projeto classicamente moderno, mas Meillassoux se vale de
elementos vindos de Cantor, Gödel, Russell e Badiou para apresentar como a lógica e a
matemática conseguem pensar o caos, a estranheza bizarra do reino quântico, tipos diferentes de
infinito, a incompletude, e a impossibilidade da totalidade perfeitamente, sem precisar recorrer à
arte, à religião e ao identitarismo e ao subjetivismo moderno. Se podemos, por qualidades
primárias, afirmar a impossibilidade da totalidade valendo-se de lógica, de matematização e da
teoria dos conjuntos, isso deixa de ser uma defesa de algum absoluto setorial imperscrutável, e se
torna uma espécie de ativismo pela ciência, pela razão, e pela contingência. No entanto, a
estreiteza do conceito de qualidade primária de Meillassoux, afastando outras contribuições fora
do judaico-cristianismo e obscurecendo demais formas de experienciar a realidade, obscurecida
pelo fetiche pela matemática. Finalizaremos insatisfeitos com a solução de Meillassoux, pois
talvez só a verdade não seja o bastante: é necessário repensarmos uma ética material de valores
que poderá, numa inspiração nietzschiana, “fazer do conhecimento o mais poderoso dos afetos”4.

Seja como for, a ousadia de Meillassoux e os movimentos de Latour têm florescido


bastante no chamado realismo especulativo, talvez a primeira corrente global de filosofia. O
materialismo especulativo de Meillassoux não é o único, e está acompanhado de uma vasta gama
de outras correntes, desde os novos feminismos materialistas5 até a ontologia orientada a objetos
de Graham Harman e seus colegas6. Em particular, gosto de me referir como realismo complexo,
no intuito de incluir também as teorias dos sistemas7, a chamada “filosofia do processo”8 e a

4
Esta expressão aparece numa carta a Franz Overbeck em 1881, indicando que, apesar de serem totalmente
diferentes no que diz respeito às suas filosofias, o próprio Nietzsche achava que esta característica também
estava presente em Spinoza. Cf. Nietzsche, 1986. O que me interessa, em particular, é como filosofias
evidentemente tão diferentes conseguem apresentar uma animação comum capaz de as fraternizar.
5
Diversas pensadores, em especial Donna Haraway, Catherine Malabou e até os trabalhos dos últimos 5
anos de Judith Butler têm apresentado diversos avanços nesta direção. Para uma compilação, cf. Frost &
Coole (2010).
6
Os trabalhos seminais deste movimento contemporâneo são o Tool-Being (2002) e o The Quadruple
Object (2009), de Graham Harman. O movimento tem se espalhado pela filosofia e por disciplinas
diferentes, contando como principais membros Ian Bogost, Timothy Morton e Levi Bryant. Para uma
apresentação sumária, mas mais sistemática destes quatro autores principais, cf. Harman, 2018
7
Aqui me refiro especialmente aos trabalhos pensados a partir das obras de Niklas Luhmann, Gunther
Teubner, Jean Clam, Thomas Vesting e Rudolf Stichweh. Embora metafísica e especulação não sejam tão
declaradamente afeitos à filosofia (muito menos à metafísica ou à especulação), o contato de Luhmann com
Whitehead é sempre bastante profícuo e inovador. Cf. Maciel, 2019a
8
O termo não é bom, mas o empregamos para fins de marketing filosófico. Geralmente à ideia de “filosofia
do processo” a partir de Whitehead associa-se nomes como Bruno Latour, Isabelle Stengers, William
James, Charles Sanders Peirce, Étienne Souriau, Gilbert Simondon, entre outros. No entanto, há mais de
quarenta categorias no esquema categorial de Whitehead, e o processo é apenas uma delas. Da lista, autores
como Graham Harman (2014) aproximam de Whitehead apenas Latour. Para minha visão sobre o assunto,
cf. Maciel, 2019a

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análise categorial de Nicolai Hartmann9. O mote em comum é a defesa da irredutibilidade da


complexidade face quaisquer objetificações possíveis, seja por parte da ciência, da arte, dos pós-
modernos, das religiões. A redução tem que ser trabalhada, não é dada ou pressuposta: apenas a
multiplicação de centros de experiências e o abandono da ideia de totalidade cabe se pensarmos
uma forma de filosofia sustentável e responsável. Para tanto, o deslocamento do sujeito humano
de seu pedestal autoimposto para as fileiras dos diversos centros de experiências acaba
demovendo o subjetivismo como aporte para a ética.

Esta demoção é complexa e não pode ser esgotada aqui. No entanto, daremos indicativos
a partir de um velho conhecido, e do mencionado Nicolai Hartmann. O nosso velho conhecido é
Jean-Jacques Rousseau. Saudado por Kant como uma espécie de “Newton da moral”, acreditamos
que a selvagem complexidade de sua moral foi porcamente subestimada no moralismo kantiano.
O adjetivo é forte, mas o horizonte de pensarmos a moral como um tipo de sistema social
autopoiético que produz seus próprios elementos a despeito dos caprichos normativistas castos de
Königsberg precisará ser reativado no século XXI. Rousseau tinha um forte apego ao que
podemos nomear mais recentemente de realismo moral: a produção e a autolimitação da moral
por seus próprios elementos não-subjetivistas nos apontam para o projeto do grande, porém
esquecido, Nicolai Hartmann.

Este grande pensador, amigo do fenomenólogos Max Scheler, desenvolveu com este
colega uma espécie de continuação do projeto nietzschiano de transvaloração dos valores. Em seu
livro Material Ethics of Value, Eugene Kelly nos mostra como estes dois herdeiros do inacabado
projeto de Nietzsche buscam, como programa de pesquisa, uma ética material de valores que, a
partir da ética das virtudes aristotélicas, e com algumas incursões por Kant, conseguissem efetivar
a transvaloração da ética que deixasse de ser orientada-a-subjetivismo e sim orientada-a-
conteúdos (content-driven). Por exemplo, a autopoiese da ciência, ou seja, a autoprodução dos
elementos científicos de verdade/falsidade, se torna um valor em si, orientado por métodos,
programas de pesquisa, limitações e preocupações que jamais se encerram em apenas um sujeito.
No entanto, a defesa da autopoiese da ciência passa a se tornar um valor material, não apenas um
formalismo barato. Outro exemplo é o direito, onde a defesa da autopoiese do sistema jurídico se
torna, especialmente no Brasil, uma bandeira política além de ética. Isso pode tomar uma forma,
por exemplo, na reiterada e implacável defesa da necessidade de se falar juridicamente sobre o
direito, de o auxiliar e defender na produção de seus próprios elementos. Isso implica, por

9
Ainda desconhecido no Brasil e no mundo, Nicolai Hartmann (1882-1950) foi um pensador associado ao
neokantismo e à fenomenologia. Seu interesse na filosofia grega (especialmente Platão e Próculo) e na
filosofia alemã (especialmente Fichte, Schelling, Hegel e Nietzsche) o levou a criar uma postura metafísica
altamente original que ele apelidava de realismo crítico ou de análise categorial, porém muito
demandadora e densa. Um dos pioneiros na filosofia da biologia, escreveu sua obra monumental Ontologia
em quatro volumes no período entre 1935 e 1950. Para uma apresentação inicial, numa espécie de resumo
do Ontologia pelo próprio autor, cf. Hartmann, 1953

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exemplo, o afastamento de discursos primariamente orientados pela religião, política e economia


que promovem a corrupção do sistema do direito. Ou seja, um direito genuinamente autopoiético
se torna um valor material nesta nova ética.

Para concluirmos, o acastelamento da filosofia discutindo tabelas de verdade e


reproduzindo entraves coloniais não é o suficiente. Jamais foi. Jamais fomos modernos, porém a
ilusão custou caro, em especial ao Brasil. Sugiro que nossa saída não seja nem pela modernidade
nem pela pós-modernidade. Que pensemos uma filosofia global10, cosmopolita, para além das
necessidades contingentes – porém sem delas esnobar. Será necessário discutir o islã no Egito,
ainda que seja para buscar formas de o transcender. Pensar uma filosofia global não significa
“globalizada”. Isso pressuporia certas armadilhas modernas (e seus inevitáveis afrouxamentos
pós-modernos), e um antropocentrismo irrefreável. E se abandonarmos o abandono do ser
humano? E se virmos que não estamos abandonados, jogados no absurdo, mas num universo onde
cada molécula, animal ou sistema social são gotas de experiência? E se ousarmos sair da histeria
coletiva que a modernidade nos amarrou nos espelhos do narcisismo? A resposta, senhoras e
senhores, é que poderemos recuperar um sentido de transcendência. Não no sentido dos
abraâmicos, mas muito mais radical: se tudo é um centro de experiência, tudo transcende a tudo,
ainda que horizontalmente.

Finalizo fazendo minhas as palavras de Graham Harman no Imaterialism. Contra os pós-


modernos que achavam que a pura imanência seria libertadora, penso com Harman (2016, p. 14-
16) que esta nova metafísica contemporânea nos permite repensar que o mundo não é apenas
imanência – e isso é uma coisa boa, pois a pura imanência é pura opressão. Invocar a realidade
como a jaula do “desde sempre” é sufocar a complexidade, deixar de fazer metafísica, e, ao fim e
ao cabo, deixar de fazer filosofia. Pensarmos uma metafísica da contingência não impede, ao
contrário, é a condição para o projeto que estamos elaborando. A constituição de uma ética
material de valores, capaz de despersonalizar a ética, a moral e a política, talvez seja a mais
poderosa tecnologia que poderemos conceber em defesa da humanidade.

Obrigado! São Paulo, 22 de agosto de 2019

Otávio Souza e Rocha Dias Maciel

10
Não há espaço para discutir as minúcias do que quero dizer com “global” e “cosmopolita”. No entanto,
espero que fique óbvio, pela rede argumentativa do presente texto, que certamente não tem a ver com o que
modernos acreditam ser este termo. Se precisarmos de um precursor, que sejam os cínicos e os estoicos.
No entanto, a discussão vai passar obrigatoriamente por uma compreensão do que significa jamais termos
sido modernos (Latour, 1994) e que o global está mais próximo de uma ideia regulativa do que de um local
geográfico determinado (Latour, 2005). Ademais, só com o desprendimento da comunicação em relação ao
substrato biopsíquico (Luhmann, 2010), poderemos pensar uma globalidade filosófica com uma
reterritorialização diferente (Maciel, 2019b).

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Otávio SRD Maciel – Racionalidade e ética na metafísica contemporânea (...)

Referências Bibliográficas

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