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PARCIVAL MÓDOLO

Os incas:
língua, cultura
e música

Etnicidade
e apropriações
cultural-religiosas
PARCIVAL MÓDOLO
é mestrando em Ciências
da Religião pelo Instituto
Mackenzie, maestro titular
da orquestra de Sunden
(Alemanha) e diretor da
Divisão de Arte e Cultura
do Instituto Presbiteriano
Mackenzie.
espanhol; assume ter sido colonizado pelo
europeu mas jamais se admitiu dominado;
orgulha-se das grandes construções do sécu-
lo XVII, templos cristãos em seu solo, mas
prefere os monólitos, as pedras talhadas e
agrupadas com perfeição nos lugares sagra-
dos dos seus ancestrais; fala espanhol com
os visitantes estrangeiros mas em casa quer
que seus filhos se comuniquem em quéchua;
comemora os feriados e dias santificados
cristãos mas reconhece a autoridade do
deus Inti, compreendendo-se vassalo do

O
Sol, prestando-lhe homenagens.
Só conhecendo essa mentalidade é que
se pode apreciar devidamente o soneto de
José Santos Chocano, gravado numa das
paredes de mármore do Museo de la Nación
em Lima, sede do INC, o Instituto Nacional
de Cultura:

“Soy el cantor de América autóctono y


[salvaje
Mi lira tiene un alma, mi canto un ideal.
auditório repleto do Tea- Mi verso no se mece colgado de un ramaje
tro Municipal de Cusco Con un vaivén pausado de hamaca
para o concerto do Coral [tropical…
Infantil Nacional do Peru,
em setembro de 2005, Cuando me siento Inca, le rindo vasallaje
surpreendeu-se logo com Al Sol, que me da el cetro de su poder
a entrada do grupo. Os meninos cantores [real;
vieram pelo fundo do teatro, caminhando Cuando me siento hispano y evoco el
em direção ao palco, levando velas acesas, [Coloniaje,
1 Adotaremos, para o nome da
enquanto cantavam o “Hanaq Pachap Ku- Parecen mis estrofas trompetas de cristal.
cidade, a grafia “Cusco” e
não “Cuzco”, por ser a forma sikuynin”, acompanhados apenas por dois
aceita pelos cusquenhos. Na
verdade, o que boa parte tambores medievais que marcavam o ritmo. Mi fantasía viene de un abolengo moro:
do povo prefere, mesmo, é O “Hanaq Pachap”, primeira obra polifônica los Andes son de plata, pero el León de
“Qosqo”…
composta na América, soava extraordinária: [oro;
2 “Sou o cantor da América,
nativo e selvagem, minha lira a letra, na língua quéchua, incompreensível y las dos castas fundo con épico fragor.
tem uma alma, meu canto um
ideal. Meu verso não se embala
para boa parte dos presentes, articulada em
pendurado em um ramo, com melodia e harmonia tipicamente européias, La sangre es española e incaico es el
um vaivém pausado de rede
tropical… Quando me sinto medievais, formava estranho conjunto, nem [latido;
Inca, rendo vassalagem ao por isso estrangeiro naquele lugar, um tea- ¡y de no ser Poeta, quizás yo hubiese
Sol, que me dá o cetro de
seu poder real; Quando me tro cuja principal decoração é uma enorme [sido
sinto hispânico e evoco a
colonização, minhas estrofes escultura do deus Inti, o Sol, na parede de un blanco Aventurero o un indio
parecem trombetas de cristal. fundo do palco. [Emperador!”2.
Minha fantasia vem de uma
estirpe moura: os Andes são A história da língua e das tradições
de prata, mas o Leão é de
ouro; e as duas castas eu
pré-colombianas no Peru, a história dos É sobre esse “sentindo-se hispânico
fundo com épico fragor. O incas portanto, continua viva nas mentes e sentir-se também inca” que queremos tra-
sangue é espanhol mas inca
é o seu pulsar; e eu que não corações daquele povo que, especialmente tar aqui, tendo como ponto de partida dois
sou poeta, quisera ter sido um na cidade de Cusco1, em grande maioria villancicos tradicionais de natal e o hino
branco aventureiro ou um índio
imperador” (tradução minha). prefere chamar-se inca a admitir-se apenas “Hanaq Pachap Kusikuynin”.

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auxiliados em parte até mesmo pela pró-
A COLONIZAÇÃO pria Igreja que, como se verá, em alguns
casos, consciente ou inconscientemente,
Ao estudar a história da conquista contribuiu para preservar – e até resgatar
do continente americano pela Espanha e – línguas e costumes ancestrais.
outras potências européias, uma das pri-
meiras coisas que se tornam evidentes é
a imensa insensibilidade que mostraram
os conquistadores com respeito ao que IDENTIDADE CULTURAL –
Burger denomina “elevada y altamente
desarrollada conciencia espiritual de los ETNICIDADE
pueblos conquistados” (Burger, 1992, p.
14). Bernal Diaz del Castillo foi soldado Para se conhecer a formação da “consci-
naquela luta e era também escritor. É dele a ência nacional” daquele país e seu processo
anotação, citada por Burger, sobre a chegada de construção de identidade é fundamental
dos europeus: “los colonizadores llegaron estudar as formas religiosas e lingüísticas
con la espada en una mano y la Biblia através das quais os quéchuas do sul se po-
en la otra, para llevar la luz a aquellos sicionaram na estrutura social peruana.
sumidos en la oscuridad, y también para A população do Peru é fruto de uma
enriquecerse” (Burger, 1992, p. 46). Esse histórica mestiçagem. Observa-se, porém,
tipo de comportamento foi quase padrão, que os indígenas de ascendência quéchua
quer fosse o colonizador espanhol, portu- parecem ter conservado razoavelmente
guês ou inglês, quer estivessem os povos bem a pureza do seu sangue. Os mestiços,
colonizados no norte, no centro ou no sul ou “cholos”, resultado de muitos anos de
do continente. encontro com os espanhóis, vivem majo-
No que se refere à Igreja, como lembra ritariamente na região costeira. Cerca de
Germán Rodríguez (1999, pp. 23 e segs.), 50% da população peruana é indígena, de
as estratégias de suplantação de costumes ascendência preponderantemente quéchua
e crenças, aplicadas primeiro na Europa, e aymara. Os habitantes das montanhas,
foram transplantadas para a América. A luta indígenas e camponeses, distinguem-se
contra o paganismo se estendeu, junto com pela conservação de tradições ancestrais,
a fogueira da Inquisição, até todas as regiões por comunicarem-se em quéchua e por
onde houve a extirpação de idolatrias. sua cosmovisão. Amam profundamente
Em apenas um século após a invasão, a terra, definem-se como parte dela e por
culturas e formas de espiritualidade mi- isso dão-lhe continuamente oferendas para
lenares haviam se perdido. Os povos do honrar sua origem, bem como às forças da
Novo Mundo, observa aquele autor, haviam natureza e aos deuses. Ao lado de Inti, o
“esquecido grande parte de seu passado e Sol, Pachamama, a Mãe Terra, compõem
suas antigas ciências, só ficando a tradição suas principais deidades. Inti fecunda, Pa-
oral como meio de transmitir o pouco que chamama germina.
conservavam de seus saberes” (Rodríguez, Traduzir Pachamama por “Mãe Terra”
1999, p. 26). A consolidação do raciona- é apenas utilizar o termo mais próximo que
lismo que a Europa vivia durante o século podemos encontrar. Não existe uma termi-
XVII e o desenvolvimento da mentalidade nologia moderna que possa expressar seu
científica coincidiram com a destruição de vasto significado. Pachamama é o próprio
boa parte da visão mágica e, conseqüente- tempo que se move, e o espaço onipresente.
mente, da identidade cultural dos povos do É a terra, o chão, possuidor da vida. Para
Novo Mundo. falar com Pachamama, ou honrar suas en-
Quanto ao Peru, entretanto, povoados tidades, o índio não necessita de recursos
inteiros escondidos nas montanhas preser- especiais: elas estão ao seu lado, como estão
varam razoavelmente bem suas tradições, as árvores, pedras, rios, animais e tudo o

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mais, integrados e expostos. Quando vão Tudo isso quer dizer que o povo quéchua
iniciar o plantio, indígenas e camponeses continua recompondo sua vida, mesclando
oferecem folhas de coca a Pachamama e, o antigo e o novo, o conhecido e o estranho,
antes de beber qualquer coisa, derramam um mas preservando intactos muitos de seus
pouco à terra, agradecendo a possibilidade valores ancestrais.
de mitigar sua sede.
É possível, assim, observar que, du-
rante cinco séculos de invasão européia,
houve considerável grau de persistência A LÍNGUA E A MÚSICA
de valores culturais. Em especial quanto
aos valores músico-religiosos, o reper- A tarefa de estudar as tradições perua-
tório poderá estar moldado em matrizes nas do período colonial e, no nosso caso,
européias, mantendo um elo com a músi- especialmente a música, inclui, necessaria-
ca espanhola de tradição oral, embora se mente, conhecer algo da língua quéchua.
possam observar grandes interferências Conhecer a cultura inca significa também
das músicas indígenas tradicionais, como conhecer a língua do Tahuantinsuyu4, o
se verá abaixo. grande Império Inca. Barrenechea acredita
Quanto ao comportamento coletivo do que estudar quéchua é estudar a própria
povo em relação à invasão européia, apesar cultura peruana e, através dela, todo o
de se perceber reações de desespero e revol- legado espiritual dos incas. Descobrir os
ta3, verifica-se, também, uma consciência segredos da Runa simi, da “língua impe-
de fato consumado, tendendo para aceitação rial”, é, como expressa Barrenechea, “uma
da nova situação. tarefa secular, na qual se somam esforços
No caso do resgate de sua história, de investigadores coloniais e republica-
houve, nas últimas décadas, um forte nos, desde que, em 1560, o frade andaluz
movimento de ênfase dos valores tra- Domingo de Santo Tomás descobriu a es-
dicionais, patrocinado tanto por órgãos trutura da língua e copiou seus vocábulos”
oficiais quanto por movimentos populares (Barrenechea, 1999, p. 87).
em vários pontos do país. Isso quer dizer O interesse pelo aprendizado do quéchua
que se devem considerar dois aspectos foi geral no século XVI. A pretensão dos
na preservação da cultura tradicional: o sacerdotes europeus era captar a alma in-
aspecto oficial, quando se associam forças dígena fundindo-a com o espírito cristão.
3 Como exemplo dessa re-
volta, basta lembrar que, por
do poder público na organização de gran- A finalidade era ganhar almas para o cris-
ocasião das comemorações des festas comemorativas. Bom exemplo tianismo mas, ao mesmo tempo, recolher
internacionais dos 500 anos
da “descoberta” da América, disso é o renascimento do Inti Raymi, a a mensagem da terra. Se o obstáculo à di-
milhares de quéchuas saíram às festa ao deus Sol. Em 1944, por iniciati- vulgação do cristianismo era a língua, duas
ruas de Cusco vestindo negro,
em sinal de tristeza e luto. va de políticos e líderes do movimento políticas podiam ser seguidas pelo invasor:
4 Tahuantinsuyo é o nome original neoindigenista, estabeleceu-se a Semana a de exterminar a língua indígena ou a de
dado pelos incas ao conjunto
dos territórios governados por
de Cusco e declarou-se o dia 24 de junho conservá-la, estudando-a e aprendendo-a.
sua monarquia. O termo faz como o dia da festa maior, o início do O espanhol optou pela segunda.
referência à divisão territorial
do Império Inca em quatro novo ano solar, dispondo-se como evento Frei Domingo produziu a primeira
suyos, ou regiões, que estavam principal a evocação do Inti Raymi na gramática da língua falada pelos incas e
vagamente identificadas com
as quatro direções dos pontos esplanada de Sacsayhuaman, evento esse desconhecida dos colonizadores, bem como
cardeais e que confluíam para
a capital, Cusco, origem de tradicional do povo inca, secular, mas providenciou uma lista de palavras com
caminhos, origem das quatro que havia sido proibido pela igreja desde suas equivalentes castelhanas. Foi ele quem
direções, das quatro províncias
e centro do universo, segundo o início da colonização. Foi a tentativa, batizou a Runa simi (língua do império)
a cosmovisão andina. O termo
é quéchua: de tahua, que
bem-sucedida, de valorizar o passado inca com o nome de quíchua. Barrenechea en-
quer dizer “quatro”, a que da cidade. Mas há também o aspecto não- tende que essa tarefa tinha duplo interesse:
se acrescenta o sufixo -ntin,
“junto”, “conjunto”; e suyo, oficial, isto é, aquele em que a população estímulo apostólico na tarefa evangelística,
que quer dizer “região”. Então decide onde, quando e como se darão suas mas também amor e curiosidade pelas ma-
Tahuantinsuyo significaria “As
quatro regiões unidas”. festas e reuniões tradicionais. nifestações do espírito índio.

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CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
LINGÜÍSTICA
A teoria antropológica fala do conceito
de identidade étnica, ou etnicidade, como
construção histórica. De fato, no caso do
Peru, é com o trabalho dos religiosos do
século XVI que começa a nascer uma
unidade lingüística desconhecida anterior-
mente, e com ela um espírito de identidade
e unidade cultural como talvez o povo inca
ainda não tivesse experimentado. Antes
da invasão espanhola, em 1532, o sul do
Peru era extraordinariamente diversifica-
do, tanto lingüística como culturalmente.
Era um mosaico no qual conviviam, mais
ou menos isolados, falantes de estranhas
linguagens e de línguas distintas, até de
diferentes troncos. Sigfried Huber acredi-
ta que a diversidade se dava em todos os
aspectos entre os povos que constituíam o
grande Império Inca: “Este era, de fato, um
mosaico, um amálgama de civilizações e
crenças diversas, um estado artificialmente
formado de elementos heterogêneos” (Hu-
ber, 1964, p. 56).
É fato que os incas pré-colombianos
falavam quéchua e usavam a língua na
administração do seu vasto império. Mas
não há qualquer evidência de que a língua
tenha se tornado hegemônica (Mannheim,
1998, p. 384), ou que tivesse sido língua
comum antes da invasão européia, mesmo
nos núcleos das cidades incas ao redor de
Cusco (Mannheim, 1992, p. 231). Huber
conta que quando Pachacutec5 dominou
o povo de Hatun-Colla, anexando-o ao 5 Com Yupanqui Pachacutec,
o nono soberano inca, cujo
império, realizou as reformas que achou reinado começou, parece,
por volta do ano 1400, a
necessárias e partiu de volta a Cusco, dei- dinastia inca saiu das sombras
xando uma guarnição e um governador de da lenda e entrou na história.
O sobrenome Pachacutec ou
sua confiança. Entretanto, a estrutura admi- Pachacuti significa “aquele
que recuperou o país”, o que
nistrativa permaneceu a mesma da época parece ser justo já que ele
do antigo chefe, Chuchi Capac. Quanto à tornou-se conhecido como
o salvador do reino inca
língua, apenas os membros da classe mais e ainda como reformador
alta aprenderam quéchua (Huber, 1964, p. religioso e grande edificador.
Foi sob seu reinado que se
93). De fato, nada indica que os dirigentes construíram, em especial na
capital Cusco, mas também
incas exigissem dos povos dominados o uso por todo o Tahuantinsuyu, os
da “língua imperial”. Ao contrário, e este monumentos cujas proporções
e riqueza maravilharam os
é um fato muito bem documentado pelo espanhóis.

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arqueologista Craig Morris, as conquistas XVI, assim, a Igreja adotou um único
daquele grande império foram alcançadas catecismo e um sermonário, publicado
por sua habilidade de aceitar, utilizar e até em uma versão unificada de quéchua e em
mesmo estimular a variedade e as diferenças aymara. Esse material foi usado por todos
características de cada povo (Morris, 1985, os povos andinos colonizados, mesmo
p. 478). E isso vale tanto para a língua quanto por povos que falavam outras línguas.
para a economia e a sociedade inca. Assim, administradores espanhóis e mis-
Nas décadas que se seguiram à chegada sionários religiosos tornaram-se agentes
dos europeus, uma política de “unir para de expansão e sistematização do quéchua
converter e governar” levou os espanhóis e do aymara.
a sistematizarem e exigirem o uso de uma Em 1579, consolidando a preponderân-
das línguas nativas mais amplamente difun- cia do quéchua, criou-se a cátedra da Lengua
didas, mesmo com sacrifício de linguagens General na Universidade San Marcos, em
vernaculares locais. Elegeram o quéchua e Lima, designando-lhe orçamento próprio.
passaram a aprendê-lo, definindo-o como a Estabeleceu-se que os sacerdotes não po-
língua nativa “oficial”. Assim, os principais deriam ordenar-se sem saber quéchua, nem
responsáveis pela unidade lingüística dos os licenciados e bacharéis obteriam seus
povos incas foram, paradoxalmente, os graus universitários se não estudassem a
prelados, os concílios, a universidade e as lengua general. O quéchua adquire, assim,
congregações religiosas. na cultura sul-americana, a utilidade e o
Três concílios eclesiásticos se realizaram status de um “latim indígena” (Barrenechea,
no Peru do século XVI. O primeiro, em 1999, p. 180).
1551, enfatizou a importância de se traduzir Como conseqüência, a identificação da
para o quéchua orações e regras cristãs, e língua com a localidade, que vinha sendo
estimulou a redação de cartilhas, colóquios a base do sistema pré-colombiano de dife-
e catecismos bilíngües e trilíngües, em renciação lingüística e cultural dos povos
quéchua, aymara e puquina. O segundo que formavam o Tahuantisuyo, foi se per-
concílio, em 1567, ordenou a publicação dendo. Antigas diferenças culturais entre
de catecismos em quéchua e aymara. O ter- os nativos dos Andes tornaram-se menos
ceiro, em 1583, já enfatizava que a própria importantes, já que agora todos cabiam
prédica deveria ser em quéchua. Finalmente, em uma nova categoria colonial: índios
o próprio Virrey Velasco ordenou, em 1599, (Stern, 1982, p. 80). Bruce Mannheim,
que os jesuítas fossem os responsáveis em seu The Language of the Inka since
por cuidar da qualidade do quéchua e do the European Invasion, chamou esse pro-
aymara na região de Cusco e exortou-os cesso de “reterritorialização do Quéchua
a, de fato, pregarem seu sermão dominical sul-peruano” e defendeu que a retórica e
na língua inca. a prática de uma cultura uniforme por 450
No convento máximo dos jesuítas fun- anos, desde a invasão espanhola, fizeram
cionou uma academia de línguas indígenas nascer entre os quéchuas sul-peruanos uma
da qual participaram os melhores lingüistas consciência de povo e de unidade, algo que
criollos e espanhóis vindos de todo o Peru. nunca acontecera anteriormente.
Um dos resultados do trabalho dessa acade- Assim, nas paróquias cristãs, à mar-
mia foi a publicação de um livro com texto gem do lago místico, ou na costa, junto
bilíngüe, o primeiro livro peruano e de toda ao oceano, ao pé do antigo oráculo de
a América do Sul, a Doctrina Cristiana Pachacamac, os sacerdotes espanhóis re-
para Instrucción de Indios, Traducida en petiram em quéchua ao índio naturalista e
las Dos Lenguas Generales destos Reynos, adorador do Sol e dos luzeiros, sacrifica-
Quíchua y Aymara, impresso em 1584 dor de lhamas e de crianças, os primeiros
pelo italiano Antonio Ricardo, introdutor artigos de fé do dogma cristão, traduzindo
da imprensa no Peru e que chegara a Lima pela primeira vez o ensino cristão para o
em 1580. Na segunda metade do século quéchua: “Diosman sonco canqui, tucuy

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yma haycacta yallispa: puna maciyquitari
quiquiyquicta hina munanqui” (“Ama a
“Siwarsituy” e “Llama Michiq”
Deus sobre todas as coisas e a teu próximo
como a ti mesmo”)6. O “Siwarsituy”, a canção do beija-flor
azul, é canção tradicional inca e o texto,
naturalmente escrito em quéchua, conta
de um beija-flor azul que sai a voar alegre-
APROPRIAÇÃO CULTURAL mente depois de noite escura e chuvosa.
Sua estrofe diz:
Quando se estudam os textos da música
do período colonial andino, escritos em es- “Ima kusin paqarimun, siwarsituy,
panhol, em quéchua ou latim, fica claro que k’ancharikunmi tutapas, siwarsituy.
foram adaptados pelos que produziram esses Para tukuykuy q’uchukuyri, siwarsituy,
textos, preponderantemente os próprios sullari Hanaqpachamanta, siwarsituy”.
sacerdotes espanhóis, e interpretados por
aqueles que passaram a cantá-los, os cam- (“Que alegre amanhecer, meu
poneses e índios que falavam quéchua. [beija-florzinho azul,
Mas há outro acervo musical importante, Ilumina também a noite, meu
as muitas canções religiosas anteriores à [beija-florzinho azul.
colonização, compostas nas diversas línguas Depois da chuva, alegria, meu
andinas e que foram preservadas. Vários [beija-florzinho azul,
desses antigos hinos incas tiveram seus Neblina do céu, meu beija-florzinho
textos trocados, adaptando-se neles textos [azul”).
cristãos. Muitos destes são cantados até os
dias atuais. Em Cusco, por exemplo, cele- Os missionários cristãos, porém, apro-
bra-se um dia santo especial, o dia do Señor priaram-se do “Siwarsituy”, que passou a ser
de los Temblores, e durante o dia todo se cantado como canção de Natal para crianças.
cantam pela cidade as antigas canções incas, Para isso foi necessário dar ao texto uma
anteriores à colonização européia. conotação que ele nunca tivera na origem,
É nesse contexto que ganham importân- atribuindo às frases sentido figurado, valor
cia os três textos que passaremos a analisar, metafórico. O “alegre amanhecer”, então,
dois villancicos tradicionais – “Siwarsituy” passou a significar o novo tempo após
e “Llama Michiq” – e o texto do “Hanaq o advento de Jesus. “Iluminar a noite” e
Pachap”. “depois da chuva” descreveriam a chegada
Villancicos são canções corais do século desse novo tempo, radiante, iluminado, após
XVI, freqüentemente para o período do Na- a era de escuridão que cobriu a terra e os
tal, mas também para outras datas festivas. povos, referência ao nascimento do Cristo
Nos mais conhecidos villancicos andinos como a chegada da luz, segundo a profecia
cujas músicas têm forte influência espa- bíblica: “O povo que andava em trevas viu
nhola, as letras são freqüentemente mistas, grande luz, e aos que viviam na região da
partes andinas, partes espanholas. Alguns sombra e da morte, resplandeceu-lhes a luz”
deles, mesmo que reinterpretados pela ótica (Is 12.2). O beija-flor, por sua vez, vivo, 6 É belíssimo o poético comen-
tário desse fato feito por Bar-
cristã, pertencem, estilisticamente, a uma ar- alegre, passou a ser comparado ao próprio renechea, em seu indispensável
caica tradição inca7. Os dois villancicos que Menino Jesus! artigo “Indagaciones Peruanas:
El Legado Quéchua”. É dele
analisaremos são a interpretação popular, Curiosa essa forma de apropriação do boa parte das expressões
anônima, de criação coletiva que os povos texto, integral, direta, alterando-lhe, porém,
em quéchua que utilizo neste
trabalho.
andinos fizeram da cultura cristã espanhola, o sentido, atribuindo-lhe novo significado, 7 Devo à professora Flor Canelo,
que tipificam substancialmente diferentes simbólico, emblemático e apropriado ao estudiosa da música tradi-
cional andina, pesquisadora
estratégicas retóricas, aproximando o cris- novo ensino religioso. na cidade de Cusco, muitas
tianismo europeu e o mundo andino por Em “Llama Michiq”, porém, a situação das informações sobre os vil-
lancicos tradicionais peruanos
dois caminhos diferentes. é outra. O texto, embora originalmente em que aqui aparecem.

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quéchua, foi escrito, já, evidentemente de que permite ao camponês, mesmo que se
uma ótica cristã: o tema central é a viagem admita cristão, estando entre os seus iguais
até Belém, local do nascimento de Jesus: respeitar as tradições e cumprir os ritos
ancestrais do culto praticado por seu povo.
“Llama michiq, samiyuq runa, Freqüentemente vemos quéchuas e aymaras
hakuchu Belen portalman. carregando cruzes cristãs em alguma pro-
Belen portalman chayaykuspa cissão católica, gente que orgulhosamente
kamaqninchista kusichisun”. informa manter as milenares tradições do
seu povo, mesmo que não explique exata-
(“Pastor de lhamas, homem que dá alento mente o que isso significa. Oficialmente,
[fôlego], afinal, 97,2% da população peruana se
vamos ao portal de Belém. define “de religião cristã” e, dentre esses,
Quando chegarmos ao portal de Belém 95,7% católico-romana9. Somente 6,3% se
alegraremos o nosso Criador”). admitem de dupla filiação e – ainda mais
interessante – apenas 1,3% diz pertencer
O que temos aqui é a figura do pastor de a “outras” religiões, onde, supomos, deve
lhamas, personagem tradicional da cultura estar incluída a religião inca.
inca, que, na canção, é convidado a ir até Antes de pensar em corrupção de anti-
Belém alegrar o Criador. Os costumes e gas tradições, porém, devemos nos lembrar
crenças da região, porém, foram enfatizados que esses povos vivem num mundo de
de forma discreta mas poderosa: o pastor dualidades e sincretismos. Conseguem de
de lhamas é chamado de “homem que dá o forma absolutamente natural participar de
alento”, o fôlego. Ora, “dar alento”, no mundo uma missa e, no momento seguinte, prestar
andino, samiy em quéchua, quer dizer “fazer culto à sua entidade familiar, representada
oferendas à mãe terra”, atribuição dos sacer- por uma montanha. Muitas comunidades
dotes do culto a Pachamama, a Mãe Terra, de camponeses e indígenas, após cele-
a quem “dão o pago” com folhas da coca8. brarem, por exemplo, um casamento na
No villancico do “Llama Michiq”, estaria o cidade, numa igreja cristã, oficiado pelo
8 Novamente devo referir-me à
profa Flor Canelo, importante pastor de lhamas simbolizando o sacerdote pároco local, partem para seus vilarejos,
estudiosa das tradições musi-
cais incas. Sua resposta (em inca, convidado, ele também, a visitar o onde repetem a cerimônia, dessa vez sob
correspondência de 11 de Menino Jesus para alegrá-lo, prestar-lhe sua a bênção de um líder social e religioso do
novembro de 2005) às minhas
dúvidas sobre o sentido de “dar homenagem, fazer-lhe oferendas, como fazia povo e segundo seus próprios costumes.
fôlego” para os quéchuas é tão
a Pachamama? Ou o pastor seria apenas um Entre a bênção do Deus católico e as antigas
pertinente que a transcrevo
aqui integralmente: “Acerca camponês humilde, sem maiores atribuições tradições, eles ficam com as duas. Alguns
de tu pregunta sobre el Llama
Michiq, la voz quechua samiy além de cuidar bem de seus animais, dando- sacerdotes cristãos aprenderam logo, des-
significa dar aliento en sentido lhes bom alimento, não havendo aí qualquer de o início da colonização, a aceitar essa
ritual. Samiyoq es el que da su
aliento. Siempre que se hace outro significado simbólico? postura nativa.
un pago a la Pachamama o
a los Apus (espíritus tutelares O fato indiscutível é que, até nos dias Aqui já se verifica algo que discutiremos
de las montañas, lagos y ríos atuais, inúmeros camponeses de fala de forma mais aprofundada a seguir, quando
grandes), se hace un ‘kintu’ de
coca (3 hojas de coca unidas quéchua ou aymara, que evidentemente nos aproximarmos do hino “Hanac Pachap
por el palito) y se sopla con
conservam tradições centenárias tanto Kusikuynin”, a possibilidade de uma dupla
dirección a los Apus, para
transmitir la energía del que em sua vida cotidiana quanto em sua vida interpretação do texto, uma acomodação
sopla, su aliento vital. Esta
ceremonia de dar aliento sólo religiosa – se é que para os incas exista conveniente, satisfazendo tanto os sacer-
se hace con el ‘kintu’ de coca divisão assim tão nítida entre cotidiano dotes cristãos quanto os nativos falantes
en momentos muy especiales
como el pago a la tierra. No e religião –, não hesitam em freqüentar da língua quéchua, que podiam cantá-lo
existe el término samiyoq como
hombre que da su aliento, por igrejas cristãs, participar de todas as festas imaginando a continuação de suas velhas
ejemplo, como para resucitar religiosas cristãs das cidades próximas da práticas religiosas. Defendemos que essa
a alguien. No es su aliento
vital, es algo religioso, ritual” montanha onde vivem. Em seu “¿Puede un foi uma curiosa estratégia para salvaguardar
(os sublinhados são meus).
Campesino Cristiano Ofrecer un ‘Pago a seus cultos nativos ancestrais: obrigados a
9 Dados do censo de 2000, la Tierra’?”, Manuel María Marzal (1971) aceitar à força a religião do colonizador, os
publicados no Almanaque
Abril Mundo, 2005. discute exatamente esse tipo de sincretismo, nativos esconderam seus cultos e deidades

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originais mesclando-os habilmente com os Pérez Bocanegra era um estudioso da
ritos e santos cristãos (Mazón, s/d, p. 11). cultura quéchua, e seu manual revela uma
profunda familiaridade com a vida andina.
Inclui informações sobre interpretação de
“Hanaq Pachap Kusikuynin” sonhos e outras formas de adivinhação, de
práticas de casamentos entre os nativos…
O “Hanaq Pachap Kusikuynin” é um Franciscano da Ordem Terceira, Bocanegra
hino cristão. Embora seu texto seja ori- envolveu-se em longa disputa jurisdicional
ginalmente em quéchua, estilisticamente com os jesuítas que cobiçavam sua paróquia
é claramente calcado na tradição musical para torná-la centro de treinamento da língua
européia. Apareceu primeiro como apêndice quéchua para missionários, semelhante ao
ao manual de culto de um religioso, para centro de treinamento da língua aymara
ser cantado nos dias de festas litúrgicas que que eles já haviam estabelecido em Juli. O
celebravam a Virgem Maria. Para os nativos, Ritual Formulario foi publicado durante um
porém, passou a evocar também deidades período no qual os jesuítas tinham algum
andinas, o que pode ser chamado “ambi- controle sobre sua paróquia, o que também
güidade estratégica”, fenômeno semelhante se vê refletido em suas preocupações e reco-
ao que se dá no “Llama Michiq”, só que de mendações práticas anotadas no Ritual.
forma bem mais sofisticada. Para compreendermos algo sobre a
O “Hanaq Pachap” está incluído no Ritu- disputa entre Bocanegra e os jesuítas que
al, Formulario e Institución de Curas para dominaram o Concílio de Lima de 1583,
Administrar a los Naturales con Advertencias basta observar que estes recomendavam
muy Necesarias, do sacerdote franciscano que os sacerdotes ouvissem regularmente
de Andahuaylillas, Juan Pérez Bocanegra, as confissões dos seus fiéis, e ordenavam
publicado por Geronymo de Contreras, no veementemente que confessassem neces-
Convento de Santo Domingo, em 1631. Nessa sariamente toda a comunidade; Bocanegra
edição, o hino traz a seguinte informação: explicitamente desencorajava tal prática
“va compuesta en música a quatro vozes, (Mannheim, 1998, p. 392). O Terceiro Con-
para que la canten los cantores, al entrar a la cílio de Lima, embora recomendasse o uso
Iglesia”. Como já se disse, estava escrito em do quéchua na prédica, temendo distorções
quéchua. Não trazia qualquer tradução para o do vocabulário religioso cristão em traduções
espanhol, vinha no final do Ritual Formula- para aquele idioma das partes fixas da liturgia,
rio, e foi definido por Pérez Bocanegra como recomendou que o espanhol fosse utilizado
para ser cantado durante a processional dos durante a celebração litúrgica. Bocanegra,
cantores. De acordo com Stevenson (1968, porém, queria adaptar os conceitos religio-
p. 280), essa é a mais antiga obra polifôni- sos cristãos ao imaginário andino, aceitando
ca vocal publicada na América, composta até mesmo uma tradução do nome de Dios
num estilo que, excetuando-se a língua, não pelo nome da montanha Huanacauri. Em
traz nenhum sinal de proveniência andina. seu Formulario não hesitou em usar textos
Bocanegra, para alguns o provável autor do em espanhol e adaptações para o quéchua.
hino (embora haja grande controvérsia sobre No caso do “Hanaq Pachap Kusikuynin”,
esse fato), ensinava gramática latina na Uni- como se disse acima, Bocanegra não incluiu
versidade de San Marcos, em Lima, atuava qualquer tradução para o espanhol. Se foi
como cantor na catedral de Cusco, foi o re- ele mesmo o autor do texto ou outro poeta
visor do livro do coro, e ainda era sacerdote qualquer, o fato de tê-lo publicado revela-nos
numa das igrejas da cidade de Cusco, antes sua preocupação em adaptar os conceitos
de assumir a posição de consultor-geral de cristãos à religião andina tradicional.
quéchua e aymara para a diocese de Cusco, O hino tem 20 estrofes, a última delas é
ou de pároco de Andahuaylillas (província um “Gloria Patri”. Transcrevemos abaixo
de Quispicanchi), uma vila ao sul de Cusco apenas as três primeiras, mais conhecidas
(Mannheim, 1991, pp. 47-8). e mais comumente cantadas hoje:

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“HANAQ PACHAP10 em estrofes cujos versos rimam, recursos
estilísticos desconhecidos dos quéchuas.
1. Hanaq pachap kusikuynin Mas há outras ambigüidades, mais
Waranqakta much’asqayki sutis, não apenas no estilo poético: a es-
Yupay ruru puquq mallki sência do texto e as imagens criadas são
Runakunap suyakuynin passíveis de múltiplas leituras. À primeira
Kallpannaqpa q’imikuynin vista, utiliza símbolos clássicos ou epítetos
Waqyasqayta cristãos tradicionais da Virgem como “mãe
de Deus”, “esperança da humanidade” ou
2. Uyariway much’asqayta “árvore que dá fruto”. Até mesmo a maior
Diospa rampan, Diospa maman parte dos símbolos celestiais, dos quais o
Yuraq tuqtu hamanq’ayman hino é repleto, está firmemente fundada
Yupasqalla qullpasqayta em imagens poéticas e iconográficas bem
Wawaykiman suyusqayta conhecidas, como a associação de Maria
Rikuchillay com a Lua, presente em inúmeras pinturas
medievais e figura próxima ao epíteto de
3. Chipchiykachaq qatachillay Maria maris stella, “Maria estrela do mar”,
P’unchaw pusaq qiyantupa freqüente na Idade Média.
Qam waqyaqpaq, mana upa Mas há passagens do hino obviamente
Qizaykikta “hamuy” ñillay estranhas à tradição cristã, como, por exem-
Phiñasqayta qispichillay plo, a insistência na evocação da fertilidade
Susurwana”. da Virgem Maria, especialmente louvando-a
como fonte de fecundidade agrícola. Logo
na estrofe 1, a linha 3 traz “Yupay ruru puquq
(Uma possível tradução11: mallki”, que tanto pode ser traduzido por
“árvore que amadurece fruto valioso” como
“1. Alegria do céu também “árvore de incontáveis frutos”. Na
Mil vezes eu te adoro [eu te beijarei] estrofe 6, a linha 36 diz “Kawzaq pukyu”,
Árvore que amadurece fruto valioso algo como “primavera que faz germinar”.
Da humanidade a esperança Na estrofe 7, linha 37, “miraq-suyu” quer
Dá força e seu sustento dizer “domínio da fertilidade”; e a estrofe
Ao meu chamado 13, linha 73 traz “Ñukñu ruruq chunta
mallki”, “palmeira que dá frutos tenros”.
2. Escuta minha adoração Encontramos ainda, na estrofe 13, linha 74,
Guia de Deus [pela mão], mãe de Deus “Runakunap munay kallcha”, algo como
Branca pomba, alva flor de açucena “bela colheita dos povos”; e na estrofe 19,
10 Há diferentes transliterações
do texto quéchua. A que Considere meu pranto [valorize meu choro] linha 111, “Qhapaq mikuy aymuranqa”,
aqui adotamos é a usada por
Manheim em seu A Nation Ao teu filho, meu desejo [ânsia] “grande colheita de alimentos”. É verdade
Surrounded (1998). Faz saber que podemos sempre encontrar uma expli-
11 Desconhecemos qualquer cação “cristã” para todos esses epítetos da
tradução para o português. O
que aqui está é nossa tentativa, 3. Que brilha, Plêiades virgem. Mas também é verdade que não
a partir de várias gramáticas e Guia da luz do dia e da aurora são tão comuns assim expressões como
dicionários da língua quéchua,
bem como em consulta às O que a ti suplica sempre é ouvido “primavera que faz germinar”, “domínio
várias traduções do hino para
o espanhol e a algumas para o Ao desprezado dizes ‘vem’ da fertilidade”, “bela colheita dos povos”
inglês, publicadas comumente Faze que Ele perdoe meu medo e “grande colheita de alimentos”, que pa-
com observações e discussões
sobre as dificuldades de cada Susurwana”). recem muito mais atributos de Pachamama
palavra. Além disso, con-
sultamos falantes da língua
do que da Virgem Maria!
quéchua e espanhola, no Peru. O hino tem óbvias ambigüidades, per- Da mesma forma, se, como dissemos
Palavras de sentido por demais
duvidoso, preferimos deixar ceptíveis logo na primeira análise: a lín- acima, algumas analogias de Maria com
sem tradução, como é o caso gua é inca, mas a música é absolutamente corpos celestes presentes no hino são co-
de “Susurwana”, no final da
terceira estrofe. européia. A poesia é métrica, concebida muns na tradição cristã, outras são muito

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estranhas. Associar Maria à “bela lua”,
como na estrofe 11, linha 61, “zuma killa”,
ENCONTRO DE CULTURAS
ou como na estrofe 11, linha 65, “Mana
yawyaq pampa killa”, “lua cheia que nunca
E ACOMODAÇÃO CONVENIENTE
diminui”, pode não surpreender ouvidos
cristãos, como também não será estranho O hino do século XVI “Hanaq Pachap
ouvirmos que a Virgem “transforma a noite Kusikuynin” esconde-se na ambigüidade de
em dia”, na estrofe 6, linha 32, “K’anchaq sua forma – uma interpretação unilateral revela
p’unchaw tutayachiq”. apenas parte do seu conteúdo. A estrutura do
Mas outros epítetos no hino identifi- hino é, pois, um “acordo” entre dois distin-
cam Maria sistematicamente com objetos tos conjuntos de convenções interpretativas.
celestes específicos de devoção feminina As imagens do texto podem ser tanto com-
dos Andes pré-colombianos. A própria preendidas segundo matrizes da ortodoxia
insistência em compará-la com a Lua pode católico-romana, como pela antiga sabedoria
parecer exagerada. Além disso, Maria é nativa andina, da relação entre corpos celestes
comparada à constelação das Plêiades e, na femininos e a fecundidade agropastoril. É o
estrofe 7, linha 40, “aklla phuyu”, “nuvem clássico double talk a que se referiu Susan
seleta”, faz referência a outra constelação, Paulson (1990), quando vozes opostas e em
objeto de adoração pré-colombiana (Man- contenda são satisfeitas “camufladamente”
nheim, 1998, p. 397). É surpreendente a por um único conjunto de formas discursivas
insistência em comparar Maria às Plêiades. (Mannheim, 1998, pp. 411 e segs.).
Logo na estrofe 3, a linha 13 traz “Chip- O hino foi escrito durante o período
chiykachaq qatachillay”, ou “que brilha, de consolidação das instituições coloniais
Plêiades”12. A constelação das Plêiades era espanholas, quando a Igreja propunha-se a
um dos principais ajuntamentos estelares evangelizar a população nativa. Ambigüi-
para os incas, utilizada no seu calendá- dade nos textos religiosos podia ser, por um
rio, assim como o Cruzeiro do Sul e as lado, uma forma de sedução, apresentando
constelações de Alfa e Beta-Centauro. Os o cristianismo com roupagem familiar, mas,
incas adoravam as Plêiades como deidade por outro, uma tentativa de reprimir o culto
e sua ênfase no hino, associada à Maria, original, pagão, associando as imagens
é surpreendente: ela ainda se repete na daquele culto antigo ao novo Deus, aos
estrofe 10, linhas 59 e 60: “qam mamayta” santos, às figuras da nova fé.
(60) “Qatachilla[y]”, isto é, “a ti, mãe, No caso específico do “Hanaq Pachap”
“Qatachillay”13. com seu texto ambíguo, o que se deu, po-
Assim, a ambigüidade é constante no rém, foi uma acomodação conveniente. É
hino a ponto de nos permitir afirmar: “Hanaq difícil definir com uma palavra o que se
Pachap Kusikuynin” é, ao mesmo tempo, passou. Parece-se com o fenômeno descrito
um hino a Maria e um hino às Plêiades, a por Pereira de Queiroz (2003, p. 40), mas
outros corpos celestes, objetos da adoração certamente vai além:
dos nativos dos Andes e, aparentemente,
às divindades femininas associadas à fe- “Cada cultura ou civilização pode adotar
cundidade da terra. Fica claro que uma traços culturais de culturas ou civilizações
interpretação unilateral do texto do hino vizinhas, sem perder sua própria perso-
não será correta ou suficiente. Enquanto os nalidade e sem chegar nunca à igualdade 12 O importante trabalho de
Zuidema analisa cuidadosa-
sacerdotes católicos colonizadores podem com a civilização copiada. A constatação mente o significado das Plêia-
des (Qatachillay) na cultura
ter compreendido o hino como um veículo desse fenômeno foi patenteada com a des- inca. Além disso, analisa sua
aceitável para a devoção a Maria, os nativos coberta do princípio de reinterpretação: ao importância no calendário
inca, bem como a do Cruzeiro
falantes da língua quéchua podem ter encon- englobar um traço cultural alheio, é este do Sul e das constelações de
trado nele uma reconfortante continuação reinterpretado em termos da cultura que o Alfa e Beta-Centauro.

da velha prática religiosa, sem que uma adota, sofrendo então transformações que 13 Qatachillay, repetimos, é o
nome da constelação das
interpretação dominasse a outra. o tornam concomitante com esta”. Plêiades em quéchua.

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O que se dá no hino incaico-cristão sobre as religiões ameríndias do continente
não é só “ambigüidade”; não é exatamen- americano, Juan Borrás (s.d.) recolheu o
te “sincretismo”, ou “hibridização”; nem seguinte depoimento de um índio:
“oposição”, nem “resistência”: devemos
falar aqui da “criação de uma zona neutra”, “Os missionários nunca nos perguntaram
comum a duas culturas; ou do resultado do nada, antes nos disseram que aquilo em que
encontro de duas culturas, no qual novas críamos não era nada além de bobagens e que
formas são geradas, enquanto ao mesmo devíamos esquecê-las. Mas, sem dúvida,
tempo configuram suas próprias comuni- nós sentíamos desde o primeiro momento
dades interpretativas. que o Deus dos cristãos, sobre o qual nos
Os sacerdotes cristãos satisfaziam-se falavam, era no fundo o mesmo que o nosso
com o fato de verem os quéchuas cantando Watauinewa”.
os ensinos cristãos. Os quéchuas, satisfeitos
com a satisfação dos sacerdotes, podiam As novas gerações vivem com um pé no
cantar a deuses novos, mas que não lhes mundo mítico dos lagos e das montanhas
eram tão estranhos, pois em muitas coisas e outro na dura realidade camponesa. Di-
pareciam-se com os seus, ou nos quais videm-se entre as maravilhas tecnológicas
os reconheciam sem muita dificuldade. mostradas pela TV e a humildade ancestral
Afinal, é evidente que milhares de nativos de suas cabanas. Contudo, ao olharem
simplesmente não entendiam a troca que diariamente para a paisagem, continuam
se lhes propunha: a vitalidade, a beleza e a a sentir a força da terra, o vento gelado e
força dos seres sagrados que diariamente cortante em seus rostos, o sol que queima
alimentavam sua vida, a terra, o sol, a água, a pele a 4.000 metros de altitude. E quando
pela imagem de um homem ferido, espan- precisarem recorrer a auxílio divino para
cado, doente, que prometia consolo para os sua sobrevivência, mesmo que repitam
sofrimentos humanos em “outro mundo”, e uma decorada oração cristã, certamente
que, como cúmulo da impotência, agoniza- olharão também para as montanhas, para
va pregado numa cruz! Para resolver essa suas huacas e para os laços de sua própria
dificuldade, milhares utilizaram a estratégia coletividade, prática discutida por Manuel
do disfarce: entre a alternativa de aceitar María Marzal (1971, pp. 120 e segs.) em seu
a cultura e a religião dos conquistadores, “¿Puede un Campesino Cristiano Ofrecer
ou de serem condenados à perseguição e à un ‘Pago a la Tierra’”?
morte, habilmente adotaram os símbolos Parece que alguns europeus já haviam
do cristianismo e seguiram praticando seus entendido esse fato muitos anos atrás, pouco
velhos ritos (Mazón, s.d.). depois da colonização, como Alonso Carrio
Talvez ainda se deva dizer que a es- de la Vandera, que, ainda em 1773, escre-
tratégia do sincretismo, inaugurada pelos veu sobre os quéchuas neoconvertidos ao
14 “[…] por medio de los cantares
y cuentos conservan muchas povos andinos na colonização do século cristianismo: “[…] por meio de canções e
idolatrías y fantásticas gran-
dezas de sus antepasados, XVI como forma de proteção das tradições e contos, conservam muitas idolatrias e fan-
de que resulta aborrecer a los espiritualidades nativas, segue mantendo-se tásticas grandezas de seus antepassados, o
españoles…” (Concolorcorvo,
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