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CRUZ, Marcio
RIBEIRO, VítorA.Eduardo
C. da e PYLRO,
Alessandri
Simone C.
CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558
A FUNDADA SUSPEITA E A
ABORDAGEM POLICIAL MILITAR
Marcio A. C. da Cruz e Simone C. Pylro
Universidade Vila Velha.
E-mail: tenentecezar@hotmail.com
E-mail: simone.pylro@uvv.br
RESUMO
Este trabalho buscou apresentar uma análise sobre os elementos concretos e sensíveis que levam
policiais militares a desconfiarem de um cidadão e abordá-lo, baseado na fundada suspeita. O
Objetivo foi discutir os principais elementos que justificam, na concepção do policial militar do
município de Vila Velha, uma construção da fundada suspeita que culmine na abordagem policial,
à luz da legislação vigente. O conflito encontra-se no conceito de fundada suspeita que não foi
definido por lei nem tampouco pelos doutrinadores, conceito que permite a ação do Estado através
do poder de polícia. A metodologia adotada envolveu a pesquisa de campo, cujo instrumento para
coleta de dados foi a entrevista em profundidade junto à policiais militares que trabalham na área do
4º Batalhão de Polícia Militar lotados na 1ª Companhia localizada no Parque da Prainha (centro), e
lotados na 4ª Companhia localizada no Residencial Jabaeté (periferia), que atuam no policiamento
ostensivo. A análise dos dados obtidos proporcionou verificar que para os policiais entrevistados a
construção da fundada suspeita se dá principalmente através do comportamento suspeito, do lugar
suspeito relacionados ao horário, principalmente na busca por drogas e armas.
Palavras-chave: segurança pública, fundada suspeita, abordagem policial.
ABSTRACT
This work sought to present an analysis of the concrete and sensitive elements that lead military
police officers to distrust a citizen and to approach him, based on the well-founded suspicion. The
objective was to discuss the main elements that justify, in the conception of the military police
of the municipality of Vila Velha, a construction of the suspected foundation that culminates in
the police approach, in light of the current legislation. The conflict lies in the concept of a well-
founded suspicion that has not been defined by law nor by the doctrinators, a concept that allows
state action through police power. The methodology adopted involved the field research, whose
instrument for data collection was the in-depth interview with the military police officers working
in the 4th Military Police Battalion grouped in the 1st Company located in Prainha Park (center),
and crowded in the 4th Company located in the Residencial Jabaeté (periphery), which operate
in ostensive policing. The analysis of the data obtained verified that for the police interviewed the
construction of the suspected suspicion occurs mainly through suspicious behavior, suspicious
place related to the timetable, mainly in the search for drugs and weapons.
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Key words: public security, founded suspicion, police approach.
19, nº 3,
1, 2014.
2017. pp. 60-85
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prever todas as condutas dos agentes policial elege um cidadão e atribui a ele
administrativos (Di Pietro, 2014). a qualidade de elemento suspeito, com
Em uma rápida análise sobre o po- base na fundada suspeita, a discriciona-
der discricionário, localizado dentro riedade inicialmente estará presente na
dos poderes administrativos, confor- percepção de elementos sensíveis (ges-
me o professor Carvalho Filho (2014), to, comportamento, atitude, ambiente)
ainda que seja um termo sem precisão ou elementos concretos (volume sob a
jurídica em seu sentido, não é uma ação cintura, materiais provenientes de cri-
livre de parâmetros e controle. O agente mes) que despertaram no profissional a
público necessariamente deve proceder sua atenção para algo que fugiu a nor-
conforme os pressupostos da norma, ou malidade (discricionariedade). Toda-
seja, legalidade e proporcionalidade. via, para materializar a intervenção do
Por isso quando se fala em discricio- Estado o profissional deverá se pautar
nariedade não se quer dizer que a von- pelos princípios legais para realizar a
tade única e exclusiva do agente público abordagem (poder vinculado).
vai prevalecer, na verdade o ato discricio- O que se deve ter em mente é que
nário não é totalmente discricionário, ele há uma diferenciação entre os poderes
é pautado pelos requisitos da Lei. Quan- que o Estado utiliza para atingir a sua
do o agente público extrapola os limites e finalidade, denominado poder de po-
pratica a ilegalidade está materializado o lícia, das ferramentas colocadas à dis-
ato arbitrário ou desvio de poder. posição do órgão institucional respon-
A discricionariedade está relacio- sável pela segurança da sociedade aqui
nada a liberdade de atuação dentro dos reconhecido como o poder da polícia,
limites traçados pela lei. Assim pode-se objetivando a preservação da ordem
concluir que a discricionariedade do pública, policiamento ostensivo, repres-
policial militar é mitigada, ou seja, será são a infração, fiscalização de trânsito e
sempre relativa quanto à competência, ambiental, condução em flagrante, au-
à forma e à finalidade do ato. O policial tuações, entre muitas ações.
militar estará subordinado ao que a lei Assim quando a Polícia Militar
dispõe como para qualquer ato vincula- exerce o Poder de Polícia ela estará li-
do. Para a prática do ato discricionário mitando ou condicionando a liberdade,
o agente público deverá ter competên- intimidade, privacidade, ou seja, direi-
cia legal, obedecer a forma prescrita em tos individuais em benefício da coleti-
lei e principalmente atender à finalida- vidade como qualquer representante do
de do interesse público. Estado. Agora quando ela efetivamente
Analisando concretamente uma age com a função de garantir a ordem
abordagem policial, na hora em que o pública através de ferramentas técnicas,
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das no roteiro, foi elaborado subcatego- dos militares com as respectivas com-
rização para cada um dos participantes. panhias e graduações foram colocados
Essa subcategorização consistiu em em caixas distintas no qual foi sortea-
agrupar as respostas dos participantes do 01 sargentos, 01 cabos e 03 solda-
ligadas diretamente aos temas: concei- dos para cada Companhia.
to, motivação, características, atitude,
lugar e horário. Os dados levantados ANÁLISE DOS DADOS
a partir do trabalho foram coletados e A discussão dos dados obtidos foi rea-
analisados com base no método clínico. lizada tomando como referência as técni-
O método clínico procura descobrir cas de análise de conteúdo de Bardin:
o que está por trás da aparência de sua “Um conjunto de técnicas de análise
conduta (Delval, 2002, p. 67), muito se das comunicações visando a obter, por
assemelha a uma conversa ou um diálo- procedimentos sistemáticos e objetivos
go. A sua essência é a interação para a de descrição do conteúdo das mensa-
construção de idéias e opiniões. O que gens, indicadores (quantitativos ou não)
o diferencia de outros métodos é a in- que permitam a inferência de conheci-
tervenção sistemática do pesquisador mentos relativos às condições de produ-
diante da atuação do sujeito e como res- ção/recepção (variáveis inferidas) destas
posta às suas ações ou explicações, pois, mensagens (BARDIN, 2011, p. 47)”.
procura analisar o que está acontecen- Durante a análise das entrevistas foi
do e esclarecer seu significado, com in- possível verificar uma situação que pou-
tervenções e perguntas guiadas. Cada co é levado em consideração: a fundada
participante constrói representações suspeita por parte do cidadão. Quando
da realidade à sua volta e revelam isso uma pessoa liga para o telefone 190 e
ao longo da entrevista ou de suas ações relata que tem um elemento suspeito
(Delval, 2002). realizando alguma atitude suspeita, tra-
Dentro das equipes de serviço há jando tais vestimentas, com tais carac-
policiais militares de várias graduações terísticas, significa que a fundada sus-
como Sargentos, Cabos e Soldados, pro- peita partiu de uma pessoa que não atua
porcionalmente ao tempo de serviço, tra- na esfera da segurança pública, mas de
zendo em suas trajetórias profissionais certa forma tem consigo enraizado esse
significativa carga de conhecimentos e conceito de “elemento suspeito”. Todo o
experiências na atuação como policiais. significado dessa expressão também foi
O processo de escolha amostral absorvido pela população, então não é
consistiu em um sorteio onde o efetivo só o policial militar que desconfia, que
policial da 1ª e 4ª Companhias foram suspeita; mas qualquer pessoa que ob-
separados por graduações. O nome serva uma cena fora do “normal” tam-
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bém constrói essa percepção. Assim, a cebido que apesar do tempo decorrido
discussão sobre a discricionariedade entre a sala de aula e a atividade práti-
do policial em abordar quem ele quiser ca muitos entrevistados trouxeram ele-
fica fragilizada diante da possibilidade mentos que foram ensinados no curso
de a ação da busca pessoal ser direcio- de formação ou aperfeiçoamento. Al-
nada por outra pessoa. guns entrevistados, embora não elabo-
A diferença vai estar justamente na rassem respostas com termos técnicos,
percepção dos elementos concretos e apontaram o comportamento como o
sensíveis que vão culminar na aborda- principal fator gerador da suspeição.
gem, porque nessa situação o policial Aliado a isso foi percebido elementos
não presenciou a atitude suspeita, não como gestos, observação de volume
visualizou armas ou uma saliência so- na cintura fora do normal, objetos
bre a blusa, objetos provenientes de semelhantes provenientes de ilícitos,
furto, consumo de drogas, mas mesmo leitura corporal como nervosismo
assim ele é enviado para o local com o aparente, reações inusitadas, arremes-
objetivo de identificar esse cidadão, que sar algo no chão, mudança de atitude
passou a ser suspeito aos olhos de um ou direção, sinalizar a aproximação
outro cidadão, para abordá-lo. da viatura, ou seja, elementos que na
Tem-se dois tipos de situação que percepção do profissional de seguran-
desencadeiam a ação da polícia: a pri- ça pública fogem à normalidade.
meira pode ser provocada pelo cidadão Outra descoberta importante nas
que através do telefone 190 relata uma entrevistas foi o que Silva (2009, p. 59)
situação ao qual está presenciando e chamou em sua pesquisa de “saberes
considera suspeita. A outra situação policiais” ou “currículos ocultos”, conhe-
parte da iniciativa do próprio policial cimentos adquiridos pelos policiais de
que com sua percepção criou uma sus- maneira informal, durante a vivência da
peição sobre a atitude de alguém que prática profissional. Vários entrevista-
chamou sua atenção, saindo de uma si- dos enfatizaram que durante o período
tuação comum dentro de um determi- de formação o conteúdo teórico sobre a
nado cenário e atribuindo a alguém a fundada suspeita ministrado em sala de
qualidade de suspeito. O resultado será aula era bem abrangente, contudo, a ên-
o mesmo, ou seja, a abordagem policial fase principal foi que a atividade policial
com base na fundada suspeita própria se aprende é na prática, no dia a dia.
ou de terceiros com emprego dos mais Uma característica muito peculiar
diferentes níveis de técnica policial. destacada pelos militares nas entre-
Ao analisar as respostas referente ao vistas foi o aprendizado reiterado pela
conceito da fundada suspeita foi per- prática conhecida no meio policial
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como tirocínio. O tirocínio é uma per- do grupo afirmou que não havia pres-
cepção mais apurada de fatos que estão são dos superiores hierárquicos para
relacionados à atividade prática, situa- que realizassem abordagens, embora
ções que se repetem no cotidiano e dão todos fossem uníssonos em dizer que a
ao policial uma visão diferenciada do prática da abordagem policial era uma
caso concreto. Seriam ensinamentos atividade constante.
complementares ao que é trazido na Esse questionamento se torna per-
sala de aula pela teoria. tinente ao se avaliar a liberdade do po-
Em outras palavras, é possível que licial em realizar seu trabalho de forma
policiais desenvolvam uma concepção livre e, consequentemente, ter liberda-
pessoal sobre as características do sus- de na hora de conceber os elementos
peito durante suas várias interações que compõem a fundada suspeita. A
com os cidadãos, ambiente, situações, pressão dos superiores por resultados
seja em abordagens ou seja em respos- poderia tirar do profissional, que está
ta às chamadas do 190. Assim, o po- na ponta da execução, a discricionarie-
licial poderia configurar modelos sub- dade de escolher o momento certo para
jetivos de uma variedade de tipos de realizar a abordagem em troca de cum-
encontros entre a polícia e o cidadão, primento de metas.
podendo criar uma figura daquilo que Um fato muito interessante cons-
considera uma fundada suspeita. tatado nas respostas dos participantes
Uma das perguntas do questionário foi que após a busca pessoal os entre-
tentou investigar se havia uma pressão vistados explicam ao cidadão abordado
dos escalões superiores para que os po- o motivo que levou os policiais a rea-
liciais realizassem abordagens durante o lizarem a abordagem, independente-
turno de serviço, sendo que apenas dois mente se foi uma suspeição do próprio
policiais do grupo de dez entrevistados policial ou se foi uma demanda de um
disseram que se sentiam pressionados a cidadão que acionou o 190. Isso leva a
realizar abordagens. Essa resposta veio inferir que as abordagens são baseadas
acompanhada da justificativa de que, em uma suspeita fundamentada em ele-
por atuar em grupo de policiamento mentos concretos ou sensíveis na per-
especializado, havia uma cobrança por cepção do policial ou do cidadão, isto é,
produtividade na apreensão de drogas nas entrelinhas percebe-se que a apro-
e armas. Outro argumento elencado foi ximação do policial é motivada por ele-
a necessidade que a instituição tem de mentos captados a partir da interação
produzir dados através das ocorrências policial versus cidadão.
geradas pelas abordagens para apresen- Pinc (2014) define muito bem em
tar estatísticas à sociedade. O restante poucas palavras esse contexto: “O poli-
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cial deve ter clareza sobre o motivo da O diagnóstico apontado por Silva
escolha, se ao final da abordagem não (2009) muito se assemelha a percepção
souber explicar, é porque aquela abor- dos policiais do 4º BPM que durante
dagem não deveria ter sido realizada o encontro com o cidadão em atitu-
(2014, p. 41) “. de suspeita formulam perguntas para
Uma característica que se repete tentar identificar se a pessoa abordada
durante a abordagem são as perguntas possui algum registro criminal, se está
direcionadas a pessoa que se encontra com mandado de prisão em aberto, se
na situação de suspeito. Quase sempre é conhecido da guarnição em virtude
estão ligadas a identificação da pes- de outras abordagens ou envolvimento
soa como nome, idade, filiação (revela com o tráfico de entorpecentes ou ain-
quem são), onde mora, para onde está da em que região ele mora, o que pode
indo, o que está fazendo naquele local traduzir o estigma geográfico.
(designação geográfica), se trabalha ou Tentar padronizar as características
estuda (estatus social), tentando captar consideradas suspeitas pelos policiais
informações para descartar ou reafir- pode ser uma ação estéril, pois, cada ser
mar a fundada suspeita. humano carrega consigo valores e con-
Esta fase da entrevista foi mui- ceitos construídos durante uma vida de
to bem descrita na pesquisa de Silva aprendizados e interações. A ideia de
(2009) em que ele cria categorias para a formatar condutas, comportamentos,
condição de suspeitos percebidos pelos ou regras sociais em um mundo glo-
Policiais Militares do Distrito Federal, balizado pode acabar gerando estereó-
iniciando pelo Suspeito Judicial quando tipos e discriminações (Becker, 2008).
já houve uma comprovação pela justi- Essa questão foi percebida nas respostas
ça do ato criminoso, depois o Suspeito dos entrevistados quando questionados
Criminal em que o cidadão teve algum sobre as características que o elemento
envolvimento criminal que marcou a suspeito demonstra e que desperta no
sua reputação social, passando pelo In- policial ou na sociedade a desconfiança.
divíduo Suspeito que seria um tipo de Ainda que a resposta esperada fosse jo-
controle social do ambiente exercido vens, negros ou pardos, do sexo mascu-
pelos policiais, a Ação Suspeita em que lino, bermudas largas e folgadas quase
os policiais buscam no comportamen- caindo, cordões, brincos e piercing, bo-
tos, gestos, olhares, movimentos, ações nés coloridos ou de aba reta, tatuagens
que serão interpretadas como suspeitas pelo corpo, cabelos pintados, ouvindo
e por fim a Situação Suspeita que seria determinado ritmo de música (Souza e
uma espécie de controle de adequação Reis 2014; Silva, 2009), essa expectati-
entre o local e o indivíduo. va não se confirmou. Assim como bem
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