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Artigo

CRUZ, Marcio
RIBEIRO, VítorA.Eduardo
C. da e PYLRO,
Alessandri
Simone C.
CONFLUÊNCIAS
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

A FUNDADA SUSPEITA E A
ABORDAGEM POLICIAL MILITAR
Marcio A. C. da Cruz e Simone C. Pylro
Universidade Vila Velha.
E-mail: tenentecezar@hotmail.com
E-mail: simone.pylro@uvv.br

RESUMO
Este trabalho buscou apresentar uma análise sobre os elementos concretos e sensíveis que levam
policiais militares a desconfiarem de um cidadão e abordá-lo, baseado na fundada suspeita. O
Objetivo foi discutir os principais elementos que justificam, na concepção do policial militar do
município de Vila Velha, uma construção da fundada suspeita que culmine na abordagem policial,
à luz da legislação vigente. O conflito encontra-se no conceito de fundada suspeita que não foi
definido por lei nem tampouco pelos doutrinadores, conceito que permite a ação do Estado através
do poder de polícia. A metodologia adotada envolveu a pesquisa de campo, cujo instrumento para
coleta de dados foi a entrevista em profundidade junto à policiais militares que trabalham na área do
4º Batalhão de Polícia Militar lotados na 1ª Companhia localizada no Parque da Prainha (centro), e
lotados na 4ª Companhia localizada no Residencial Jabaeté (periferia), que atuam no policiamento
ostensivo. A análise dos dados obtidos proporcionou verificar que para os policiais entrevistados a
construção da fundada suspeita se dá principalmente através do comportamento suspeito, do lugar
suspeito relacionados ao horário, principalmente na busca por drogas e armas.
Palavras-chave: segurança pública, fundada suspeita, abordagem policial.
ABSTRACT
This work sought to present an analysis of the concrete and sensitive elements that lead military
police officers to distrust a citizen and to approach him, based on the well-founded suspicion. The
objective was to discuss the main elements that justify, in the conception of the military police
of the municipality of Vila Velha, a construction of the suspected foundation that culminates in
the police approach, in light of the current legislation. The conflict lies in the concept of a well-
founded suspicion that has not been defined by law nor by the doctrinators, a concept that allows
state action through police power. The methodology adopted involved the field research, whose
instrument for data collection was the in-depth interview with the military police officers working
in the 4th Military Police Battalion grouped in the 1st Company located in Prainha Park (center),
and crowded in the 4th Company located in the Residencial Jabaeté (periphery), which operate
in ostensive policing. The analysis of the data obtained verified that for the police interviewed the
construction of the suspected suspicion occurs mainly through suspicious behavior, suspicious
place related to the timetable, mainly in the search for drugs and weapons.
64 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16,
Key words: public security, founded suspicion, police approach.
19, nº 3,
1, 2014.
2017. pp. 60-85
64-81
A FUNDADA SUSPEITA E A ABORDAGEM POLICIAL MILITAR

INTRODUÇÃO mas garantias em nome da coletividade,


A proposta desse trabalho é realizar da segurança pública e da paz social,
uma discussão em relação ao tema fun- assim em uma análise macro percebe-se
dada suspeita, trazendo entendimento que é o Estado quem aborda o cidadão.
sobre a abordagem policial. A explora- Sendo o Estado uma criação dos ho-
ção do tema fundada suspeita não é uma mens, através do pacto social, ele se tor-
novidade no campo acadêmico, princi- na responsável pela preservação da se-
palmente pela subjetividade atribuída a gurança coletiva delegando aos órgãos
ação do agente público incumbido da específicos (polícia) essa função. Diante
segurança pública. Sendo assim, esta deste pacto os cidadãos permitem que o
pesquisa tem um foco específico sobre Estado limite liberdades individuais em
o policial militar do Estado do Espírito benefício da coletividade.
Santo (PMES) que atua diuturnamen- Em tese, essa escolha não é alea-
te no policiamento ostensivo realizan- tória, depende basicamente de crité-
do abordagens, buscando entender os rios estabelecidos pelo policial como
principais elementos concretos e sen- “suspeitos”. Qualquer cidadão que
síveis que justificam, na concepção do esteja circulando a pé pelas ruas ou
policial militar do município de Vila em qualquer meio de transporte po-
Velha, uma construção de fundada sus- derá ser abordado e revistado pela
peita que culmine na abordagem. polícia. Mas na prática em meio a
Grande parte das ações da PMES está várias possibilidades apenas alguns
canalizada na atividade fim, ou seja, vol- serão “escolhidos” para sofrer a ação
tada para o policiamento ostensivo e pre- do Estado. “É uma ação seletiva que
servação da ordem pública materializada depende em larga medida de crité-
na percepção do policial militar fardado rios prévios de suspeição, sejam eles
circulando a pé ou em veículos patru- aparência física, atitude, local, horá-
lhando as ruas com o propósito de ofere- rio, circunstâncias, ou alguma com-
cer segurança à população. Assim, como binação desses e de outros fatores”
forma de evitar a ocorrência de delitos a (RAMOS, MUSUMECI, 2005, p. 17).
ferramenta mais conhecida a disposição A Defesa do Estado e das Institui-
dos policiais é a Abordagem Policial. ções Democráticas é tão relevante que
As abordagens realizadas pelos poli- a Constituição Federal de 1988 tratou
ciais militares são ferramentas utilizadas de forma individualizada sobre o tema,
pelo Estado para evitar a perturbação da esculpindo em seu artigo 144 que a
paz social. Antes, é o Estado se movi- segurança Pública, dever do Estado,
mentando em direção das garantias in- direito e responsabilidade de todos, é
dividuais, restringindo parte dessas mes- exercida para a preservação da ordem
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pública e da incolumidade das pessoas Para o exercício regular de suas


e do patrimônio, reservando as polí- funções a Administração Pública dis-
cias militares e corpos de bombeiros põe de poderes que lhe assegura a po-
militares esse papel de guardião. sição de supremacia sobre o particu-
Desse modo um dos objetivos é dis- lar para atingir o objetivo do estado
cutir os principais elementos concretos de prover a segurança (preservação da
e sensíveis que justificam, na concep- ordem pública e da incolumidade das
ção do policial militar do município de pessoas e do patrimônio).
Vila Velha, uma construção da funda- Como qualquer ato administrativo a
da suspeita que culmine na abordagem abordagem policial possui os atributos
ao cidadão, à luz da legislação vigente, da presunção da legitimidade, impera-
bem como verificar se a discriminação tividade, coercibilidade e autoexecuto-
racial, social ou econômica influencia riedade, ou seja, independentemente da
na percepção da fundada suspeita para anuência do cidadão o agente do Esta-
a realização da busca pessoal. do poderá realizar a restrição tempo-
rária de garantias constitucionais sem
A ABORDAGEM POLICIAL a autorização prévia do poder judicial,
COMOUMATOADMINISTRATIVO com base na fundada suspeita, e com a
O Estado para alcançar os fins a finalidade de manter a ordem pública
que se destina é dotado de um conjun- visando sempre o interesse público.
to de prerrogativas chamadas de Po- Na atuação vinculada o adminis-
deres Administrativos que conferem trador quando da prática do ato admi-
aos Agentes Públicos poderes para nistrativo não possui liberdade, pois
atuarem em nome do Estado (Carva- uma vez preenchidos os requisitos le-
lho Filho, 2014), poderes que não são gais ele está obrigado a praticar o ato
ilimitados. Deve-se ter de forma clara vinculado. Ocorre quando a Lei esta-
que a abordagem policial deriva de um belece um único caminho, uma única
encargo do Estado, materializado em solução diante de determinada situa-
um Ato Administrativo típico, cercado ção, fixando requisitos cujo agente do
de alguns requisitos necessários a sua Estado deve seguir sem margem de
validade. A abordagem policial é um análise subjetiva (Di Pietro, 2014).
ato administrativo típico, executados No poder discricionário a adminis-
pelo Estado através de seus agentes tração pública, diante do caso concreto,
(policiais militares), pelo exercício das tem a possibilidade de avaliar critérios
garantias constitucionais e pelo cum- de conveniência e oportunidade e es-
primento das normas infraconstitu- colher dentre algumas possibilidades a
cionais em favor das garantias sociais. melhor solução. A Lei não é capaz de
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prever todas as condutas dos agentes policial elege um cidadão e atribui a ele
administrativos (Di Pietro, 2014). a qualidade de elemento suspeito, com
Em uma rápida análise sobre o po- base na fundada suspeita, a discriciona-
der discricionário, localizado dentro riedade inicialmente estará presente na
dos poderes administrativos, confor- percepção de elementos sensíveis (ges-
me o professor Carvalho Filho (2014), to, comportamento, atitude, ambiente)
ainda que seja um termo sem precisão ou elementos concretos (volume sob a
jurídica em seu sentido, não é uma ação cintura, materiais provenientes de cri-
livre de parâmetros e controle. O agente mes) que despertaram no profissional a
público necessariamente deve proceder sua atenção para algo que fugiu a nor-
conforme os pressupostos da norma, ou malidade (discricionariedade). Toda-
seja, legalidade e proporcionalidade. via, para materializar a intervenção do
Por isso quando se fala em discricio- Estado o profissional deverá se pautar
nariedade não se quer dizer que a von- pelos princípios legais para realizar a
tade única e exclusiva do agente público abordagem (poder vinculado).
vai prevalecer, na verdade o ato discricio- O que se deve ter em mente é que
nário não é totalmente discricionário, ele há uma diferenciação entre os poderes
é pautado pelos requisitos da Lei. Quan- que o Estado utiliza para atingir a sua
do o agente público extrapola os limites e finalidade, denominado poder de po-
pratica a ilegalidade está materializado o lícia, das ferramentas colocadas à dis-
ato arbitrário ou desvio de poder. posição do órgão institucional respon-
A discricionariedade está relacio- sável pela segurança da sociedade aqui
nada a liberdade de atuação dentro dos reconhecido como o poder da polícia,
limites traçados pela lei. Assim pode-se objetivando a preservação da ordem
concluir que a discricionariedade do pública, policiamento ostensivo, repres-
policial militar é mitigada, ou seja, será são a infração, fiscalização de trânsito e
sempre relativa quanto à competência, ambiental, condução em flagrante, au-
à forma e à finalidade do ato. O policial tuações, entre muitas ações.
militar estará subordinado ao que a lei Assim quando a Polícia Militar
dispõe como para qualquer ato vincula- exerce o Poder de Polícia ela estará li-
do. Para a prática do ato discricionário mitando ou condicionando a liberdade,
o agente público deverá ter competên- intimidade, privacidade, ou seja, direi-
cia legal, obedecer a forma prescrita em tos individuais em benefício da coleti-
lei e principalmente atender à finalida- vidade como qualquer representante do
de do interesse público. Estado. Agora quando ela efetivamente
Analisando concretamente uma age com a função de garantir a ordem
abordagem policial, na hora em que o pública através de ferramentas técnicas,
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como a abordagem policial, ela estará Na conclusão do mestrado pela


fazendo uso do poder da polícia para Universidade Federal de Pernambu-
exercer sua função constitucional. co em 2008, Barros apresentou uma
pesquisa realizada com alunos que
QUEM SÃO OS ELEMENTOS estavam ingressando nas carreiras de
SUSPEITOS? Oficiais e Soldados bem como com
Nessa seção serão realizadas aná- profissionais que já estavam em ativi-
lises e comparações com pesquisas de dade na Policia Militar de Pernambu-
outros autores que foram inquietados co. O problema principal elencado foi
pelo tema fundada suspeita e aborda- analisar o motivo pelo qual os policiais
gem policial. Principalmente como foi militares pernambucanos priorizavam
percebida a figura do elemento suspeito abordar as pessoas negras para depois
pelos policiais militares de outras uni- abordar as pessoas brancas quando
dades da federação. presentes em um mesmo ambiente. O
Em 2005 as pesquisadoras Ramos e pesquisador buscou entender a lógica
Musumeci realizaram um trabalho de do mecanismo que elege o negro como
pesquisa que culminou na edição do prioridade na abordagem policial pela
livro Elemento Suspeito - abordagem polícia pernambucana.
policial e discriminação na cidade do O resultado foi a construção do sus-
Rio de Janeiro. Os objetivos da pes- peito ligado a fatores de gênero como
quisa eram conhecer as experiências jovem do sexo masculino; comporta-
do contato da população carioca com mentais como ficar nervoso, tentar se
a polícia, entender os mecanismos e esquivar da polícia ou andar de presa
critérios da construção da suspeita quando vê uma viatura; étnica pela pre-
por parte dos policiais militares e a ferência pela cor de pele parda/negra;
influência de alguns fatores externos social como baixa escolaridade, tipo de
como econômicos e raciais na defini- vestimentas, tatuagem, jeito de andar e
ção de Elemento Suspeito. As entre- falar, morar em bairros humildes.
vistas foram realizadas com policiais Para justificar seu posicionamento
da baixada fluminense e com grupos Barros (2008) faz uma costura partin-
focais de jovens. Conforme o resulta- do de elementos históricos como a for-
do da pesquisa o perfil dos indivíduos ma como se deu a abolição da escrava-
abordados variou por gênero, raça ou tura, o controle e vigilância dos pobres
cor e classe social. Proporcionalmente e negros livres por parte da polícia e a
os homens, jovens, negros e de menor manutenção da estrutura de poder nas
renda e escolaridade são os mais abor- mãos da elite da época. Como resul-
dados, segundo as autoras. tado, verificou que a maioria dos en-
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trevistados percebem que os negros e serão interpretados como suspeitos) e


pardos são priorizados nas abordagens por fim a Situação Suspeita (espécie de
e na visão dos policias pernambucanos controle do local e da adequação entre
o suspeito é predominantemente jo- o indivíduo e o ambiente).
vem, masculino e negro. A pesquisa realizada pela Doutora
Na dissertação “A lógica da Polícia em Ciências Política Tânia Pinc, pela
Militar do Distrito Federal na Constru- Universidade de São Paulo, através de
ção do Suspeito” apresentada por Silva um survey com policiais militares que
(2009) ao Departamento de Sociolo- trabalham na cidade de São Paulo, co-
gia da Universidade de Brasília/UnB, o letou dados sobre a percepção dos po-
autor cita que as abordagens policiais liciais a respeito dos diferentes aspec-
constituem interações sociais rotinei- tos da fundada suspeita na abordagem
ras entre o cidadão e o policial, que po- e da influência de fatores como raça/
dem traduzir de certa forma as relações cor e condições socioeconômicas. Em
complexas entre a Sociedade Civil e o sua pesquisa Pinc (2014) defende o ele-
Estado. Nesse trabalho ele faz uma ava- mento situacional como um dos mais
liação dos critérios utilizados pelos po- importantes no momento do encontro
liciais militares do Distrito Federal para entre a polícia e o público na hora da
classificar uma pessoa como suspeita. decisão pela abordagem. Sustenta que
Ainda sobre a pesquisa realizada a fundada suspeita pode ser explicada
por Silva (2009) ele construiu catego- por três fatores situacionais: atitude da
rias para a condição de suspeitos per- pessoa abordada no encontro com o
cebidos pelos Policiais Militares do policial, taxas criminais do entorno e
Distrito Federal, iniciando pelo sus- características do ambiente do local do
peito judicial (após o crivo do poder encontro. Acrescenta ainda que o po-
judiciário do ato criminoso com com- licial paulista ao abordar uma pessoa
provação de autoria e materialidade), negra ou pobre não o faz diretamente
depois o suspeito criminal (indivíduo com base em filtros raciais ou sociais,
qualificado pelos policiais como aquele mas sim pela situação em que se deu
que teve algum envolvimento criminal esse encontro com a polícia.
que marcou a sua reputação social), No artigo escrito por Souza e Reis
passando pelo indivíduo suspeito (tipo (2014), eles investigaram os  fatores
de controle social exercido pelos poli- tomados como referência pelos policiais
ciais que buscam alguma desordem do militares do Estado do Pará na análise
ambiente), Ação Suspeita (os policiais da percepção na identificação de indi-
buscam certas ações, movimentos, víduos que consideram suspeitos nos
comportamentos, gestos olhares que bairros periféricos da cidade de Belém.
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Os autores também defendem três te nocivos ou pessoas que deveriam fi-


circunstâncias para a construção da car à margem da sociedade.
condição de suspeito: o lugar suspeito, a Por exemplo, os gregos utilizavam
situação suspeita e a característica sus- marcas corporais como recursos vi-
peita. Na análise desses autores o lugar suais para evidenciar o estatus moral
é um fator preponderante para a iden- de um indivíduo para identificá-lo pu-
tificação de que potenciais delitos pos- blicamente. Assim todos que vissem
sam ocorrer, sendo a situação o favore- essa marca reconheceriam um escravo,
cimento para o cometimento do delito um criminoso ou um traidor (SOU-
e as características suspeitas seriam as ZA, REIS, 2014). Pois bem, a socieda-
adjetivações negativas atribuídas pelos de evoluiu e a forma de estigmatização
policiais como: tatuagem, modo de ves- também, além das marcas físicas outras
tir, tipo de corte e coloração do cabelo, formas são utilizadas para diferenciar o
entre outros (2014, p. 130). que se considera “perigoso”.
Ainda a construção do suspeito na Na obra Estigma: Notas Sobre a Ma-
percepção dos policiais militares do Pará nipulação da Identidade Deteriorada,
evidencia construção da condição de sus- do autor Erving Goffman (1988), ele faz
peição tendo como referência determi- uma análise dos conceitos de estigma,
nados espaços urbanos públicos, sendo buscando traçar um paralelo da infor-
assim, os indivíduos que estão em deslo- mação que o indivíduo transmite sobre
camento pelas ruas ou parados em esqui- si e como essa informação é interpreta-
nas estão mais suscetíveis a serem consi- da pelos outros que com ele interagem.
derados suspeitos (Souza e Reis, 2014). Transcendendo para o século XXI, al-
guns dos exemplos mencionados por Go-
AS MARCAS QUE MARCAM ffman ainda são atuais, mas outros “com-
(ESTIGMAS E ESTEREÓTIPOS) portamentos desviantes” (Becker, 2008)
A Bíblia Sagrada narra em Gêneses poderiam ser acrescentados a sua lista,
(4;15) a história do primeiro homicídio tais como estilo de cabelo, roupas e aces-
em que Cain matou seu irmão Abel. En- sórios, gosto musical, tatuagens, piercing
tão Deus, como uma forma de punição, e culturas próprias de cada grupo social.
amaldiçoou Cain e fez nele uma marca O termo “estigma” quase sempre é
para que todos o identificassem. empregado como um sinônimo de carac-
Essa situação ilustra uma prática que terística depreciativa do indivíduo, não
pode ser observada em outros períodos apenas como um atributo pessoal, mas
da história, em algumas sociedades em uma forma de designação social. Pode-
que se utilizavam marcas como forma -se perceber que certos fatores pessoais,
de identificar elementos potencialmen- sociais ou geográficos podem fazer surgir
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ou reforçar a percepção do estigma na so- guetos e a massificação da cultura do


ciedade e, por fim, na atividade policial. lixo (BAUMAN, 2005).
O estigma econômico pode ser
bem compreendido na obra Vidas Des- METODOLOGIA
perdiçadas (2005), do autor Zygmunt A metodologia foi baseada em
Bauman, em que nos convida a uma pesquisa realizada de forma qualitati-
reflexão profunda sobre o caminho em va através de um roteiro de entrevis-
que a humanidade está percorrendo, ta aplicado a 10 policiais militares de
dialogando com Goffman (1988) sobre duas Companhias do 4º Batalhão da
a percepção do “ser” enquanto parte da PMES. A escolha por estas duas Com-
cadeia econômica (produtor e consumi- panhias se deu em função de serem
dor), enquanto o indivíduo sobre “si” e duas regiões permeadas de antagonis-
como ele é interpretado pela sociedade. mos sociais, econômicos, culturais,
Em uma sociedade globalizada de desenvolvimento, de distribuição
de consumo o ser humano só tem de renda, de diferenças em pavimen-
valor enquanto ele transita pela ca- tação e de saneamento básico, entre
deia social dos que consomem, caso outros fatores estruturais.
contrário, ele se torna uma pessoa O roteiro de entrevista apresentou
sem utilidade, assim será classificado questões sobre: (a) aspectos ligados ao
como refugo humano, um produto conhecimento dos policiais sobre o con-
colateral da modernização econômica ceito de fundada suspeita, (b) possíveis
(BAUMAN, 2005, p. 75). influências de estereótipos sobre o con-
Ainda na visão do autor “eles”, o ceito de fundada suspeita dos policiais
lixo humano, só se tornam perceptíveis participantes do estudo, assim como (c)
quando ameaçam a segurança do “nós”, dados para melhor caracterização dos
pois o medo deles faz com que seja ne- participantes. Além disso, apresentou-
cessário criar barreiras para separar o -se aos participantes uma situação-pro-
refugo humano em depósitos de dejetos. blema para que o entrevistado avaliasse
Parece um discurso duro de uma uma abordagem realizada na 1ª Com-
realidade distante, mas na verdade é panhia e na 4ª Companhia na posição
uma provocação para se olhar para os de expectador e depois como agente.
presídios e perceber que uma de suas As entrevistas foram realizadas ao
funções era a de reciclar o “lixo huma- longo do segundo semestre de 2016,
no social”, porém, com a quantidade de posteriormente foram gravadas na ín-
“dejetos humanos” foi se tornando cada tegra e transcritas para análise e cate-
vez maior a quantidade demasiada “de- gorização da construção do “suspeito”,
les” que oportunizou o surgimento dos assim, a partir das perguntas formula-
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das no roteiro, foi elaborado subcatego- dos militares com as respectivas com-
rização para cada um dos participantes. panhias e graduações foram colocados
Essa subcategorização consistiu em em caixas distintas no qual foi sortea-
agrupar as respostas dos participantes do 01 sargentos, 01 cabos e 03 solda-
ligadas diretamente aos temas: concei- dos para cada Companhia.
to, motivação, características, atitude,
lugar e horário. Os dados levantados ANÁLISE DOS DADOS
a partir do trabalho foram coletados e A discussão dos dados obtidos foi rea-
analisados com base no método clínico. lizada tomando como referência as técni-
O método clínico procura descobrir cas de análise de conteúdo de Bardin:
o que está por trás da aparência de sua “Um conjunto de técnicas de análise
conduta (Delval, 2002, p. 67), muito se das comunicações visando a obter, por
assemelha a uma conversa ou um diálo- procedimentos sistemáticos e objetivos
go. A sua essência é a interação para a de descrição do conteúdo das mensa-
construção de idéias e opiniões. O que gens, indicadores (quantitativos ou não)
o diferencia de outros métodos é a in- que permitam a inferência de conheci-
tervenção sistemática do pesquisador mentos relativos às condições de produ-
diante da atuação do sujeito e como res- ção/recepção (variáveis inferidas) destas
posta às suas ações ou explicações, pois, mensagens (BARDIN, 2011, p. 47)”.
procura analisar o que está acontecen- Durante a análise das entrevistas foi
do e esclarecer seu significado, com in- possível verificar uma situação que pou-
tervenções e perguntas guiadas. Cada co é levado em consideração: a fundada
participante constrói representações suspeita por parte do cidadão. Quando
da realidade à sua volta e revelam isso uma pessoa liga para o telefone 190 e
ao longo da entrevista ou de suas ações relata que tem um elemento suspeito
(Delval, 2002). realizando alguma atitude suspeita, tra-
Dentro das equipes de serviço há jando tais vestimentas, com tais carac-
policiais militares de várias graduações terísticas, significa que a fundada sus-
como Sargentos, Cabos e Soldados, pro- peita partiu de uma pessoa que não atua
porcionalmente ao tempo de serviço, tra- na esfera da segurança pública, mas de
zendo em suas trajetórias profissionais certa forma tem consigo enraizado esse
significativa carga de conhecimentos e conceito de “elemento suspeito”. Todo o
experiências na atuação como policiais. significado dessa expressão também foi
O processo de escolha amostral absorvido pela população, então não é
consistiu em um sorteio onde o efetivo só o policial militar que desconfia, que
policial da 1ª e 4ª Companhias foram suspeita; mas qualquer pessoa que ob-
separados por graduações. O nome serva uma cena fora do “normal” tam-
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bém constrói essa percepção. Assim, a cebido que apesar do tempo decorrido
discussão sobre a discricionariedade entre a sala de aula e a atividade práti-
do policial em abordar quem ele quiser ca muitos entrevistados trouxeram ele-
fica fragilizada diante da possibilidade mentos que foram ensinados no curso
de a ação da busca pessoal ser direcio- de formação ou aperfeiçoamento. Al-
nada por outra pessoa. guns entrevistados, embora não elabo-
A diferença vai estar justamente na rassem respostas com termos técnicos,
percepção dos elementos concretos e apontaram o comportamento como o
sensíveis que vão culminar na aborda- principal fator gerador da suspeição.
gem, porque nessa situação o policial Aliado a isso foi percebido elementos
não presenciou a atitude suspeita, não como gestos, observação de volume
visualizou armas ou uma saliência so- na cintura fora do normal, objetos
bre a blusa, objetos provenientes de semelhantes provenientes de ilícitos,
furto, consumo de drogas, mas mesmo leitura corporal como nervosismo
assim ele é enviado para o local com o aparente, reações inusitadas, arremes-
objetivo de identificar esse cidadão, que sar algo no chão, mudança de atitude
passou a ser suspeito aos olhos de um ou direção, sinalizar a aproximação
outro cidadão, para abordá-lo. da viatura, ou seja, elementos que na
Tem-se dois tipos de situação que percepção do profissional de seguran-
desencadeiam a ação da polícia: a pri- ça pública fogem à normalidade.
meira pode ser provocada pelo cidadão Outra descoberta importante nas
que através do telefone 190 relata uma entrevistas foi o que Silva (2009, p. 59)
situação ao qual está presenciando e chamou em sua pesquisa de “saberes
considera suspeita. A outra situação policiais” ou “currículos ocultos”, conhe-
parte da iniciativa do próprio policial cimentos adquiridos pelos policiais de
que com sua percepção criou uma sus- maneira informal, durante a vivência da
peição sobre a atitude de alguém que prática profissional. Vários entrevista-
chamou sua atenção, saindo de uma si- dos enfatizaram que durante o período
tuação comum dentro de um determi- de formação o conteúdo teórico sobre a
nado cenário e atribuindo a alguém a fundada suspeita ministrado em sala de
qualidade de suspeito. O resultado será aula era bem abrangente, contudo, a ên-
o mesmo, ou seja, a abordagem policial fase principal foi que a atividade policial
com base na fundada suspeita própria se aprende é na prática, no dia a dia.
ou de terceiros com emprego dos mais Uma característica muito peculiar
diferentes níveis de técnica policial. destacada pelos militares nas entre-
Ao analisar as respostas referente ao vistas foi o aprendizado reiterado pela
conceito da fundada suspeita foi per- prática conhecida no meio policial
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como tirocínio. O tirocínio é uma per- do grupo afirmou que não havia pres-
cepção mais apurada de fatos que estão são dos superiores hierárquicos para
relacionados à atividade prática, situa- que realizassem abordagens, embora
ções que se repetem no cotidiano e dão todos fossem uníssonos em dizer que a
ao policial uma visão diferenciada do prática da abordagem policial era uma
caso concreto. Seriam ensinamentos atividade constante.
complementares ao que é trazido na Esse questionamento se torna per-
sala de aula pela teoria. tinente ao se avaliar a liberdade do po-
Em outras palavras, é possível que licial em realizar seu trabalho de forma
policiais desenvolvam uma concepção livre e, consequentemente, ter liberda-
pessoal sobre as características do sus- de na hora de conceber os elementos
peito durante suas várias interações que compõem a fundada suspeita. A
com os cidadãos, ambiente, situações, pressão dos superiores por resultados
seja em abordagens ou seja em respos- poderia tirar do profissional, que está
ta às chamadas do 190. Assim, o po- na ponta da execução, a discricionarie-
licial poderia configurar modelos sub- dade de escolher o momento certo para
jetivos de uma variedade de tipos de realizar a abordagem em troca de cum-
encontros entre a polícia e o cidadão, primento de metas.
podendo criar uma figura daquilo que Um fato muito interessante cons-
considera uma fundada suspeita. tatado nas respostas dos participantes
Uma das perguntas do questionário foi que após a busca pessoal os entre-
tentou investigar se havia uma pressão vistados explicam ao cidadão abordado
dos escalões superiores para que os po- o motivo que levou os policiais a rea-
liciais realizassem abordagens durante o lizarem a abordagem, independente-
turno de serviço, sendo que apenas dois mente se foi uma suspeição do próprio
policiais do grupo de dez entrevistados policial ou se foi uma demanda de um
disseram que se sentiam pressionados a cidadão que acionou o 190. Isso leva a
realizar abordagens. Essa resposta veio inferir que as abordagens são baseadas
acompanhada da justificativa de que, em uma suspeita fundamentada em ele-
por atuar em grupo de policiamento mentos concretos ou sensíveis na per-
especializado, havia uma cobrança por cepção do policial ou do cidadão, isto é,
produtividade na apreensão de drogas nas entrelinhas percebe-se que a apro-
e armas. Outro argumento elencado foi ximação do policial é motivada por ele-
a necessidade que a instituição tem de mentos captados a partir da interação
produzir dados através das ocorrências policial versus cidadão.
geradas pelas abordagens para apresen- Pinc (2014) define muito bem em
tar estatísticas à sociedade. O restante poucas palavras esse contexto: “O poli-
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cial deve ter clareza sobre o motivo da O diagnóstico apontado por Silva
escolha, se ao final da abordagem não (2009) muito se assemelha a percepção
souber explicar, é porque aquela abor- dos policiais do 4º BPM que durante
dagem não deveria ter sido realizada o encontro com o cidadão em atitu-
(2014, p. 41) “. de suspeita formulam perguntas para
Uma característica que se repete tentar identificar se a pessoa abordada
durante a abordagem são as perguntas possui algum registro criminal, se está
direcionadas a pessoa que se encontra com mandado de prisão em aberto, se
na situação de suspeito. Quase sempre é conhecido da guarnição em virtude
estão ligadas a identificação da pes- de outras abordagens ou envolvimento
soa como nome, idade, filiação (revela com o tráfico de entorpecentes ou ain-
quem são), onde mora, para onde está da em que região ele mora, o que pode
indo, o que está fazendo naquele local traduzir o estigma geográfico.
(designação geográfica), se trabalha ou Tentar padronizar as características
estuda (estatus social), tentando captar consideradas suspeitas pelos policiais
informações para descartar ou reafir- pode ser uma ação estéril, pois, cada ser
mar a fundada suspeita. humano carrega consigo valores e con-
Esta fase da entrevista foi mui- ceitos construídos durante uma vida de
to bem descrita na pesquisa de Silva aprendizados e interações. A ideia de
(2009) em que ele cria categorias para a formatar condutas, comportamentos,
condição de suspeitos percebidos pelos ou regras sociais em um mundo glo-
Policiais Militares do Distrito Federal, balizado pode acabar gerando estereó-
iniciando pelo Suspeito Judicial quando tipos e discriminações (Becker, 2008).
já houve uma comprovação pela justi- Essa questão foi percebida nas respostas
ça do ato criminoso, depois o Suspeito dos entrevistados quando questionados
Criminal em que o cidadão teve algum sobre as características que o elemento
envolvimento criminal que marcou a suspeito demonstra e que desperta no
sua reputação social, passando pelo In- policial ou na sociedade a desconfiança.
divíduo Suspeito que seria um tipo de Ainda que a resposta esperada fosse jo-
controle social do ambiente exercido vens, negros ou pardos, do sexo mascu-
pelos policiais, a Ação Suspeita em que lino, bermudas largas e folgadas quase
os policiais buscam no comportamen- caindo, cordões, brincos e piercing, bo-
tos, gestos, olhares, movimentos, ações nés coloridos ou de aba reta, tatuagens
que serão interpretadas como suspeitas pelo corpo, cabelos pintados, ouvindo
e por fim a Situação Suspeita que seria determinado ritmo de música (Souza e
uma espécie de controle de adequação Reis 2014; Silva, 2009), essa expectati-
entre o local e o indivíduo. va não se confirmou. Assim como bem
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CRUZ, Marcio A. C. da e PYLRO, Simone C.

apontou Pinc (2014) a percepção da criminalidade aponta uma vulnerabili-


fundada suspeita depende, em muito, dade na segurança pública, sendo assim
da interação entre o policial, cidadão há um pré-direcionamento das esca-
e o ambiente. Como não há uma roti- las de serviço para essas localidades, o
na nas ações policiais e todo cidadão que no dia a dia do policial é conheci-
tem liberdade de se expressar através do como saturação de área (reforço do
de várias formas e em qualquer lugar, policiamento a pé e motorizado em de-
elencar uma relação de características terminados locais e horários) e pontos
consideradas suspeitas não traria efeti- de bloqueios (blitz) em resposta ao au-
vidade ao trabalho policial. mento do crime ou quando é pressiona-
Outro fator que desperta a atenção da pela mídia. Novamente o tráfico de
dos policiais capixabas para realizar a entorpecentes se torna o carro chefe na
abordagem está ligado intimamente repressão a criminalidade até por que
ao local que a pessoa a ser abordada agregado a ele certamente ocorrem ou-
se encontra. Locais que o policial mili- tros delitos em associação.
tar classifica como de “intenso tráfico” No artigo publicado por Souza e
a probabilidade de que as pessoas que Reis (2014), eles entendem que o lugar
ali circulam sejam abordadas é muito é um fator preponderante para a iden-
maior. Este fato pode estar diretamente tificação de que potenciais delitos pos-
ligado a política de segurança do Estado sam ocorrer, destacando a construção
que enxerga no traficante o responsável da condição de suspeição tendo como
pelo elevado índice de criminalidade. referência determinados espaços urba-
Além dos fatores mencionados, as nos públicos, sendo a situação o favore-
ações da polícia também são direciona- cimento para o cometimento do delito
das pelas taxas de criminalidade, pelo e as características suspeitas seriam as
clamor público e por respostas políti- adjetivações negativas atribuídas pelos
cas paliativas à sociedade. Quando uma policiais como: tatuagem, modo de ves-
determinada região apresenta aumento tir, tipo de corte e coloração do cabelo,
nos índices de homicídios ou elevação entre outros (2014, p. 130).
das taxas de crimes contra o patrimônio Quando perguntados aos partici-
a primeira reação é deslocar o contin- pantes sobre o que eles esperam encon-
gente policial para o local para realizar trar em uma abordagem policial 9 en-
abordagens para tentar conter o avanço tre 10 responderam armas e drogas, ou
da criminalidade. Conforme foi apura- seja, a materializada palpável do ilícito.
do uma grande porcentagem das abor- De certa forma o policial é motivado in-
dagens realizadas pelos pesquisados trinsecamente a localizar esses objetos
ocorrem em regiões em que o mapa da para que seu trabalho seja reconhecido
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pelos companheiros de trabalho e supe- tos mais importantes para determinar


riores que consideram essas apreensões se a abordagem ocorrerá. “Em primeiro
uma espécie de troféu conquistado por plano, somente o fator cor de pele não
realizar um bom trabalho. Dentro do seria decisivo para desencadear a busca
ambiente da corporação há uma super- pessoal no cidadão (PINC, 2014, p.47)”.
valorização para o policial que durante A aproximação policial não ocorre-
o turno de serviço consegue apreender ria pelas características físicas, por dis-
armas de fogo ou entorpecentes em criminação racial ou estereótipos, mas
grande quantidade. Essa ação é digna sim porque a atitude suspeita chama a
de elogio na ficha funcional, parabeni- atenção. Caminhando no sentido in-
zações dos companheiros e entrevistas verso da pesquisa de Barros (2008), em
nos meios de comunicação. Isso de cer- Pernambuco, que revelou a filtragem
ta forma fomenta no policial a vontade racial (racial profiling) como um dos
realizar mais abordagens para conse- principais fatores levado em considera-
guir encontrar mais drogas e armas. ção na hora da abordagem.
Nesta questão pode ser problema- As entrevistas mostraram que a pre-
tizada a situação da produtividade, da sença dos fatores situacionais foram
valorização pessoal e do reconhecimen- muito mais fortes do que propriamen-
to profissional através da quantidade de te a discriminação racial. Apesar da
apreensões de armas e drogas o que im- pesquisa não ser conclusiva, pode-se
plica no maior número de abordagem, perceber que no universo dos policiais
que por sua vez recai sobre o cidadão o pesquisados não houve referência dire-
ônus de suportar a busca pessoal. ta a importância da cor da pele na for-
Na pesquisa foram inseridos ques- mação da suspeição. Embora houvesse
tionamentos sobre a influência da dis- um distanciamento do filtro racial foi
criminação racial, social e econômica na percebido a influência negativa de fato-
construção da fundada suspeita. Os da- res sociais e econômicos nas falas dos
dos obtidos através das respostas dos 10 entrevistados que apontaram essas ca-
policiais revelam que esses participantes racterísticas como direcionadores se-
não levam em consideração, ao contrá- cundários na formação do conceito de
rio do senso comum, o fator racial como “elemento suspeito”.
primordial para a abordagem policial, Como uma medida de “profilaxia
ao passo que os fatores social e econô- social” as ações repressivas são desen-
mico são citados em suas respostas. volvidas rotineiramente com o propó-
Novamente aderindo a discussão sito de conter o avanço da violência.
apresentada por Pinc (2014), a atitude Nas áreas de maior circulação de capi-
dos atores envolvidos é um dos elemen- tal a ação da polícia está voltada para a
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formação de um cordão de isolamento tivessem se deparado com tal situação.


objetivando impedir distúrbios sociais Novamente, a maior proporção dos
nesses locais. A polícia na área pobre entrevistados apontou os fatores lo-
tenta impedir ou conter a violência com cal, horário e tráfico de entorpecentes
ações repressivas, isso inclui o controle como os principais fatores justificadores
geográfico dos que ali moram ou circu- da ação de abordagem, o que nos leva
lam e uma forma sutil de manter a or- a crer que estes elementos compõem a
dem e o controle dos corpos é através base para a formação da suspeita poli-
da abordagem policial. Nas áreas ricas a cial dos militares pesquisados. Nenhum
polícia atua tentando identificar indiví- deles teve um destaque isolado, pois na
duos que não possuem vínculos com o visão dos policiais há a necessidade que
espaço geográfico, vigiando aqueles que eles estejam agregados para ratificar a
destoam do ambiente através de vesti- fundada suspeita. Não que exista um
mentas e comportamentos, estranhos que se sobressaia sobre o outro, mas a
ao cenário. Qualquer pessoa que esteja aproximação do policial se dá por diver-
destoando do ambiente possivelmente sos fatores conjugados as circunstâncias.
será alvo de uma abordagem policial Como bem pontuado por Silva
para identificação e controle. (2009), as ações policiais estão quase
Por fim, foi apresentada aos par- sempre direcionadas para suspeitos de
ticipantes uma situação hipotética de determinados tipos de crimes, princi-
uma abordagem a duas pessoas, para- palmente os crimes visíveis realizados
das à noite em uma esquina, para que em espaço público. A divisão geográfi-
eles avaliassem o motivo que possivel- ca do espaço público contribui para o
mente teria levado a guarnição a reali- direcionamento das ações policiais tor-
zar a abordagem policial. Inicialmente, nando-se em controle social e controle
no bairro de periferia conhecido como de higienização realizado de diferentes
Terra Vermelha, na área da 4ª Compa- maneiras, em diferentes lugares com di-
nhia, e, posteriormente a mesma aná- ferentes indivíduos.
lise, no bairro Praia da Costa, conside-
rado de classe média/alta no litoral da CONSIDERAÇÕES FINAIS
área da 1ª Companhia. Esse estudo faz uma análise das prá-
A intenção era fazer com que os ticas dos policiais militares do 4º BPM/
participantes se colocassem na posi- ES sobre a ótica dos próprios policiais
ção de avaliador da ação dos colegas de militares pontualmente relacionada à
profissão e ao mesmo tempo, através abordagem policial com base na fun-
do método clínico, fazer com que eles dada suspeita, própria ou de terceiros,
repensassem as suas condutas caso es- apenas uma partícula dentre os inúme-
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ros e complexos aspectos do trabalho “escolhidos” para sofrer a ação do Esta-


realizado pela polícia militar. do. É uma ação seletiva que depende de
Foi verificado que tanto na área da critérios prévios compreendidos como
1ª Companhia como na área da 4ª Com- de suspeição, sejam eles aparência físi-
panhia do 4º BPM/ES a composição ca, atitude, comportamento, local, ho-
dos elementos concretos e sensíveis se rário, circunstâncias, ou algumas com-
deu através da interação com o cidadão. binações entre esses e de outros fatores.
Pontualmente, os elementos concretos A discricionariedade na ação do po-
que mais foram elencados estão relacio- licial na escolha deve estar relacionada
nados aos sentidos visuais como volume a liberdade de atuação dentro dos li-
sobre as vestes, objetos semelhantes aos mites traçados pela lei. Assim pode-se
provenientes de ilícitos, tipos de rou- concluir que a discricionariedade do
pas, tatuagens, utilização de acessórios policial militar é mitigada, ou seja, será
como boné e cordões, indivíduos para- sempre relativa quanto à competência,
dos próximo a comércios, em pontos de à forma e à finalidade do ato. O poli-
ônibus e em locais identificados como cial militar estará subordinado ao que
de venda de entorpecentes. Em relação a lei dispõe como para qualquer ato
aos elementos sensíveis estes se deram vinculado. Contudo, o subjetivismo nas
mais dentro da percepção do tirocínio abordagens policiais não pode repou-
policial como o nervosismo, horário, sar livremente apenas sobre o tirocínio
alteração de comportamento, mudança do profissional que permite ao policial
de direção, reação a presença da polícia. errar várias vezes, fazendo diversas
Fazendo uma comparação dos ele- abordagens, até que consiga encontrar
mentos concretos e sensíveis com a alguém que esteja em flagrante delito,
percepção dos policiais da 1ª e 4ª Com- podendo dar margem a estereótipos so-
panhias foi verificado que todos eles ciais, geográficos e econômico.
possuem em sua construção de elemen- É importante destacar que limitar as
to suspeito a junção de vários fatores, ações policiais de forma taxativa também
entretanto, foi percebido que o local é poderá trazer um grande prejuízo
o que mais influencia no desencadea- na medida em que a substituição da
mento dessa análise. «fundada suspeita» por um conceito
Como foi explanado, qualquer ci- restritivo de ações deixe de contemplar
dadão que esteja circulando a pé pelas situações fáticas e mais complexas não
ruas ou em qualquer meio de transpor- previsíveis em Lei. Criar um protocolo
te poderá ser abordado e revistado pela sobre elementos de suspeição para a
polícia. Mas na prática, em meio a vá- abordagem pode retirar do profissional
rias possibilidades, apenas alguns serão toda a expertise acumulada durante
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CRUZ, Marcio A. C. da e PYLRO, Simone C.

anos de trabalho e relegá-lo a um mero ção da mesma forma que os policiais ou


cumpridor de ordens, nesse aspecto a essas condutas diferenciadas são enxer-
sociedade teria muito a perder. gadas através do desvio social?
A pesquisa expõe a necessidade de
delimitar juridicamente o que venha a REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ser o termo “fundada suspeita”, presente A BÍBLIA SAGRADA: O Velho e
principalmente no Código de Processo Novo Testamento. Tradução de João
Penal e Código de Processo Penal Mi- Ferreira de Almeida. Edição rev. e atua-
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que sempre estará atuando no limiar da teúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. Dis-
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manter a ordem pública e as garantias file/vn40yu9w6ncw2hs/docslide.com.
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comprovar que um ou outro estava na Ano 2. Edição 3. jul/agos. 2008. Dispo-
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objeto ilícito. Há a necessidade de de- revista. Acesso em: 20/05/2015.
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rar se realmente a abordagem policial diçadas. Rio de Janeiro. Zahar, 2005.
surte o efeito esperado tanto por parte BECKER, Howard Saul [1963]. Ou-
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Outro ponto que merece muito des- Rio de Janeiro. Zahar. 2008.
taque é a percepção de suspeito na óti- _______. Constituição (1988).
ca do cidadão, como essa questão não Constituição da República Federativa
era o foco da pesquisa não foi possível do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal,
aprofundar, contudo, pode-se perceber 1998.
que há uma grande participação da so- CARVALHO FILHO, José dos San-
ciedade no acionamento da polícia para tos. Manual de direito administrativo.
realizar abordagens a pessoas que são 27 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
alçadas a condição de suspeito. Calha Atlas, 2014.
nesse momento perguntar será que a DEVAL, Juan. Introdução à prática
sociedade entende o caráter da suspei- do método clínico: descobrindo o pensa-
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A FUNDADA SUSPEITA E A ABORDAGEM POLICIAL MILITAR

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