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Era inevitável lembrar que bem próximo ao local em que estavam o horror
havia se instalado há pouco mais de uma década. Dali mesmo do aeroporto era possível
ver a mais alta edificação das Américas, construída justamente no local em que ficavam
as torres gêmeas do World Trade Center: um novo arranha-céu, denominado One World
Trade Center, recompôs parte do famoso cartão postal.
“Filho, quando você retorna ao Brasil? Preciso conversar com você.”, dizia
o texto enviado pelo pai de Waldorf.
Tudo muito estranho, pois seu pai sempre evitava entrar em contato
durante as viagens, justamente para não incomodar, ainda mais dando a entender que
algo errado estava acontecendo.
Waldorf tentou retornar a mensagem e até mesmo ligar para o Brasil, mas
não conseguiu. Pensou em algo ruim em relação à saúde de seus pais.
- Não, filho, não é nada a respeito de nossa saúde, está tudo bem. É
apenas uma dúvida que me ocorreu aqui no trabalho, eu não deveria ter te deixado
preocupado. Aproveite sua viagem – tranquilizou o pai.
Waldorf trocou mais algumas palavras com seu pai e fez questão de falar
com sua mãe. Mesmo mais calmo, sabia que havia algo de errado naquilo tudo. Seu pai
não ligaria para ele para tratar de algum tema de trabalho durante sua viagem, ainda mais
com um tom de voz diferente. Eram frequentes as conversas acadêmicas dos dois sobre
o Direito, mas não naquelas circunstâncias.
- De São Paulo, estou aqui desde 1995. Vim para cá com 19 anos,
apenas.
Pensou em como era bom poder viajar apenas para passear, sabendo
que dias depois retornaria à sua casa, no melhor estilo “viajar é bom, chegar em casa é
melhor ainda”.
O primeiro passeio da turma foi uma caminhada pela Times Square, onde
funcionou a primeira sede do NY Times, dando origem ao nome do local, um dos mais
visitados do planeta. É impressionante. Parece, de fato, que o mundo passa por ali. De
repente, a língua oficial daquela gente vinda de todos os cantos parece ser uma só: o
obturador das máquinas fotográficas, disparados enlouquecidamente. Os famosos selfies
de celular também dão a tônica.
É impossível passar por ali sem ser flagrado por alguém, pela câmera de
vídeo que reproduz as imagens do público em um gigantesco telão ou pelas diversas
câmeras de segurança. A propósito, presenciaram um turista desavisado consumindo
bebida alcoólica na rua ser abordado rapidamente pela polícia. Feita a advertência, de
forma nada gentil, foi liberado em seguida, meio assustado.
Waldorf aproveitou para uma foto junto à escultura Alma Mater, que ficava
na escadaria em frente à biblioteca e se tornara o símbolo daquela instituição. Ficou
admirado com a beleza do monumento, uma mulher que usava uma coroa de louros e
estava sentada em um sublime trono. Os antebraços abertos e erguidos, com a mão
direita segurando um cetro, o bastão utilizado por monarcas. Um denso livro que
descansava sobre suas pernas representava o conhecimento; uma coruja bem escondida
sob as dobras do manto que cobria a mulher, próxima à perna esquerda, era o sinal de
sabedoria.
Uma lenda sobre a obra de Daniel Chester French dizia que o aluno que
encontrasse a coruja em sua primeira tentativa seria o orador da turma ou se casaria com
uma menina do Barnard College.
Ao retornar para casa, após a conversa com os pais, Waldorf não perdeu
tempo. Explicou o ocorrido a Rahyssa, que igualmente ficara surpresa e chocada, e
telefonou para o amigo Rolf, marcando um encontro, no início da noite, na capital
paranaense.
No horário agendado, Waldorf já o aguardava. Sorvia alguns goles de um
saboroso espresso na Livraria da Vila, localizada em um shopping do bairro Batel. No
folheto à sua frente, uma propaganda da marca do café, leu que a palavra italiana que
designa o tipo daquela bebida é grafada com “s” porque seu significado tem origem em
“espremer”. Faz sentido, pensou, pois o café é extraído por meio de um mecanismo de
pressão exercido sobre ele.
O motivo de sua passagem pelo local não era nada parecido com o de
outros dias. Waldorf e Rahyssa costumavam frequentar os restaurantes e bares do bairro,
uma área descolada da cidade. Ele sequer lembrou-se dos bons momentos por ali vividos
quando chegou seu amigo, um pouco apressado.
- Olá, meu caro. Desculpe o atraso – disse Rolf após abraçarem-se.
- Imagina, estou aqui há uns cinco minutos – minimizou Waldorf, que na
verdade já o esperava por mais tempo. Sempre que possível, evitava qualquer tipo de
constrangimento.
Waldorf relatou o caso a Rolf, que também ficara perplexo, pois conhecia
a família e sabia que não poderia ser verdadeira a denúncia feita contra o juiz Freitas, a
menos que estivesse completamente enganado...
Rolf era estudioso da legislação que tratava de crimes contra o sistema
financeiro. Conhecia as resoluções e circulares do Banco Central que regulamentavam as
transações bancárias. Comentou de imediato que os depósitos em cheque ou mesmo o
Documento de Crédito (DOC) e a Transferência Eletrônica Disponível (TED) eram
obrigatoriamente identificados a partir de mil reais e que para não aparecer o nome do
depositante alguém da agência de origem deveria ter omitido propositadamente tal
informação. Lembrou que naquele caso, na verdade, dois funcionários participaram da
operação.
- Por que dois? – Waldorf perguntou.
- Porque nesse banco nenhum funcionário pode realizar uma transação
de cem mil reais sem que outro a confirme. São duas senhas. Do contrário, o sistema
interno não autoriza a conclusão da transferência sem a identificação do depositante.
Fazem isso para que um único funcionário não possa, sozinho, cometer um erro ou
praticar eventual golpe contra o banco ou seus clientes.
Waldorf concordou com um leve balançar de cabeça para baixo e para
cima.
- E quem fez a denúncia à Corregedoria? - perguntou Rolf.
- Um tal de Dionata Ramos Marques, não sabemos quem é ele.
- Precisamos investigá-lo. Como ele sabia do depósito? Quem tem uma
informação dessas e o interesse em prejudicar seu pai está muito envolvido com isso
tudo.
- Sim, claro, mas temos um problema.
- Qual? – perguntou Rolf.
- Eu andei pesquisando e vi que essa pessoa, o verdadeiro Dionata
Ramos Marques, deve ter sido vítima de um falsário. É que há algumas ações judiciais
recentes dele contra alguns bancos e estabelecimentos comerciais. Diz ter perdido seus
documentos e que eles estão sendo utilizados por outras pessoas que contraem
empréstimos e fazem compras em seu nome.
- São casos que ocorrem bastante – comentou Rolf.
- Sim. Precisamos saber da origem do depósito. Sem que se saiba isso,
fica complicado demonstrar que alguém ligado ao Rezende quis prejudicar meu pai –
concluiu Waldorf.
- Rezende, o prefeito e candidato à reeleição. O maior interessado em
desmoralizar seu pai e a decisão dele – disse Rolf.
- Sim, ele mesmo. O relacionamento entre os dois já não era nada bom.
Meu pai o condenara em uma ação por improbidade e o Rezende deu entrevista a uma
rádio local dizendo que havia perseguição da Justiça e tal. Deixou claro que se sentia
prejudicado pela atuação do “Dr. Freitinha”, como ele o chamava, numa intimidade que,
além de não ser recomendável, jamais existira. E foram várias outras decisões que
contrariavam o interesse do prefeito.
- E o que dizia seu pai?
- Ele nunca respondia a ataques desse tipo, ficava quieto. Responder
seria colocar ainda mais lenha na fogueira, pensava ele. Dizia que as pessoas o
conheciam e que todos sabiam de sua honestidade, até que aconteceu uma coisa dessas
– lamentou Waldorf.
- Mais um motivo para creditar ao Rezende essa picaretagem. Um
depósito de cem mil reais na conta dele bem no dia de uma decisão para lá de importante
certamente o desmoralizaria.
- Exatamente. Foi o que ele fez.
- Bem, nossa primeira medida deverá ser requerer judicialmente ao banco
a identificação do depositante, já que o gerente disse que não conseguia fazê-lo – sugeriu
Rolf.
- Claro. Enquanto isso, adiantarei a defesa junto ao órgão corregedor.
Começarei com o relato da trajetória limpa e reta de meu pai nesses mais de trinta anos
de magistratura, os elogios em sua ficha funcional, as declarações de bens e renda dos
últimos anos, as diferenças do prefeito Rezende com ele, as decisões contrárias. Que tal?
– perguntou Waldorf.
- Isso, uma única e absurda acusação não pode destruir uma carreira
como a de seu pai. Tudo deve ser considerado – asseverou Rolf. – Mas uma coisa deve
ser feita com cautela: sabemos quem está por trás dessa armadilha toda, só que ainda
não há provas disso. Não podemos afirmar quem foi, certo?
- Sim, você tem razão – concordou Waldorf – mas é preciso dizer que ele
teria motivos para prejudicar meu pai e desqualificar aquele que cassou o novo mandato
de prefeito dele.
- Sim, isso deve ser feito, mas com cuidado. Não se deixe levar pela
emoção, ela é traiçoeira – advertiu Rolf.
Os dois amigos se despediram, tendo Rolf demonstrado confiança na
inocência do pai de Waldorf, apesar de reconhecer que a acusação era grave e que
dificilmente a honra do juiz seria resgatada plenamente.
Rolf trabalhara naquela noite na primeira das ações que fariam parte da
defesa: a identificação do autor do depósito.
No dia seguinte, protocolou o pedido na Comarca de Espelho Dourado,
onde estava trabalhando um magistrado que substituía o Dr. Freitas. Toda a
documentação que havia sobre o caso, inclusive a notificação do Corregedor, fora
digitalizada e anexada ao pedido.
O juiz determinou ao banco a identificação do autor do depósito, no prazo
de 48 horas. A decisão foi cumprida antes mesmo do prazo, pois o gerente já estava
diligenciando nesse sentido. Informou que o depósito partira de alguém chamado Tomás
Fabre Pereira.
Rolf transmitira, por telefone, a notícia a Waldorf, que disse não lembrar
de tal nome.
- Precisamos saber quem é essa pessoa e se ela tem alguma ligação com
o Rezende ou com o falsário que se faz passar por Dionata.
- Ou com ambos – afirmou Rolf.
- Sim, bem possível – disse Waldorf intrigado.
- Bem, temos que descobrir onde eles erraram nesse plano, será a chave
para o esclarecimento. Precisamos das informações para ver se encontramos alguma
relação entre essas pessoas – concluiu Rolf.
- Claro. Esse erro que deve ter sido cometido em algum lugar vai nos
levar ao Rezende – observou animado Waldorf.
– Sim, não esqueça que para fazer a denúncia o autor dela tinha que
saber do depósito. O Rezende não poderia aparecer como denunciante porque não teria
como explicar que já sabia do depósito, além do que seria interessante ficar afastado de
tudo para dizer, depois, que nada teve a ver com esses fatos, caso a verdade viesse à
tona. Já do lado do Braga, o beneficiário maior da decisão, pois assumiria o cargo de
prefeito, não havia qualquer interesse em tornar o fato público – disse Rolf.
– Claro – assentiu Waldorf.
– Bem, mandarei para você agora mesmo a cópia da decisão do juiz, a
identificação do autor do depósito e os dados cadastrais dele, o tal do Tomás, com a cópia
do contrato de abertura da conta corrente. Você pode redigir o pedido de abertura de
inquérito policial ao delegado de Espelho Dourado, para apurar os crimes de calúnia
contra funcionário público, falsidade ideológica e possível lavagem de dinheiro? Será
importante para a defesa de seu pai. Mas é bom ressalvar que o verdadeiro Dionata é
vítima de um golpista que usa seu nome para praticar crimes – prosseguiu Rolf.
- Certo, eu ia comentar isso com você. Sabe, amigo, meu pai tem razão
ao dizer que não devemos advogar quando estamos envolvidos emocionalmente com o
caso. É como estou me sentindo, um pouco fragilizado e até mesmo sem a mesma
perspicácia.
- Que nada, você continua muito rápido – minimizou Rolf.
– Ok, mas devo ficar na retaguarda, não sei se terei cabeça para isso
tudo.
– Conte comigo!
– Ah, precisamos incluir no pedido ao delegado a identificação dos
bancários que fizeram a operação sem o nome do depositante e que motivos tiveram para
isso. Meu pai disse que há funcionários ligados ao Rezende e ao partido dele naquela
agência.
- Eu não disse? Você está em plena forma, Waldorf. Essa investigação
dará fortes subsídios para a defesa. Ninguém faz isso por nada. É preciso ouvir todo
mundo e conferir as filiações partidárias.
- Sim, farei.
- Ah, Waldorf, já ia esquecendo. Você tem um júri por esses dias, não?
- Sim, eu já estudei o caso, falta apenas revisá-lo.
- Boa sorte, então!
- Isso! Obrigado, amigo. Faremos um bom trabalho juntos – finalizou
Waldorf.
Capítulo IV
Uma das razões que levou Waldorf a escolher o curso de Direito foi
justamente o exemplo do pai. Ainda jovem, gostava ouvir as histórias que ele contava
sobre os casos que chegavam até ele, muitos deles trágicos. Seu pai ressaltava que em
todos eles havia seres humanos envolvidos emocionalmente com as situações nas quais
estavam inseridos e, por isso, como não poderia deixar de ser, os casos eram analisados
com muita cautela.
Quando falava nisso, não queria dizer apenas o zelo e o exame minucioso
das provas, mas da preparação intelectual que se exige do julgador. Um juiz jamais
estaria definitivamente preparado para tão importante função apenas com a sua
aprovação em um concurso, mas senão pelo estudo contínuo, pela sólida formação
acadêmica e humanística, por sua constante atualização (não em congressos caça-
níqueis, obviamente), pelo interesse no conhecimento interdisciplinar, que deveria
envolver sociologia, filosofia, antropologia, psicanálise, artes etc. O concurso era apenas
a primeira fase de um longo e difícil jogo, cheio de regras, que lida com vidas reais. Além
disso, o juiz deveria ter a grandeza de compreender e praticar a alteridade, bem como
entender seu papel de garante dos direitos fundamentais, ainda que contra a opinião da
maioria e, quase sempre, da mídia.
A propósito, um fato incomodava Freitas: o juiz estava com menos tempo
para sua formação por conta das cobranças para que aumentasse sua produtividade.
Dizia que uma sentença não era uma peça ou uma máquina fabricada em série, nas
famosas linhas fordistas de produção. Não aceitava a hipótese de que alguns juízes
pudessem se tornar meros “carimbadores de decisões” em nome da produtividade, como
dizia um amigo. Entre os colegas, sentia uma paranoia em torno do tema. Muito grave,
pensava. Freitas comparava a sentença ao ato médico, aquele procedimento que só pode
ser praticado por quem detém o necessário conhecimento técnico para fazê-lo.
Por certo, tal como na medicina, o ato médico (a sentença) é precedido de
alguns atos realizados por auxiliares, mas o manuseio do bisturi (o exame criterioso do
caso) só poderia ser feito pelo médico (o juiz).
Contornava tais assuntos ao lembrar de sua carreira e dos casos que vira.
Em certa ocasião, em uma família composta por um casal e dois filhos, o pai foi preso e
condenado por homicídio a uma pena de catorze anos. A mãe abandonou os dois filhos
em seguida. Notícias davam conta que havia se prostituído e saído da cidade. O filho
mais velho e a menina com tenra idade foram para o abrigo do município, sendo que uma
ação judicial pedia a colocação dos dois para adoção, posto que os pais não tinham
interesse ou condições de criá-los. A mãe, antes de sair da cidade, havia assinado um
documento concordando com a colocação dos filhos para adoção, mas o pai, mesmo
preso, dizia não concordar.
Marcou, então, uma audiência para ouvir o pai. Já conhecia as crianças
por conta das visitas ao abrigo e ficava impressionado com o olhar da menina, parecia
querer dizer algo a ele. Naquela ocasião, o pai se dizia inocente no tocante ao crime pelo
qual fora condenado. Seu advogado informou, inclusive, que já havia feito o pedido de
revisão criminal com base em novas provas, o que poderia livrá-lo da prisão. Caso não
conseguisse, indicaria um parente para ficar com as crianças até que fosse posto em
liberdade.
Freitas, sensível aos argumentos, percebia que havia amor do pai pelos
filhos. Sabia que sua condenação nada tinha a ver com a família e que não havia nenhum
relato de que ele fosse negligente ou violento com os filhos. Friamente, poderia ter dado
por encerrado o caso, determinando que as crianças fossem colocadas para adoção, mas
não.
Perguntou ao pai se ele via as crianças com frequência, ao que ele disse
que não, pois desde que fora preso ninguém levou seus filhos para visita-lo, e que sequer
conhecia a menina, a filha mais nova. O juiz, então, pediu que fossem trazidas até o
fórum as duas crianças, quando então dera início à oitiva das testemunhas.
Em poucos minutos, uma senhora que trabalhava no abrigo entrou pela
porta da sala de audiências com o menino pela mão e a menina em seu colo. A cena a
seguir fora marcada indelevelmente na memória do juiz e, provavelmente, na de todos os
presentes. O pai, aos prantos, conhecia sua filha, agora com cerca de um ano e meio de
idade. Era um estranho para ela e, como tal, houve uma repulsa inicial. Depois, ele
abraçou o filho, que também estava emocionado ao rever o pai. O clima era de total
comoção e o próprio juiz não conseguira segura a emoção, dando por suspensa a
audiência naquele momento.
Eram tantos sentimentos ao mesmo tempo, que nem mesmo as pessoas
mais acostumadas com os casos que envolvem crianças poderiam passar imunes
emocionalmente ao episódio. Um misto de amor, angústia, perseverança, apreensão,
rejeição e esperança em um mesmo local.
Após, recompostos os ânimos, os depoimentos foram retomados. Ao final,
o juiz determinou que a parente indicada pelo pai das crianças fosse consultada sobre a
guarda das crianças enquanto o pai estivesse preso. Ele merecia essa chance, pois nada
fizera aos filhos, não era relapso e não pôde contar com a mãe das crianças.
Freitas deixou a comarca do caso sem saber do seu desfecho. E preferiu
não saber. A ideia de que aquela decisão não tivesse dado certo não lhe cairia bem.
Outro caso que contava em família, talvez o mais bizarro de todos, havia
ocorrido em uma audiência envolvendo um casal já com certa idade. Ela reclamava do
marido, dizia que ele não a tratava com o devido respeito e a ameaçava. O filho adulto,
um tanto quanto constrangido, a tudo assistia, em absoluto silêncio. Até aí, apenas mais
um caso em que o casamento já havia acabado, mas a união era mantida por
conveniências e interesses individuais, como, por exemplo, a falta de um outro lugar para
ir morar, a idade avançada a dificultar o início de uma nova relação e o medo da solidão.
O incomum naquele caso veio no momento em que a senhora olhou
seriamente para o juiz e disse:
O senhor não sabe o que ele já fez comigo?
O que, senhora? - Indagou pacientemente o juiz.
Ele comeu um pedaço da minha cabeça!
Incrédulo e por não notar qualquer deformidade ou anomalia na cabeça
daquela senhora, perguntou Freitas:
Como assim?
Ela abaixou a cabeça, como se fosse colocar a testa nos joelhos, e com
as mãos afastando o cabelo, deixou à mostra uma sensível falha no couro cabeludo, já
cicatrizada pelo tempo.
Como foi isso? Questionou o juiz, agora completamente pasmo com o que estava
ouvindo e vendo.
Ele puxou o meu cabelo com uma das mãos e com a outra passou um facão no
couro cabeludo. Depois, ele colocou esse pedaço na brasa e comeu.
Estupefato com o que acabara de ouvir, o juiz fez um breve silêncio, olhou
para o marido daquela pobre senhora e indagou:
- É verdade isso?
Sem saber como reagir diante daquele fato assombroso, ele deu uma
risada e disse:
- Ah, isso já faz muitos anos e eu estava bêbado.
O constrangimento era geral e o silêncio sepulcral. O filho do casal
abaixou a cabeça, praticamente encostando-a na mesa da sala de audiências. Todos
ficaram boquiabertos com a confissão de tão horrendo crime. O silêncio se rompeu
apenas quando a senhora fitou o juiz e disparou:
- Eu não disse?
O juiz, então, lamentou o triste episódio e perguntou a ela quando tal fato
havia ocorrido, já pensando na hipótese de o crime estar prescrito, pois se tratava de
lesão corporal, com penas relativamente baixas. Ela disse que o fato havia ocorrido há
vinte ou trinta anos atrás.
Prescrito, com certeza, pensou o juiz. O único encaminhamento foi enviar
os autos ao Ministério Público para que fossem apurados os atuais relatos de ameaças.
A realidade vivenciada pelas mulheres no Brasil é triste, mesmo depois da
conhecida Lei Maria da Penha. Homens que acham que as mulheres são objeto de seus
desejos e que não devem ser ouvidas e compreendidas em suas próprias aflições e
inquietudes.
A cultura do machismo, incutida na maioria das vezes desde o próprio
ambiente familiar, faz com que o ciclo de violência, arbitrariedade e tirania dos homens
sobre as mulheres seja perpetuado.
Outro tema que muito afligia o juiz era a situação dos presos no Brasil.
Um sistema prisional falido e gerador de violência. Um país que prende muito e prende
mal. Sempre pensara em escrever um livro a respeito de tudo que já vira. Faltava-lhe
tempo.
Lembrava com frequência de um preso com o apelido de “Boca de Ferro”,
o qual, certa vez, por ocasião de uma visita, disse:
- Doutor, eu errei e por isso fui condenado. Perdi minha liberdade, mas
não quero perder minha mulher e meu filho. Eu não posso dar um abraço neles porque a
visita está sendo feita somente no parlatório. O contato físico está proibido porque os
agentes não querem fazer a revista. Eles não têm vindo mais aqui por causa disso. Vocês
estão criando um bicho dentro de mim, um monstro que vai sair daqui um dia.
Ele tinha razão e tão logo o juiz confirmou que a visita pessoal estava
restrita sem sua ciência, determinou que fossem retomadas as visitas na forma usual.
Ainda sobre a prisão, lembrou de um outro detento, jovem e recém
chegado à sua comarca para cumprir pena e a quem oferecera um livro. Argumentou que
seria interessante para passar o tempo e que também serviria para fins de remição, o
benefício de redução de pena concedido a quem trabalha ou estuda. O juiz explicou como
funcionaria o controle da leitura e, ao final, o preso disse ao juiz:
- Falando nisso, sonhei essa noite que caminhava entre as páginas de um
livro. Era a história de um rapaz muito pobre e que não tinha conhecido o pai porque ele
havia abandonado a família quando sua mãe ainda estava grávida dele. Era o quarto filho.
Desesperada e sem ter como sustentar a família, a mãe passou a catar latas e papelão
pelas ruas para vender aos atravessadores que revendiam o material para as
cooperativas de reciclagem. Os filhos ficavam sozinhos em casa e eram cuidados,
quando possível, por uma vizinha. Dividiam uma pequena casa. As peças ficavam
praticamente todas juntas: quarto, sala e cozinha. O banheiro ficava do lado de fora e não
tinha água quente. Raramente as crianças iam ao médico, pois as filas de espera eram
muito grandes e a mãe não tinha tempo para tanto em razão do trabalho duro que
realizava todos os dias em troca de uma merreca. Somente quando era caso de
emergência é que conseguia atendimento mais rápido em um posto de saúde que ficava
a quatro quilômetros de casa. O rapaz da história cresceu naquela pobreza e não havia
quem lhe desse educação e limites, apesar do esforço da mãe. O pai nunca mais
retornou, nem para ver os filhos, que passaram a andar com os outros rapazes daquele
pobre e violento bairro. Apenas a única filha, a mais velha dos irmãos, é que estudava e
ajudava a mãe nos afazeres de casa.
O juiz não interrompera o preso em momento algum. Ficara surpreso com
aquele detalhado e intrigante relato e queria ouvi-lo até o final.
- Não demorou e os rapazes passaram a usar drogas e a roubar para
sustentar o vício na ‘pedra’, o crack, o senhor sabe, né? A mãe deles não dava mais
conta, pois eles sumiam com o pouco que tinham em casa, até comida levavam para
trocar por droga. A filha mais velha chegou a sair da escola para ficar tomando conta da
casa, mas não tinha como controlar os irmãos. Nem mesmo a mãe conseguia quando
estava em casa. Às vezes, apareciam com objetos que roubavam das pessoas, mas logo
em seguida já levavam para pagar a droga. A mãe e a filha não sabiam mais o que fazer
para tentar controlar os rapazes. Esse livro com o qual sonhei é muito triste - continuou o
preso. Acho que o senhor não está interessado nele.
- Estou, sim, respondeu o juiz. – Prossiga, por favor.
- Sem saber o que fazer, a mãe procurou o juiz da cidade, que já o
conhecia porque alguns de seus filhos já haviam sido internados pelos atos que
cometiam. Ele atendeu aquela senhora judiada por tanto sofrimento e dela ouviu o que
jamais imaginara ouvir. Ela pediu ao juiz que mandasse prender seus filhos. Relatou todos
os problemas por quais passava há anos e que até mesmo o colchão em que dormia eles
haviam levado para trocar por droga. Ela chorava muito e o juiz tentou acalmar aquela
senhora e depois falou que não poderia mandar prendê-los, a menos se houvesse
processo, provas e necessidade para isso. Explicou em que casos era possível a prisão
dos mais velhos ou a internação do caçula, ainda adolescente, mas que o problema deles
era uma questão de saúde pública e não de polícia, pois os crimes eram consequência de
um vício que deveria ser tratado. A mãe disse que ninguém conseguia uma clínica para
eles e que até no Fórum já haviam prometido, mas não deu certo. Eles estão morrendo a
cada dia e a qualquer hora alguém vai matar meus filhos por causa das dívidas com os
traficantes, ela disse.
- E os rapazes, foram internados? - perguntou o juiz ao preso que contava
a história do livro com o qual sonhara.
- Não deu tempo. Poucos dias depois da conversa da mãe com o juiz,
seus três filhos e outros rapazes foram abordados pela polícia em uma operação de
rotina. Um deles estava armado e, com receio de ser preso, acabou correndo para tentar
dispensar a arma. Enquanto corria, um policial fez vários disparos e o acertou duas vezes,
pelas costas. Ele morreu ali mesmo. A confusão foi grande e outros rapazes que estavam
sendo abordados tentaram reagir contra a polícia e também foram mortos, mesmo
desarmados. O caçula, esse rapaz da história com a qual sonhei, perdeu dois irmãos
nesse dia. Foi o único da família que conseguiu escapar com vida, mas ela já estava
arruinada. Apesar de ter largado o vício da droga, algo que prometeu fazer no dia do
enterro dos seus irmãos, passou a praticar alguns roubos para ver se ganhava algum
dinheiro. Estava com vinte anos quando foi condenado pela segunda vez. O juiz não
reduziu a pena porque disse que ele era reincidente. Foi preso e vai ficar um bom tempo
porque tinha adolescente junto com ele, arma e tal.
- Entendi, disse o juiz Freitas. E como termina esse livro com o qual você
sonhou?
- Não terminou ainda. O novo capítulo desse livro começou a ser escrito
aqui, quando cheguei na semana passada. Essa é a minha história, eu sou o caçula.
O rapaz, surpreso e emocionado com a atenção que o juiz lhe dera,
começou a chorar. Aos prantos, dizia que queria uma nova chance na vida e que se
pudesse faria tudo diferente. Lamentava-se pelo fato de não ter tido alguém que pudesse
lhe mostrar o caminho, apesar do esforço de sua mãe, que lutava pela sobrevivência dos
filhos, pela comida de todos os dias. Ele não a culpava, pois sabia o quanto ela havia
trabalhado por eles, mas tinha muita mágoa do pai, por ter abandonado a família sem
prestar qualquer auxílio.
Naquele dia, Freitas saiu arrasado do presídio, mais do que usualmente
ocorria nos dias de visita, tamanha a tragédia humana com a qual se deparava naquele
ambiente. Pensou na habilidade do rapaz, que aproveitou o assunto da remição pela
leitura para contar algo que seria a história de um livro que lera em um sonho. Entendeu
que ele havia simulado a ficção de sua vida para chamar a sua atenção, pois se dissesse
que queria contar a sua própria história, talvez não fosse ouvido. Essa não era a postura
de Freitas, que sempre ouvia os presos, mas tratando-se de um rapaz recém chegado e
que não conhecia o juiz, a ‘trama’ fez todo o sentido.
Tantos outros casos, de bárbaros a inusitados, eram contados pelo juiz,
como do réu preso que, ao ser advertido para que se comportasse em audiência, pois
estava interferindo nos depoimentos, levantou os punhos algemados, olhou para o
magistrado e disse: vai fazer o que comigo, me mandar prender?
Em outro, o pai havia sido processado porque apagou um cigarro na mão
do filho, a fim de puni-lo. Depois de confirmar o fato, o juiz perguntou ao acusado como
havia sido a educação que ele havia recebido na infância, ao que ouviu como resposta: -
na porrada, doutor.
Era apenas mais um exemplo de como o ciclo da violência se completava,
de como se reflete na educação dos filhos o modo como se foi “educado”. Romper o ciclo
era o trabalho a ser feito, o que não se daria com mais punição, pensava Freitas.
Mas um dos relatos que impressionaram o juiz, quando ainda no início de
sua carreira, era o do pai que engravidou a filha adolescente. Em audiência, a mulher do
acusado e mãe da vítima se esquivava de qualquer pergunta que pudesse incriminar seu
marido. Com a insistência, ela respondeu que não queria que ele fosse preso, pois nesse
caso não haveria que sustentasse a casa.
A dependência financeira ganhara contornos sórdidos e o pouco dinheiro
daquele homem havia comprado a dignidade de uma família inteira.
Foi assim, em meio a tantos relatos instigantes, inclusive aqueles que
ocorriam nos júris, que Waldorf resolveu que faria a faculdade de Direito. Via no curso a
possibilidade de contribuir para uma sociedade um pouco melhor, menos desigual e
menos injusta, apesar da distância que o separava de tal intento naquele momento. Era
mais um jovem estudante, um idealista que carregava consigo a esperança de ver mundo
diferente, no qual todos pudessem ter, senão o mesmo ponto de partida para todas as
oportunidades, pelo menos um destino que não fosse a miséria, a indiferença, a
criminalidade ou qualquer outra forma de exploração, algo que o ser humano consegue
fazer com impressionante maestria.
Capítulo X
Na delegacia, Rodolfo tentava fechar o cerco aos que estavam até ali
envolvidos no caso. Mais uma vez, parou na janela e olhou em direção ao parquinho
infantil. Foi então que resolveu encampar o pedido de Rolf e Waldorf e solicitou o registro
das ligações telefônicas dos funcionários do banco, tendo em vista a possível relação com
Braga, apesar de não serem filiados a nenhum partido. Segundo colheu, durante a
campanha, foram vistos em apoio ao oposicionista.
De posse dos documentos, descobriu que os funcionários não falaram
com Braga naqueles dias que antecederam o depósito, mas uma coincidência chamou a
atenção. No dia do depósito, ambos os bancários tiveram contato, por intermédio de seus
celulares, com o empresário Jonas, conhecido de Tomás, com quem havia sido visto por
um vizinho antes de seu sumiço.
Quando foi chamado à delegacia para esclarecer o que sabia sobre
Tomás, Jonas disse que, na verdade, naquela data em que foram vistos juntos, havia
levado o amigo para uma consulta na capital, mas que de lá ele seguiria, sozinho, em
uma viagem pelo Nordeste, o que levaria alguns meses, já que eram muitos os amigos e
parentes que gostaria de visitar.
O delegado achou um tanto quanto estranha essa história de Jonas, ainda
mais quando era Tomás o depositante do valor na conta do juiz e a principal testemunha
até então.
Ouvidos novamente, os funcionários afirmaram que Jonas era cliente
antigo do banco e que, no mesmo dia do depósito na conta do juiz, ele estava preocupado
com a liberação de uma linha de crédito especial, a juros bem baixos.
Tal versão foi confirmada por Jonas posteriormente, mas não convencera
por completo o delegado, pois o financiamento havia sido liberado no dia anterior. Quando
questionados a respeito, os funcionários informaram que a liberação ocorria em um dia,
mas o crédito na conta aparecia apenas no dia seguinte, razão pela qual Jonas ligou para
saber se tal valor estava, de fato, à sua disposição. Todavia, sentindo-se incomodado com
toda a situação e diante dos sigilos já quebrados, um dos funcionários do banco afirmou
que Jonas perguntou também sobre uma transferência que teria sido feita por Tomás.
Como Jonas era um excelente cliente, o funcionário confirmou que sim, que havia sido
feita em favor do Dr. Freitas.
Qual seria o interesse de Jonas nessa transação, qual a sua relação com
Braga ou Rezende?
Eram as perguntas transcritas na prancheta do delegado.
As investigações prosseguiram e demonstraram que Jonas não tinha
qualquer relação pessoal com os candidatos. O empresário não colaborava com as
campanhas, de modo que era visto com certa antipatia pelos políticos, ainda mais em
uma cidade pequena. Dizia odiar política, que eram todos corruptos e que quanto mais
afastados dele, melhor. Em frente à TV, durante os noticiários, bradava contra a
corrupção, os políticos, os juízes, a quem culpava pela impunidade, e todos os que
exercessem qualquer cargo público, pois não sabiam das dificuldades do setor privado,
da alta taxa de impostos, dos entraves ambientais etc.
Pensativo, o delegado Rodolfo achou estranho o fato de as imagens das
câmeras acopladas aos caixas eletrônicos em que foram feitos os depósitos não terem
sido recuperadas devido a problemas técnicos. Em nova diligência, entretanto, a polícia
conseguiu os vídeos panorâmicos das áreas interna e externa da agência.
Neles era possível ver que uma pessoa ainda não identificada fizera
vários depósitos mediante o uso de envelopes, justamente na data e na agência em que
foram feitos os créditos em favor de Tomás. Tal pessoa, segundo as imagens externas,
esteve logo em seguida com Jonas, que aguardava do lado de fora. Discretamente, Jonas
entregou um maço de dinheiro ao homem que efetuara as transações e deixou o local.
De posse dessas informações, as investigações tomaram novo rumo.
Aparentemente, Jonas fora o responsável pelo depósito na conta do juiz, por intermédio
de Tomás, o qual, por nova ação de Jonas, sumira após declarar que havia feito a
operação a mando de Braga.
Apesar de os indícios contra os funcionários do banco não se
confirmarem, foi a quebra dos seus registros telefônicos que possibilitou identificar o
interesse de Jonas na transferência bancária de Tomás em favor do juiz, o que foi
comemorado por Waldorf e Rolf como um grande avanço. Um erro havia sido cometido e
uma câmera flagrara Jonas pagando alguém para fazer o depósito em favor de Tomás,
que posteriormente fez a transferência bancária em favor do juiz.
Restava saber se Jonas agira a mando de alguém ou por conta própria,
bem como os motivos para tanto.
Capítulo XI
1 O trecho a seguir é fruto do relato de um amigo do autor, um médico, por meio de uma rede social.
À medida que o paciente de Andreas ampliava seu relato, ele ia tirando
suas conclusões:
O ritmo, o movimento constante e o neurotransmissor o deixavam
sensível a elementos da música que de outra forma não teria ouvido. Como estas
vibrações eram transmitidas das partes mais antigas do cérebro para os lobos temporais,
onde se acredita que os sons ganham os atributos da experiência que chamamos de
música? Ninguém sabia. Quando algo de agradável acontece em nossas vidas, como
ouvir música, comer chocolate ou ser abraçado, o núcleo accumbens recebe mais
dopamina do que esperava e estes sinais dizem: ‘agora algo bom aconteceu e tu deves te
sentir assim’.
Seu paciente dizia pensar e mover-se rápido, era o “antiparkinson”, o
“super-eu”. Nessas circunstâncias, segundo Andreas: o “super-eu” tinha em seu núcleo
accumbens a alegria acumulada de uns vinte natais dos tempos de criança, o êxtase de
se conquistar de uma só vez o amor de todas as namoradas que se teve na vida, de
dançar com movimentos graciosos e arredondados que pareciam sublimes.
Waldorf se orgulhara do amigo. Não que fosse surpresa sua capacidade
de desenvolver tais ideias e auxiliar pessoas no tratamento de Parkinson, mas o
conhecimento demonstrado em área tão complexa da ciência era, de fato, motivo de
regozijo. Coisa que somente uma rede social poderia ter proporcionado, dada a distância
física entre ambos.
Capítulo XIII
A sociedade, no caso, era seu pai, aquele que impôs a perda de um filho,
criado como tal por Jonas – pensou Waldorf.
Era impossível não se comover diante daquela cena: Jonas, um homem
de 1,90m de altura, chorando copiosamente ao confessar uma trama para prejudicar,
senão acabar, com a carreira de um juiz íntegro, jamais envolvido em qualquer ato ilícito.
Refletia sobre as consequências desses atos sobre sua família, seu pai,
sua mãe e sobre si próprio. Aquela velha metáfora da honra como um saco de penas
jogadas ao vento não lhe deixava o pensamento. Como reunir tudo isso de volta?,
pensava. A pecha de corrupto, as humilhações nas ruas e nas redes sociais, o escárnio
público. Quem traria a paz de volta? Uma nota de canto nos jornais, afirmando que o juiz
fora absolvido das acusações por “falta de provas” resolveria?
O alívio com as declarações de Jonas, que assim desistira de insistir na
tese de que Tomás agira a mando de Braga, não era maior que o sofrimento causado à
sua família.
Dali, Waldorf seguiu com pressa para a casa dos pais, a fim de dar a boa
notícia.
- Caso encerrado – disse Waldorf, tentando conter a euforia. O delegado
acabou de ouvir Jonas e ele confirmou toda a trama articulada para se vingar de você –
prosseguiu, olhando para o pai.
Os três abraçaram-se fortemente e, aos prantos, Dona Pietra agradecia
ao filho pelo empenho no caso do pai, sem esquecer de Rolf.
E tentando se controlar diante da notícia, Freitas respirou fundo e disse ao
filho:
- Mesmo com todo o sofrimento, eu sempre tive a consciência tranquila
em relação às acusações. Mas estava ansioso pelo dia em que todos pudessem ter
certeza disso, da minha inocência. Esse dia chegou. Obrigado, meu filho. A você e ao Rolf
pelo trabalho que fizeram, não fosse pelo talento de vocês, o final seria outro.
Volveu os olhos para Pietra e disse, com os olhos já marejados:
- Minha querida, obrigado por tudo. Mesmo sofrendo em silêncio, você me
deu o apoio de que tanto precisei para não cair em desespero nesses meses sombrios
por que passamos. Lembro que quando cogitei em pedir a aposentadoria, você me disse
para não fazer, pois seria mal interpretado, como uma forma de fugir do processo
administrativo. Ainda disse que era para eu me manter firme na defesa, pois Waldorf e
Rolf saberiam chegar ao verdadeiro autor desse crime e tudo seria esclarecido.
Abraçou-a fortemente, levando Waldorf às lágrimas, diante da cena em
que seus pais pareciam mais unidos do que nunca. Jamais poderia imaginar que os
heróis de sua infância estariam ali, juntos, agregando as esguias forças que sobraram
após a dolorosa quadra vivida. Era uma cumplicidade que Waldorf raras vezes
presenciara, uma força capaz de lançar a centelha de que precisavam para recuperar a já
lânguida esperança de dias melhores.
Em seguida, um telefonema para Rahyssa, que a tudo acompanhara de
perto. Ela ficou feliz pelo desfecho do caso e levou de presente para os sogros,
pessoalmente e ainda no mesmo dia, um buquê de lírios, representando a paz
restabelecida naquele dia. Há momentos em que o gesto delicado diz mais do que
qualquer palavra, e Rahyssa bem sabia disso.
Rolf, o grande e fiel amigo que se dedicou com desprendimento àquela
causa, em nome de uma parceria que começara há mais de vinte anos, quando se
conheceram na faculdade de Direito, foi avisado em seguida por Waldorf. Igualmente,
ficou eufórico ao saber da notícia, em que pese sempre ser mais comedido. Mostrou-se
surpreso com os motivos alegados por Jonas para fazer o que fez. Metódico, comentou:
- A peça que faltava para montar o quebra-cabeças! Então, foi por isso
que ele quis se vingar de seu pai. Quando as investigações passaram a indicar que um
terceiro teria feito isso tudo e não o Rezende, eu cheguei a pensar que seria mais difícil
ainda. Afinal, quem tinha um motivo aparente era o prefeito. Bom trabalho, Waldorf!
- Sim, meu amigo. Nós fizemos um bom trabalho. Não tenho como lhe
agradecer. Por ora, meu muitíssimo obrigado! Precisamos marcar o jantar para
comemorar.
Passadas algumas semanas, e com os processos contra o juiz Freitas
resolvidos após os depoimentos de Jonas, todos no mesmo teor daquele prestado na
delegacia, a ideia de todos era retomar a vida dentro da mais absoluta normalidade.
Dona Pietra, enfim, pôde respirar aliviada. Tornou a erguer a cabeça nas
ruas e a cumprimentar as pessoas olhando nos olhos de cada uma delas, sem o
constrangimento de antes. Pôde constatar quais eram, efetivamente, suas amigas. As
verdadeiras eram poucas e ficaram do seu lado mesmo nos momentos mais difíceis,
aqueles em que grande parte da população de Espelho Dourado pensava que o juiz
Freitas fosse, de fato, corrupto e venal. Compreendeu, da pior forma possível, o que é ser
julgado por uma comunidade, ter a honra destruída em poucos dias, mesmo com a
certeza da inocência.
O mundo havia se fechado para eles. Enclausurados, amargavam dia
após dia todo o sofrimento da repulsa, do não pertencimento, algo que jamais haviam
experimentado, ao contrário. Assim como seu marido, não era adepta de bajulações, mas
o tratamento cordial que sempre recebera em todos os lugares daquela pequena cidade
já não mais existia, salvo em raros momentos.
A missão de reorganizar os sentimentos, e readquirir a confiança de
outrora seria uma tarefa diária. Era como se um grito de alívio não pudesse ecoar de uma
vez só. Continuava contido, mas querendo sair. De uma elegância ímpar, Dona Pietra
também fazia jus ao seu nome: além de uma fina mulher, era forte como um rochedo, a
sustentar a si e ao marido.
O juiz Freitas retomou os trabalhos no Fórum de Espelho Dourado,
também de cabeça erguida, sendo recebido por todos com uma bela homenagem, alguns
com certo remorso por terem se deixado levar pelas suspeitas.
Posteriormente, no silêncio do seu gabinete, viu-se novamente entre
reflexões sobre o ocorrido. Os aprendizados seriam muitos, desde os cuidados que o
homem público deve tomar com as armadilhas até a compreensão de como cada uma de
suas ações, por mais que sejam corretas, podem interferir na vida de outras pessoas,
sem que sequer se saiba disso.
Viver é um constante risco, pensou. Maior ou menor, mas sempre
presente. Às ações, as inevitáveis reações; causa e efeito. Àquele que julga, tudo é
potencializado. É conviver com a dura missão de lidar posteriormente com os próprios
erros, com o inevitável sentimento de que poderia ter feito diferente. E mesmo nos
acertos, a absoluta certeza de que interferiu, para o bem ou para o mal, na vida de
alguém.
Julgar é administrar conflitos, em diversos casos maximizá-los. É estar no
front de batalha munido de um pequeno escudo de vidro, transparente e frágil. Ao mesmo
tempo em que se exige do julgador, por óbvio, a correção de sua conduta e os motivos
que o levaram a decidir, é fato que ele vira alvo fácil de todo o leque de más intenções, do
fuxico à desforra, do boato ao sensacionalismo, do denuncismo ao julgamento via
mensagens instantâneas, tudo sem defesa alguma.
Ao longo de anos e anos de carreira, o juiz Freitas já vira muita coisa.
Entendia o ser humano como imperfeito e limitado. Jamais condenou alguém à prisão
com satisfação pessoal. Tinha o sentimento de que era a incompreensão quem
condenava algumas pessoas, não a Justiça. Como não compreender a história de cada
um, suas experiências, seus dramas, suas necessidades, suas escolhas?
Por certo, há limites para se viver em sociedade. Mas o que fazer quando
alguém, desde sua primeira infância, não teve qualquer noção do que seria a linha
divisória do que se pode ou não fazer, das consequências de suas ações? Seria o cárcere
o mais indicado a exercer a figura do “pai”? Uma indenização? A punição apenas por
vingança? Como agir quando a relação entre a imposição de limites e o afeto não fora
devidamente equacionada pelos pais ou responsáveis por uma criança?
O juiz Freitas sempre refletira sobre isso e agora estava para decidir as
providências que tomaria contra Jonas, responsável pelas acusações que o abalaram
profundamente. Tais questionamentos internos eram cada vez mais inquietantes e
frequentes.
Mas apesar de ter todos os motivos para odiar Jonas, não era esse o
sentimento que nutria. Do ponto de vista pessoal, embora não concordasse com
quaisquer das ações dele, gostaria de dar o assunto por encerrado, sem precisar levar
adiante um pedido de indenização, até porque dinheiro nenhum seria capaz de repor a
tranquilidade que havia perdido.
Mas junto à comunidade local, a ideia de o juiz não processar o seu algoz
soaria estranho, como se nada de grave tivesse ocorrido.
Em meio a tantos pensamentos, resolveu optar por um acordo com Jonas,
que consistiria em uma retratação na rádio e nos jornais locais, com a leitura e
reprodução de um texto com teor previamente acordado, que incluía também a total
isenção dos candidatos Rezende e Braga nos fatos ocorridos, bem como no pagamento
de cento e cinquenta mil reais em favor do Recanto Malala de Espelho Dourado, o local
onde ficavam as crianças vítimas de violência ou abandonadas e que funcionava em uma
velha casa. O nome, entretanto, era novo e fora concedido em homenagem à
paquistanesa que, por lutar pela educação feminina, havia sido alvo de atentado pelo
grupo talibã. Não só teve força para se recuperar de um tiro na cabeça, como conquistou
o Prêmio Nobel da Paz. Jonas também deveria abrir mão de mais cem mil reais, aquele
valor que havia depositado, por intermédio de um “laranja”, na conta de Freitas.
Consultado pelo pai, Waldorf disse que compreendia sua postura e que
com ela concordava, pois era um gesto de extrema grandeza, coisa para poucos.
Inspirado, completou:
- Em um mundo em que a intolerância e o desejo de vingança desfilam de
mãos dadas, e sob os aplausos das multidões, a sua atitude será tão bela quanto
incompreendida.
Foi o próprio Waldorf quem intermediou o acordo que acabou sendo
fechado nos termos propostos pelo Dr. Freitas.
Para Jonas, um excelente acordo, mas que só o fez sentir ainda mais pelo
que havia feito, diante da integridade daquele homem, a quem acusara injustamente.
Voltar no tempo talvez fosse mais fácil do que imaginar as consequências de seus atos.
Meses depois de fechado e cumprido o acordo, o Recanto Malala,
administrado por uma ONG, foi reinaugurado com a presença do juiz Freitas e de Dona
Pietra, que ali prestava serviços voluntários.
Eram oito crianças abrigadas naquela data. Uma delas era o pequeno
Michel, o único sobrevivente de uma família de cinco pessoas que teve a casa
incendiada. No dia do fatídico acidente, sua mãe, Sarah, estava grávida de sete meses.
Ela foi levada às pressas ao hospital, mas não resistiu. Conseguiram, então, fazer o parto
e salvá-lo. Poucos dias depois, estava no abrigo e, por sugestão de Freitas, começou a
ser chamado de Michel, tal como o pequeno menino do filme “A Chave de Sarah”, que
ficou escondido em um armário para se proteger da polícia francesa, por ocasião da
ocupação nazista em 1942. Sua irmã trancou-o no armário, levando a chave consigo, na
expectativa de buscá-lo em seguida.
Como usualmente ocorria, cada visita sua ao abrigo das crianças
reforçava sua crença de que era possível fazer alguma diferença na vida de outras
pessoas, a fim de ajudá-las a superar as dificuldades que se erguiam à sua frente.
Gostaria que cada uma delas pudesse falar tal como Zaratustra o fez na obra-prima de
Friedrich Nietzsche: “Aquele que escala as mais altas montanhas ri de todas as tragédias
e de todos os dramas.”
Ao ver aquelas crianças abrigadas, ciente de que algumas chegariam à
maioridade sem serem adotadas, e o pequeno Michel dormindo em seu berço,
cuidadosamente arrumado em um dos quartos do Recanto Malala, Freitas, sozinho
naquele momento, pensou em como eram pequenos os seus problemas.
Fontes consultadas:
http://universityicons.com/2014/01/real-john-harvard-please-stand/
www.wikipedia.com
http://www.quimica.net/emiliano/artigos/2007jan_forense2.pdf
Guia Visual PubliFolha – Nova York
http://www.falandodeviagem.com.br/viewtopic.php?f=143&t=7482