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Fernando de Castro Faria

Há anos nutria o desejo de escrever um romance no qual eu pudesse


imprimir alguns dos meus pensamentos e lembranças, enquanto ainda armazenados
nesse hardware chamado cérebro. Depois de um primeiro livro na área do Direito, resolvi
que era hora de tentar levar o projeto adiante. No calendário, passaram-se mais de três
anos, mas de escrita o tempo foi bem menor, pois os abandonos eram constantes. O
tempo, sempre ele, não me permitia, mas, à medida que o texto ganhava corpo, fui me
familiarizando com os personagens - como é difícil escrever certo: “as personagens”. Eles
se tornaram meus amigos e eu era uma espécie de confidente deles. Tal como amizade
de adolescente, era sempre bom estarmos juntos, ainda que fosse para falar de
trivialidades. Muitas vezes, no entanto, eles queriam falar sobre seus dramas e
inquietações. Ter amigos que moram em ruas chamadas páginas e cidades que viram
capítulos é ver um livro se transformar em um mundo diferente. É uma experiência tão
formidável que todo mundo deveria experimentar. Meu pai sempre disse que estudar é um
hábito, ideia que acabei transportando também para o verbo escrever.
Não é um livro sobre o Direito, mas é impossível escrever, ao menos para
mim, a partir do nada. Coisas que vi ou criei, lugares que conheci ou imaginei e algumas
pessoas que encontrei ou simplesmente concebi estão nele. O recurso ao julgamento,
empregado em alguns capítulos, foi a forma que encontrei para poder desenvolver
algumas ideias, mas sem o palavreado próprio ou o compromisso com a técnica jurídica.
Espero que tenham uma boa leitura.

Florianópolis, outono de 2016.


Dedico este livro a todos os amigos e familiares, em especial, às minhas
filhas Rafaela e Alícia, à minha mulher Fernanda, por todo o carinho, amor e
compreensão, aos meus irmãos Danilo, Renato e Rachel, aos meus pais Antônio (Tuba) e
Valmeri, por tudo o que representam em minha vida, e à doce memória de meus avós
Maria e Fernando, Lília e Archimedes, o poeta inspirador.
Capítulo I

These streets will make you feel brand


new
Big lights will inspire you
Hear it for New York!
(Alicia Keys)

- Don’t move, don’t move! – determinava um dos agentes de segurança


do Liberty International Airport.

Waldorf e Rahyssa obedeceram imediatamente. Não haviam percebido


até aquele momento um sinal luminoso de alerta que acendera em um dos equipamentos
de inspeção. O passageiro de origem árabe e que estava perto da bagagem suspeita foi
levado pelos policiais para uma sala reservada. Visivelmente assustado, ele olhava para
os lados como se alguém pudesse ajudá-lo a explicar algo.

O casal mal podia esconder o desconforto e o receio de que algo mais


grave pudesse ocorrer. Rahyssa, que estava a cerca de dois metros de distância, não
pôde segurar a mão de Waldorf, como usualmente fazia sempre que se sentia insegura.

Era inevitável lembrar que bem próximo ao local em que estavam o horror
havia se instalado há pouco mais de uma década. Dali mesmo do aeroporto era possível
ver a mais alta edificação das Américas, construída justamente no local em que ficavam
as torres gêmeas do World Trade Center: um novo arranha-céu, denominado One World
Trade Center, recompôs parte do famoso cartão postal.

Minutos se passaram e a ordem de não se mover era mantida pelos


agentes. A tensão aumentava cada vez mais. Sinais sonoros eram emitidos e todo o
aparato de segurança havia sido acionado. Os funcionários do aeroporto também não
escondiam o desconforto gerado pela incômoda situação. Um bebê de colo passou a
chorar de forma estridente, como a desafiar sua própria capacidade física de produzir
tantos decibéis, fazendo com que um dos policiais liberasse a mãe para atendê-lo melhor.
A bagagem suspeita fora levada dali para outro local, com muito cuidado.

Waldorf e Rahyssa estavam apreensivos, apenas se entreolhavam, mas


era como se pudessem conversar sobre o que estava acontecendo.
Após os atentados de 11 de setembro de 2001, uma série de medidas de
segurança foi tomada pelo governo para tentar evitar qualquer outro ataque terrorista em
solo americano ou contra as suas representações no exterior, desde invasões de
privacidade, com o governo monitorando tudo, até os abusos cometidos nas guerras que
foram travadas contra o desconhecido inimigo, passando pelas torturas ocorridas na
Prisão de Guantánamo, aquela que seria fechada, segundo promessa do presidente
Barack Obama. Aeroportos e fronteiras eram áreas de alto risco e, por isso, passaram a
ser mais vigiadas ainda.

Eram incalculáveis os custos humano e financeiro decorrente da Guerra


ao Terror, mais uma política internacional desastrada do então presidente George W.
Bush, o filho.

Um flash com tais pensamentos percorrera a cabeça de Waldorf naquele


momento, ainda que preocupado com a situação na qual estava envolvido. Considerava a
capacidade de manter o raciocínio, mesmo em situações adversas, uma qualidade.
O objeto suspeito, um cilindro metálico, era muito semelhante a um
artefato explosivo e estava sendo devidamente examinado.
Na sala reservada, para onde foi levado o jovem, uma série de perguntas
foram feitas, mas ele pouco compreendia o inglês. Falava apenas em engano, que era
estudante de engenharia e que nada de errado estava fazendo. Uma revista pessoal e
minuciosa fora feita com scanner corporal e exame de detecção de traços explosivos,
este instituído em 2010 pelos EUA. Trata-se de um procedimento em que o passageiro
retira os sapatos e um pequeno pano é passado em suas mãos, calçados, roupas e
bagagem de mão. Em seguida, o material coletado é inserido em uma máquina que
detecta eventual resquício de material explosivo. Nada, entretanto, fora encontrado.
Com a chegada de um agente que falava árabe, o rapaz pôde se explicar
melhor, mesmo com todo o nervosismo e atordoado. Disse que o equipamento era um
cilindro pneumático e seria utilizado na faculdade para algumas experiências, apesar de
não saber precisar bem quais seriam. Esclareceu que não havia adulterado o objeto
desde o momento em que o comprara, não sem a desconfiança dos agentes, que
pareciam não acreditar muito naquela versão.
Depois do exame feito no cilindro, em um potente raio-x, e da negativa de
material explosivo em seu interior, o estudante, atordoado, foi liberado.
Poucos minutos depois, apesar de uma sensação de que muito mais
tempo se passara, todos foram liberados. Waldorf e Rahyssa se abraçaram, momento em
que um sentimento de conforto e segurança foi compartilhado entre os dois.
Waldorf sentiu o peso do rigor com que os agentes americanos tratam o
tema da segurança, que virou uma verdadeira paranoia. Até compreenderia suas razões,
mas quando viu o rigoroso tratamento dispensado ao jovem árabe, que poderia ter se
explicado ali mesmo, pensou em como as pessoas podem ser vistas de forma diferente a
partir das lentes do preconceito. O fato de ser de origem árabe e estar trajado com roupas
tradicionais, incluindo o lenço masculino, influenciou naquela meticulosa revista, não
havia dúvida.
Waldorf e Rahyssa estavam atrasados desde a partida demorada de
Buenos Aires. Tomaram um carrinho elétrico de passageiros que circulava pelo terminal
de embarque e entre pessoas, bagagens e esteiras para pedestres, chegaram ao portão
de embarque, despedindo-se do gentil “piloto” com uma gorjeta, a primeira de tantas
outras daquela viagem.
Era outono no hemisfério norte, quando eles partiram para uma viagem de
férias de duas semanas, uma excelente ocasião para comemorar os dez anos de
casamento. Como quase todos os outros, o casal também gostava de viajar. Conhecer
novos lugares e culturas, ir a espetáculos de música e teatro, a restaurantes, a algumas
lojas ou simplesmente passear por cidades diferentes eram as suas atividades preferidas.
Designer de interiores, Rahyssa tinha refinado gosto e uma clientela
exigente e descolada. Gostava do que fazia e a possibilidade de conhecer as novas
tendências surgidas no exterior dava a ela a preferência da freguesia.
Waldorf, um renomado advogado criminalista, trocara seus pontos
acumulados em um programa de fidelidade pelas passagens, mas para ir ao destino
desejado, Nova York, teriam que entrar nos EUA por outra cidade cujo destino estivesse
dentro do crédito de milhas de que dispunha. Tentou Washington, Chicago e até mesmo
Miami, ao sul do país, mas nenhum lugar estava disponível para tais destinos. Havia vaga
para Las Vegas, no estado de Nevada, quase que na outra ponta de uma diagonal
traçada sobre o mapa norte-americano.
Seria a oportunidade para conhecer a cidade que foi batizada pelos
hispânicos com o nome de “Os Prados”, em referência à paisagem local, ou a sin city,
apesar de não ter qualquer queda pela jogatina que atrai gente do mundo inteiro. Por
certo, não julgava quem gostava de jogos, mas valorizava cada dia de seu trabalho e não
poderia conceber a possibilidade de arriscar seu dinheiro em cartas, roletas ou caça-
níqueis, além do que já havia advogado para alguns clientes que perderam tudo o que
tinham em mesas de apostas. Sabia de todas as consequências perniciosas,
notadamente as que deixavam desassistida a família após a bancarrota. Lembrou-se de
uma aula da faculdade em que o professor havia explicado a origem da palavra: do
italiano, banca rotta, banca quebrada, falido. Waldorf não se considerava um sovina, mas
também não tinha menor vocação para perdulário.
Viagem com milhas tem seus inconvenientes. O principal é o fato de ter
que se submeter às escalas e conexões impostas pela companhia. Embarcaram em
Florianópolis com destino a São Paulo, de onde partiriam para Buenos Aires, em uma
escala nonsense. Aguardaram por horas no aeroporto Ezeiza, na capital argentina, entre
sucos, cafés e passeios pelas lojas do free shop até o embarque com destino a Newark,
cidade que tem nome parecido com o da famosa metrópole vizinha, mas já no Estado de
Nova Jersey. A diferença entre os aeroportos de cá e de lá eram flagrantes. A
constatação de Waldorf não representava qualquer americanismo ou complexo de
inferioridade - ou de vira-lata, como se diz, mas apenas um fato.
Estavam próximos, muitos próximos, do destino inicialmente desejado,
mas por conta da impossibilidade de irem diretamente a big apple, de lá embarcaram em
outra aeronave para Las Vegas, não sem antes levarem aquele susto na passagem pelos
equipamentos de raio-x.
Apesar do cansaço dos dois, o voo para Las Vegas foi tranquilo. Rahyssa
cochilava de um lado para o outro, apoiando-se de vez em quando no ombro direito de
Waldorf. Um pouco de leitura e de música para distrair. Já sem muito que fazer, tentou
assistir TV, mas a programação da pequena tela instalada em cada poltrona só ficaria
disponível se houvesse o pagamento via cartão de crédito, que poderia ser passado na
lateral do próprio equipamento. O tempo gratuito de dez minutos, marcado no canto da
tela com um pequeno cronômetro, já havia se esgotado. A partir dali, somente com o
pagamento. Conforto do jeito americano, no free lunch. Eduardo Galeano adoraria falar
sobre isso, pensou Waldorf.
Após quase trinta horas da saída de Florianópolis, o casal, enfim, chegou
a Las Vegas, no Aeroporto Internacional McCarran. As aeronaves pousavam e partiam
com uma frequência tão intensa que já se poderia imaginar a quantidade de turistas por
lá.
Bagagens resgatadas, tomaram um ônibus franqueado por uma espécie
de shopping center de locadoras de veículos, onde ficavam dezenas delas.
Rumaram em direção ao Planet Hollywood, hotel indicado por um amigo
de Waldorf, que ficava na avenida mais badalada de Las Vegas, a Boulevard South,
mesmo endereço de diversos outros hotéis, cassinos, shoppings, bares e restaurantes
situados nessa parte da Boulevard conhecida como Strip.
Quase em frente ao Planet estava o imponente e luxuoso Bellagio, com
suas famosas fontes. Conta-se que fora o hotel mais caro já construído no mundo inteiro
até então, a um custo de um bilhão e meio de dólares, aproximadamente. A cada hora,
um espetáculo incrível de jatos de água e luzes perfeitamente sincronizados com uma
música orquestrada de alta qualidade, formando um verdadeiro ballet das águas, com o
deslumbrante hotel ao fundo. Waldorf e Rahyssa não contiveram a emoção e repetiam
como era incrível e lindo o show. Outros turistas também se impressionavam com aquela
belíssima atração. Americanos podem ter lá seus defeitos, mas ninguém poderia superá-
los quando o assunto é o espetáculo.
Os passeios do casal entre os cassinos, hotéis e shoppings eram feitos a
pé, pois eram muito próximos uns dos outros, e alternados pelas idas aos bares e
restaurantes. Não deixaram de passar pelo Hard Rock Cafe, pois gostavam do clima
descontraído e da atmosfera rock n' roll do local.
No cassino do Hotel Paris, onde tomaram café com deliciosos croissants
de maçã, Waldorf e Rahyssa se arriscaram por uma única vez nos jogos, mais
precisamente na roleta. Compraram apenas US$ 50,00 em fichas, num momento para lá
de sovina de Waldorf. As apostas se limitavam a US$ 10,00 nas cores preta e vermelha.
 Aposte no 17, é o meu número da sorte, sugeriu Rahyssa.
 É muito difícil ganhar assim, apostando em um número - respondeu
Waldorf de forma reticente.
Apostou na cor vermelha e, lançada a bolinha, não deu outra: 17, cor
preta!
 Ah, não. Eu não disse? Por que você não apostou? - perguntou
Rahyssa, contrariada.
 Mas como eu poderia imaginar? A chance era muito pequena jogando
assim - disse Waldorf, meio que se desculpando. Pensou que poderia, pelo menos, ter
apostado na cor do número 17, o que não fizera por pura distração.
Poucos minutos depois e lá se foram as cinquenta pratas, quantia ínfima
se comparada aos que perdem os demais apostadores. Rahyssa disse para Waldorf
comprar mais, pois assim poderiam jogar mais e recuperar o valor perdido.
 Assim é que se perde mais ainda – retrucou Waldorf, que bem
conhecia as histórias de alguns jogadores que, por tentarem reaver o dinheiro perdido,
acabavam acentuando ainda mais o amargo sabor da derrota.
Além dos jogos e do luxo dos hotéis e cassinos, Las Vegas é notabilizada
por grandiosos eventos esportivos e musicais. Na arena lotada do MGM, Waldorf e
Rahyssa assistiram ao show da cinquentona Madonna, mais um espetáculo para não ser
esquecido. O clima era de total celebração, principalmente nas músicas mais antigas,
como Like a Prayer. Apesar das mais de dez mil pessoas no local, o casal parecia estar
sozinho, tamanho era o romantismo, com direito a beijos... um momento(!), o que
acontece em Vegas, fica em Vegas.
No mesmo local ocorrem as lutas de UFC, transmitidas para o mundo
todo. Waldorf não gostava delas. Para ele, representavam a versão moderna das antigas
lutas romanas, em que gladiadores combatiam, quase sempre, até a morte.
A última noite do casal em Las Vegas foi marcada por um passeio no The
Venetian Resort Hotel Cassino, que fica um pouco adiante seguindo ao norte da
Boulevard South, em torno de cinco minutos de carro, partindo do Bellagio.
Após a excelente comida italiana, Waldorf e Rahyssa foram passear pelo
luxuoso e impressionante hotel. Palco de filmes e séries de TV como o CSI, o hotel conta
com uma réplica da Praça de São Marcos e, para a admiração dos turistas, um canal com
gôndolas para passeio dos hóspedes e visitantes.
O casal não desperdiçou a chance, com direito a música italiana cantada
pelo gondoleiro, que ao passar por debaixo de uma das pontes avisara o casal que era
hora do beijo, tal como na verdadeira Veneza. Waldorf não deixou por menos e cumpriu a
tradição.
Rahyssa era de uma beleza incomum. Seus lábios eram carnudos e
naturalmente vermelhos. Os olhos verdes, observados de perto por generosas
sobrancelhas, contrastavam com a pele morena. As maçãs rosadas da face eram
separadas pelo nariz milimetricamente ajustado ao rosto ligeiramente triangular. Os
cabelos longos e ondulados escorriam pelos ombros até abaixo da altura dos seios. A
altura de 1,68m era marcada por belas curvas que delimitavam o corpo esguio.
Os dias fantásticos vividos na frenética Las Vegas prenunciavam uma
ótima estada também em NY, a não ser por uma mensagem recebida por Waldorf em seu
celular quando estava para embarcar.

“Filho, quando você retorna ao Brasil? Preciso conversar com você.”, dizia
o texto enviado pelo pai de Waldorf.

Tudo muito estranho, pois seu pai sempre evitava entrar em contato
durante as viagens, justamente para não incomodar, ainda mais dando a entender que
algo errado estava acontecendo.
Waldorf tentou retornar a mensagem e até mesmo ligar para o Brasil, mas
não conseguiu. Pensou em algo ruim em relação à saúde de seus pais.

Horas de voo depois, já sobrevoando Nova York, Waldorf lembrou de uma


música de John Lennon, quando ele já estava morando na big apple, chamada New York
City. Na canção, o ex-beatle, que fazia duras críticas ao governo de Richard Nixon,
notadamente contra a Guerra do Vietnã, fala que fez de NYC sua casa, após deixar
Londres, e que a Estátua da Liberdade foi quem disse: “Vem!”. Foi uma habilidosa
resposta à perseguição ultimada pelo então presidente americano, que determinou ao FBI
que acompanhasse de perto todos os passos de Lennon. A intenção era flagrá-lo na
posse de drogas, o que justificaria, segundo o governo, sua extradição.

Logo na chegada ao saguão do aeroporto, Waldorf conseguiu falar com


seu pai, o juiz Freitas, perguntando o que havia acontecido.

- Não, filho, não é nada a respeito de nossa saúde, está tudo bem. É
apenas uma dúvida que me ocorreu aqui no trabalho, eu não deveria ter te deixado
preocupado. Aproveite sua viagem – tranquilizou o pai.

Waldorf trocou mais algumas palavras com seu pai e fez questão de falar
com sua mãe. Mesmo mais calmo, sabia que havia algo de errado naquilo tudo. Seu pai
não ligaria para ele para tratar de algum tema de trabalho durante sua viagem, ainda mais
com um tom de voz diferente. Eram frequentes as conversas acadêmicas dos dois sobre
o Direito, mas não naquelas circunstâncias.

Já no hotel, bem próximo a Times Square, encontraram Fabrícia, Roger e


Evandro. Os dois eram primos de Waldorf, sendo Fabrícia e Roger casados. No check in,
após a primeira frase de Waldorf em inglês, o atendente disse em bom português:

- O senhor é brasileiro de que região?

Waldorf riu e pensou em sua pronúncia.

- De Santa Catarina e você?

- De São Paulo, estou aqui desde 1995. Vim para cá com 19 anos,
apenas.

A conversa amistosa sobre um pouco da história de Jefferson nos EUA


fluiu durante o atendimento. Waldorf despediu-se e foi em direção ao apartamento
indicado, juntamente com Rahyssa.

Durante o trajeto, demorado por conta da longa espera pelo elevador,


Waldorf recordara que na década de 90, assim como nos anos 80 e 70, muitos brasileiros
tentaram a vida no exterior. Ele mesmo conhecia muitas pessoas, inclusive alguns
parentes, que ultrapassaram fronteiras, principalmente em direção aos Estados Unidos e
Europa. Algumas delas voltaram anos depois, mas outras já haviam se estabelecido
definitivamente e, apesar da distância dos familiares e amigos, não pretendiam mais
retornar.

Ouvia dos amigos que tiveram a experiência de morar no exterior que,


passada aquela barreira inicial que envolvia língua e cultura novas, a alimentação
diferente e a saudade ainda maior do que a própria distância, as coisas iam aos poucos
se resolvendo, até que os novos vínculos se formassem a ponto de tornar o sentimento
de nostalgia menos doloroso, ainda que jamais superado por completo.

Pensou em como era bom poder viajar apenas para passear, sabendo
que dias depois retornaria à sua casa, no melhor estilo “viajar é bom, chegar em casa é
melhor ainda”.

O primeiro passeio da turma foi uma caminhada pela Times Square, onde
funcionou a primeira sede do NY Times, dando origem ao nome do local, um dos mais
visitados do planeta. É impressionante. Parece, de fato, que o mundo passa por ali. De
repente, a língua oficial daquela gente vinda de todos os cantos parece ser uma só: o
obturador das máquinas fotográficas, disparados enlouquecidamente. Os famosos selfies
de celular também dão a tônica.

É impossível passar por ali sem ser flagrado por alguém, pela câmera de
vídeo que reproduz as imagens do público em um gigantesco telão ou pelas diversas
câmeras de segurança. A propósito, presenciaram um turista desavisado consumindo
bebida alcoólica na rua ser abordado rapidamente pela polícia. Feita a advertência, de
forma nada gentil, foi liberado em seguida, meio assustado.

Na região mais movimentada de Manhattan ficam os famosos teatros da


Broadway, a escadaria vermelha em que estão as bilheterias da TKTS, lojas, hotéis,
restaurantes, a bolsa Nasdaq e os impressionantes e multicoloridos luminosos que fazem
a noite praticamente virar dia.

A publicidade eletrônica é de instalação obrigatória naquele local por se


tratar de uma área comercial e turística e é conhecida no mundo todo, principalmente
porque ali acontece uma das festas de réveillon mais concorridas de todo o globo, mesmo
no rigoroso inverno.
Nova York era uma das cidades preferidas de Waldorf e Rahyssa. Alguns
dos passeios mais tradicionais já haviam sido feitos anteriormente, incluindo a visita à
Estátua da Liberdade, Central Park, antigo World Trade Center, Empire State, Museu de
História Natural, dentre outros.
Naquela primeira noite, os termômetros não ultrapassavam a casa dos
41º F, ou 5º C, mas com o vento formado nos corredores entre os prédios a sensação
térmica caía sensivelmente. Assistiram ao show da britânica Joss Stone, a bela loura que
canta soul, no Best Buy Theater, em Time Square. Outro show memorável. Hits como
Super Duper Love e You Had Me embalaram o público presente, que ficava
impressionado com a qualidade da banda e da inglesinha e seu vozeirão.

Saíram do teatro e foram passear no frio do outono nova-iorquino. O


relógio marcava 11h30 pm e a temperatura estava caindo. Algumas fotos e uma pausa no
Hard Rock Cafe para um steak e umas cervejas. Waldorf pouco bebia, mas Roger e
Evandro não perdiam a oportunidade de experimentar diversos tipos de cerveja. Era ver
um pub e “here we go”. Como sempre, as risadas só eram caladas por alguns goles.

Os dias que se seguiram foram muito bem aproveitados. O passeio de


bicicleta pelo Central Park foi incrível. Os cinco pedalavam pelo parque apreciando a
paisagem formada por lagos, plantas, árvores e gramados, tudo no charme do clima de
outono e dos esquilos. Dali, seguiram de bike até a Columbia University, aquela por qual
passou o maior número de estudantes que se tornaram presidentes americanos.

Waldorf aproveitou para uma foto junto à escultura Alma Mater, que ficava
na escadaria em frente à biblioteca e se tornara o símbolo daquela instituição. Ficou
admirado com a beleza do monumento, uma mulher que usava uma coroa de louros e
estava sentada em um sublime trono. Os antebraços abertos e erguidos, com a mão
direita segurando um cetro, o bastão utilizado por monarcas. Um denso livro que
descansava sobre suas pernas representava o conhecimento; uma coruja bem escondida
sob as dobras do manto que cobria a mulher, próxima à perna esquerda, era o sinal de
sabedoria.

Uma lenda sobre a obra de Daniel Chester French dizia que o aluno que
encontrasse a coruja em sua primeira tentativa seria o orador da turma ou se casaria com
uma menina do Barnard College.

Alma mater: conhecimento e sabedoria. Waldorf pensou em como aquele


monumento bem representava uma filosofia de vida. De nada adiantaria ter o
conhecimento se a ele não pudesse ser agregada a sabedoria. Mas, como advertiu o
escultor, a sabedoria não estava disponível aos olhos de todos...

Em seguida, para encerrar o passeio de bike, dirigiram-se à Catedral de


São João, o Divino, a maior de Nova York e que ainda está em obras, desde 1892.
Quando concluída, deve ser a maior do mundo. Em estilo gótico, o projeto inicial era de
Heins e LaFarge, mas foi modificado anos depois por Ralph Adams Cram. Também em
2001, o trágico ano para Nova York, a catedral sofreu sérios danos após um incêndio que
destruiu o interior e o teto do transepto norte. As dimensões e a beleza do lugar, com seus
altares, vitrais e a rosácea da fachada oeste são impressionantes. Era Evandro quem
repassava as informações ao grupo, após obtê-las em seu inseparável guia.
No dia de aniversário de dez anos de casamento de Waldorf e Rahyssa, a
comemoração foi com um jantar, a sós, no famoso Buddakan, localizado na 9ª Avenida,
Meatpacking District. O cenário não poderia ser mais belo. Palco de programas de TV,
dentre eles Sex and the City, o restaurante asiático possui diversos ambientes. No
principal deles, sob quatro suntuosas luminárias, uma mesa de madeira, com lugar para
nada menos do que vinte e seis pessoas, é adornada por candelabros. Com o elevado pé
direito, o ambiente retangular ainda comporta outras mesas menores. Partindo do andar
superior e de paredes opostas, duas imponentes escadarias se encontram e, em uma
guinada de noventa graus, chegam ao salão. Vindos do teto, raios luminosos
cuidadosamente direcionados em formato “X” dão um charme especial às paredes
revestidas com madeira. No alto, figuras geométricas vazadas formam janelões que
permitem a vista daqueles que estão mais acima naquela pequena maravilha.
No restaurante coisa-de-cinema, Waldorf e Rahyssa degustaram, à meia
luz e ao som de música eletrônica em razoável volume, um delicioso prato de massa com
camarões, ligeiramente apimentado e harmonizado com um sauvignon blanc. De
sobremesa, o clássico petit gateau, com uma mensagem de parabéns anotada com calda
de chocolate, uma gentileza do garçom que ficara entusiasmado ao saber de tão
importante data para o casal.
Felizmente, a cidade não é só consumo e diversão, há muita cultura por
lá. As bibliotecas, os inúmeros museus, teatros e casas de shows são algumas das
atrações imperdíveis da metrópole. O Museu de Artes Modernas – o MoMA, o de História
Natural e o Metropolitan, por exemplo, são obrigatórios.
Dentre as várias e importantes obras em exposição no MoMA, “A
Persistência da Memória”, o célebre quadro do surrealista Salvador Dalí é um dos mais
concorridos, mas de tão pequeno que é o visitante precisa tomar cuidado para não passar
direto. Já no Museu de História Natural, cenário do filme “Uma Noite no Museu”, está a
maior coleção de fósseis de dinossauros do mundo. Nova York é mesmo deslumbrante!
Impossível, em poucos dias, aproveitar tudo o que ela oferece.
A hora de voltar ao Brasil chegou, e Waldorf mal poderia imaginar que
teria tempos difíceis pela frente.
Capítulo II

Jamais subestime o improvável. Quando


você acha que está tudo bem...

Ainda cansado da viagem de retorno, no início da manhã seguinte à


chegada, Waldorf foi à casa de seus pais, sendo recebido por ambos. Beijou-os e
abraçou-os. Dona Pietra, sua mãe, ofereceu um café a Waldorf, que aceitou de imediato.
 Filho, tudo bem? Como foi de viagem? – disse a mãe.
 Tudo bem, um pouco cansativa – respondeu Waldorf.
 Preciso te falar uma coisa – disse o pai com o tom de voz carregado.
 O que foi, o que houve?
Waldorf não conseguia conter a ansiedade. Seu coração batia rápido e
forte, as mãos estavam suadas e frias. Não poderia imaginar o que ouviria, por mais que
tivesse tentado antever qualquer problema. Pensou em algo terrível, um câncer talvez.
 Filho, alguma vez te decepcionei em relação à minha conduta
profissional ou pessoal no campo ético?
 Não, claro que não – respondeu de forma segura Waldorf. Ao
contrário, sempre o tive como modelo a ser seguido, como referência de homem íntegro.
 Que bom, meu filho. É que durante a sua viagem algo terrível
aconteceu por aqui, fui acusado de um crime que não cometi, disse o Dr. Freitas olhando
nos olhos de Waldorf.
 Mas do quê, pai? O que foi? Quem fez a acusação?
 Como você sabe, tivemos eleição recentemente aqui no município,
essa agora de 2012.
 Sim, claro – assentiu Waldorf.
 Tramitou uma ação eleitoral na qual foi denunciado um esquema de
compra de votos contra o atual prefeito e candidato à reeleição, o Rezende.
 Sim, lembro, o senhor havia comentado comigo.
 Logo que você viajou, eu julguei. Se essa decisão for mantida nos
tribunais, o segundo colocado será o eleito e empossado.
 Sim, mas isso nem ocorreu ainda, observou Waldorf. O que teve de
errado na decisão?
 Nada - disse o Dr. Freitas. - As provas demonstravam a escancarada
e gigantesca compra de votos, tanto em dinheiro quanto mediante a entrega de cestas
básicas e distribuição de gasolina, além de promessas de cargos públicos, tudo ocorrendo
bem antes da eleição. Alguns juízes poderiam até absolver, dizer que o fato não interferiu
no resultado e tal, mas você sabe como sou rigoroso nessas coisas. Além do que, o fato
foi gravíssimo e envolveu muita gente. Entretanto, o problema não é esse.
 Mas qual, então? – perguntou o filho ainda mais ansioso.
 Você lembra, Waldorf, como e quando eu faço a minha contabilidade
pessoal?
 Sim, desde pequeno recordo que o senhor pegava um extrato mensal
no banco no final do mês e conferia todos os pagamentos feitos, saques e o depósito do
seu salário.
 Exatamente, isso mesmo. Não mudei nada nesses anos todos, nem
mesmo com a internet. O que mudou foi que agora não vou mais ao banco, pois pego o
extrato no computador aqui de casa; no mais, tudo igual. No dia em que proferi a decisão
que cassou o novo mandato do Rezende, houve um depósito não identificado na minha
conta no valor de cem mil reais. Eu não cheguei a ver tal depósito, pois só verificaria o
extrato no final do mês.
 E a decisão foi que dia? - perguntou Waldorf.
 Dia 10. O depósito foi no mesmo dia da sentença. No dia seguinte, e
isso eu só soube posteriormente, começava um boato na cidade, dando conta de que eu
havia vendido a decisão em favor do segundo colocado no pleito.
 Meu Deus! – disse Waldorf surpreso.
 As pessoas passaram a me olhar diferente. Eu pensava que era por
conta do peso da decisão, que na prática cassava o segundo mandato do Rezende. Você
sabe, em eleição municipal quase todos têm seu candidato preferido. Sei que as pessoas
mudam quando têm seus interesses contrariados e era a esse fato que eu creditava
aquela alteração no comportamento. Não dei muita importância. Só fui entender o que se
passava quando recebi isso – disse o Dr. Freitas pegando umas folhas de dentro de uma
pasta.
 O que é? - questionou Waldorf, tentando ler de longe o documento.
 Uma notificação do corregedor.
 E o que diz exatamente?
 Que foi aberto um procedimento disciplinar. Há uma cópia da
denúncia, que fala que eu vendi a sentença em favor do segundo colocado nas eleições,
o Braga, pelo valor de cem mil reais.
Nesse instante, os olhos do Dr. Freitas se encheram como raramente
Waldorf havia visto. Dona Pietra tentou tranquilizar o marido, mas foi às lágrimas com ele.
Waldorf se aproximou e abraçou fortemente seus pais, tentando conter o choro, a fim de
demonstrar um pouco de força e lucidez naquele momento de enorme fragilidade.
 Acabaram comigo, acabaram comigo – repetia o Dr. Freitas.
 Calma, pai, calma – intercalava Waldorf – isso não pode e nem vai
ficar assim, ninguém irá tirar seu maior patrimônio: a honra de um homem digno e
dedicado ao trabalho, ainda mais às vésperas da aposentadoria. Só temos orgulho,
jamais alguém levantou qualquer dúvida sobre sua idoneidade, nem mesmo aqueles que
o senhor condenou.
 É verdade, Waldorf – concordava Dona Pietra – tanto orgulho temos
de seu pai, sempre tivemos!
 E teremos, mãe, podes ter certeza. Mas pai, quem fez a denúncia?
 Um tal de Dionata Ramos Marques – respondeu o Dr. Freitas já
recomposto.
 Quem é essa pessoa? Fez a denúncia com base em quê?
 Não conheço. Aqui na cidade ninguém sabe quem é. Perguntei aos
oficiais de Justiça, pois eles sabem praticamente de todos por aqui, mas esse nome é
ignorado, deve ser falso. Ele encaminhou uma cópia do recibo do depósito de cem mil
reais na minha conta, no dia da decisão. Eu entreguei essa sentença no cartório por volta
das 17h e o depósito foi por volta das 15h, segundo o banco me informou. A denúncia fala
isso também: que após o pagamento acertado com o juiz, foi publicada a sentença em
favor de Braga e contra o prefeito Rezende.
 Quando termina o seu prazo para a defesa?
 Tenho até quinta-feira da semana que vem. Não fiz nada ainda
porque precisava falar com você para saber sua opinião.
 Bem, temos quase dez dias ainda. Há muito o que fazer. Tenho um
júri grande pela frente daqui a alguns dias, mas já estudei todo o processo antes de viajar
e preciso apenas revisá-lo.
 Mas você vai trabalhar no meu caso? Sou seu pai, lembra que
sempre falei que advogados devem evitar trabalhar para parentes ou amigos muito
próximos. É natural que o advogado se envolva emocionalmente, e isso não é bom. A
mesma tranquilidade que o juiz precisa ter para decidir, o advogado precisa ter para fazer
um bom trabalho, sem paixões.
 Pai, sei bem disso, mas esse caso é uma questão de honra para o
senhor, para mim e para toda nossa família. Veja a aflição da mãe – disse Waldorf
olhando para Dona Pietra.
 Tudo bem, meu filho, mas devemos contratar outro advogado para
atuar em conjunto. Assim, podemos discutir melhor com alguém que não esteja tão
envolvido.
 Sim, claro. E o senhor está trabalhando?
 Não, não tenho condições. Eu que raramente peguei licença-médica,
dessa vez não tive outra saída, seria um erro tentar trabalhar nesse momento, sem
possibilidade de raciocinar direito. Soube que lá na Capital a notícia caiu como uma
bomba, que o presidente do tribunal havia ficado furioso com essa notícia. Até mesmo
nossa segurança aqui na cidade ficou um pouco prejudicada. No dia em que o boato virou
notícia de jornal e caiu na internet, nosso muro foi pichado. Dizia: “Fora Dr. Ladrão”. Já
mandei apagar. A partir de então, pedi ao comandante que determinasse a realização de
rondas por aqui. Ele me atendeu de maneira muito fria, diferentemente do habitual. Disse
que iria ver se poderia me auxiliar e que era para eu tomar cuidado, pois os ânimos nessa
época de indefinição eleitoral estavam muito exaltados, ainda mais com a denúncia que
pesava sobre mim. Falou ainda que a PM já foi chamada várias vezes para fazer a
segurança do Fórum, diante dos protestos de aliados do Rezende.
 Mas pai, por que você não me contou tudo isso antes? Que loucura
ficar aqui com esse clima.
 Você estava viajando. Não queríamos atrapalhá-lo. Só perguntei
quando você viria para saber se teríamos tempo para trabalhar na defesa. Você ficaria
preocupado e acabaria voltando antes da hora. E tem outra coisa: se eu saísse da cidade,
todos diriam que eu teria fugido. Apesar de não sairmos de casa, por segurança, todos
sabem que continuo aqui e que vou me defender com todas as forças a respeito desse
absurdo que fizeram. Nunca mais terei o respeito de antes, Waldorf, mas quero me
aposentar com o sono dos justos e morrer com a consciência tranquila; e que todos
saibam disso.
 Sim, sim. Faremos isso acontecer, confie em mim. Já tenho um nome
para nos auxiliar, é o Dr. Rolf Kolmann, um excelente advogado criminalista de Curitiba e
um grande amigo, é especialista em crimes financeiros. Creio que poderá nos ajudar a
rastrear a origem desse depósito. Apesar de termos um suspeito número um, o principal
interessado em desmoralizar o senhor e sua decisão, temos que ter elementos para
conseguir reverter o quadro nada favorável nesse momento. Essa armadilha parece ter
sido muito bem planejada.
 Claro, você está certo. Lembro do Dr. Rolf, você já esteve aqui com
ele, não foi?
 Sim, esse mesmo, fizemos a faculdade juntos. E o dinheiro
depositado na conta, o que o senhor fez?
 Acabei sabendo do depósito apenas quando recebi a notificação do
corregedor. Fui até o banco conferir e falei com o gerente, explicando a situação. Ele
disse ter achado estranho aquele valor, mas como o banco tem o hábito de avisar o
cliente apenas em caso de transferências originadas da agência ou de cheques mais
vultosos dos seus clientes, ninguém me avisou, afinal era um crédito em minha conta. Ele
atendeu meu pedido e transferiu o valor para uma conta sob a responsabilidade do banco
até nova ordem, apesar do estrago já estar feito. Assinei um requerimento nesse sentido.
Ele disse que ainda não conseguira identificar o nome do depositante. Tomei o cuidado de
falar diretamente com o gerente, pois há no banco alguns funcionários que são partidários
do Rezende e certamente estariam contra mim por conta da decisão.
- Sim, entendo. Waldorf se despediu dos pais abraçando-os. Disse que
precisava falar com o Dr. Rolf com urgência e que retornaria no dia seguinte, se possível
com o colega, para estudarem a defesa junto ao órgão corregedor e também a forma pela
qual poderiam identificar a origem do depósito.
Capítulo III

Ao retornar para casa, após a conversa com os pais, Waldorf não perdeu
tempo. Explicou o ocorrido a Rahyssa, que igualmente ficara surpresa e chocada, e
telefonou para o amigo Rolf, marcando um encontro, no início da noite, na capital
paranaense.
No horário agendado, Waldorf já o aguardava. Sorvia alguns goles de um
saboroso espresso na Livraria da Vila, localizada em um shopping do bairro Batel. No
folheto à sua frente, uma propaganda da marca do café, leu que a palavra italiana que
designa o tipo daquela bebida é grafada com “s” porque seu significado tem origem em
“espremer”. Faz sentido, pensou, pois o café é extraído por meio de um mecanismo de
pressão exercido sobre ele.
O motivo de sua passagem pelo local não era nada parecido com o de
outros dias. Waldorf e Rahyssa costumavam frequentar os restaurantes e bares do bairro,
uma área descolada da cidade. Ele sequer lembrou-se dos bons momentos por ali vividos
quando chegou seu amigo, um pouco apressado.
- Olá, meu caro. Desculpe o atraso – disse Rolf após abraçarem-se.
- Imagina, estou aqui há uns cinco minutos – minimizou Waldorf, que na
verdade já o esperava por mais tempo. Sempre que possível, evitava qualquer tipo de
constrangimento.
Waldorf relatou o caso a Rolf, que também ficara perplexo, pois conhecia
a família e sabia que não poderia ser verdadeira a denúncia feita contra o juiz Freitas, a
menos que estivesse completamente enganado...
Rolf era estudioso da legislação que tratava de crimes contra o sistema
financeiro. Conhecia as resoluções e circulares do Banco Central que regulamentavam as
transações bancárias. Comentou de imediato que os depósitos em cheque ou mesmo o
Documento de Crédito (DOC) e a Transferência Eletrônica Disponível (TED) eram
obrigatoriamente identificados a partir de mil reais e que para não aparecer o nome do
depositante alguém da agência de origem deveria ter omitido propositadamente tal
informação. Lembrou que naquele caso, na verdade, dois funcionários participaram da
operação.
- Por que dois? – Waldorf perguntou.
- Porque nesse banco nenhum funcionário pode realizar uma transação
de cem mil reais sem que outro a confirme. São duas senhas. Do contrário, o sistema
interno não autoriza a conclusão da transferência sem a identificação do depositante.
Fazem isso para que um único funcionário não possa, sozinho, cometer um erro ou
praticar eventual golpe contra o banco ou seus clientes.
Waldorf concordou com um leve balançar de cabeça para baixo e para
cima.
- E quem fez a denúncia à Corregedoria? - perguntou Rolf.
- Um tal de Dionata Ramos Marques, não sabemos quem é ele.
- Precisamos investigá-lo. Como ele sabia do depósito? Quem tem uma
informação dessas e o interesse em prejudicar seu pai está muito envolvido com isso
tudo.
- Sim, claro, mas temos um problema.
- Qual? – perguntou Rolf.
- Eu andei pesquisando e vi que essa pessoa, o verdadeiro Dionata
Ramos Marques, deve ter sido vítima de um falsário. É que há algumas ações judiciais
recentes dele contra alguns bancos e estabelecimentos comerciais. Diz ter perdido seus
documentos e que eles estão sendo utilizados por outras pessoas que contraem
empréstimos e fazem compras em seu nome.
- São casos que ocorrem bastante – comentou Rolf.
- Sim. Precisamos saber da origem do depósito. Sem que se saiba isso,
fica complicado demonstrar que alguém ligado ao Rezende quis prejudicar meu pai –
concluiu Waldorf.
- Rezende, o prefeito e candidato à reeleição. O maior interessado em
desmoralizar seu pai e a decisão dele – disse Rolf.
- Sim, ele mesmo. O relacionamento entre os dois já não era nada bom.
Meu pai o condenara em uma ação por improbidade e o Rezende deu entrevista a uma
rádio local dizendo que havia perseguição da Justiça e tal. Deixou claro que se sentia
prejudicado pela atuação do “Dr. Freitinha”, como ele o chamava, numa intimidade que,
além de não ser recomendável, jamais existira. E foram várias outras decisões que
contrariavam o interesse do prefeito.
- E o que dizia seu pai?
- Ele nunca respondia a ataques desse tipo, ficava quieto. Responder
seria colocar ainda mais lenha na fogueira, pensava ele. Dizia que as pessoas o
conheciam e que todos sabiam de sua honestidade, até que aconteceu uma coisa dessas
– lamentou Waldorf.
- Mais um motivo para creditar ao Rezende essa picaretagem. Um
depósito de cem mil reais na conta dele bem no dia de uma decisão para lá de importante
certamente o desmoralizaria.
- Exatamente. Foi o que ele fez.
- Bem, nossa primeira medida deverá ser requerer judicialmente ao banco
a identificação do depositante, já que o gerente disse que não conseguia fazê-lo – sugeriu
Rolf.
- Claro. Enquanto isso, adiantarei a defesa junto ao órgão corregedor.
Começarei com o relato da trajetória limpa e reta de meu pai nesses mais de trinta anos
de magistratura, os elogios em sua ficha funcional, as declarações de bens e renda dos
últimos anos, as diferenças do prefeito Rezende com ele, as decisões contrárias. Que tal?
– perguntou Waldorf.
- Isso, uma única e absurda acusação não pode destruir uma carreira
como a de seu pai. Tudo deve ser considerado – asseverou Rolf. – Mas uma coisa deve
ser feita com cautela: sabemos quem está por trás dessa armadilha toda, só que ainda
não há provas disso. Não podemos afirmar quem foi, certo?
- Sim, você tem razão – concordou Waldorf – mas é preciso dizer que ele
teria motivos para prejudicar meu pai e desqualificar aquele que cassou o novo mandato
de prefeito dele.
- Sim, isso deve ser feito, mas com cuidado. Não se deixe levar pela
emoção, ela é traiçoeira – advertiu Rolf.
Os dois amigos se despediram, tendo Rolf demonstrado confiança na
inocência do pai de Waldorf, apesar de reconhecer que a acusação era grave e que
dificilmente a honra do juiz seria resgatada plenamente.
Rolf trabalhara naquela noite na primeira das ações que fariam parte da
defesa: a identificação do autor do depósito.
No dia seguinte, protocolou o pedido na Comarca de Espelho Dourado,
onde estava trabalhando um magistrado que substituía o Dr. Freitas. Toda a
documentação que havia sobre o caso, inclusive a notificação do Corregedor, fora
digitalizada e anexada ao pedido.
O juiz determinou ao banco a identificação do autor do depósito, no prazo
de 48 horas. A decisão foi cumprida antes mesmo do prazo, pois o gerente já estava
diligenciando nesse sentido. Informou que o depósito partira de alguém chamado Tomás
Fabre Pereira.
Rolf transmitira, por telefone, a notícia a Waldorf, que disse não lembrar
de tal nome.
- Precisamos saber quem é essa pessoa e se ela tem alguma ligação com
o Rezende ou com o falsário que se faz passar por Dionata.
- Ou com ambos – afirmou Rolf.
- Sim, bem possível – disse Waldorf intrigado.
- Bem, temos que descobrir onde eles erraram nesse plano, será a chave
para o esclarecimento. Precisamos das informações para ver se encontramos alguma
relação entre essas pessoas – concluiu Rolf.
- Claro. Esse erro que deve ter sido cometido em algum lugar vai nos
levar ao Rezende – observou animado Waldorf.
– Sim, não esqueça que para fazer a denúncia o autor dela tinha que
saber do depósito. O Rezende não poderia aparecer como denunciante porque não teria
como explicar que já sabia do depósito, além do que seria interessante ficar afastado de
tudo para dizer, depois, que nada teve a ver com esses fatos, caso a verdade viesse à
tona. Já do lado do Braga, o beneficiário maior da decisão, pois assumiria o cargo de
prefeito, não havia qualquer interesse em tornar o fato público – disse Rolf.
– Claro – assentiu Waldorf.
– Bem, mandarei para você agora mesmo a cópia da decisão do juiz, a
identificação do autor do depósito e os dados cadastrais dele, o tal do Tomás, com a cópia
do contrato de abertura da conta corrente. Você pode redigir o pedido de abertura de
inquérito policial ao delegado de Espelho Dourado, para apurar os crimes de calúnia
contra funcionário público, falsidade ideológica e possível lavagem de dinheiro? Será
importante para a defesa de seu pai. Mas é bom ressalvar que o verdadeiro Dionata é
vítima de um golpista que usa seu nome para praticar crimes – prosseguiu Rolf.
- Certo, eu ia comentar isso com você. Sabe, amigo, meu pai tem razão
ao dizer que não devemos advogar quando estamos envolvidos emocionalmente com o
caso. É como estou me sentindo, um pouco fragilizado e até mesmo sem a mesma
perspicácia.
- Que nada, você continua muito rápido – minimizou Rolf.
– Ok, mas devo ficar na retaguarda, não sei se terei cabeça para isso
tudo.
– Conte comigo!
– Ah, precisamos incluir no pedido ao delegado a identificação dos
bancários que fizeram a operação sem o nome do depositante e que motivos tiveram para
isso. Meu pai disse que há funcionários ligados ao Rezende e ao partido dele naquela
agência.
- Eu não disse? Você está em plena forma, Waldorf. Essa investigação
dará fortes subsídios para a defesa. Ninguém faz isso por nada. É preciso ouvir todo
mundo e conferir as filiações partidárias.
- Sim, farei.
- Ah, Waldorf, já ia esquecendo. Você tem um júri por esses dias, não?
- Sim, eu já estudei o caso, falta apenas revisá-lo.
- Boa sorte, então!
- Isso! Obrigado, amigo. Faremos um bom trabalho juntos – finalizou
Waldorf.
Capítulo IV

Não importa o que você irá fazer,


prepare-se. Improviso é coisa
para gênios... ou irresponsáveis.

Já passava da meia noite e a baixa temperatura da madrugada


prenunciava uma manhã fria na primavera do litoral catarinense, o que era incomum.
Não sabia se eram as vistas já um pouco cansadas por conta da idade ou
se era a nova iluminação do escritório montado em casa que lhe turvava um pouco a
visão. A cafeteira já havia derramado em sua caneca preta a última dose da bebida, que
por se confundir com a cor do recipiente impedia-o de certa forma, e àquela hora em que
o cansaço já dava sinais, precisar se havia muito ou pouco do líquido. Preferia o açúcar
comum ao adoçante artificial, tanto pelo sabor quanto porque havia lido que o aspartame
era prejudicial à saúde, embora não desconhecesse os graves malefícios do primeiro, até
porque possuía ascendentes diabéticos. Antes do preparo do café, a caneca era aquecida
cuidadosamente com água quente, pois do contrário, principalmente em dias como
aquele, acabaria tomando a bebida morna, o que detestava.
No silêncio do escritório, ouvia-se apenas o manuseio de uma cópia de
um processo que estava sendo revisado pela última vez, em seus principais atos e
depoimentos, os quais dariam suporte à manifestação em um júri que teria início dali a
algumas horas.
Tratava-se de um rumoro caso em que o Waldorf fora contratado pela
família da vítima de um crime de homicídio para atuar como assistente de acusação, ou
seja, em conjunto com o promotor para pedir a condenação do acusado.
Seu nome fora uma homenagem do pai ao Método Waldorf criado pelo
alemão Rudolf Steiner, um projeto educacional que tem por premissa o desenvolvimento
do ser humano em seus aspectos físico, espiritual e anímico, com permanente incursão
nas artes como forma de possibilitar a expressão do sentir. Apesar de não ter contato com
o método, o pai de Waldorf tinha lido muito sobre a pedagogia de Steiner. Gostava do
caráter interdisciplinar e do emprego da música na educação.
O hobbie de Freitas era justamente a música e, por conhecê-la de perto,
sabia que seu uso poderia contribuir com a educação dos jovens, inclusive do filho
Waldorf. Além de despertar a sensibilidade nas pessoas, acalma os ânimos e traz
disciplina aos que levam seu estudo a sério. Entender as escalas, desde os modos
gregos até suas variações posteriores verificadas no jazz, por exemplo, bem como as
partituras musicais, a divisão dos tempos musicais e a análise do campo harmônico
requer muito estudo e dedicação. Repetia, a propósito, a máxima de que o músico tem
10% de talento e 90% de transpiração.
Waldorf adquiriu em sua própria casa o gosto pela boa música. Desde
pequeno ouvia Pink Floyd, Beatles, Supertramp, Rolling Stones, Ray Charles, além de
grandes nomes da Música Popular Brasileira, dentre eles Chico Buarque, Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethania, Belchior e Raul Seixas. Cantarolava com
razoável desenvoltura “Alegria, Alegria”, “Aquele Abraço”, “Soy Loco Por Ti America” e
“Apenas um Rapaz Latino-Americano”.
Mas uma de suas preferidas era “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil.
Não entendia bem o significado da letra quando criança, mas gostava da melodia e do
tom super dramático da canção. Apenas anos depois é que compreendeu que os autores
pretendiam, na verdade, dizer: o “cale-se’” imposto pela ditadura militar. O substantivo
encontrado na letra escrita transformara-se no imperativo do verbo calar quando cantado,
num claro protesto contra as práticas ditatoriais que assolaram o Brasil desde 1964 até o
início dos anos 80, com a reabertura democrática. Os artistas daquela época tinham a
genialidade de fazer a crítica e ao mesmo tempo driblar a censura; nem sempre
conseguiam. Muitos compunham usando pseudônimos.
Waldorf lembrava que grandes músicos eram pessoas inteligentes, de
raciocínio rápido e, em geral, muito humanistas. Lamentava que não se via mais tamanha
criatividade musical ou literária. Acreditava que tal ocorria, em parte, pela falta de uma
bandeira contra o que protestar, como aquela que existia durante a ditadura. O direito ao
voto e de se expressar livremente já haviam sido conquistados, mesmo com alguns
obstáculos ainda presentes. E sobre o amor, quase tudo já fora dito nos livros, nos filmes
e nas canções. Quem teria o dom de contar algo realmente novo? Mesmo assim, havia
muito o que dizer sobre injustiça, alteridade, altruísmo, desigualdade, egoísmo e
intolerância, por exemplo. Poucos artistas, no entanto, saberiam fazê-lo com maestria.
Outros bons motivos para a queda da qualidade musical seriam o fim dos grandes
festivais e a massificação de ritmos, harmonias, melodias e letras simples, mais
facilmente assimiladas.
Em suas reflexões a respeito, lembrara-se de uma palestra de um famoso
jurista brasileiro, Bandeira de Mello, que falava exatamente da massificação da produção.
Sorriu ao lembrar que o palestrante mencionou que nunca mais escreveria livros que
“parassem em pé sozinhos”, referindo-se às volumosas obras que poderiam ficar na
posição vertical sem qualquer apoio nas laterais. Não os escreveria mais porque não
haveria quem os lessem, pois quase todos fazem pesquisas rápidas e superficiais na
internet ou em manuais de ocasião. De fato, o Google havia se transformado não só na
maior fonte de pesquisa já vista, mas, para muitos, no próprio médico, advogado ou
professor.
Waldorf, 43 anos, possuía estatura dentro do padrão médio brasileiro:
1,73m. O tom moreno da pele e os olhos castanhos denunciavam que, apesar do nome,
nada tinha de alemão. Exibia cabelos grisalhos e uma silhueta abdominal própria de
quem era pouco adepto de práticas esportivas, apesar de ter sido advertido por seu
médico cardiologista dos riscos do sedentarismo.
Sabia que estava errado, mas ocupava-se demais com a advocacia, com
o magistério e com a família; não encontrava tempo para as atividades físicas. O
argumento de que tais atividades deveriam ser incluídas no seu dia a dia da mesma
forma como se deve ter tempo para a alimentação e o banho, por exemplo, ainda não o
convencera totalmente. Só iria para a academia sob condução coercitiva, brincava.
Exerceria pela primeira vez, ao lado de um promotor, a função de
acusador em um júri popular, o que de certa forma o deixava apreensivo. Mas o que lhe
trazia segurança era a experiência acumulada em mais de uma centena de júris que havia
realizado justamente atuando no lado oposto, como defensor.
Sua competência e atuações anteriores em sessões do júri o
credenciavam como um dos maiores tribunos da região, um orador eloquente. Dirigia-se
aos jurados sempre chamando pelo nome, memorizando um a um, mesmo que para tanto
tivesse que elaborar um pequeno mapa com a posição e os nomes dos sete jurados,
conforme a disposição estabelecida após o sorteio realizado pelo juiz.
Extremamente respeitoso com todos, mas avesso a formalidades
excessivas, acreditava que os jurados gostavam mais de serem chamados pelos nomes
do que pelo usual e tradicional “Vossa Excelência”. Sem os exageros das performances
teatrais, alternava os tons de voz para prender a atenção dos jurados, repetindo os
pontos principais de sua tese por diversas vezes, até que fossem devidamente fixados
nas mentes dos julgadores. Conhecia medicina legal e técnica de perícias como poucos.
Estudioso, destacava à lápis os diversos livros e textos que tinha sobre os temas, além
das consultas que fazia a profissionais da área, acabando por contratá-los em alguns
casos para que emitissem seus pareceres.
Durante o estudo para o júri do dia seguinte, Waldorf recordou-se de um
caso em que quase conseguiu absolver um acusado de homicídio justamente porque uma
prova pericial fácil de ser realizada não havia sido providenciada pela Polícia. Na cena do
crime, além da vítima, haviam estado outras três pessoas. A vítima morrera com um único
disparo de arma de fogo e foram identificados os três rapazes que estiveram no local,
sendo todos levados à delegacia. O delegado conversou informalmente com os suspeitos,
ao que ouviu de um deles a confissão. Uma discussão banal, iniciada a partir de um
comentário desairoso da vítima sobre a mulher de um deles, havia sido o móvel. Contou
ainda que haviam bebido bastante até o fatídico disparo. Era mais um caso, dentre os
milhares que se repetem todos os anos no Brasil, em que a combinação álcool/arma não
tivera bom desfecho. Nas contas de Waldorf, em cerca de oitenta por cento dos casos de
júri nos quais trabalhou havia essa relação. O suspeito, entretanto, na hora em que fora
ouvido formalmente pelo delegado, recuou e afirmou que nada falaria, prática igualmente
adotada pelos outros dois que haviam sido conduzidos. O delegado nada pôde fazer, pois
o silêncio era direito de todo o suspeito ou acusado. A perícia que não foi realizada
consistia em coletar das mãos dos suspeitos eventuais resquícios de pólvora deixados
pelo uso da arma de fogo. Um pequeno esparadrapo seria colocado sobre a mão e
arrancado em seguida; o material iria à perícia e o resultado positivo, indicando que havia
pólvora na mão do suspeito, apontaria o autor do disparo. Mesmo sem esse exame, mas
convencido da autoria do crime por parte daquele que informalmente o confessara, o
delegado autuou em flagrante apenas o principal suspeito do crime, liberando os demais.
Levado a júri popular, o acusado foi condenado, em apertado placar de quatro votos a
três. Mesmo com a excelente exposição de Waldorf sobre a dúvida razoável existente no
caso, fundada na ausência da prova técnica mais importante e ainda na inexistência de
confissão formal do acusado, os jurados entenderam que o depoimento do delegado,
ouvido na sessão de julgamento, deveria prevalecer.
Waldorf não se deixava abater com as derrotas no júri, pois eram
inevitáveis. Lamentava, sim, quando pensava que poderia ter feito melhor ou que a
estratégia não fora a mais adequada. Sabia das mazelas psicológicas do perfeccionismo,
mas não conseguia se livrar totalmente dele.
Experiente, Waldorf já havia superado há muito o falso e disseminado
dilema que cerca os advogados criminalistas: como defender aqueles que sabem que
cometeram os mais graves delitos? Como lidar com o conflito interno quando conseguem
a absolvição de um réu perigoso e que fora efetivamente o autor de um crime contra a
vida?
As aulas da graduação já haviam resolvido de certa forma essa questão.
Professores sempre advertiram que todos os réus, sem exceção, têm direito à defesa e
que, não importa o crime, o advogado deve se esmerar, dentro dos limites legais, para
conseguir a absolvição ou, na pior das hipóteses, a menor pena possível.
Waldorf aprofundou seus estudos por ocasião do mestrado e doutorado.
Tinha certeza de sua vocação para a advocacia, notadamente a criminal. Entendia que o
Estado só poderia punir alguém se fossem observadas, rigorosamente, as regras do jogo.
É do órgão acusador o dever de provar, de afastar a inocência presumida. Em Direito, os
fins jamais justificariam os meios. Algo simples, mas que muitos não compreendiam.
Aprendeu que o direito à liberdade foi construído ao longo de séculos,
com sacrifício capital de muitos, e que dele não se pode abrir mão, principalmente quando
o advogado é contratado ou pago pelo Estado para atuar na defesa de tal direito.
Com frequência, recordava-se de um filme a que assistira sobre essa
relação entre cliente e advogado, cujo nome em português era “Cabo do Medo”, um
remake dirigido por Martin Scorsese. Robert de Niro interpretou um réu condenado por
estupro e que passou catorze anos preso. Na prisão, leu diversos livros sobre Direito e
chegou à conclusão que seu advogado havia negligenciado em sua defesa. Ao sair da
cadeia, começou uma implacável perseguição contra ele, a fim de se vingar. Waldorf
recomendava o filme a seus alunos, sem lhes contar, obviamente, o final da trama.
Após as lembranças sobre o caso da perícia não realizada e a reflexão
sobre a relação cliente/advogado, Waldorf conferiu suas anotações, simulou em voz baixa
os pontos principais de sua fala, marcando o tempo que seria dividido com o promotor, e
deu-se por satisfeito com o estudo do caso. Apesar da ansiedade, tinha convicção de que
dominava o que iria falar e que, vencidos os minutos iniciais de sua exposição, a
tranquilidade voltaria por completo.
O relógio já apontava 1h30min quando Rahyssa, a bela quase
adormecida naquele momento, abriu suavemente a porta do escritório e com um leve
sorriso nos lábios perguntou a Waldorf se ele não iria dormir, pois precisava estar
descansado para o júri. Ele devolveu o sorriso, como a agradecer por sua preocupação,
dirigiu-se até ela, acariciou seus cabelos, envolveu-a em seus braços e disparou de forma
desconcertante:
- Quando te abraço, sinto meu coração mudar de lado, só para ficar mais
pertinho do teu.
Ela abriu um sorriso e pediu para que ele repetisse o que havia dito,
sendo imediatamente atendida. Em seguida, beijou-o e pediu para que não demorasse.
Como última tarefa no escritório, lembrou de verificar sua agenda.
Excesso de zelo que serviria apenas para certificar-se que nenhum outro compromisso
havia sido marcado para a mesma data do julgamento, bem como que não havia qualquer
prazo processual pendente para aquele dia.
Advogados vivem preocupados com os prazos de seus processos.
Sabem que colocam em risco o direito de seus clientes se não forem cuidadosos e
diligentes no seu trabalho. Um erro pode custar o patrimônio, a guarda de uma criança e
até mesmo a liberdade de alguém. Tal preocupação não saía de sua mente.
Hora de dormir... o dia seguinte seria longo.
Capítulo V

Na hora marcada para o julgamento, todos aqueles que iriam trabalhar na


sesão estavam presentes, além de grande público que lotava as dependências do salão
do júri, inclusive repórteres.
O ambiente dispunha de trezentos lugares para a plateia. As cadeiras
estofadas ofereciam razoável conforto e eram distribuídas ao longo de dez degraus. À
frente e centralizado ficava o tablado elevado onde estavam dispostas a mesa central,
destinada à juíza, aos servidores, ao promotor, ao assistente de acusação e ao advogado
de defesa. À esquerda de quem olha de frente para o tablado, as mesas dos sete jurados
encarregados do julgamento. Do lado direito, o púlpito e os lugares reservados aos
oficiais de Justiça. O réu ficava em uma cadeira colocada nas proximidades de onde
estava o seu defensor. Por uma porta localizada nos fundos, à direita, havia o acesso à
sala secreta de votação, bem como à cela destinada aos réus presos e aos banheiros.
Não era uma disposição cênica comumente vista nos fóruns brasileiros,
posto que o normal seria a defesa ficar à frente da mesa do juiz e do promotor, do lado
oposto ao local em que ficam os jurados. O novo layout visto naquele salão atendia a uma
antiga e justa reivindicação dos advogados e defensores públicos, que ficavam, sob o
modelo anterior, em posição de desvantagem em relação ao órgão acusador, que ficava à
direita do juiz. O problema da disposição habitual não representava uma mera questão
geográfica. Além de o advogado ficar mais distante do juiz e este mais próximo do
promotor, muitos leigos poderiam fazer confusão em relação às suas funções.
Antes do toque da campainha, que traria o silêncio necessário ao início
dos trabalhos, Waldorf lembrara que em outros fóruns, não raro, possibilitados pela
proximidade, via juiz e promotor conversando durante a sessão, dando a desconfortável
sensação de que comentavam algo sobre o caso em julgamento ou mesmo sobre sua
própria atuação, apesar de não se sentir inseguro com isso. Até mesmo de alguns réus já
ouvira o questionamento a respeito. Dizia que não concordava, mas que a lei, que muitas
vezes desiguala os iguais, assim dispunha. Não descia a detalhes jurídicos na resposta.
Seus clientes, muitos com pouca instrução na área, não entenderiam facilmente seus
argumentos. Waldorf entendia que o correto mesmo era que promotores e advogados
tomassem assento à frente da mesa destinada ao juiz, tal como se vê nas cortes norte-
americanas, por exemplo. Todavia, enquanto isso não ocorria, acreditava que aquela nova
disposição era a que melhor atendia a todos.
Waldorf já estava devidamente acomodado, desta vez próximo ao
promotor, quando seu pensamento sobre a disposição dos lugares fora abruptamente
interrompido pelo tilintar da campainha disparada pela juíza responsável pelos trabalhos.
Ela tinha as unhas pintadas em vermelho, combinando com a maquiagem
forte e destacada pelos lábios espessos e olhos amendoados. Os cabelos longos,
escuros e lisos cobriam parte da toga que envergava com elegância. Sem perder a
sensibilidade, presente com mais vigor nas mulheres, não se deixava envolver
emocionalmente com os casos. Tentava, assim, preservar sua imparcialidade. Não
acreditava na propalada neutralidade do juiz, pois cada julgador traz suas experiências de
vida, sua educação familiar e formal, bem como suas convicções pessoais como
componentes de um intrincado arcabouço racional e emocional que leva alguém a decidir
de uma forma ou de outra.
Os jurados, apreensivos, aguardavam o sorteio que definiria quem
participaria do conselho formado por sete jurados. Era quase sempre flagrante a reação
de descontentamento silenciosamente manifestada por cada jurado sorteado. Alguns
poucos até gostavam da missão, mas a ampla maioria apelava a todos os santos para
que seus nomes não fossem pinçados da urna na qual eram armazenados, em pequenos
recortes de papel. Julgar alguém não é tarefa simples, ainda mais pela gravidade do
crime, pela sua repercussão e por conta das penas que poderiam ser impostas em caso
de condenação.
Em voz alta, um oficial anunciou o caso que seria julgado.
Logo em seguida, o réu, que aguardava em liberdade o julgamento, foi conduzido ao
plenário. Tomou assento sem conversar com seu defensor, apenas um rápido
cumprimento. Já haviam conversado no dia anterior sobre as últimas instruções e
informações sobre o júri.
Carlos, um senhor de 61 anos, era acusado de ter matado a própria
mulher, com quem havia sido casado por 32 anos.
O casal já enfrentava há longo tempo uma crise conjugal decorrente do
agravamento do alcoolismo dele. A vítima, a senhora Olga, assassinada aos 60 anos,
sempre tentou convencer seu marido a parar de beber, hábito que adquirira ainda na
juventude, antes mesmo do casamento. Ela sempre acreditou que ele deixaria a bebida
após o matrimônio, mas ao longo dos anos e após algumas breves e frustradas
internações para o tratamento, a situação só piorou.
Apesar do alcoolismo, Carlos havia sido um empresário bem sucedido.
Sua indústria, que fornecia matéria prima para uma importante fábrica de embalagens
plásticas, entretanto, entrara em franco declínio por conta de problemas financeiros
verificados em sua principal cliente.
As brigas do casal aumentaram a partir de então, pois boa parte da
quebra da empresa poderia ser creditada também à ausência de Carlos na condução dos
negócios da família. Dedicada ao marido, filhos e netos, Olga afirmava que Carlos poderia
ter procurado novos parceiros comerciais, a fim de evitar a falência.
Olga também cobrava de Carlos explicações sobre mensagens
comprometedoras de números desconhecidos em seu celular. Certa vez, flagrou-o com
preservativos em seu bolso, o que o comprometia, pois deles não fazia uso em sua vida
conjugal. Na verdade, a infidelidade já não a preocupava, pois àquela altura, e diante do
desgaste da relação, o casamento já não tinha mais o mesmo significado. Não queria, no
entanto, ouvir ou saber de comentários a respeito de sua vida ou das aventuras do marido
pela cidade.
Antes pouco agressivo, Carlos passou a dar sinais de impaciência e
começou a exteriorizar alguns atos de violência. Com certa frequência, xingava-a e
ameaçava-a de morte, chegando a agredi-la fisicamente. Afirmava que a mataria e
cometeria suicídio em seguida, pois já se sentia sem a mulher e sem os filhos, dada a
ausência deles, um por conta da distância e o outro por conta das desavenças cada vez
mais graves com ele, além do que os negócios estavam indo de mal a pior. Uma
empregada do casal assistira a tais ameaças, as quais vinham assustando e humilhando
a patroa. Em certa ocasião, Olga chegou a ir à delegacia para o registro da ocorrência.
Todavia, em uma audiência judicial, diante do aparente arrependimento de Carlos e do
pedido de um dos filhos, acabou por desistir de processá-lo.
Mesmo com as advertências dos filhos para que saísse de casa, do medo
e da vida a dois já insuportável, Olga continuava a viver com Carlos, dormindo trancada
em um quarto separado. Tinha receio de ficar sozinha.
O que ainda mantinha seu ânimo para viver eram os filhos, os dois netos e o trabalho
voluntário que realizava em um asilo.
Carlos passou a andar armado porque havia recebido ameaças de morte
de um agiota que aguardava o pagamento da dívida há alguns meses. Sem o elevado
montante a receber de Carlos, o usurário não possuía mais capital para emprestar a
terceiros, o que o deixara extremamente irritado. Como havia dado certo em outros casos,
ameaçou o devedor para receber com rapidez o valor.
No dia do crime que vitimou Olga, o telefone da casa em que morava com
Carlos já registrava quatro chamadas do filho Paulo, médico que trabalhava na mesma
cidade de seus pais. Já passava das 23h30min, quando resolveu retornar as ligações
para dizer que sua mãe havia saído de casa, de carro, por volta das 21 horas, sem dizer
onde iria.
Paulo não participava da gestão da empresa por absoluta
indisponibilidade de tempo e também porque sua relação com seu pai já estava muito
abalada por conta do alcoolismo. Partiam sempre dele e de sua mãe as tentativas de
submetê-lo ao tratamento contra a dependência, todas sem resultado.
O outro filho, João Pedro, era engenheiro e trabalhava em uma
multinacional. Mudava-se de um país para o outro com frequência e pouco participava da
vida da família. Quando a visitava, evitava o problema, como uma forma de preservar seu
afeto pelo pai. Apesar de reconhecer que ele deveria fazer o tratamento corretamente,
acreditava que isso não poderia partir de uma imposição, que não traria o resultado
desejado. Na empresa em que trabalhava, os casos de alcoolismo eram vistos com muita
seriedade e com total apoio aos doentes, que eram estimulados a buscar o tratamento.
Para tanto, além do acompanhamento médico, recebiam uma licença. O irmão médico
também compartilhava dessa opinião, mas por ter tentado de várias formas e sem
sucesso a internação do pai, acreditava que era hora de uma providência mais drástica.
Paulo percebera o nervosismo de seu pai ao telefone e ficou preocupado
com a ausência de sua mãe. Dirigiu-se até a casa dos pais e viu de perto o suor que
tomava conta dele, chegando a examiná-lo rapidamente. Os batimentos cardíacos
estavam em cento e trinta por minuto. Ante as respostas evasivas do pai sobre o que
havia ocorrido, não teve dúvidas de que algo errado acontecera. Levou-o ao pronto
atendimento. Com o seu pai sob cuidados médicos, dirigiu-se à delegacia para a
ocorrência do desaparecimento de sua mãe. Passara a noite sem dormir, tentando
encontrar a mãe na casa de algum parente ou amigo, tentativas em vão.
Relatou o fato ao irmão João Pedro, que em dois dias retornou ao Brasil
para auxiliar nas buscas pela mãe.
Custavam a acreditar, mas o delegado que investigava o caso apontava
Carlos como suspeito pelo desaparecimento da mãe deles. Indicava como indícios as
contradições em seu depoimento, bem como as manchas de sangue encontradas na casa
após a perícia feita com o luminol, a substância química que, ao reagir com o ferro
presente no sangue, mancha o local com uma luz azul. O delegado ainda não podia
afirmar se o sangue encontrado era de Olga, pois a perícia não era conclusiva nessa
parte.
O carro do casal, com o corpo de Olga, havia sido encontrado a partir das
informações de um pescador, que notara as marcas de rodas de veículo no barranco
localizado entre a estrada e o rio. Com o ferimento na cabeça causado pelo disparo, não
havia mais dúvida alguma a respeito do assassinato de Olga. Restava descobrir o autor
do crime, ou melhor, segundo o delegado, reunir provas de que havia sido Carlos.
Durante o julgamento, após o relato das testemunhas, Carlos reafirmou a
versão de que não matou Olga e que ela poderia ter sido morta por engano, já que ela
estava utilizando o carro dele e um agiota o ameaçava de morte.
No entanto, o aguerrido promotor afirmava que Carlos já tinha externado
sua intenção de matar Olga, tanto que havia um boletim de ocorrência em que ela
mencionava a ameaça. Apoiou-se no testemunho da empregada do casal, que também
confirmava o fato, no medo dela, nas manchas de sangue encontradas na residência do
casal, nas contradições nos depoimentos de Carlos e no laudo pericial feito no veículo,
que constatara que, apesar de Olga estar no banco do motorista, a posição do assento
em relação aos pedais do acelerador e do freio estava muito distante, considerada sua
estatura. Concluiu que a posição do banco era compatível com a altura de Carlos, o que
afastava a hipótese levantada por ele, de que Olga havia sido assassinada por engano.
Após o promotor esgotar todo o tempo de que dispunha, a juíza fez um
breve intervalo e em seguida concedeu a palavra ao advogado de defesa. Esse foi o
momento mais tenso para o defensor, até porque, após a firme explanação do acusador, a
sensação junto aos demais presentes era a de que não haveria muita saída para a
defesa. Os argumentos eram fortes e não seria fácil convencer os jurados do contrário.
O advogado dizia a Carlos que acreditava em sua inocência e que faria de
tudo para livrá-lo da prisão.
Após os cumprimentos de praxe, começou a por em prática o plano
estruturado para a defesa. Começou pela história de vida de Carlos, desde a infância,
passando pelos tempos em que, ainda muito jovem, trabalhava para sustentar a família,
chegando ao auge do sucesso empresarial. Falou dos filhos que tão bem criou, um
médico e um engenheiro formados em excelentes universidades, do bom relacionamento
que tinha com Olga, até que a bebida e os negócios, que iam de mal a pior, começaram a
afetar o casamento. Explorou o defensor que, mesmo nos momentos mais difíceis do
casamento, Carlos jamais fora violento com Olga e que no episódio em que a teria
ameaçado, o fato não passara de um mal entendido, havendo desistência de Olga em
levar o caso adiante. Aproveitou esse argumento para enfraquecer a tese de que Olga
tinha medo de Carlos, pois se assim fosse, não teria desistido de processá-lo.
Também desacreditou o testemunho da empregada do casal, que apenas
ouvira relatos de Olga, que por força dos antidepressivos que tomava sofria de
alucinações. Ressaltou uma declaração do médico psiquiatra de Olga, dando conta de
que ela se queixava de insetos em seu rosto quando se olhava no espelho, mas que ao
tentar arrancá-los com as mãos nada encontrava. Tudo isso indicava, segundo o
advogado, um medo de coisas e situações que não existiam na realidade.
Sobre Carlos, afirmou que seus depoimentos eram coerentes, sendo que
eventual contradição era em relação a pontos secundários, tal como de onde viera antes
de chegar em casa e ver que Olga não estava. Mencionou que isso não teria importância
alguma e que a falta de lembrança precisa neste ponto era causada pelo nervosismo e
trauma verificados após a morte de sua mulher.
Ressaltou que a arma nunca fora encontrada e, com habilidade, emendou
o que chamou de “falhas na investigação” em seu roteiro. Disse que dois erros
comprometiam a investigação e que, por isso, Carlos sequer deveria ter sido acusado.
O primeiro era em relação à mancha de sangue encontrada na residência
do casal. Indagou por que razão não fora feito um exame de DNA no material encontrado
para se aferir se era de Olga o sangue encontrado. Algo simples e que teria solucionado o
caso.
O segundo erro apontado pela defesa era o fato de a perícia não ter
abordado no laudo a suposta compatibilidade entre a posição do assento com a estatura
de Carlos. Mencionou, ainda, com base em um parecer de um engenheiro, que o sistema
elétrico que movia o banco do motorista poderia ter sido acionado quando do impacto do
veículo durante a queda no rio.
Finalizou afirmando que as provas não apareceriam por uma simples
razão: Carlos não fora o autor do crime. Era ele quem estava sendo ameaçado de morte
por uma dívida não paga e, possivelmente, Olga fora morta por engano ao dirigir o veículo
do marido.
Uma atuação convincente do defensor. A dúvida permeava a cabeça dos
presentes, em especial dos jurados, que já se entreolhavam, como se pudessem
comentar um com o outro a respeito. Era tentadora a tentativa de obter do colega jurado
alguma informação.
Após breve intervalo, chegou a hora de Waldorf entrar em cena. Já havia
combinado com o promotor que a divisão do tempo seria assim. Caberia, então, a Waldorf
o trabalho de reafirmar as teses da acusação e desconstituir as da defesa.
Para os que trabalhavam na sessão do júri e para alguns dos jurados que
já haviam participado de outras sessões, era estranho ver Waldorf naquela posição, de
acusador. Mas como suas atuações sempre impressionavam, era esperada uma grande
performance pelos estudantes de Direito que acompanhavam a sessão.
Após breves cumprimentos a todos, Waldorf passou a derruir, uma a uma,
as teses da defesa. Intercalando momentos de entonação de voz mais tranquila com
outros mais incisivos, prendia a atenção dos jurados e da plateia. Também alternava a
argumentação técnica com exposições mais emotivas, sem serem apelativas.
Iniciou com o tema dos medicamentos utilizados por Olga, que segundo a
defesa lhe causavam alucinações. Afirmou que tais fármacos não eram utilizados há mais
de dois anos por Olga e que as alucinações mencionadas na declaração médica haviam
cessado desde então. Ressalvou a data da declaração médica, a qual fora omitida pelo
defensor, pois era bem anterior aos fatos envolvendo as ameaças perpetradas por Carlos.
Rebateu o argumento de que Olga desistira de levar adiante o processo criminal contra
Carlos porque tudo não passava de um mal entendido. Na verdade, disse com firmeza,
Olga não levara o caso adiante por conta de um pedido dos filhos, conforme depoimento
judicial destes. Postou-se diante dos jurados e leu o trecho em que tal assertiva era
confirmada.
Ressaltou a veracidade das declarações da empregada do casal, que
sempre mantivera a mesma versão, desde que foi ouvida na delegacia. Narrou a angústia
vivida por ela ao ver sua patroa naquela situação.
Sobre as manchas de sangue encontradas na sala da residência do casal,
deu uma verdadeira aula sobre a realização dos testes presuntivos, ou seja, a técnica
utilizada para se detectar o sangue que não pode ser visto a olho nu. Após a explicação
detalhada de como são feitos os testes, afirmou que no laudo pericial não constava a
utilização de luminol, mas de um outro reagente chamado benzidina, que impede, em
muitos casos, a identificação do DNA, o que acabou acontecendo no caso em julgamento.
Afirmou, ainda, que quando começou a atuar no caso já não havia mais tempo para pedir
um novo exame, pois o material já estava comprometido.
Rapidamente, tratou de algumas contradições nos interrogatórios de
Carlos, que não sabia explicar como se deram os fatos imediatamente anteriores ao
sumiço da vítima, em que pese defender, em outros casos, que o réu poderia falar o que
quisesse em seu interrogatório.
Sobre a outra falha no laudo pericial apontada pela defesa, desta vez no
veículo, rebateu afirmando que bastava ver as fotos do veículo, em especial de como
estava o assento, afastado do volante, para perceber que era, sim, compatível com o
tamanho de Carlos. Fez referência ao manual do veículo para afastar as conclusões do
engenheiro contratado pela defesa, pois havia expressa advertência de que, em caso de
colisão ou movimentos bruscos, o sistema elétrico travaria automaticamente a posição
dos bancos do motorista e do passageiro, como item de segurança, a fim de evitar
problemas com o cinto de segurança e air bag.
Continuava sua explanação, quando uma voz rouca o interrompera:
- Doutor Waldorf, me permite um aparte? - disse o defensor, atraindo os
olhares para si.
- Pois não, doutor, fique à vontade – assentiu gentilmente o assistente de
acusação, sem imaginar o ataque que viria.
- Estou prestando atenção aqui na sua explanação e a impressão que
tenho é que seus argumentos soam como uma operação matemática. Tudo parece ter
uma lógica, um encaixe milimetricamente estudado, mas na verdade são colocações
forjadas com ferro barato, que na primeira intempérie enferruja. Tudo tem um ar
acadêmico, professoral e até arrogante, mas lhe falta a prova, a de que foi Carlos quem
ceifou a vida de Olga. O que vi aqui foi a defesa de perícias inconclusivas, que nada
demonstram. Falta prova, doutor, a prova! Aquela a que o senhor se refere nos seus livros
e artigos como necessária para se aplicar qualquer sanção a qualquer cidadão. Até aqui,
tudo muito duvidoso! Fosse um caso narrado em suas obras, meu cliente estaria
absolvido.
Silêncio no recinto, apenas o leve rangido da cadeira pôde ser ouvido
quando o defensor nela se ajeitou.
- Terminou? – ironizou Waldorf. – Belíssimo palavreado, o senhor anotou
tudo isso antes, não foi? Pediu aparte para me agredir? O doutor terá o mesmo tempo
que tenho agora para tentar salvar o seu cliente, pois não há dúvidas neste caso. Estou
trabalhando com base em provas, mostrando cada uma delas aos jurados. Aliás, eu não
ia comentar isso, pois todos sabem quem me contratou para que eu estivesse aqui, do
lado da acusação, para colocar o próprio pai na cadeia. Mas só para relembrar, o nobre
colega pode me dizer? – indagou já com certa irritação.
O defensor preferiu o silêncio, concluindo que não deveria ter provocado
Waldorf.
- Sim, senhores jurados. Eu fui contratado pelos filhos da vítima e do réu,
os dois aqui presentes – nesse instante Waldorf apontou para eles - para auxiliar a
acusação na tarefa de colocar o pai deles, o senhor Carlos, na cadeia. Se alguém aqui
tem alguma dúvida sobre a autoria do crime, pergunte a eles! – afirmou quase que aos
berros. Já trabalhei em centenas de júris, todos com suas tragédias, mas esse, em que os
filhos querem a condenação do pai, marca qualquer profissional. Mas por que razão eles,
os filhos, agiram dessa forma? Porque não suportavam mais o remorso de não terem
dado a devida atenção à mãe, justamente quando ela mais se sentia sozinha e aflita. A
culpa que eles sentem é igual ou maior que a de Carlos, mas somente a pena deles será
perpétua. Esse é o preço da omissão! – finalizou Waldorf sua resposta ao defensor, agora
a plenos pulmões.
Novo silêncio tomou conta do recinto. Os presentes se entreolhavam
como a confirmar o que Waldorf acabara de falar. Sim, os filhos o haviam contratado para
que ele auxiliasse na condenação e prisão do próprio pai. Quem faria isso em sã
consciência sem ter absoluta certeza?
Waldorf olhou para o relógio, percebeu que seu tempo estava quase se
esgotando e, retomando a calma que lhe era peculiar, agradeceu a atenção de todos e
concluiu pedindo aos jurados que condenassem Carlos pelos crimes cometidos,
convidando-os à reflexão sobre as consequências de uma injusta absolvição, num país
marcado pela violência contra as mulheres.
Sem pausa, a juíza concedeu a palavra ao advogado, Dr. Marcos, para a
sua última intervenção.
O defensor sentiu o peso da atuação de Waldorf. Nada poderia fazer a
não ser reafirmar o que já havia dito antes, sem incorrer no mesmo erro cometido por
ocasião do aparte.
Não imaginava, em hipótese alguma, que Waldorf viria com tantas
informações técnicas que pudessem desqualificar seus trunfos, além, é claro, do
argumento emotivo e convincente envolvendo os filhos do casal.
Após longas horas de julgamento, a juíza deu início à votação em uma
sala na qual apenas quem estava trabalhando tinham acesso. O clima era de tensão,
notadamente para o defensor, que sabia da dificuldade de conseguir uma vitória.
A cada voto pela condenação que era aberto pela juíza, um olhar do
defensor para Waldorf, em um misto de raiva e admiração.
A pena ficou em quinze anos. Carlos mal conseguia se equilibrar em pé
quando a sentença foi lida. Era um trapo humano. A prisão física pouco mudava sua
situação. Tentou evitá-la por razões óbvias, mas, na verdade, a diferença a partir da
condenação seria grade física que poderia ver todos os dias à sua frente. Errou ao omitir
de seu próprio defensor que fora o autor do crime, o que prejudicou sua defesa.
Durante o julgamento, enclausurado em seu sentimento de culpa, Carlos
lembrava do ocorrido e das últimas palavras ditas a ele por sua mulher.
No dia do crime que a vitimou, armado e alcoolizado, ele chegou à sua
casa por volta das 22h. Naquela data, à tarde, um oficial de Justiça havia estado na
residência para relacionar os bens de valor ali existentes. Era o momento mais humilhante
a que eram submetidos os devedores, quando o lar, a fortaleza impenetrável, era
legalmente invadido, muitas vezes por dívidas de pequeno valor.
No mesmo dia, minutos antes de chegar, Olga atendera a um telefonema.
Uma voz distorcida por algum equipamento eletrônico dizia vagarosamente:
- Avise o Carlos que o prazo para o pagamento da dívida acabou, é bom
preparar o caixão para os dois! – disse a voz assustadora.
Sozinha e ainda abalada com a situação ocorrida naquela tarde, Olga
entrou em completo desespero. Antes que ligasse para o filho a fim de relatar a ameaça,
ele entrou pela porta da garagem, após deixar o carro mal estacionado. Fora duramente
repreendido por sua mulher, que após relatar todo o ocorrido, passou a xingá-lo de
bêbado e vagabundo, bem como a agredi-lo com tapas no rosto, algo que nunca fizera.
Olga não sabia que ele estava armado e levou um susto quando viu em
suas mãos um revólver prateado, que acabara de retirar da cintura, encoberto que estava
por um paletó.
Embriagado, ele reagiu e afirmou que naquele dia cumpriria sua
promessa de matá-la. Sem que Olga pudesse esboçar qualquer defesa, atirou à queima
roupa, atingindo-a na cabeça. Assustado com o corpo caído de sua mulher, ouviu o
telefone tocar. Mesmo atordoado, conseguiu ler no visor o nome do filho que morava na
cidade, o médico Paulo. Não atendeu. A descarga de adrenalina fez disparar seu coração
e dilatar as pupilas. Verificou que sua mulher não tinha mais pulso. Colocou o corpo no
carro e ficou a pensar o que fazer com ele. Desatinado, pensou em simular um latrocínio,
dispensando a arma de fogo que havia utilizado em um matagal entre sua casa e o
semáforo onde forjaria a tese de que foram vítimas de roubo. Desistiu. Afastou-se da
região central da cidade e próximo a um rio resolveu jogar o carro com o corpo no seu
interior, no banco do motorista, após certificar-se que ninguém estava por perto. O carro
ficou completamente submerso em pouco tempo. A arma fora lançada ali mesmo, nas
águas turvas daquele rio.
Em seguida, passou a andar rapidamente em direção à sua casa. Tinha
que limpar as marcas de sangue no chão da casa e no caminho até o carro, dar um fim
nas roupas sujas e passar alguma informação ao filho que procurava por sua mãe.
Após o resultado do julgamento, não houve manifestações de ambos os
lados ou do público que lotava o local, apenas comentários reservados. Os filhos
choravam, como a emoldurar o retrato de uma família destroçada.
Os júris são assim: tristes. E não importa de que lado. Mesmo a vitória
deve ser recebida com parcimônia, pois representa apenas o cerrar das cortinas. Por trás
delas, o sofrimento continuaria a encenar a vida real.
Waldorf tinha exata noção disso, era discreto.
Capítulo VI

“Sonhos transportam aqueles que precisam


sair da cidade” (Neil Peart)

Espelho Dourado era um pequeno município de Santa Catarina, próximo


a Florianópolis. Com cerca de vinte mil habitantes, tinha as vantagens e desvantagens
das pequenas cidades. Com níveis de segurança razoáveis, se comparados às grandes
cidades do Brasil, poderia ser considerado um lugar pacato, onde as pessoas se
conheciam, mesmo aquelas que vinham do interior do município de vez em quando para
algumas compras e compromissos em bancos e órgãos públicos. A desvantagem era
justamente a falta de opções de cultura e lazer que as maiores cidades ofereciam. No
caso de Espelho Dourado, entretanto, isso era, até certo ponto, amenizado pela
proximidade com a capital, onde a vida cultural e gastronômica era intensa.
Mesmo assim, pela falta de bons empregos, muitos jovens deixam a
cidade, movidos por seus sonhos de uma vida melhor.
O nome Espelho Dourado surgiu porque os primeiros moradores da
localidade costumavam assistir ao por do sol às margens de uma grande lagoa. Naquele
horário, a impressão era que se formava sobre a lâmina d’água um enorme espelho que
refletia a luz do sol, em uma combinação perfeita entre dois dos elementos mais incríveis
da natureza.
A colonização, como em diversas outras cidades de Santa Catarina, era
europeia, com os alemães em maior número. O centro da cidade era bem típico das
localidades menores. Praça da igreja, prefeitura, fórum, bancos e comércio compunham a
área central. Algumas escolas e a delegacia também ficavam nas proximidades do centro,
assim como a rodoviária. Poucos restaurantes do tipo self-service funcionavam nos dias
de semana, quase todos apenas no horário do almoço. Apenas dois abriam também nos
finais de semana, inclusive para o jantar, com pratos mais elaborados.
Não havia universidade, o que fazia com que os jovens tivessem que ir à
região de Florianópolis para as aulas. De segunda a sexta-feira, os ônibus partiam cheios
de estudantes, que ficavam muitas vezes presos no trânsito caótico da capital
catarinense.
Foi nessa pequena cidade que Freitas resolveu fixar residência. Sabia dos
problemas que poderiam ser causados por trabalhar muito tempo em uma pequena
comarca. De um modo ou de outro, muitos moradores acabariam mantendo com o juiz
alguma relação, nem sempre de amizade, mas por frequentarem a mesma academia, o
mesmo clube, o mesmo restaurante etc. Em outros casos, a amizade acabava sendo
construída com o tempo, o que impediria o juiz de julgar os processos de tais pessoas.
Situações embaraçosas também costumavam ocorrer. Freitas, em certa ocasião,
determinou a busca e apreensão do veículo de um vizinho. Noutra, o rapaz que fora
instalar uma antena em sua casa comentou que dali a alguns dias teria uma audiência. Já
no dia marcado para o ato, o juiz, ao vê-lo entrar na sala, lembrou imediatamente de
quem se tratava. Ao concluir o processo, julgou em sentido contrário aos interesses do
rapaz, que dali para frente, nunca mais o cumprimentou.
Por isso, tentava manter cautela em relação às pessoas que tinham
algum litígio no fórum. Recusava alguns convites que poderiam causar embaraço.
Contatos com políticos, de situação ou de oposição, deveriam ser públicos, em
circunstâncias oficiais, pensava. Do contrário, sempre ficava a especulação em torno do
assunto que teria sido o objeto de uma conversa entre o juiz e o prefeito em uma mesa de
restaurante, por exemplo. Achava as conversas ao pé do ouvido pouco republicanas.
Apesar de não ter nascido em Espelho Dourado, Waldorf tinha forte
vínculo com a cidade. Lá chegou aos 14 anos, quando seu pai foi trabalhar na pequena
cidade. Concluiu o antigo primeiro grau e em seguida já foi morar em Florianópolis para
fazer o segundo. Em quase todos os finais de semana, entretanto, ia para a casa dos
pais. Fez muitos amigos e teve as primeiras namoradas naquele tempo.
Até estourar a bomba envolvendo o juiz Freitas em um caso de corrupção
naquela fatídica eleição, nunca se ouvira nada de errado a seu respeito, salvo os
comentários maldosos proferidos por aqueles que sofreram algum revés nos processos.
O lado bom disso tudo, dizia Freitas, é que raramente o juiz ficava sabendo. Ninguém
contava ao magistrado que estavam falando mal dele ou, mais diretamente, que ele errou
em determinado caso. Havia uma certa preocupação em não se envolver, até mesmo
porque, dependendo da situação, o fuxiqueiro poderia ser chamado a comprovar o que
ouviu e falou; e por essa situação ninguém queria passar.
Mas o melhor era isso mesmo: nem ficar sabendo, salvo se fosse algo
realmente grave e que merecesse uma resposta ao ofensor.
Todavia, as coisas mudaram com a internet. Na rede, já são incontáveis
os casos em que as críticas são abertas, pessoais e ofensivas. Reputações são
destruídas da noite para o dia, sem a menor preocupação em se confirmar a veracidade
daquilo que está sendo disseminado. As correntes difamatórias começaram nos espaços
abertos para os comentários em sites de notícias e nos e-mails, mas se reproduziram, em
progressão geométrica, com o advento das redes sociais.
Em Espelho Dourado não era diferente, apesar de bem mais contidas as
situações envolvendo pessoas públicas do que nos grandes centros. O próprio Freitas,
em muitos casos, assegurava a liberdade de expressão de pessoas que criticavam
políticos locais ou administradores de órgãos públicos, desde que a ofensa não fosse
estritamente pessoal ou com o notório caráter de menosprezar o sujeito.
Enquanto os processos judiciais e administrativos tramitavam, o clima na
então pacata cidade estava quente com tantos boatos e notícias sobre as eleições e o
rumoroso caso envolvendo o juiz que lá trabalhava por muitos anos.
Conversas ao pé do ouvido, nas mesas de bares, nos locais de trabalho,
nas ruas, na prefeitura, no fórum, enfim, por toda a cidade era só o que se falava: eleições
e o juiz que vendeu a sentença que cassava o novo mandato do prefeito Rezende.
Com raras exceções, a mídia local não poupara ninguém. Apesar de não
fazerem afirmações categóricas sobre a venalidade de Freitas, os jornais e blogs na
internet destacavam o fato de o juiz estar envolvido diretamente em caso de corrupção.
O verdadeiro corruptor, as provas do processo eleitoral, quem seria o
novo prefeito, a desfaçatez do Dr. Freitas, que sempre pousara de homem sério, davam a
tônica do falatório.
Nos comentários dos internautas às notícias sobre o caso e nas redes
sociais é que se viam as maiores atrocidades contra a sua honra. “Bandido da toga”,
“criminoso”, “vendido” entre outros termos tão insultantes quanto apressados eram os
mais propalados. Até mesmo os que se aventuravam em defender a honra do juiz,
alegando que tudo poderia ser uma armadilha do prefeito, eram duramente atacados.
O juiz Freitas não gostava de ler comentários de internautas sobre o
Judiciário, pois achava que eram fruto de uma visão de quem não vive o sistema por
dentro, que não sabe como ocorre a tramitação de um processo, que esquece que todos
têm direito à defesa, que pensa que não se trabalha.
Freitas não era um juiz ingênuo, bem sabia das mazelas que acometiam o
Judiciário, ainda mais com a experiência que tinha, mas ficava incomodado com
comentários rasteiros de quem faz a crítica pela crítica, sem nada a acrescentar.
No caso que envolvia sua própria honra, entretanto, não conseguia deixar
de ler as barbaridades que dele falavam. Sofria calado, evitando até mesmo comentar
com sua mulher, sua companheira de tantos anos, poupando-a do constrangimento.
Resolveu, então, quebrar o silêncio e ligou para a única rádio da cidade, a
fim de solicitar um espaço no programa de maior audiência, a entrevista que ocorria aos
sábados no final da manhã. Sabia que o proprietário da rádio era ligado ao grupo do
prefeito Rezende, mas que não haveria melhor maneira de se comunicar com o povo da
cidade e expor a sua versão para os fatos a não ser por aquele meio. O espaço foi
concedido após o consentimento do próprio prefeito Rezende ao proprietário da rádio.
Após alguns dias de anúncio chegou o dia tão esperado pela população.
Freitas escreveu o texto que iria ler no início da entrevista, um breve resumo dos
acontecimentos e uma veemente defesa de sua honra, de sua carreira e de sua própria
família, que acabara sendo alvo de comentários maliciosos.
Na praça central, um carro estava estacionado com os porta-malas
aberto. O som do rádio era ouvido por quem estava circulando ou sentado nos bancos.
Nos bares, no comércio e em praticamente todas as residências, todos estavam a postos
para ouvir o que juiz falava, embora o prejulgamento já havia se concretizado na mente
de quase todos os habitantes.
O juiz sabia que não poderia usar a linguagem dos processos naquele
momento. Teria que se fazer entender por todos, inclusive pelo cidadão mais simples, que
tão bem o conhecia após tanto tempo de trabalho naquela pequena comarca. Entretanto,
resolvera iniciar sua manifestação, após breves cumprimentos, com uma citação de Arthur
Schopenhauer, o pensador alemão que influenciou diversos outros filósofos, dentre eles
Friedrich Nietzsche:
"A glória deve ser conquistada; a honra, por sua vez, basta que não seja
perdida."
E prosseguiu o juiz:
Nesses mais de trinta anos de magistratura, quase todos nesse município
que escolhi para morar e criar meus filhos ao lado de minha querida mulher, jamais
pratiquei qualquer ato do qual pudesse me envergonhar, ao contrário. Sempre servi a
esse povo que tanto aprendi a admirar. Sempre fui respeitoso com todos e de todos
obtive o devido respeito, não apenas por conta do cargo que exerço, mas principalmente
porque jamais destratei alguém, fosse por escrito nas decisões, fosse pessoalmente nas
audiências ou nas ruas dessa cidade.
As lições de correção e honestidade aprendi desde criança com meu pai.
Em toda a minha carreira jamais fui acusado de qualquer irregularidade,
exatamente porque nunca, volto a repetir, nunca pratiquei um ato ilegal que fosse, muito
menos esse do qual me acusam.
Nego veementemente as acusações que me fazem junto ao órgão
corregedor. Fui vítima de uma armadilha feita para me desmoralizar e consequentemente
desacreditar minha decisão tomada há poucos dias, decisão essa que todos sabem do
que se trata.
Meu patrimônio, de uma vida inteira de trabalho, é a casa em que moro,
uma pequena propriedade rural, um carro e uma pequena economia aplicada na
poupança, cujo valor foi informado ao órgão corregedor e consta do meu imposto de
renda.
Quem me conhece aqui nessa comarca sabe que jamais eu aceitaria
qualquer tipo de suborno para praticar qualquer ato, muito menos para proferir uma
sentença a favor ou contra alguém.
Nunca fiz isso e não seria agora, às vésperas da aposentadoria, que o
faria.
Estou extremamente constrangido por tudo o que está acontecendo e
quem fez isso haverá de prestar contas à Justiça!
Tomei todas as providências ao meu alcance para apresentar a minha
defesa. Já tenho elementos que indicam a farsa que foi armada, apesar de ainda não ter
identificado precisamente quem fez isso, pois foi utilizado, inclusive, um falsário.
A defesa veemente do juiz prosseguia enquanto nas ruas as opiniões se
dividiam. Uns diziam que ele poderia estar falando a verdade porque, de fato, até então,
jamais se ouvira qualquer suspeita contra ele, ao passo que outros falavam que era tudo
uma encenação para tentar deixar o povo em dúvida.
Na verdade, com algumas exceções, os partidários de Rezende tinham
certeza de que o juiz havia vendido sua sentença para prejudicar o prefeito e candidato à
reeleição. Já os partidários de Braga acreditavam na inocência do Dr. Freitas, atribuindo a
denúncia de suborno ao prefeito e principal interessado em tumultuar o processo em que
fora cassado seu novo mandato.
A defesa do juiz Freitas chegara ao final com a repetição da frase dita no
início, acrescentada de um comentário:
- Espero que um dia consiga resgatar minha honra e que o autor das
falsas denúncias seja devidamente identificado e punido.
Emocionado, agradeceu o espaço ofertado pela rádio local e disse que
não tinha do que se envergonhar, pois nada de errado havia feito.
As conversas entre os moradores, por vezes acirradas, prosseguiram
após as palavras do juiz.
Muitos amigos e até mesmo parentes com preferências políticas opostas
acabavam se brigando por conta da desagregação criada na cidade a partir da campanha
eleitoral.
A incapacidade de compreensão do ponto de vista alheio, interesses
pessoais em jogo e até mesmo um quê de prepotência obnubilavam, quase que por
completo, a possibilidade de uma discussão em termos mais racionais.
A política, de uma forma em geral, pode envolver as pessoas, inclusive as
que só falam mal dela, mas o discurso não pode ser apaixonado. Quando se discute
política como se fosse uma partida de futebol, o resultado pode ser aquele enfadonho
zero a zero de quarta divisão, com o estádio vazio de argumentos.
Capítulo VII

No dia final do prazo, Rolf protocolou a defesa administrativa adiantada


por Waldorf. Era um denso documento que iniciava com os atributos pessoais do Dr.
Freitas. Em seguida, foram detalhados diversos indícios dando conta do interesse de
Rezende em prejudicar o juiz. Primeiro, ele acompanhara as audiências em que as
testemunhas foram ouvidas e as provas exibidas, inclusive gravações de vídeo, sendo
previsível a sentença contrária aos seus interesses. Segundo, era fácil para qualquer
pessoa saber quando a decisão seria publicada, pois processos eleitorais têm prazos bem
curtos e aquele era o último dia para o juiz, o que faria do depósito naquela data um
argumento forte no sentido de que a decisão fora “comprada”. Terceiro, o então prefeito
Rezende já havia sido condenado por improbidade administrativa pelo Dr. Freitas,
chegando a manifestar publicamente o seu descontentamento com o juiz.
Na defesa também foram relatados os primeiros passos da investigação
policial sobre o caso, inclusive sobre a identificação do autor do depósito.
Foi mencionado também que o juiz investigado, apesar de convicto do
anonimato da denúncia, posto que se tratava, na verdade, de um falsário, não alegaria a
nulidade da investigação e de eventual abertura de processo administrativo. Pretendia se
defender, total e cabalmente, das acusações.
Sobre os relatos da investigação policial, feita a pedido do juiz, foi
informado que o verdadeiro Dionata confirmou o que já se suspeitava. Ele teve seus
documentos extraviados há alguns anos e estes são usados por um falsário, que faz
compras em seu nome e até mesmo já abrira uma conta em banco.
Também foram mencionados e anexados os depoimentos de Braga,
Rezende, Tomás, do gerente do banco e dos funcionários que realizaram a transferência.
O candidato derrotado na eleição, Braga, que seria beneficiado com a
decisão do juiz e, assim, tomaria posse como o novo prefeito, disse nada ter a ver com a
suposta compra da decisão e que, diante das provas naquele processo, não havia outra
sentença a não ser a de cassação de Rezende. Assim, além de não concordar com o
procedimento, não teria motivos para “comprar” o juiz. E apesar de negar qualquer
relação com Dionata, disse ter conhecimento, na condição de comerciante, que um
falsário andava utilizando tal nome para praticar golpes, de modo que não deveria aceitar
cheques ou dar crédito a quem se apresentasse com tal nome. Sobre Tomás Fabre,
afirmou que o conhecia, tratando-se de um senhor já de idade avançada, mas que
estranhava ter sido ele o autor do depósito, pois lhe parecia alguém sem muitos recursos.
Negou ter mantido qualquer contato com ele nos últimos meses.
O prefeito Rezende afirmou que estava irritado e indignado com o
envolvimento de seu nome na suposta armação contra o juiz. Confirmou não ter apreço
pessoal, por conta das decisões, mas que respeitava o “Dr. Freitinha” e que jamais faria
algo parecido. Disse também que não conhecia Dionata, mas que sabia quem era Tomás,
um senhor que morava no interior do município. Falou que esteve com ele por ocasião da
campanha, quando foi até a sua casa pedir o voto, mas que depois desse dia, nunca mais
o vira.
O gerente do banco disse que os funcionários que efetuaram a
transferência sem que o nome do depositante aparecesse já estavam há muitos anos na
instituição e que nunca estiveram envolvidos em qualquer ilícito ou falta grave, sendo que
o sistema de informática do banco enfrentou problemas e era falho naquele ponto em que
permitia a omissão do nome do depositante, ainda que de forma acidental. Sobre as
filiações partidárias, disse desconhecer a preferência de ambos.
Os funcionários do banco disseram que houve a digitação de um código
errado na transferência e que, por isso, o nome do depositante não aparecera de
imediato, mas que não houve má-fé nisso. Sobre as filiações partidárias, disseram não
pertencer a nenhum partido.
Até então, tais declarações pouco contribuíram com as investigações,
salvo as de Tomás, que complicara a situação de Braga e do juiz. Mesmo assim, para não
omitir nada em sua defesa, a cópia foi apresentada:
- Eu fiz o depósito de cem mil reais na conta do juiz porque o Braga me
pediu. Ele disse que era para pagar um terreno que havia comprado do juiz, uma pequena
propriedade rural, e que precisava desse favor, pois era candidato e não poderia aparecer
como depositante de um valor em favor do Dr. Freitas – disse Tomás, aparentando certo
nervosismo.
- E o senhor ganhou alguma coisa para fazer isso? – Perguntou o
delegado Rodolfo.
- Não, ele é meu amigo e acreditei nele. Achei que era só um favor. Se eu
soubesse que seria chamado na delegacia por isso, não teria feito nada.
- E como esse dinheiro apareceu na sua conta para ser transferido ao
juiz?
- O Braga pediu o número da minha conta e disse que o dinheiro seria
depositado em outra cidade, por um amigo dele, uns dias antes da data que era para
fazer a transferência.
A defesa administrativa foi concluída com o pedido de auxílio nas
investigações sobre a origem do dinheiro, pois assim seria possível identificar o
verdadeiro dono dele e o autor da trama que envolvia o juiz, bem como a respeito da
verdadeira identidade da pessoa que fez a denúncia.
Ao final, o documento, também assinado pelo juiz, autorizava a quebra de
todos os seus sigilos, a fim de facilitar a apuração dos fatos.
Capítulo VIII

Rodolfo era um delegado de meia idade, com mais tempo trabalhado do


que a trabalhar, ao menos até a tão sonhada aposentadoria. Já não tinha mais o gás
próprio do início de carreira, mas não deixava de cumprir seus deveres profissionais.
Costumava fazer anotações em uma folha que ficava em uma prancheta. Ficava em pé,
para lá e para cá em sua sala, tentando encontrar a solução para o caso que estudava.
Volta e meia parava e ficava olhando pela janela, em direção ao parquinho de uma escola
infantil. Ouvia apenas o tilintar dos brinquedos e os gritos das crianças. Teve diversos
insights em tal rotina e queria, o quanto antes, esclarecer aquele rumoroso caso que
balançava Espelho Dourado.
Enquanto tramitava o procedimento administrativo no Tribunal, o delegado
dava continuidade às investigações. Sabia que nada poderia apurar contra o juiz ou o
prefeito, pois ambos possuíam o chamado foro privilegiado e, por isso, somente poderiam
ser investigados pelo Tribunal, mas como o pedido fora feito pelo juiz e havia outros
delitos supostamente cometidos por terceiros, resolveu dar prosseguimento.
Resolveu ouvir novamente o senhor Tomás, a fim de esclarecer alguns
pontos de seu depoimento anterior e sobre a origem do dinheiro, mas já era tarde. Tomás
sumira de Espelho Dourado. Nunca mais fora visto desde o depoimento anterior.
Na análise de Waldorf e Rolf, tal fato reforçara a tese levantada pela
defesa, de que Tomás fora utilizado como “laranja” nesse plano arquitetado contra o juiz,
assim como o homem que se passava por Dionata era um falsário.
Freitas pediu para ser ouvido pelo delegado e negou veementemente
qualquer tratativa com Tomás ou Braga, muito menos sobre a compra e venda de um
terreno e da decisão. Exibiu, inclusive, o documento que comprovava a propriedade do
imóvel que teria vendido.
As investigações pouco esclareciam até o momento. O rastreamento do
dinheiro que surgiu na conta de Tomás e, posteriormente, foi transferido para o juiz estava
dificultado de certo modo porque as operações foram feitas em outra cidade, em
transações mediante o uso de envelopes em caixas eletrônicos, no total de vinte
depósitos de R$ 5.000,00 cada, sem identificação.
- Foi tudo muito planejado - comentou Waldorf.
- Sim, mas em algum momento o erro aparecerá – concluiu Rolf.
Como já haviam pedido as imagens destes caixas eletrônicos, estavam
aguardando ansiosamente para saber quem seria o autor de tais depósitos.
Poucas semanas se passaram e o Tribunal resolveu afastar o juiz do
cargo, afirmando que havia indícios da prática de corrupção, tendo em vista o depósito
feito em sua conta em circunstâncias suspeitas, bem como em razão do depoimento de
Tomás.
A decisão era de certo modo esperada, mas, ainda assim, dolorida.
O juiz custava a acreditar que poderia ter sido vítima de tão mirabolante
plano para prejudicar sua reputação. Culpava o interesse político por trás de tudo, mas
ficava aflito por não conseguir provar a trama engendrada por Rezende. Pensava em
como o prefeito teria bolado aquilo tudo para enfraquecer uma decisão e anular todo o
processo, pois conduzido por um juiz corrupto.
Dona Pietra sofria junto com o marido. Aos sessenta e sete anos de
idade, não imaginava que a vida lhe reservaria esse momento tão difícil. Dócil e amável
com todos, chorava em silêncio pelos cantos da casa. Nunca havia visto o marido acuado
em mais de quarenta anos de casamento, e já no final da carreira profissional. Refletia
sobre a crueldade e a exposição vexatória da qual era vítima, justamente aquele que,
mesmo com suas falhas e limitações inerentes a todo o ser humano, havia passado a vida
tentando fazer com que as vidas dos outros fosse menos injusta. Não fosse o suporte da
família e de alguns amigos, não saberia como lidar com aquilo tudo. Não tinha ânimo para
sair de casa, para ver as pessoas e cumprimentá-las na rua, ficava sempre a sensação de
que estavam comentando sobre o caso.
Enquanto isso, Rolf e Waldorf trabalhavam em todas as frentes legais e
possíveis na tentativa de obter a prova que faltava para encontrar os que responsáveis
pelo plano, apesar de terem a convicção de que seria coisa do prefeito.
Era tudo muito estranho, ninguém aparecia na trama financeira que
estava por trás da denúncia contra o juiz.
Capítulo IX

Na sala de audiências, o juiz relatou à


adolescente que era hora de deixar o abrigo em
que estava e voltar para sua casa, aos cuidados da
mãe.
A menina, cabisbaixa, disse:
- Eu não tenho mãe.
- Sim, você tem mãe e ela já sabe do seu retorno –
retrucou o magistrado.
- Eu não tenho mãe, ela nunca me deu carinho –
disse a adolescente, calando o juiz.

Uma das razões que levou Waldorf a escolher o curso de Direito foi
justamente o exemplo do pai. Ainda jovem, gostava ouvir as histórias que ele contava
sobre os casos que chegavam até ele, muitos deles trágicos. Seu pai ressaltava que em
todos eles havia seres humanos envolvidos emocionalmente com as situações nas quais
estavam inseridos e, por isso, como não poderia deixar de ser, os casos eram analisados
com muita cautela.
Quando falava nisso, não queria dizer apenas o zelo e o exame minucioso
das provas, mas da preparação intelectual que se exige do julgador. Um juiz jamais
estaria definitivamente preparado para tão importante função apenas com a sua
aprovação em um concurso, mas senão pelo estudo contínuo, pela sólida formação
acadêmica e humanística, por sua constante atualização (não em congressos caça-
níqueis, obviamente), pelo interesse no conhecimento interdisciplinar, que deveria
envolver sociologia, filosofia, antropologia, psicanálise, artes etc. O concurso era apenas
a primeira fase de um longo e difícil jogo, cheio de regras, que lida com vidas reais. Além
disso, o juiz deveria ter a grandeza de compreender e praticar a alteridade, bem como
entender seu papel de garante dos direitos fundamentais, ainda que contra a opinião da
maioria e, quase sempre, da mídia.
A propósito, um fato incomodava Freitas: o juiz estava com menos tempo
para sua formação por conta das cobranças para que aumentasse sua produtividade.
Dizia que uma sentença não era uma peça ou uma máquina fabricada em série, nas
famosas linhas fordistas de produção. Não aceitava a hipótese de que alguns juízes
pudessem se tornar meros “carimbadores de decisões” em nome da produtividade, como
dizia um amigo. Entre os colegas, sentia uma paranoia em torno do tema. Muito grave,
pensava. Freitas comparava a sentença ao ato médico, aquele procedimento que só pode
ser praticado por quem detém o necessário conhecimento técnico para fazê-lo.
Por certo, tal como na medicina, o ato médico (a sentença) é precedido de
alguns atos realizados por auxiliares, mas o manuseio do bisturi (o exame criterioso do
caso) só poderia ser feito pelo médico (o juiz).
Contornava tais assuntos ao lembrar de sua carreira e dos casos que vira.
Em certa ocasião, em uma família composta por um casal e dois filhos, o pai foi preso e
condenado por homicídio a uma pena de catorze anos. A mãe abandonou os dois filhos
em seguida. Notícias davam conta que havia se prostituído e saído da cidade. O filho
mais velho e a menina com tenra idade foram para o abrigo do município, sendo que uma
ação judicial pedia a colocação dos dois para adoção, posto que os pais não tinham
interesse ou condições de criá-los. A mãe, antes de sair da cidade, havia assinado um
documento concordando com a colocação dos filhos para adoção, mas o pai, mesmo
preso, dizia não concordar.
Marcou, então, uma audiência para ouvir o pai. Já conhecia as crianças
por conta das visitas ao abrigo e ficava impressionado com o olhar da menina, parecia
querer dizer algo a ele. Naquela ocasião, o pai se dizia inocente no tocante ao crime pelo
qual fora condenado. Seu advogado informou, inclusive, que já havia feito o pedido de
revisão criminal com base em novas provas, o que poderia livrá-lo da prisão. Caso não
conseguisse, indicaria um parente para ficar com as crianças até que fosse posto em
liberdade.
Freitas, sensível aos argumentos, percebia que havia amor do pai pelos
filhos. Sabia que sua condenação nada tinha a ver com a família e que não havia nenhum
relato de que ele fosse negligente ou violento com os filhos. Friamente, poderia ter dado
por encerrado o caso, determinando que as crianças fossem colocadas para adoção, mas
não.
Perguntou ao pai se ele via as crianças com frequência, ao que ele disse
que não, pois desde que fora preso ninguém levou seus filhos para visita-lo, e que sequer
conhecia a menina, a filha mais nova. O juiz, então, pediu que fossem trazidas até o
fórum as duas crianças, quando então dera início à oitiva das testemunhas.
Em poucos minutos, uma senhora que trabalhava no abrigo entrou pela
porta da sala de audiências com o menino pela mão e a menina em seu colo. A cena a
seguir fora marcada indelevelmente na memória do juiz e, provavelmente, na de todos os
presentes. O pai, aos prantos, conhecia sua filha, agora com cerca de um ano e meio de
idade. Era um estranho para ela e, como tal, houve uma repulsa inicial. Depois, ele
abraçou o filho, que também estava emocionado ao rever o pai. O clima era de total
comoção e o próprio juiz não conseguira segura a emoção, dando por suspensa a
audiência naquele momento.
Eram tantos sentimentos ao mesmo tempo, que nem mesmo as pessoas
mais acostumadas com os casos que envolvem crianças poderiam passar imunes
emocionalmente ao episódio. Um misto de amor, angústia, perseverança, apreensão,
rejeição e esperança em um mesmo local.
Após, recompostos os ânimos, os depoimentos foram retomados. Ao final,
o juiz determinou que a parente indicada pelo pai das crianças fosse consultada sobre a
guarda das crianças enquanto o pai estivesse preso. Ele merecia essa chance, pois nada
fizera aos filhos, não era relapso e não pôde contar com a mãe das crianças.
Freitas deixou a comarca do caso sem saber do seu desfecho. E preferiu
não saber. A ideia de que aquela decisão não tivesse dado certo não lhe cairia bem.
Outro caso que contava em família, talvez o mais bizarro de todos, havia
ocorrido em uma audiência envolvendo um casal já com certa idade. Ela reclamava do
marido, dizia que ele não a tratava com o devido respeito e a ameaçava. O filho adulto,
um tanto quanto constrangido, a tudo assistia, em absoluto silêncio. Até aí, apenas mais
um caso em que o casamento já havia acabado, mas a união era mantida por
conveniências e interesses individuais, como, por exemplo, a falta de um outro lugar para
ir morar, a idade avançada a dificultar o início de uma nova relação e o medo da solidão.
O incomum naquele caso veio no momento em que a senhora olhou
seriamente para o juiz e disse:
 O senhor não sabe o que ele já fez comigo?
 O que, senhora? - Indagou pacientemente o juiz.
 Ele comeu um pedaço da minha cabeça!
Incrédulo e por não notar qualquer deformidade ou anomalia na cabeça
daquela senhora, perguntou Freitas:
 Como assim?
Ela abaixou a cabeça, como se fosse colocar a testa nos joelhos, e com
as mãos afastando o cabelo, deixou à mostra uma sensível falha no couro cabeludo, já
cicatrizada pelo tempo.
 Como foi isso? Questionou o juiz, agora completamente pasmo com o que estava
ouvindo e vendo.
 Ele puxou o meu cabelo com uma das mãos e com a outra passou um facão no
couro cabeludo. Depois, ele colocou esse pedaço na brasa e comeu.
Estupefato com o que acabara de ouvir, o juiz fez um breve silêncio, olhou
para o marido daquela pobre senhora e indagou:
- É verdade isso?
Sem saber como reagir diante daquele fato assombroso, ele deu uma
risada e disse:
- Ah, isso já faz muitos anos e eu estava bêbado.
O constrangimento era geral e o silêncio sepulcral. O filho do casal
abaixou a cabeça, praticamente encostando-a na mesa da sala de audiências. Todos
ficaram boquiabertos com a confissão de tão horrendo crime. O silêncio se rompeu
apenas quando a senhora fitou o juiz e disparou:
- Eu não disse?
O juiz, então, lamentou o triste episódio e perguntou a ela quando tal fato
havia ocorrido, já pensando na hipótese de o crime estar prescrito, pois se tratava de
lesão corporal, com penas relativamente baixas. Ela disse que o fato havia ocorrido há
vinte ou trinta anos atrás.
Prescrito, com certeza, pensou o juiz. O único encaminhamento foi enviar
os autos ao Ministério Público para que fossem apurados os atuais relatos de ameaças.
A realidade vivenciada pelas mulheres no Brasil é triste, mesmo depois da
conhecida Lei Maria da Penha. Homens que acham que as mulheres são objeto de seus
desejos e que não devem ser ouvidas e compreendidas em suas próprias aflições e
inquietudes.
A cultura do machismo, incutida na maioria das vezes desde o próprio
ambiente familiar, faz com que o ciclo de violência, arbitrariedade e tirania dos homens
sobre as mulheres seja perpetuado.
Outro tema que muito afligia o juiz era a situação dos presos no Brasil.
Um sistema prisional falido e gerador de violência. Um país que prende muito e prende
mal. Sempre pensara em escrever um livro a respeito de tudo que já vira. Faltava-lhe
tempo.
Lembrava com frequência de um preso com o apelido de “Boca de Ferro”,
o qual, certa vez, por ocasião de uma visita, disse:
- Doutor, eu errei e por isso fui condenado. Perdi minha liberdade, mas
não quero perder minha mulher e meu filho. Eu não posso dar um abraço neles porque a
visita está sendo feita somente no parlatório. O contato físico está proibido porque os
agentes não querem fazer a revista. Eles não têm vindo mais aqui por causa disso. Vocês
estão criando um bicho dentro de mim, um monstro que vai sair daqui um dia.
Ele tinha razão e tão logo o juiz confirmou que a visita pessoal estava
restrita sem sua ciência, determinou que fossem retomadas as visitas na forma usual.
Ainda sobre a prisão, lembrou de um outro detento, jovem e recém
chegado à sua comarca para cumprir pena e a quem oferecera um livro. Argumentou que
seria interessante para passar o tempo e que também serviria para fins de remição, o
benefício de redução de pena concedido a quem trabalha ou estuda. O juiz explicou como
funcionaria o controle da leitura e, ao final, o preso disse ao juiz:
- Falando nisso, sonhei essa noite que caminhava entre as páginas de um
livro. Era a história de um rapaz muito pobre e que não tinha conhecido o pai porque ele
havia abandonado a família quando sua mãe ainda estava grávida dele. Era o quarto filho.
Desesperada e sem ter como sustentar a família, a mãe passou a catar latas e papelão
pelas ruas para vender aos atravessadores que revendiam o material para as
cooperativas de reciclagem. Os filhos ficavam sozinhos em casa e eram cuidados,
quando possível, por uma vizinha. Dividiam uma pequena casa. As peças ficavam
praticamente todas juntas: quarto, sala e cozinha. O banheiro ficava do lado de fora e não
tinha água quente. Raramente as crianças iam ao médico, pois as filas de espera eram
muito grandes e a mãe não tinha tempo para tanto em razão do trabalho duro que
realizava todos os dias em troca de uma merreca. Somente quando era caso de
emergência é que conseguia atendimento mais rápido em um posto de saúde que ficava
a quatro quilômetros de casa. O rapaz da história cresceu naquela pobreza e não havia
quem lhe desse educação e limites, apesar do esforço da mãe. O pai nunca mais
retornou, nem para ver os filhos, que passaram a andar com os outros rapazes daquele
pobre e violento bairro. Apenas a única filha, a mais velha dos irmãos, é que estudava e
ajudava a mãe nos afazeres de casa.
O juiz não interrompera o preso em momento algum. Ficara surpreso com
aquele detalhado e intrigante relato e queria ouvi-lo até o final.
- Não demorou e os rapazes passaram a usar drogas e a roubar para
sustentar o vício na ‘pedra’, o crack, o senhor sabe, né? A mãe deles não dava mais
conta, pois eles sumiam com o pouco que tinham em casa, até comida levavam para
trocar por droga. A filha mais velha chegou a sair da escola para ficar tomando conta da
casa, mas não tinha como controlar os irmãos. Nem mesmo a mãe conseguia quando
estava em casa. Às vezes, apareciam com objetos que roubavam das pessoas, mas logo
em seguida já levavam para pagar a droga. A mãe e a filha não sabiam mais o que fazer
para tentar controlar os rapazes. Esse livro com o qual sonhei é muito triste - continuou o
preso. Acho que o senhor não está interessado nele.
- Estou, sim, respondeu o juiz. – Prossiga, por favor.
- Sem saber o que fazer, a mãe procurou o juiz da cidade, que já o
conhecia porque alguns de seus filhos já haviam sido internados pelos atos que
cometiam. Ele atendeu aquela senhora judiada por tanto sofrimento e dela ouviu o que
jamais imaginara ouvir. Ela pediu ao juiz que mandasse prender seus filhos. Relatou todos
os problemas por quais passava há anos e que até mesmo o colchão em que dormia eles
haviam levado para trocar por droga. Ela chorava muito e o juiz tentou acalmar aquela
senhora e depois falou que não poderia mandar prendê-los, a menos se houvesse
processo, provas e necessidade para isso. Explicou em que casos era possível a prisão
dos mais velhos ou a internação do caçula, ainda adolescente, mas que o problema deles
era uma questão de saúde pública e não de polícia, pois os crimes eram consequência de
um vício que deveria ser tratado. A mãe disse que ninguém conseguia uma clínica para
eles e que até no Fórum já haviam prometido, mas não deu certo. Eles estão morrendo a
cada dia e a qualquer hora alguém vai matar meus filhos por causa das dívidas com os
traficantes, ela disse.
- E os rapazes, foram internados? - perguntou o juiz ao preso que contava
a história do livro com o qual sonhara.
- Não deu tempo. Poucos dias depois da conversa da mãe com o juiz,
seus três filhos e outros rapazes foram abordados pela polícia em uma operação de
rotina. Um deles estava armado e, com receio de ser preso, acabou correndo para tentar
dispensar a arma. Enquanto corria, um policial fez vários disparos e o acertou duas vezes,
pelas costas. Ele morreu ali mesmo. A confusão foi grande e outros rapazes que estavam
sendo abordados tentaram reagir contra a polícia e também foram mortos, mesmo
desarmados. O caçula, esse rapaz da história com a qual sonhei, perdeu dois irmãos
nesse dia. Foi o único da família que conseguiu escapar com vida, mas ela já estava
arruinada. Apesar de ter largado o vício da droga, algo que prometeu fazer no dia do
enterro dos seus irmãos, passou a praticar alguns roubos para ver se ganhava algum
dinheiro. Estava com vinte anos quando foi condenado pela segunda vez. O juiz não
reduziu a pena porque disse que ele era reincidente. Foi preso e vai ficar um bom tempo
porque tinha adolescente junto com ele, arma e tal.
- Entendi, disse o juiz Freitas. E como termina esse livro com o qual você
sonhou?
- Não terminou ainda. O novo capítulo desse livro começou a ser escrito
aqui, quando cheguei na semana passada. Essa é a minha história, eu sou o caçula.
O rapaz, surpreso e emocionado com a atenção que o juiz lhe dera,
começou a chorar. Aos prantos, dizia que queria uma nova chance na vida e que se
pudesse faria tudo diferente. Lamentava-se pelo fato de não ter tido alguém que pudesse
lhe mostrar o caminho, apesar do esforço de sua mãe, que lutava pela sobrevivência dos
filhos, pela comida de todos os dias. Ele não a culpava, pois sabia o quanto ela havia
trabalhado por eles, mas tinha muita mágoa do pai, por ter abandonado a família sem
prestar qualquer auxílio.
Naquele dia, Freitas saiu arrasado do presídio, mais do que usualmente
ocorria nos dias de visita, tamanha a tragédia humana com a qual se deparava naquele
ambiente. Pensou na habilidade do rapaz, que aproveitou o assunto da remição pela
leitura para contar algo que seria a história de um livro que lera em um sonho. Entendeu
que ele havia simulado a ficção de sua vida para chamar a sua atenção, pois se dissesse
que queria contar a sua própria história, talvez não fosse ouvido. Essa não era a postura
de Freitas, que sempre ouvia os presos, mas tratando-se de um rapaz recém chegado e
que não conhecia o juiz, a ‘trama’ fez todo o sentido.
Tantos outros casos, de bárbaros a inusitados, eram contados pelo juiz,
como do réu preso que, ao ser advertido para que se comportasse em audiência, pois
estava interferindo nos depoimentos, levantou os punhos algemados, olhou para o
magistrado e disse: vai fazer o que comigo, me mandar prender?
Em outro, o pai havia sido processado porque apagou um cigarro na mão
do filho, a fim de puni-lo. Depois de confirmar o fato, o juiz perguntou ao acusado como
havia sido a educação que ele havia recebido na infância, ao que ouviu como resposta: -
na porrada, doutor.
Era apenas mais um exemplo de como o ciclo da violência se completava,
de como se reflete na educação dos filhos o modo como se foi “educado”. Romper o ciclo
era o trabalho a ser feito, o que não se daria com mais punição, pensava Freitas.
Mas um dos relatos que impressionaram o juiz, quando ainda no início de
sua carreira, era o do pai que engravidou a filha adolescente. Em audiência, a mulher do
acusado e mãe da vítima se esquivava de qualquer pergunta que pudesse incriminar seu
marido. Com a insistência, ela respondeu que não queria que ele fosse preso, pois nesse
caso não haveria que sustentasse a casa.
A dependência financeira ganhara contornos sórdidos e o pouco dinheiro
daquele homem havia comprado a dignidade de uma família inteira.
Foi assim, em meio a tantos relatos instigantes, inclusive aqueles que
ocorriam nos júris, que Waldorf resolveu que faria a faculdade de Direito. Via no curso a
possibilidade de contribuir para uma sociedade um pouco melhor, menos desigual e
menos injusta, apesar da distância que o separava de tal intento naquele momento. Era
mais um jovem estudante, um idealista que carregava consigo a esperança de ver mundo
diferente, no qual todos pudessem ter, senão o mesmo ponto de partida para todas as
oportunidades, pelo menos um destino que não fosse a miséria, a indiferença, a
criminalidade ou qualquer outra forma de exploração, algo que o ser humano consegue
fazer com impressionante maestria.
Capítulo X

Na delegacia, Rodolfo tentava fechar o cerco aos que estavam até ali
envolvidos no caso. Mais uma vez, parou na janela e olhou em direção ao parquinho
infantil. Foi então que resolveu encampar o pedido de Rolf e Waldorf e solicitou o registro
das ligações telefônicas dos funcionários do banco, tendo em vista a possível relação com
Braga, apesar de não serem filiados a nenhum partido. Segundo colheu, durante a
campanha, foram vistos em apoio ao oposicionista.
De posse dos documentos, descobriu que os funcionários não falaram
com Braga naqueles dias que antecederam o depósito, mas uma coincidência chamou a
atenção. No dia do depósito, ambos os bancários tiveram contato, por intermédio de seus
celulares, com o empresário Jonas, conhecido de Tomás, com quem havia sido visto por
um vizinho antes de seu sumiço.
Quando foi chamado à delegacia para esclarecer o que sabia sobre
Tomás, Jonas disse que, na verdade, naquela data em que foram vistos juntos, havia
levado o amigo para uma consulta na capital, mas que de lá ele seguiria, sozinho, em
uma viagem pelo Nordeste, o que levaria alguns meses, já que eram muitos os amigos e
parentes que gostaria de visitar.
O delegado achou um tanto quanto estranha essa história de Jonas, ainda
mais quando era Tomás o depositante do valor na conta do juiz e a principal testemunha
até então.
Ouvidos novamente, os funcionários afirmaram que Jonas era cliente
antigo do banco e que, no mesmo dia do depósito na conta do juiz, ele estava preocupado
com a liberação de uma linha de crédito especial, a juros bem baixos.
Tal versão foi confirmada por Jonas posteriormente, mas não convencera
por completo o delegado, pois o financiamento havia sido liberado no dia anterior. Quando
questionados a respeito, os funcionários informaram que a liberação ocorria em um dia,
mas o crédito na conta aparecia apenas no dia seguinte, razão pela qual Jonas ligou para
saber se tal valor estava, de fato, à sua disposição. Todavia, sentindo-se incomodado com
toda a situação e diante dos sigilos já quebrados, um dos funcionários do banco afirmou
que Jonas perguntou também sobre uma transferência que teria sido feita por Tomás.
Como Jonas era um excelente cliente, o funcionário confirmou que sim, que havia sido
feita em favor do Dr. Freitas.
Qual seria o interesse de Jonas nessa transação, qual a sua relação com
Braga ou Rezende?
Eram as perguntas transcritas na prancheta do delegado.
As investigações prosseguiram e demonstraram que Jonas não tinha
qualquer relação pessoal com os candidatos. O empresário não colaborava com as
campanhas, de modo que era visto com certa antipatia pelos políticos, ainda mais em
uma cidade pequena. Dizia odiar política, que eram todos corruptos e que quanto mais
afastados dele, melhor. Em frente à TV, durante os noticiários, bradava contra a
corrupção, os políticos, os juízes, a quem culpava pela impunidade, e todos os que
exercessem qualquer cargo público, pois não sabiam das dificuldades do setor privado,
da alta taxa de impostos, dos entraves ambientais etc.
Pensativo, o delegado Rodolfo achou estranho o fato de as imagens das
câmeras acopladas aos caixas eletrônicos em que foram feitos os depósitos não terem
sido recuperadas devido a problemas técnicos. Em nova diligência, entretanto, a polícia
conseguiu os vídeos panorâmicos das áreas interna e externa da agência.
Neles era possível ver que uma pessoa ainda não identificada fizera
vários depósitos mediante o uso de envelopes, justamente na data e na agência em que
foram feitos os créditos em favor de Tomás. Tal pessoa, segundo as imagens externas,
esteve logo em seguida com Jonas, que aguardava do lado de fora. Discretamente, Jonas
entregou um maço de dinheiro ao homem que efetuara as transações e deixou o local.
De posse dessas informações, as investigações tomaram novo rumo.
Aparentemente, Jonas fora o responsável pelo depósito na conta do juiz, por intermédio
de Tomás, o qual, por nova ação de Jonas, sumira após declarar que havia feito a
operação a mando de Braga.
Apesar de os indícios contra os funcionários do banco não se
confirmarem, foi a quebra dos seus registros telefônicos que possibilitou identificar o
interesse de Jonas na transferência bancária de Tomás em favor do juiz, o que foi
comemorado por Waldorf e Rolf como um grande avanço. Um erro havia sido cometido e
uma câmera flagrara Jonas pagando alguém para fazer o depósito em favor de Tomás,
que posteriormente fez a transferência bancária em favor do juiz.
Restava saber se Jonas agira a mando de alguém ou por conta própria,
bem como os motivos para tanto.
Capítulo XI

Animado pelo resultado das investigações até aquele momento, mas


ansioso para saber o que teria levado Jonas a usar um terceiro para fazer o depósito na
conta de seu pai, Waldorf teria outro júri pela frente.
Pensara em desistir de atuar na sessão para se dedicar ainda mais,
juntamente com Rolf, ao desfecho do rumoroso processo que envolvia seu pai, mas havia
acompanhado, praticamente desde o início, o caso dessa senhora que enfrentaria o júri
popular. Não seria correto deixá-la sem a sua assistência no momento mais importante,
ainda que pudesse indicar outro excelente advogado. Havia uma relação de confiança
entre ambos que não poderia ser quebrada, ainda que sem o pagamento de honorários
por parte da cliente, atendida em uma das ações voluntárias de Waldorf.
O relógio marcava 12h30min, faltava uma hora para o início da sessão.
Por meio de um aplicativo para celulares, chamou um táxi. Após uma longa espera -
atrasos são sempre longos para os que estão com pressa - chegou ao local um veículo
branco, cujo tempo de uso era denunciado por amassados e arranhões na lataria. Waldorf
entrou no carro e informou o seu destino: o Fórum. O taxista seguiu por um trajeto
alternativo desconhecido do advogado, desviando do trânsito mais pesado àquela hora.
Ele é esperto, pensou Waldorf. Como estava com pressa, não se importou em pagar um
pouco a mais pelo desvio da rota. A conversa sobre o trânsito seguiu tranquila até que o
taxista resolveu falar de um calote dado por um cliente, coisa de cerca de R$ 70,00. O
rapaz, segundo ele informou, era usuário de drogas e a corrida era até um motel onde se
encontraria com alguém. Como o rapaz demorou a retornar e não havia pago pela corrida,
o taxista resolveu entrar no local, mesmo contra a determinação do porteiro. Descobriu o
quarto em que ele estava e arrombou a porta. Viu o rapaz fazendo uso de uma pedra de
crack com uma lata. Não contou tempo e disse a ele: "se você pode pagar pela droga, vai
ter que me pagar também". Diante da negativa do rapaz, ele deu uma surra de cinta no
dependente, com a parte da fivela. Waldorf ficou horrorizado com aquilo: as mazelas
pelas quais passam os usuários de drogas e a forma pela qual o credor "resolveu" o seu
problema. Ficou em silêncio, pois seria inútil discutir com alguém que lhe relatava uma
situação dessas como um grande feito. Chegaram ao destino. Waldorf pagou a corrida e
desceu do carro. Ele é um tolo, pensou. Não recebeu e não vai receber o seu dinheiro. E
quanto ao rapaz usuário de drogas, a "fivelaterapia" deve ter ajudado muito em seu
problema, refletiu Waldorf, completamente insatisfeito com o desfecho daquela história.
Mas como não deveria se desconcentrar do julgamento que teria pela frente, retornou
seus pensamentos ao caso.
Marli dos Santos era uma mulher simples e de origem humilde. Aos sete
anos, já ajudava a família na lavoura, no interior do Rio Grande do Sul. Trabalhava muito,
de sol a sol - como se costuma dizer, e mesmo assim conseguia estudar. Era a mais velha
de seis irmãos e ainda muito jovem já trazia no rosto as marcas do trabalho e de uma vida
sofrida. Joice, a irmã apenas dois anos mais jovem, seguira seus passos no trabalho e
nos estudos. Era sua grande amiga.
Ainda adolescente, Marli começou a namorar com José Antônio, também
agricultor e que a levaria pouco depois para o litoral em busca de novas oportunidades.
Para tanto, tiveram que casar, mesmo a contragosto da mãe de Marli, que temia a vida
nas cidades maiores, ainda mais quando Marli insistira em levar Joice com ela. Queria dar
melhores oportunidades de vida para sua irmã. Pensava na dificuldade que era a vida no
campo, nos sonhos que nutria a partir das imagens da televisão. Não tinha a menor ideia,
até então, do que acabaria por vivenciar.
José Antônio recebera uma proposta de trabalho na construção civil em
Florianópolis, a capital de Santa Catarina, onde um amigo já estava trabalhando no
mesmo setor. Com as malas cheias de esperança, José e Marli, ele com vinte e ela com
quinze anos formalizaram a união, mudando-se, juntamente com Joice, para a capital
catarinense.
Depois de muitas dificuldades e morando de favor na casa do amigo de
José Antônio, conseguiram alugar uma pequena casa.
Na nova morada, um modestíssimo imóvel de quarto e sala com cozinha
e banheiro, Joice passara a enfrentar um verdadeiro horror: José Antônio, durante a
ausência de Marli, que trabalhava até 22h em um supermercado, passou a assediar a
cunhada, manifestando seu abjeto interesse em ser seu primeiro homem.
Nas primeiras investidas, Joice conseguiu se desvencilhar de José
Antônio, mas acabou cedendo diante de suas ameaças de arruinar com a vida dela e de
sua irmã Marli. Dizia que mataria as duas se um dia ela contasse sobre o ocorrido a Marli.
Joice passou a conviver com aquela situação que a envergonhava completamente, ainda
que não fosse ela a responsável pelo que acontecia. Ficava muda diante de Marli por
alguns minutos até que esta lhe dirigisse a palavra. Com medo das ameaças de José
Antônio, Joice sofria em silêncio. Quando perguntada por Marli o motivo pelo qual andava
quieta, dizia que era saudade dos pais.
Poucos meses se passaram e Marli ficou grávida. Mesmo assim, durante
a gestação e enquanto ela ainda mantinha a jornada de trabalho, José Antônio mantinha
as investidas sobre Joice, as quais somente cessaram quando Marli entrou em licença-
maternidade, com a chegada do pequeno Pedro. Mas foi só Marli retornar ao trabalho,
que tudo começara novamente. Joice cuidava do sobrinho até o retorno da irmã, mas
mesmo assim voltou a ser alvo das ameaças e investidas de José Antônio, que fazia
declarações de amor à jovem cunhada, que ficava paralisada e enojada com tudo aquilo,
sem que tivesse coragem de contar o ocorrido a Marli. Pensava em fugir, mas temia que
José Antônio viesse atrás ou então que ele fizesse algum mal à sua irmã, conforme
ameaças que fazia com frequência. Também pensava que deveria auxiliar nos cuidados
com Pedro e que sua ausência seria um problema para Marli, que até então não tinha
menor ideia do terror a que estava submetida sua própria irmã.
Algum tempo se passou. Marli já estava com três filhos, todos num curto
espaço de cinco anos, quando a própria Joice engravidou de José Antônio. Quando ela
disse a ele que estava esperando um filho, ele deu ordens a ela para que mentisse,
dizendo que o pai seria um rapaz do bairro com quem mantinha um relacionamento. Joice
tinha cada vez mais medo de José Antônio, ainda mais pela forma grosseira e violenta
pela qual começara a tratar Marli, principalmente quando chegava embriagado do
trabalho, situação cada vez mais corriqueira. Não eram raros os casos em que ele agredia
fisicamente Marli por coisas fúteis, como ocorreu certa vez quando ele chegou em casa e
não havia comida para o jantar.
Mesmo assim, pensou que aquela seria a oportunidade de se
desvencilhar dele, apesar de lamentar ter que deixar sua irmã naquela situação. Sua ideia
era fugir e tentar de alguma forma denunciar o fato à polícia, após certificar-se que as
crianças e a irmã estivessem em segurança.
No dia em que tomara a decisão, Marli chegou à sua casa mais cedo,
após uma indisposição causada por uma dor de cabeça, o que a dispensara do trabalho
antes do horário, após ser medicada. Ao entrar, flagrou Joice chorando enquanto recolhia
suas vestes do armário que dividia com a irmã e as colocava em uma mala. Indagada
sobre o que estava fazendo, Joice não conseguiu conter o choro, ao contrário.
Desmoronou diante de Marli, que não compreendia o que estava acontecendo. Depois de
algum tempo, Joice foi se acalmando e relatou tudo para Marli, inclusive sua gravidez,
mostrando-lhe uma pequena saliência na barriga.
Um descomunal desespero se abateu sobre Marli, um sentimento misto
de raiva e de culpa que jamais vivenciara anteriormente. Como não havia percebido nada,
questionava-se insistentemente. Ao mesmo tempo, em meio a essa profusão de
emoções, estava indignada com Joice, por não ter contado tudo desde o início, desde a
primeira investida de José Antônio. Mas não podia deixar de repudiar por completo as
atitudes dele, por quem já não nutria o sentimento amoroso de outros tempos, dada a sua
mudança de comportamento após a promessa de vida nova no litoral, vida essa que, de
nova mesmo, só teria sofrimento, não fossem a felicidade e o amor incondicional pelos
filhos.
As crianças ainda estavam na creche que ficava no bairro em que
moravam quando José Antônio chegou após o trabalho, mas não sem antes visitar o bar.
Ainda sob incontrolável sentimento de raiva, ao perceber a chegada de José Antônio,
Marli apanhou a espingarda, uma Boito calibre 22 que ele sempre deixara municiada
sobre o armário, e foi ao seu encontro na sala.
- Seu vagabundo, o que você fez com a Joice? – disse Marli enfurecida.
- Nada, nem sei do que tu tá falando – respondeu o marido.
- Sabe, sim. Olha para a barriga dela, ela está grávida de ti! E não foi só
isso, pois desde que nós chegamos aqui tu te aproveita dela – gritou Marli olhando para
ele e depois para Joice.
– Foi ela que deu em cima de mim. Ela falava que queria estar no teu
lugar quando a gente transava no quarto e ela ouvia tudo aqui da sala – disse José em
tom de imperdoável deboche, sem acreditar que Marli pudesse atirar contra ele. Não
imaginava que ela tivesse coragem para tanto. Blefou ao dizer que ela deveria largar a
arma, pois ele havia retirado a munição dias antes, momento em que deu um passo em
direção a ela.
- Ah, é?! Mentira, tudo mentira! – retrucou Marli aos berros.
Um forte estampido reverberou pelo pequeno ambiente. José Antônio foi
ao chão após tentar se equilibrar em uma cadeira. Um furo na camisa suada, na altura do
peito, indicava o local atingido pelo projetil. Marli, enfim, abaixou a espingarda, deixando-a
cair em seguida. Um calafrio percorrera sua espinha, paralisando-a por alguns instantes,
sem que compreendesse inteiramente o que havia ocorrido. Joice veio em sua direção e a
abraçou com força, as duas aos prantos, unidas naquele momento como nunca, até que
José Antônio clamasse por socorro, dizendo que não conseguia respirar direito.
Joice chamou o serviço de emergência e relatou o ocorrido. Em poucos
minutos, uma ambulância com enfermeiro e paramédico chegou ao local e levou José
Antônio para o hospital mais próximo. Pouco depois, chegou a Polícia Militar e, após
conversar com Marli e Joice, o policial deu voz de prisão a Marli e conduziu as duas para
a Delegacia de Polícia, ocasião em que Joice seria ouvida como testemunha. Ela afirmou
que não poderia ir, pois precisava pegar as crianças na creche, ao que foi informada que
o Conselho Tutelar seria acionado para cuidar delas até que ela pudesse retornar para
casa.
José Antônio passou por um procedimento cirúrgico e já não corria
qualquer risco de morte, enquanto Marli tivera inicialmente sua prisão mantida pelo juiz.
Joice, ainda muito jovem, sentira o peso do mundo sobre suas costas,
notadamente a responsabilidade pelos três sobrinhos e ainda a preocupação com a
prisão da irmã. Soube no dia seguinte aos fatos, na vizinhança, que um renomado
advogado faria atendimento voluntário na sede da associação de moradores ainda
naquele mesmo dia, no final da tarde. Os atendimentos eram mensais e o critério era
estar o réu preso. Era a forma que Waldorf encontrara para retribuir a possibilidade que
tivera de estudar em uma universidade pública, bem como de amenizar a situação dos
presos e familiares, dando um suporte jurídico nesses momentos tão complexos para os
envolvidos.
Ao saber do caso relatado por Joice, grávida e acompanhada dos três
sobrinhos pequenos, Waldorf não pensou duas vezes. Disse que faria o atendimento e o
pedido de liberdade assim que estive de posse dos documentos que pediu a Joice.
Tudo providenciado por Joice, Waldorf encaminhou o pedido ao juiz
responsável pelo caso. Alegou se tratar de pessoa primária, trabalhadora e que agira em
legítima defesa, após agressão praticada por José Antônio. Ressaltou em seu pedido,
ainda, as declarações de Joice, dando conta dos abusos sofridos por ela e da gravidez.
Em poucos dias, com o acolhimento do pedido de liberdade de Marli, a
relação entre ela e o advogado começou a se estreitar, dado que ela sempre o procurava
quando dos atendimentos voluntários. Ainda que não estivesse mais presa, Waldorf
garantira a ela que a assistiria até o fim.
Após ser descortinada a conduta de José Antônio, Marli, ainda abalada
com a tragédia familiar na qual se transformara o sonho de uma vida melhor, foi com
Joice à Delegacia para formalizar as denúncias dos diversos estupros praticados pelo ex-
marido contra sua irmã. Por decisão do juiz, ele aguardava o processo em liberdade, mas
estava afastado do lar conjugal e não poderia se aproximar de Marli ou Joice. As visitas
aos filhos eram feitas mediante a intermediação de uma assistente social.
Momentos antes do início do julgamento de Marli, Waldorf pensara que
todo o processo já poderia ter sido resolvido muito antes; que ela já deveria ter sido
absolvida pelo juiz, antes do julgamento pelo júri.
Não foi o que ocorreu, entretanto. Mesmo assim, Waldorf compreendia
que se o juiz não pudesse, por razões eminentemente técnicas, reconhecer a legítima
defesa, o júri poderia. Esse é o local em que a técnica cede às circunstâncias do caso,
quando o juiz é substituído por pessoas sem o mesmo conhecimento jurídico, refletiu
Waldorf.
Com todos a postos e no horário designado, teve início a sessão com as
formalidades de sempre e o sorteio dos jurados. Com a possibilidade de recusar, mesmo
sem motivos, até três jurados, Waldorf assim o fez com três homens cujas cédulas com os
nomes haviam sido mostradas a ele pelo juiz. Precisava do maior número possível de
mulheres dentre os sete que formariam o chamado conselho de sentença, pois
certamente elas seriam mais sensíveis aos argumentos de defesa: de uma mulher que
fora traída dentro de sua própria casa e com sua própria irmã; de uma mulher que se via
diante de constantes agressões por parte de um marido embriagado e que, após a
revelação do horror por que passara sua irmã, ainda debochara de forma grotesca,
aproximando-se dela em seguida com a intenção de agredi-la.
Do outro lado, a acusação faria o mesmo ao excluir três das juradas
inicialmente sorteadas.
Com alguma sorte, a composição fora favorável à defesa, eram quatro
mulheres e três homens.
Com o início dos debates, o promotor, calmo, explicava aos jurados que a
vítima José Antônio, de fato, havia errado e muito, ainda que não tivesse sido julgado pelo
estupro, mas que a ré Marli não estava, tecnicamente, diante de uma legítima defesa,
pois não havia uma agressão a ela ou a Joice naquele momento, além do que ela teria
outros meios para cessar aquela suposta agressão, como um tiro na perna, por exemplo,
não no peito, que não matou José Antônio por pouco. Argumentava que absolvição de
Marli pela tentativa de homicídio seria uma mensagem a todos de que os casos de
conflito familiar poderiam ser resolvidos à bala, principalmente naqueles em que houvesse
a descoberta de uma traição. Mencionava que alguma resposta ela merecia por parte dos
jurados, ainda que não fosse a prisão.
O jovem promotor, ainda em início de carreira, demonstrava acreditar
naquilo que falava, mas no seu íntimo, acusava a também jovem Marli muito mais por
uma questão técnica do que por crer, de fato, que ela merecesse alguma pena.
Preocupava-se com alguma repercussão negativa em relação à sua atuação caso
pedisse a absolvição de Marli.
Experiente, Waldorf conseguia perceber nas entrelinhas tal insegurança,
vista com alguma frequência em juízes, promotores e advogados em início de carreira, o
que era absolutamente normal, pensava.
Quando de sua exposição, Waldorf alinhavou a tese de que houve, sim,
legítima defesa, tendo em vista o fato de ele ameaçar e agredir fisicamente sua mulher
com frequência. Por essa razão, ela não poderia esperar outra coisa a não ser a reação
violenta da parte dele após a descoberta dos graves crimes que cometera durante os
últimos anos contra sua própria irmã. Mencionou o trauma familiar causado unicamente
por José Antônio, que estuprava a própria cunhada desde a adolescência. Apesar de não
ser dado a sensacionalismos, Waldorf taxou a vítima da tentativa de homicídio, José
Antônio, de “monstro”, repetindo tal palavra por diversas vezes durante o tempo destinado
à defesa. Como de costume, Waldorf se dirigia a cada um dos jurados, chamando-os
pelos nomes.
Após as explicações técnicas sobre a legítima defesa, pediu às juradas
que se colocassem no lugar da pobre e jovem Marli, que viera do interior do Rio Grande
do Sul em busca de uma vida melhor, trazendo, ainda, sua irmã. Em poucos anos, mesmo
após muito trabalho e com toda a dificuldade que era criar três filhos, vira todo o sonho se
desmoronar, passando a ser vítima das humilhações e agressões impostas pelo então
marido. Não bastasse tudo isso, ainda abusava sexualmente de sua irmã, deixando-a
grávida.
Nesse momento, Waldorf apontou para Joice, que estava na plateia com
o filho que tivera com José Antônio, o pequeno Daniel, com apenas um ano de idade. Em
seguida, fez uma pausa, respirou fundo e se dirigiu ao local em que estava Marli. Fez
nova pausa, como a chamar a atenção para o que seria dito e afirmou:
- Marli, fique tranquila, o que você fez qualquer mulher de fibra faria. Você
não deve temer o julgamento de hoje, pois não há espaço para outra decisão a não ser a
sua absolvição. Não se trata de resolver conflitos familiares à bala, como diz o ilustre
promotor, mas, sim, de se fazer estancar uma enorme tragédia causada por esse
monstro, que aqui está na condição de vítima. Você percorreu todos os Círculos do
Inferno, como retratado na obra de Dante Alighieri. Foi tratada com violência e premiada
com a perniciosa traição de José Antônio, dentro de sua própria casa, enquanto
trabalhava para ajudar no sustento dos três filhos. Todos os sonhos de uma vida melhor,
toda a esperança carregada na velha mala que trouxe do interior do Rio Grande do Sul,
toda a felicidade que a cada dia ficava mais distante, foram destruídos por ele. E quem vai
para a cadeia é você? Justiça e castigo não são a mesma coisa. O seu ato era
necessário. Quem deve contas à Justiça é ele, o monstro, que sequer teve a coragem de
vir a esta sessão de julgamento. Certamente, tem medo de sair daqui preso pelas
barbaridades que cometeu.
Com muita calma e baixando o tom de voz, Waldorf finalizou sua defesa
pedindo aos jurados que absolvessem Marli, que a livrassem do jugo da humilhação, do
desprezo, da traição, da covardia e do machismo. Rogou aos jurados que a deixassem
levar a vida livre para cuidar de seus filhos e para costurar os trapos em que se
transformaram todos os seus sonhos de menina simples do interior quando tentou a vida
na cidade.
Não houve réplica pela acusação, como se o promotor concordasse com
o pedido de absolvição feito pela defesa.
Após quatro votos pela absolvição de Marli, o juiz encerrou a votação,
pois a maioria já estava formada.
Marli chorou após tomar conhecimento do resultado. Dizia-se aliviada e
que um peso já insuportável havia sido retirado de suas costas. Abraçou fortemente
Waldorf e lhe agradeceu por tudo que havia feito por ela, sua irmã e seus filhos. Disse que
não tinha como lhe pagar, mas que jamais o esqueceria como exemplo de profissional e
de bondade.
Waldorf agradeceu as palavras de Marli e, em comedido silêncio, sentiu a
felicidade pelo desfecho do caso e também por ter ajudado uma pessoa simples. Lembrou
de uma frase que lera e que dizia algo como: “Mesmo na caridade há um interesse, o de
sentir-se bem”.
Capítulo XII

Adicionaram a palavra internet ao


dicionário e excluíram privacidade. Retiraram
intimidade e incluíram o seu antônimo:
"extimidade".

Sempre às voltas com muitos afazeres profissionais, principalmente agora


com o caso de seu pai, em parceria com Rolf, Waldorf encontrava algum tempo para falar
com alguns amigos, dos quais evitava se distanciar, o que nem sempre conseguia fazer.
Havia lido, não lembrava onde, que amizade é tal qual uma planta: precisa ser regada
com frequência para que não morra.
Agora com as redes sociais, ou antissociais como dizem alguns, o contato
com as pessoas queridas que estavam distantes ficara ainda mais fácil. Via ali a
oportunidade de reencontrar familiares e amigos. Sabia que a exposição demasiada nas
redes sociais não era recomendável, tanto por questão de segurança, quanto pela
preservação da intimidade. Concordou quando assistiu a uma entrevista em que se falou
de “extimidade”, como o oposto de intimidade. Ou seja, as pessoas passavam a expor ao
público algo pertinente à esfera íntima.
Também lembrara do que Roger, seu primo, havia dito certa vez:
“Passamos da fase do ‘ser’ para o ‘ter’ e agora estamos na fase do ‘preciso mostrar que
tenho’”. Era exatamente o que presenciava muitas vezes nas redes.
Por outro lado, além das frequentes e abomináveis práticas racistas,
homofóbicas e preconceituosas de uma pequena parcela de internautas, casos de
violência real poderiam ter origem nas redes sociais, como aquele em que uma mulher foi
linchada no litoral paulista após um boato de seu envolvimento com sequestro e bruxaria
ser disseminado em ambiente virtual.
Waldorf refletia sobre o assunto e, contrariado com tanta barbárie,
pensava: não há julgamentos sumários; todos têm direito à defesa; todos são
presumivelmente inocentes (ela era absolutamente); não existe Justiça com as próprias
mãos ou justiçamento, isso é vingança e/ou homicídio; não há pena de morte; um boato
custa caro, até mesmo uma vida; as redes sociais podem ser perigosas e funcionam
como rastilho de pólvora, disseminando a ira. Para nós, a reflexão; para a família da
vítima a eterna incompreensão da bestialidade humana. Concluiu seu pensamento a
respeito com a célebre e lapidar frase de Voltaire, em seu Tratado sobre a Tolerância:
“Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm.”
Mas ainda assim, havia o lado bom das redes. Conheceu muita gente
bacana, pôde trocar experiências profissionais e reencontrou grandes amigos, dentre eles
Andreas, com quem dividira por um ano um apartamento durante os tempos da faculdade,
além de terem tocado juntos, na adolescência, em uma banda de rock tão conhecida
quanto “The Hype” (o primeiro nome de uma banda que ficou “um pouco” mais conhecida
depois com nome U2).
Andreas era exímio pianista e desde os dez anos, aproximadamente, era
capaz de executar peças complicadíssimas de Mozart, Bach e Chopin. Especializou-se
em neurologia nos Estados Unidos, depois seguiu para a Alemanha para trabalhar em um
hospital de Frankfurt e, por fim, fixou residência na Nova Zelândia, de onde diz não querer
sair mais, apesar de o histórico afirmar que se trata de um cidadão do mundo.
Quando esteve nos Estados Unidos desenvolveu importante pesquisa a
partir de um fato ocorrido com um paciente. Andreas transcrevera pela internet a Waldorf
o que um paciente seu relatou e suas conclusões expostas em um artigo médico.1
Em suma, tratava-se de uma pessoa que havia ido a uma balada e
ingerido algo que chamavam de “desinibidor social”. Segundo ela, o som que se ouvia do
lado de fora se tornava mais rico lá dentro, com ruídos e timbres aleatórios de música.
Após algum tempo, o corpo parecia ter a metade do peso normal e era mais fácil se
movimentar. Ninguém caía ou esbarrava no outro, os espaços pessoais eram mantidos
por um radar inconsciente.
A partir do relato e de seus estudos sobre neurociência, Andreas lembrou
que ela poderia estar sob efeito de dopamina, mas não saberia dizer a quantidade da
substância – somente uma imagem poderia informar. Pensou no contraste entre o rapaz
que dançava no clube e aqueles pacientes que via durante o dia. Estes moviam-se lenta e
pesadamente, caíam do nada - escorregavam ou tombavam como uma massa inerte.
Mesmo caminhando vagarosamente, esbarravam na mobília da casa. Eles tinham pouca
dopamina no cérebro.
Normalmente, os neurotransmissores são usados com parcimônia e
reciclados e guardados, como numa represa. Acreditava que seu paciente havia inundado
os núcleos da base, um dos departamentos de movimento no cérebro, de onde vem parte
do controle de como andamos e da habilidade para a música, por exemplo.

1 O trecho a seguir é fruto do relato de um amigo do autor, um médico, por meio de uma rede social.
À medida que o paciente de Andreas ampliava seu relato, ele ia tirando
suas conclusões:
O ritmo, o movimento constante e o neurotransmissor o deixavam
sensível a elementos da música que de outra forma não teria ouvido. Como estas
vibrações eram transmitidas das partes mais antigas do cérebro para os lobos temporais,
onde se acredita que os sons ganham os atributos da experiência que chamamos de
música? Ninguém sabia. Quando algo de agradável acontece em nossas vidas, como
ouvir música, comer chocolate ou ser abraçado, o núcleo accumbens recebe mais
dopamina do que esperava e estes sinais dizem: ‘agora algo bom aconteceu e tu deves te
sentir assim’.
Seu paciente dizia pensar e mover-se rápido, era o “antiparkinson”, o
“super-eu”. Nessas circunstâncias, segundo Andreas: o “super-eu” tinha em seu núcleo
accumbens a alegria acumulada de uns vinte natais dos tempos de criança, o êxtase de
se conquistar de uma só vez o amor de todas as namoradas que se teve na vida, de
dançar com movimentos graciosos e arredondados que pareciam sublimes.
Waldorf se orgulhara do amigo. Não que fosse surpresa sua capacidade
de desenvolver tais ideias e auxiliar pessoas no tratamento de Parkinson, mas o
conhecimento demonstrado em área tão complexa da ciência era, de fato, motivo de
regozijo. Coisa que somente uma rede social poderia ter proporcionado, dada a distância
física entre ambos.
Capítulo XIII

Um outro caso surgiria de última hora para Waldorf. Cliente antigo, um


grande empresário do ramo do turismo ligou dizendo que estava com problemas fiscais
em relação a uma de suas empresas, um hotel localizado em Miami. Disse precisar que
ele fosse até a cidade americana tratar com os advogados locais a respeito da estratégia
de defesa para a ação penal aberta contra o empresário por sonegação fiscal. O
empresário dissera a Waldorf que havia uma banca de advogados de Miami cuidando do
caso, mas que queria se inteirar da acusação e que ele ajudasse a definir a defesa, nem
que fosse para levantar o valor exato do que era devido ao fisco americano para fins de
pagamento. A preocupação de seu cliente procedia, pois o sonegador de impostos nos
Estados Unidos recebe duras penas quando comprovada a prática do crime. No Brasil, ao
contrário, se o débito fosse pago, não haveria consequências criminais. Um verdadeiro
paraíso fiscal.
Waldorf conferiu sua agenda e verificou que seria possível se ausentar
por uns dias. Com as passagens compradas por seu cliente, Waldorf embarcou em dois
dias, sozinho, para Miami. Devido a compromissos profissionais, Rahyssa resolveu ficar.
Durante o voo, ao ver tantos jovens no avião, a maioria com destino final
em Orlando, Waldorf lembrou-se de alguns momentos de sua adolescência.
Desde cedo, com os incentivos recebidos em casa, interessou-se por
música. O apreço fez com que logo quisesse aprender a tocar e a ter uma banda.
Diferentemente dos tempos atuais, quando Waldorf era mais jovem os instrumentos
musicais de qualidade, basicamente os importados, eram caríssimos. Além disso, a um
músico iniciante não se daria um Stradivarius; era necessário que demonstrasse, antes,
algum talento. Ficava vidrado ao ver uma guitarra Fender ou uma Gibson Les Paul.
Poucos poderiam comprar uma dessas. Quando um artista conhecido se apresentava por
perto, lá ia Waldorf acompanhar o show. E se possível assistia à passagem de som,
aquele momento em que os artistas fazem funcionar os seus amplificadores e então
regulam e testam frequências, timbres e volumes horas antes da apresentação.
Desde logo entendeu o significado da palavra timbre, que na música é a
característica que permite distinguir um som do outro, uma voz da outra. Quando se ouve
o Bono Vox ou a guitarra do Edge, por exemplo, logo se sabe que aquelas melodias são
do U2. Por certo, alguns timbres são muito parecidos e, no caso do U2, várias bandas
soam propositadamente parecidas.
Ainda muito jovem, Waldorf foi ao Rio de Janeiro assistir à segunda
edição do Rock in Rio, um dos maiores festivais de música do mundo.
A primeira edição foi histórica e aconteceu em 1985 em um local
especialmente preparado para receber toda aquela infraestrutura, tornando-se conhecida
como a Cidade do Rock. Nessa edição, diversos artistas vieram ao Brasil, a maioria pela
primeira vez. Nomes como Queen, Whitesnake, Yes, Iron Maiden, George Benson, Rod
Stewart, AC/DC, Ozzy Osbourne e Scorpions acabaram por colocar o Brasil na rota dos
grandes shows internacionais. Entre os brasileiros, destaque para Barão Vermelho, Blitz,
Kid Abelha, Gilberto Gil, Lulu Santos e Paralamas do Sucesso.
Já para a segunda edição, realizada em 1991 no Estádio do Maracanã,
depois da demolição da “Cidade do Rock”, atribuída a questões possessórias e políticas,
vieram outras grandes bandas e artistas internacionais, tais como: Guns N’ Roses, INXS,
Billy Idol, Carlos Santana, Faith No More, Megadeth e Prince. Também houve a
participação dos nacionais, com o lamentável episódio envolvendo o roqueiro Lobão, que
foi praticamente escorraçado do palco por parte do público presente, que, insatisfeito com
a sua música, vaiava e atirava objetos durante a sua apresentação. A organização do
evento errou ao escalar Lobão, que passava longe do estilo Heavy Metal, para a noite
mais pesada do evento, ao lado de Sepultura, Judas Priest e Megadeth, entre outros.
Alguns dos espectadores que estavam bem em frente ao palco e aguardavam por seus
artistas favoritos chegaram a tirar seus calçados para atirar no artista, numa cena
dantesca.
Mas as lembranças de Waldorf sobre o evento eram as melhores
possíveis. Ficara na casa de uns amigos na zona sul. Durante o dia, iam à praia e
passeavam pela movimentada orla do verão carioca. Mas não havia muito tempo, pois no
meio da tarde já era hora de se dirigir ao estádio para mais uma maratona de shows.
Seriam horas e horas de muita música pela frente. As apresentações menos interessantes
eram a senha para um cachorro quente e um descanso nas cadeiras do velho Maraca.
Quando se perdia na multidão, o ponto de encontro com os amigos era a chamada house
mix, aquele local em que ficam os técnicos de som.
Sentir o gramado “balançar” e o público delirar quando o guitarrista Slash
tocou o riff de Sweet Child O’ Mine, o maior hit tocado naquele evento, é algo que não sai
da memória de Waldorf, que ainda se emociona ao rever a cena na internet.
Nessa mesma época em que os jovens brasileiros celebravam a música
no Maracanã, e por que não dizer a paz, diversos outros jovens liderados por iraquianos,
de um lado, e americanos, do outro, travavam a Guerra do Golfo, a primeira transmitida
ao vivo pela TV. A coalização ocidental era muito superior às forças iraquianas de Saddam
Hussein e a vitória capitaneada pelos Estados Unidos do então presidente George Bush,
o pai, veio rapidamente, após um saldo de mortes estimado em 250 do lado ocidental e
25.000 do lado iraquiano, numa absurda proporção de 1 por 100, além de dezenas de
milhares de feridos, principalmente, claro, do lado perdedor. Anos depois, haveria uma
nova investida da família Bush sobre o Iraque. O líder Saddam Hussein acabou capturado
e enforcado, mesmo depois de nenhuma arma química de destruição em massa ter sido
encontrada em solo iraquiano – e era esse o motivo da invasão americana chefiada por
George Bush, o filho.
Ainda no avião, na fileira de poltronas ao lado, chamou a atenção de
Waldorf um árabe que virava as páginas de um livro de trás para frente. Ficara surpreso
com sua própria ignorância. Como não havia pensado nisso antes: as frases são escritas
também de forma invertida, daí porque era certo que ele folhearia as páginas ao contrário
de como fazem os ocidentais. E não adiantou Waldorf conseguir ver título do livro escrito
na contracapa; não, na capa. Ah, deixa para lá, pensou, não iria entender mesmo.
Já em solo americano, Waldorf alugou um carro no Aeroporto
Internacional de Miami e foi para o hotel de propriedade de seu cliente brasileiro. Mesmo
cansado daquela viagem que atravessara a noite, foi dar um passeio pela cidade, já que
seu compromisso era apenas no dia seguinte, no escritório dos colegas americanos,
localizado em Coral Gables.
Dirigiu-se a South Beach, uma das praias mais famosas de todo o mundo,
tanto pela beleza, quanto pelos artistas que por lá circulam. Foi palco de séries de TV
como Miami Vice, por exemplo.
Estacionou em uma perpendicular à Ocean Drive, a avenida à beira-mar
dominada por lojas, restaurantes e hotéis. A arquitetura em Art Déco chama a atenção. O
nostálgico ar de décadas passadas pode ser sentido no local, principalmente quando se
passa em frente ao Avalon ou ao Park Central Hotel e são avistados aqueles carrões
antigos estacionados, um inclusive com um manequim vestido como um motorista
daquela época, com o inconfundível cap e devidamente posicionado no assento do
veículo.
A Ocean Drive é separada da praia pelo calçadão, onde milhares de
pessoas caminham e correm diariamente pelo belo jardim com suas palmeiras e por uma
área verde que termina na faixa de areia. Na pausa para o almoço, Waldorf apreciou um
prato com camarões no The Carlyle. Bom atendimento e boa comida, mas poderiam
servir mais, pensou sob leve influência de seu estômago. Em seguida, algumas fotos pela
praia, inclusive dos conhecidos salva-vidas coloridos.
À noite, após um descanso no hotel, dirigiu-se à famosa Lincoln Road,
lugar imperdível em Miami, mesmo sendo mais um destino no melhor estilo do “turismo
em massa”; seria como ir a Nova York e não passear pela 5ª Avenida ou ir a Paris e não
visitar a Torre Eiffel. Entre lojas e restaurantes que ocupam os dois lados da rua, centenas
de sombreiros e mesas disputavam o calçadão. Era possível ouvir diversos idiomas no
local, com o espanhol na liderança. As famílias com suas crianças e adolescentes
tomavam conta dos restaurantes e das lojas. Também havia diversos casais. Só, apenas
Waldorf, que lamentara o fato. Acabara de falar com Rahyssa por telefone e a saudade
havia apertado.
Sentou-se à mesa de um dos restaurantes após a disputa de garçons por
mais um cliente. Eles exibiam o cardápio e do valor das refeições. Aceitou a sugestão de
Ernesto e então confirmou o pedido de uma lagosta, que foi servida com um estranho
acessório, algo semelhante a um alicate. Waldorf sabia para que servia, mas preferiu
pedir ao garçom que quebrasse o crustáceo, pois não tinha a menor prática com aquilo.
Ernesto era cubano e, como tantos outros, ganhava a vida trabalhando em Miami. Falou
com empolgação e orgulho de Ernest Hemingway; seu nome fora uma homenagem ao
escritor que, em Cuba, escreveu “O Velho e o Mar”.
Após degustar o delicioso prato, usar o lenço com lavanda de limão e
pagar a conta, Waldorf seguiu caminhando pela Lincoln Road, entre lojas, artistas de rua,
restaurantes e galerias de arte, dentre elas a do famoso recifense Romero Britto, onde
comprou lembranças para os parentes.
No dia seguinte, Waldorf estava no escritório dos advogados americanos,
exatamente no horário marcado para a reunião. Lá se inteirou de toda a investigação
contra seu cliente e, apesar de não falar com muita desenvoltura, entendia perfeitamente
o que era dito.
Waldorf enviaria boas notícias ao Brasil, pois o quadro não era tão grave
como parecia. Na verdade, alguns erros contábeis foram cometidos por ocasião do
recolhimento dos impostos, mas segundo o laudo pericial, as falhas eram sanáveis e não
indicavam grande quantia sonegada, tampouco que houve má-fé deliberada na omissão
de alguns dados. A estratégia, então, seria focada no pagamento imediato do valor e na
alegação de que não houve o propósito de omitir algum dado ou mesmo prejuízo aos
cofres públicos.
Waldorf concluíra que seu cliente havia exagerado um pouco quanto à
gravidade do caso. Creditou o fato a ser uma demanda no exterior, especificamente nos
Estados Unidos, bem como à falta de intimidade com a análise jurídica da situação
narrada pelos advogados americanos, mormente por conta da língua.
Seu cliente sabia que não seria facilmente preso em caso de condenação,
a menos que tocasse o solo americano. Entretanto, essa não era uma boa solução, pois
tinha negócios em Miami e gostava de viajar para lá com sua família, algo do qual,
definitivamente, não gostaria de ser privado. Era a moda no Brasil.
Antes de sair do Brasil, Waldorf pedira ao seu cliente que a passagem de
volta fosse marcada para uns dias após seu compromisso profissional e que ele pagaria
do próprio bolso as diárias excedentes, mediante desconto nos seus honorários, no que
foi atendido apenas parcialmente. Seu cliente marcou o retorno para a data desejada,
mas não quis cobrar, em hipótese alguma, a hospedagem daqueles dias a mais de seu
advogado em Miami. Waldorf agradeceu a gentileza e programou alguns passeios por
Miami e pela região.
Com a reunião já concluída e de posse de todos os documentos que
interessavam ao seu cliente, Waldorf aproveitou os poucos dias de folga e resolveu
conhecer alguns outros locais da região, além daqueles de visitação “obrigatória”: outlets,
Best Buy e Guitar Center.
Começou pelo Museu Viscaya e seus jardins, uma mansão em estilo
renascentista construída no início do Séc. XX pelo milionário James Deering, para servir
de residência de inverno. Contratou renomados arquitetos e um paisagista para o projeto
e acompanhamento da obra. Dentre os inúmeros e luxuosos ambientes, alguns
chamaram a atenção. A biblioteca era dotada de lareira e possuía uma belíssima mesa de
trabalho, na qual ficavam dois abajures, sendo decorada com quadros, castiçais e quatro
jogos de lustres, com seis lâmpadas em cada um deles. À direita da entrada de visitantes,
um móvel único servia como estante para diversas obras literárias, sendo que por tal
mobília era possível acessar a sala de recepção, também impecavelmente adornada.
Possuía seis poltronas e sofás, uma mesa de centro, espelhos em três das paredes, um
enorme lustre central, com vinte lâmpadas, e obras de arte. A sala de música, com seus
instrumentos, inclusive uma harpa, era um local para se morar, pensou Waldorf. Em todos
os ambientes, os tetos, as paredes e os pisos eram minuciosamente trabalhados,
havendo, ainda, cortinas e tapetes completando a suntuosidade do local.
Enquanto percorria os ambientes, Waldorf fora avisado por uma
funcionária que dentro de instantes haveria uma explanação sobre os serviços de
restauração que estavam sendo realizados no local. Acompanhou atentamente os
detalhes de como são feitos esses trabalhos e ficou admirado com as técnicas e a
dedicação daquelas pessoas.
Visitou em seguida os enormes jardins, cuidadosamente mantidos. Por
fim, próximo à piscina, um café e uma gift shop foram instalados para atender os turistas.
Ali Waldorf saboreou o melhor hambúrguer de sua vida. Comentou isso com o garçom e
ele respondeu que várias pessoas já haviam feito tal afirmação.
Com o tempo já escasso, Waldorf seguiu para Key West, passando no
caminho por Everglades, um parque que abriga ricas fauna e flora, sendo habitat de
inúmeros crocodilos. Andou pelo píer de onde era possível ver vários desses animais,
bem próximos por sinal. O guarda florestal que acompanhava o passeio disse que jamais
alguém havia sido atacado por um crocodilo. Nesse momento, uma turista aproximou-se
demais de um deles com sua câmera, ao que Waldorf não resistiu e disse: “Don’t be the
first”. Até o guarda, que mais parecia o Belo do desenho Zé Colmeia, por conta do
inconfundível chapéu, riu.
A viagem de carro para Key West, na região conhecida como Florida
Keys, foi fantástica, um visual raramente apreciado. Entre Miami e Key West são cerca de
260 quilômetros de distância, boa parte deles com a vista do Oceano Atlântico, de um
lado, e do Golfo do México, do outro, entre estreitos trechos de terra e muitas pontes,
algumas bem altas e longas. Casas e barcos, muitos barcos, são vistos no caminho que
beira o azul hipnotizante do mar. Não fosse uma região perigosa por conta dos tornados e
furacões, seria perfeita.
Waldorf gostava da letra da música que ouvia naquele momento. Escrita
por Neil Peart, o Ghost Rider e baterista da banda canadense Rush, Anagram, do disco
Presto, era genial. Todas as frases continham palavras que, invertidas as posições das
letras ou suprimidas algumas, tornavam-se outras palavras que se encaixavam
perfeitamente dentro do sentido proposto pelo autor. Suas frases preferidas eram:
“There’s a tic and toc in atomic, leaders make a deal” e “He and she are in the house, but
there’s only me at home”.
Já no destino, Waldorf deu uma volta de carro pela cidade, encontrando
dificuldade para estacionar. Onde havia vaga, os preços eram bem caros.
Visitou a casa do famoso escritor norte-americano Ernest Hemingway,
que viveu na cidade por alguns anos. Uma atmosfera fantástica, com muito verde e
lugares aconchegantes. De quebra, entre árvores, uma vista para o farol de Key West.
Muitas peculiaridades marcavam o local, como uma piscina de água salgada e um
cemitério de gatos. Mas, certamente, o local que mais agradara Waldorf fora o escritório
que ficava no segundo pavimento de um sobrado construído na parte dos fundos do
terreno, onde Hemingway escrevia. Mesmo sem poder entrar, era possível ver, por uma
grade, entre outros móveis, a mesa, a cadeira e a máquina de escrever utilizadas pelo
famoso autor. Na loja que vende artigos relacionados a ele ao local, Waldorf comprou o
livro “The old man and the sea”, com um timbre de autenticidade na primeira página,
indicando que fora comprado na casa em que viveu o escritor, até a separação e a
mudança para Cuba. Ainda nos dias atuais, uma vez por ano, ocorre uma festa em
celebração a Hemingway em Key West, com um concurso de sósias dele.
Waldorf ficara encantado também com uma das principais atrações
turísticas de Key West: o por do sol na Mallory Sunset Square. No ponto mais ao sul dos
Estados Unidos, a apenas 90 milhas de Cuba, centenas de pessoas se concentravam
naquele mês de verão junto ao cais para apreciar e fotografar o belíssimo espetáculo da
natureza. O sol descia calmamente por detrás de algumas ilhas e seguia ao encontro do
horizonte, brilhando seus fulgurosos raios nas nuvens, deixando-as lindamente
amareladas mais ao alto. Igualmente belas estavam aquelas mais distantes, mas em tons
e semitons de laranja. Ao mesmo tempo, o céu azul ia se transformando em uma
impressionante cortina rosada enquanto o mar se transformava num verdadeiro “Espelho
Dourado” - as lembranças de seus pais vieram à tona nesse momento. Esse verdadeiro
arco-íris era completado pelos veleiros e pássaros que faziam das fotos dos amadores
fotógrafos, dentre eles Waldorf, parecerem profissionais, ainda que nenhum filtro ou
photoshop fosse necessário, tamanho o espectro de cores.
Em razão do grande número de turistas na Mallory Sunset Square, muitos
artistas de rua se apresentavam ou vendiam seus produtos por ali, entre pintores,
escritores, artesãos e malabaristas. Um deles chamou a atenção pela habilidade e senso
de humor. Com os braços acorrentados junto ao corpo, ele se equilibrava sobre uma
tábua, que por sua vez estava colocada sobre uma lata redonda posicionada
horizontalmente. A exibição era feita sobre uma mesa para que todos pudessem ver.
Qualquer deslize e o tombo seria certo. Pior: não haveria braços e mãos para protegê-lo
no momento da queda. O artista se equilibrava com grande destreza, dando a impressão,
em muitos momentos, de que cairia. A situação, vista de fora, era um pouco angustiante,
pois era claro que ele poderia se machucar se não mantivesse o ponto de equilíbrio sobre
a tábua e a lata traiçoeiras. Ora para um lado, ora para o outro, e o rapaz conseguiu se
livrar da “armadilha”. Ao final do espetáculo, ele disse que esperava por boas gorjetas,
aquelas de US$ 5 a US$ 20, o que fez com que todos rissem, pois ninguém estava
disposto a tanto. E o artista arrematou:
- Se não me derem essas gorjetas, vou voltar para o meu antigo emprego.
Querem saber qual é?
Os presentes ficaram curiosos para saber qual era, quando então ele
disse:
- Vejam quando procurarem por seus carros no estacionamento daqui a
pouco...
A gargalhada foi geral e muitos deram boas gorjetas ao malabarista do
humor, que se equilibrava como poucos sobre as palavras para ganhar a simpatia da
audiência - e alguma grana, é claro.
Waldorf recordara que certa vez, ao assistir a uma entrevista com o
cartunista Henfil, este definira o humor como a “reversão da expectativa”. Perfeito:
ninguém esperava que o malabarista viesse com aquela de que era ladrão de carros.
E falando em bom humor, parece que isso não faltava em Key West. Um
mendigo sentado em uma cadeira de praia em plena calçada, ostentando um enorme
bigode e fumando, segurava uma placa em que dizia:
“NO BULL
NO LIES
NO ‘STORYS’
I WANT BEER”
Nos espaços vazios da letra “O” da palavra NO, um desenho com um
rostinho sorrindo. Figuraça, pensou Waldorf.
No cais próximo àquela praça, no dia seguinte, Waldorf ficou surpreso ao
ver um transatlântico ali ancorado. Não fazia ideia de que era possível um navio daquele
porte atracar naquele local. Turistas e mais turistas desciam da embarcação e enchiam a
praça, as lojas e os restaurantes ali próximos, na mais perfeita definição do que era o
poder do turismo.
Percorrendo Key West com uma scooter branca, Waldorf viu alguns
engravatados próximo à Corte de Justiça, mas, embora tentado e interessado em assistir
a pelo menos uma audiência, não quis entrar no recinto, preferindo curtir um pouco mais
da bela cidade e do vento em seu rosto, como que a libertá-lo de toda a preocupação com
o trabalho. Passou a compreender, ainda mais, seus amigos que faziam aventuras sobre
duas rodas, quando afirmavam que a moto era a “válvula de escape” para as pressões do
dia a dia. Sem dúvida, eles estavam certos, concluiu.
Pausa para um café da manhã na famosa Duval Street, a mais badalada
da ilha, no restaurante Bagatelle. Uma omelete recheada com tomate, além de frutas e
espinafre, acompanhados de um cranberry juice, uma fruta muito saborosa. Nada mal.
Em seguida, e por fim, já que deveria retornar para Miami, de onde partiria
seu voo de volta ao Brasil, uma visita ao Museu de Arte e História de Key West, situado
próximo a Mallory Square, local em que Waldorf pôde conferir, em um vídeo, a história da
construção da ferrovia que ligava Biscayne Bay a Key West. Denominada Overseas
Railroad, uma extensão da Florida East Coast Railway, ela foi construída ao longo de sete
anos, entre 1905 e 1912, por iniciativa do magnata Henry Morrison Flagler, e tinha 128
milhas entre trechos sobre terra e outros sobre pontes, com vista deslumbrante do
Oceano Atlântico e do Golfo do México. O vídeo mostrava a dificuldade para a construção
daquela ferrovia, tanto pela extensão das pontes como pelos furacões que acometiam a
região no segundo semestre de cada ano. Muitos funcionários morreram durante a obra,
mais de cem em uma única tragédia causada pela força da natureza. A própria ferrovia foi
destruída poucas décadas depois, em 1935, por mais um furacão. Atualmente, a rodovia é
a principal ligação entre a costa e Key West. A partir dela é possível ver a ferrovia em
desuso, que não deixou de ser bela e admirável.
Apesar da curta estada em Key West, conhecer todos aqueles lugares e a
história dessa região mais ao sul dos Estados Unidos foi um grande privilégio para
Waldorf. Poderia ter ficado mais tempo para aproveitar melhor o local, mas era hora de
voltar. Duzentos e sessenta quilômetros até Miami e mais cerca de oito horas de voo o
separavam do Brasil.
Capítulo XIV

Em uma reunião entre Waldorf, Rolf e Freitas foram discutidos os detalhes


da investigação policial, que havia avançado muito com a identificação da origem do
dinheiro que foi depositado na conta do juiz.
Perguntado se sabia quem era Jonas, o pai de Waldorf disse que o nome
não lhe era estranho, mas que não conseguiria lembrar se já havia julgado algum caso
dele, o que não seria incomum em uma cidade pequena.
Em uma pesquisa no Fórum local, identificaram uma ação em segredo de
Justiça contra Jonas. Mesmo sendo o juiz da comarca, apesar de afastado, e tendo
trabalhado no processo em questão, Freitas fez pedido expresso ao magistrado que o
substituía, a fim de que fosse autorizado o acesso aos autos.
Tratava-se de uma ação de busca e apreensão de uma criança com
poucos meses de idade. Jonas e sua mulher foram apontados, no caso, como autores de
uma adoção ilegal, sem respeitar o cadastro de pretendentes. Eles pagaram as despesas
da mãe, uma moça solteira que não poderia criar o bebê, e ficaram com criança dias após
o nascimento. Alegavam que já havia vínculo com a criança e que ela não poderia ser
levada ao abrigo para aguardar por uma adoção legal. O tema é bastante polêmico e,
infelizmente, corriqueiro, mas o Dr. Freitas, com base em laudos elaborados pela
assistente social e psicóloga, entendeu que não havia a formação do vínculo afetivo e que
o caso era, sim, de retirada da criança daquela família.
Faltava confrontar Jonas com tais fatos.
No dia marcado pelo delegado, o empresário não apareceu para prestar
depoimento. Em diligência à sua residência, que ficava no interior do município, ninguém
fora visto no local. Um funcionário que trabalhava ali perto, na empresa de Jonas,
informou que o patrão falou em pegar umas férias com a mulher, o que havia estranhado,
pois tudo fora avisado apenas um dia antes.
A ausência de Jonas, a comprovação de que fora ele o autor indireto do
depósito na conta do juiz e a existência de uma decisão desfavorável em um caso tão
sensível como aquele indicavam sua possível responsabilidade pelos fatos. Mas ele
precisava ser ouvido, até para que se apurasse a participação de outras pessoas,
notadamente de algum dos políticos que disputavam o cargo de prefeito.
Acuado pelas evidências, Jonas partira com a mulher para uma viagem
ao Chile, onde pretendia passar algumas semanas até que a situação se acalmasse em
Espelho Dourado. Sabia que havia se metido em um grande problema ao envolver um
magistrado e os candidatos a prefeito em uma trama jamais vista naquele pacato
município do interior.
Desde que fora cumprida a decisão de apreender a criança que estava
com ele e sua mulher, Jonas passou a nutrir um ódio desmesurado pelo juiz Freitas.
Mesmo com o passar dos anos, e não foram poucos, todos os dias aguardava por uma
oportunidade para prejudicar o magistrado.
Naquela eleição, diante do acirramento dos ânimos e da informação que
obtivera em uma conversa informal com um amigo, dando conta de que o juiz publicaria a
tão esperada sentença no dia 10, resolveu arquitetar o plano para desmoralizá-lo. Sem o
conhecimento de sua mulher, pensou em fazer o depósito na conta do juiz, exatamente no
dia em que seria publicada a decisão. Qualquer que fosse o resultado do julgamento,
Jonas diria, por intermédio do falsário que se passava por Dionata e que por vezes servia
como “laranja” para algumas operações escusas, que a decisão fora comprada, tanto por
Rezende se lhe fosse favorável, quanto por Braga se este fosse o beneficiado.
Teve a ideia a partir de um trecho de um julgamento que assistira pela TV,
quando o presidente de um importante tribunal disse que não conferia o seu
contracheque, ao que o outro colega julgador disse: “pois deveria, depois não vai saber
explicar a origem de algum depósito desconhecido”.
Precisava, no entanto, de pelos menos duas pessoas para pôr o plano em
prática, pois aquele que faria a denúncia ao órgão corregedor não poderia ser o mesmo a
realizar o depósito. Não faria sentido.
Assim, teve a ideia de acionar o conhecido Tomás, que passava por uma
situação financeira ruim, a quem ofereceu R$ 5.000,00 para tanto, bem como o falsário
que utilizava o nome de Dionata para fazer a denúncia. Esse estelionatário foi o autor dos
depósitos feitos em favor de Tomás, tendo recebido R$ 10.000,00, tanto para as
operações bancárias quanto para formular a denúncia com o nome falso.
A ideia de envolver Braga na compra da sentença surgiu quando Jonas
verificou que a polícia já havia chegado ao nome de Tomás. Foi o empresário quem disse
para ele contar ao delegado que fez o depósito a mando do candidato derrotado, o qual
seria o grande beneficiado com a decisão.
No exterior, sem conseguir explicar o motivo da viagem de última hora
para sua mulher e tendo esta percebido o nervosismo do marido, Jonas resolveu contar
tudo, ao que fora duramente repreendido por ela. Marta também tinha motivos para não
gostar do juiz, por conta da decisão que envolvia a criança, mas em hipótese alguma
poderia concordar com aquilo, com o verdadeiro reboliço que ele havia provocado em
Espelho Dourado. Ainda advertiu que o pior ainda estaria por vir: a possibilidade de ser
preso e o valor das indenizações que teria que pagar ao juiz e aos demais envolvidos no
caso, todos acusados injustamente.
Jonas reconheceu os erros que cometeu, mas falava da possibilidade de
vender as propriedades do casal para que os dois ficassem morando no exterior. Assim,
ele poderia se esquivar dos processos. Marta, uma mulher de personalidade forte, repeliu
de imediato a proposta. Não seria essa a saída mais honrosa para o que fora feito, além
do que mencionou casos e mais casos na TV em que pessoas consideradas foragidas
eram presas em outros países.
Alguns dias depois, com a viagem de turismo já transformada em
verdadeiro pesadelo, o casal retornou a Espelho Dourado.
Acompanhado de um advogado, Jonas procurou a delegacia para prestar
depoimento. A ideia era confessar todo o seu plano e isentar todos os demais envolvidos,
notadamente o juiz Freitas. Assim o fez. Detalhou a trama que engendrou e afirmou que
foi movido por um ódio incontrolável do magistrado a partir do caso da criança
apreendida. Disse que Marta não podia ter filhos e que o tratamento de fertilidade nunca
dera resultado. Falou de seus problemas com seus pais e que queria ter um filho para
tentar, com ele, construir os laços que nunca tivera. Mostrava-se infeliz, apesar de ser
bem sucedido financeiramente. Mencionou que a ideia de pegar uma criança logo após o
parto surgiu naturalmente após sua ex-funcionária ter relatado para Marta que havia
engravidado de um rapaz com quem mantivera um curto relacionamento, sendo que não
poderia cuidar do bebê. Chorou ao falar que já mantinha, sim, vínculos afetivos com a
criança e que o juiz fora insensível a tais argumentos, do mesmo modo como foram a
assistente social e a psicóloga, que por serem mães, segundo Jonas, não sabiam o que
era não poder ter filhos.
Sentado à distância e sem intervir, Waldorf também acompanhou o
comovente depoimento de Jonas. Tentava desvencilhar-se dos sentimentos que o
atrelavam diretamente ao caso para compreender as dimensões da falibilidade humana e
dos aspectos psicológicos que moviam as pessoas.
Waldorf lembrou de um pensamento de Freud que bem ilustrava o
ocorrido:
“A maldade é a vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições
que ela impõe. As mais desagradáveis características do homem são
geradas por esse ajustamento precário a uma civilização complicada.
É o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura.”

A sociedade, no caso, era seu pai, aquele que impôs a perda de um filho,
criado como tal por Jonas – pensou Waldorf.
Era impossível não se comover diante daquela cena: Jonas, um homem
de 1,90m de altura, chorando copiosamente ao confessar uma trama para prejudicar,
senão acabar, com a carreira de um juiz íntegro, jamais envolvido em qualquer ato ilícito.
Refletia sobre as consequências desses atos sobre sua família, seu pai,
sua mãe e sobre si próprio. Aquela velha metáfora da honra como um saco de penas
jogadas ao vento não lhe deixava o pensamento. Como reunir tudo isso de volta?,
pensava. A pecha de corrupto, as humilhações nas ruas e nas redes sociais, o escárnio
público. Quem traria a paz de volta? Uma nota de canto nos jornais, afirmando que o juiz
fora absolvido das acusações por “falta de provas” resolveria?
O alívio com as declarações de Jonas, que assim desistira de insistir na
tese de que Tomás agira a mando de Braga, não era maior que o sofrimento causado à
sua família.
Dali, Waldorf seguiu com pressa para a casa dos pais, a fim de dar a boa
notícia.
- Caso encerrado – disse Waldorf, tentando conter a euforia. O delegado
acabou de ouvir Jonas e ele confirmou toda a trama articulada para se vingar de você –
prosseguiu, olhando para o pai.
Os três abraçaram-se fortemente e, aos prantos, Dona Pietra agradecia
ao filho pelo empenho no caso do pai, sem esquecer de Rolf.
E tentando se controlar diante da notícia, Freitas respirou fundo e disse ao
filho:
- Mesmo com todo o sofrimento, eu sempre tive a consciência tranquila
em relação às acusações. Mas estava ansioso pelo dia em que todos pudessem ter
certeza disso, da minha inocência. Esse dia chegou. Obrigado, meu filho. A você e ao Rolf
pelo trabalho que fizeram, não fosse pelo talento de vocês, o final seria outro.
Volveu os olhos para Pietra e disse, com os olhos já marejados:
- Minha querida, obrigado por tudo. Mesmo sofrendo em silêncio, você me
deu o apoio de que tanto precisei para não cair em desespero nesses meses sombrios
por que passamos. Lembro que quando cogitei em pedir a aposentadoria, você me disse
para não fazer, pois seria mal interpretado, como uma forma de fugir do processo
administrativo. Ainda disse que era para eu me manter firme na defesa, pois Waldorf e
Rolf saberiam chegar ao verdadeiro autor desse crime e tudo seria esclarecido.
Abraçou-a fortemente, levando Waldorf às lágrimas, diante da cena em
que seus pais pareciam mais unidos do que nunca. Jamais poderia imaginar que os
heróis de sua infância estariam ali, juntos, agregando as esguias forças que sobraram
após a dolorosa quadra vivida. Era uma cumplicidade que Waldorf raras vezes
presenciara, uma força capaz de lançar a centelha de que precisavam para recuperar a já
lânguida esperança de dias melhores.
Em seguida, um telefonema para Rahyssa, que a tudo acompanhara de
perto. Ela ficou feliz pelo desfecho do caso e levou de presente para os sogros,
pessoalmente e ainda no mesmo dia, um buquê de lírios, representando a paz
restabelecida naquele dia. Há momentos em que o gesto delicado diz mais do que
qualquer palavra, e Rahyssa bem sabia disso.
Rolf, o grande e fiel amigo que se dedicou com desprendimento àquela
causa, em nome de uma parceria que começara há mais de vinte anos, quando se
conheceram na faculdade de Direito, foi avisado em seguida por Waldorf. Igualmente,
ficou eufórico ao saber da notícia, em que pese sempre ser mais comedido. Mostrou-se
surpreso com os motivos alegados por Jonas para fazer o que fez. Metódico, comentou:
- A peça que faltava para montar o quebra-cabeças! Então, foi por isso
que ele quis se vingar de seu pai. Quando as investigações passaram a indicar que um
terceiro teria feito isso tudo e não o Rezende, eu cheguei a pensar que seria mais difícil
ainda. Afinal, quem tinha um motivo aparente era o prefeito. Bom trabalho, Waldorf!
- Sim, meu amigo. Nós fizemos um bom trabalho. Não tenho como lhe
agradecer. Por ora, meu muitíssimo obrigado! Precisamos marcar o jantar para
comemorar.
Passadas algumas semanas, e com os processos contra o juiz Freitas
resolvidos após os depoimentos de Jonas, todos no mesmo teor daquele prestado na
delegacia, a ideia de todos era retomar a vida dentro da mais absoluta normalidade.
Dona Pietra, enfim, pôde respirar aliviada. Tornou a erguer a cabeça nas
ruas e a cumprimentar as pessoas olhando nos olhos de cada uma delas, sem o
constrangimento de antes. Pôde constatar quais eram, efetivamente, suas amigas. As
verdadeiras eram poucas e ficaram do seu lado mesmo nos momentos mais difíceis,
aqueles em que grande parte da população de Espelho Dourado pensava que o juiz
Freitas fosse, de fato, corrupto e venal. Compreendeu, da pior forma possível, o que é ser
julgado por uma comunidade, ter a honra destruída em poucos dias, mesmo com a
certeza da inocência.
O mundo havia se fechado para eles. Enclausurados, amargavam dia
após dia todo o sofrimento da repulsa, do não pertencimento, algo que jamais haviam
experimentado, ao contrário. Assim como seu marido, não era adepta de bajulações, mas
o tratamento cordial que sempre recebera em todos os lugares daquela pequena cidade
já não mais existia, salvo em raros momentos.
A missão de reorganizar os sentimentos, e readquirir a confiança de
outrora seria uma tarefa diária. Era como se um grito de alívio não pudesse ecoar de uma
vez só. Continuava contido, mas querendo sair. De uma elegância ímpar, Dona Pietra
também fazia jus ao seu nome: além de uma fina mulher, era forte como um rochedo, a
sustentar a si e ao marido.
O juiz Freitas retomou os trabalhos no Fórum de Espelho Dourado,
também de cabeça erguida, sendo recebido por todos com uma bela homenagem, alguns
com certo remorso por terem se deixado levar pelas suspeitas.
Posteriormente, no silêncio do seu gabinete, viu-se novamente entre
reflexões sobre o ocorrido. Os aprendizados seriam muitos, desde os cuidados que o
homem público deve tomar com as armadilhas até a compreensão de como cada uma de
suas ações, por mais que sejam corretas, podem interferir na vida de outras pessoas,
sem que sequer se saiba disso.
Viver é um constante risco, pensou. Maior ou menor, mas sempre
presente. Às ações, as inevitáveis reações; causa e efeito. Àquele que julga, tudo é
potencializado. É conviver com a dura missão de lidar posteriormente com os próprios
erros, com o inevitável sentimento de que poderia ter feito diferente. E mesmo nos
acertos, a absoluta certeza de que interferiu, para o bem ou para o mal, na vida de
alguém.
Julgar é administrar conflitos, em diversos casos maximizá-los. É estar no
front de batalha munido de um pequeno escudo de vidro, transparente e frágil. Ao mesmo
tempo em que se exige do julgador, por óbvio, a correção de sua conduta e os motivos
que o levaram a decidir, é fato que ele vira alvo fácil de todo o leque de más intenções, do
fuxico à desforra, do boato ao sensacionalismo, do denuncismo ao julgamento via
mensagens instantâneas, tudo sem defesa alguma.
Ao longo de anos e anos de carreira, o juiz Freitas já vira muita coisa.
Entendia o ser humano como imperfeito e limitado. Jamais condenou alguém à prisão
com satisfação pessoal. Tinha o sentimento de que era a incompreensão quem
condenava algumas pessoas, não a Justiça. Como não compreender a história de cada
um, suas experiências, seus dramas, suas necessidades, suas escolhas?
Por certo, há limites para se viver em sociedade. Mas o que fazer quando
alguém, desde sua primeira infância, não teve qualquer noção do que seria a linha
divisória do que se pode ou não fazer, das consequências de suas ações? Seria o cárcere
o mais indicado a exercer a figura do “pai”? Uma indenização? A punição apenas por
vingança? Como agir quando a relação entre a imposição de limites e o afeto não fora
devidamente equacionada pelos pais ou responsáveis por uma criança?
O juiz Freitas sempre refletira sobre isso e agora estava para decidir as
providências que tomaria contra Jonas, responsável pelas acusações que o abalaram
profundamente. Tais questionamentos internos eram cada vez mais inquietantes e
frequentes.
Mas apesar de ter todos os motivos para odiar Jonas, não era esse o
sentimento que nutria. Do ponto de vista pessoal, embora não concordasse com
quaisquer das ações dele, gostaria de dar o assunto por encerrado, sem precisar levar
adiante um pedido de indenização, até porque dinheiro nenhum seria capaz de repor a
tranquilidade que havia perdido.
Mas junto à comunidade local, a ideia de o juiz não processar o seu algoz
soaria estranho, como se nada de grave tivesse ocorrido.
Em meio a tantos pensamentos, resolveu optar por um acordo com Jonas,
que consistiria em uma retratação na rádio e nos jornais locais, com a leitura e
reprodução de um texto com teor previamente acordado, que incluía também a total
isenção dos candidatos Rezende e Braga nos fatos ocorridos, bem como no pagamento
de cento e cinquenta mil reais em favor do Recanto Malala de Espelho Dourado, o local
onde ficavam as crianças vítimas de violência ou abandonadas e que funcionava em uma
velha casa. O nome, entretanto, era novo e fora concedido em homenagem à
paquistanesa que, por lutar pela educação feminina, havia sido alvo de atentado pelo
grupo talibã. Não só teve força para se recuperar de um tiro na cabeça, como conquistou
o Prêmio Nobel da Paz. Jonas também deveria abrir mão de mais cem mil reais, aquele
valor que havia depositado, por intermédio de um “laranja”, na conta de Freitas.
Consultado pelo pai, Waldorf disse que compreendia sua postura e que
com ela concordava, pois era um gesto de extrema grandeza, coisa para poucos.
Inspirado, completou:
- Em um mundo em que a intolerância e o desejo de vingança desfilam de
mãos dadas, e sob os aplausos das multidões, a sua atitude será tão bela quanto
incompreendida.
Foi o próprio Waldorf quem intermediou o acordo que acabou sendo
fechado nos termos propostos pelo Dr. Freitas.
Para Jonas, um excelente acordo, mas que só o fez sentir ainda mais pelo
que havia feito, diante da integridade daquele homem, a quem acusara injustamente.
Voltar no tempo talvez fosse mais fácil do que imaginar as consequências de seus atos.
Meses depois de fechado e cumprido o acordo, o Recanto Malala,
administrado por uma ONG, foi reinaugurado com a presença do juiz Freitas e de Dona
Pietra, que ali prestava serviços voluntários.
Eram oito crianças abrigadas naquela data. Uma delas era o pequeno
Michel, o único sobrevivente de uma família de cinco pessoas que teve a casa
incendiada. No dia do fatídico acidente, sua mãe, Sarah, estava grávida de sete meses.
Ela foi levada às pressas ao hospital, mas não resistiu. Conseguiram, então, fazer o parto
e salvá-lo. Poucos dias depois, estava no abrigo e, por sugestão de Freitas, começou a
ser chamado de Michel, tal como o pequeno menino do filme “A Chave de Sarah”, que
ficou escondido em um armário para se proteger da polícia francesa, por ocasião da
ocupação nazista em 1942. Sua irmã trancou-o no armário, levando a chave consigo, na
expectativa de buscá-lo em seguida.
Como usualmente ocorria, cada visita sua ao abrigo das crianças
reforçava sua crença de que era possível fazer alguma diferença na vida de outras
pessoas, a fim de ajudá-las a superar as dificuldades que se erguiam à sua frente.
Gostaria que cada uma delas pudesse falar tal como Zaratustra o fez na obra-prima de
Friedrich Nietzsche: “Aquele que escala as mais altas montanhas ri de todas as tragédias
e de todos os dramas.”
Ao ver aquelas crianças abrigadas, ciente de que algumas chegariam à
maioridade sem serem adotadas, e o pequeno Michel dormindo em seu berço,
cuidadosamente arrumado em um dos quartos do Recanto Malala, Freitas, sozinho
naquele momento, pensou em como eram pequenos os seus problemas.
Fontes consultadas:

http://universityicons.com/2014/01/real-john-harvard-please-stand/
www.wikipedia.com
http://www.quimica.net/emiliano/artigos/2007jan_forense2.pdf
Guia Visual PubliFolha – Nova York
http://www.falandodeviagem.com.br/viewtopic.php?f=143&t=7482

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